Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5454/03.0TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO NO ESTRANGEIRO
NORMA DE CONFLITOS
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
SEGURO OBRIGATÓRIO AUTOMÓVEL
LEGITIMIDADE PASSIVA
Data do Acordão: 06/07/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES - RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL
Doutrina: -Mariana Paupério Pereira, O Seguro Obrigatório de Circulação Automóvel nos Sistemas Jurídicos Português e Brasileiro, in www.meujus.com.br/revista/texto/18165
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 41.º, N.º1, 42.º, N.º1, 45.º, N.º3, 348.º, 483.º, 487.º, 497.º, 788.º.
DL N.º 522/85, DE 31-12: - ARTIGO 29.º.
Sumário :
1. A acidente de viação, ocorrido no Brasil, envolvendo viatura pertencente a cidadão brasileiro, matriculada e segurada no Brasil, onde seguiam, como passageiros, os lesados e como condutor ocasional, o réu demandado - que agiu culposamente, violando um dever geral de prudência e perícia na condução, realizada fora das vias públicas - todos eles cidadãos portugueses que ali se encontravam ocasionalmente e por período curto, no âmbito de uma viagem turística, aplicam-se, por força das normas de conflitos constantes do nº3 do art.45º e do art. nº1 do art. 41º do CC, respectivamente, o direito português à definição da responsabilidade extracontratual do condutor e o direito brasileiro à definição do regime e conteúdo da relação de seguro obrigatório automóvel.

2. A regra especial sobre legitimidade , constante do art. 29º do DL 522/85, não pode aplicar-se automaticamente a todas as acções propostas perante os tribunais portugueses, ainda que regidas, em termos de direito internacional privado, por um ordenamento jurídico estrangeiro, já que tal regime de legitimidade – particularmente favorável ao lesante, ao limitar a acção directa do lesado no seu confronto, desde que a pretensão indemnizatória deduzida contra a seguradora não ultrapasse os valores do seguro obrigatório – surge como um corolário da natureza do seguro automóvel e da intensidade que o respectivo regime material nacional confere aos lesados.

3. Assim, tal regime não pode transpor-se automaticamente para relações jurídicas regidas, na sua substância, por direitos estrangeiros, em que o seguro assume uma natureza e fisionomia substancialmente diversas das que resultam da ordem jurídica nacional e em que não se mostre identicamente previsto um regime restritivo quanto às possibilidades de efectivação dos direitos dos lesados, impondo-se sempre, como regra fundamental, o princípio da tutela efectiva e da não desprotecção das vítimas dos riscos de circulação rodoviária.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. AA e marido, BB, instauraram acção declarativa, com processo comum ordinário, contra a Companhia de Seguros ............., SA, (ora denominada Companhia de Seguros Fidelidade ............., SA) , ............. – Agência de Viagens e Turismo, L.da e DD, pedindo que os réus fossem condenados pagar à autora (I) a quantia de € 38.444,11 e ao autor (II) a quantia de € 2.642,25, quantias essas acrescidas de juros, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento.
Fundamentando a sua pretensão, alegaram, em síntese, que, em 2001, se deslocaram ao Recife - Brasil, integrados numa viagem turística, a qual foi oferecida à autora pela H......., tendo-se o autor marido integrado também na viagem, acompanhando a mulher, mas custeando do seu bolso o respectivo bilhete.
A H....... encarregou a 2ª ré de organizar a viagem, tendo o respectivo programa sido fornecido aos participantes e o 3º réu foi o guia acompanhante do grupo durante a viagem.
Fazia parte das condições da viagem a efectivação de um seguro de viagem, no montante de 500.000$00, contratado com a 2ª ré.
Uma das actividades incluídas no programa da viagem foi um passeio de “buggy” pelas praias próximas de Porto Galinhas, passeio esse no qual participaram os autores.
Quando se encontravam já de regresso do passeio, circulando no areal, o réu DD, que conduzia o buggy no qual eram transportados os autores, efectuou uma guinada brusca no volante do veículo, o que determinou o capotamento do mesmo, tendo, em consequência disso, ficado a autora gravemente ferida, com escoriações várias, fracturas de ambos os pulsos e corte profundo no joelho esquerdo.
Foi transportada para o Hospital, onde foi submetida a duas intervenções cirúrgicas aos pulsos e outra ao joelho esquerdo, tendo, por via disso, ficado internada 11 dias e depois regressou a Portugal, onde continuou em tratamento até Janeiro/2002.
A autora continua a apresentar rigidez do punho direito e ferida deformativa do joelho esquerdo, o que lhe determina uma IPP de 0,098, mantendo dores permanentes e perda de força nos pulsos, bem como grandes dificuldades na realização das tarefas diárias.
Sofreu fortes dores e abalo psíquico e físico e outros danos físicos e morais.
O autor marido pagou a respectiva viagem e não tirou o menor proveito da mesma, sofrendo também forte abalo psicológico e moral, ao acompanhar o sofrimento da mulher, a quem teve que prestar auxílio durante os meses em que durou o tratamento.

A ré Fidelidade ............. contestou, pedindo que a acção fosse julgada improcedente, pois que, nos termos da apólice de seguro e no que respeita à rubrica “despesas de tratamento e de repatriamento 500.000$00”, já indemnizou a autora, tendo esta dado a competente quitação.
Em sede de eventual responsabilidade por incapacidade permanente, a mesma teria que ser avaliada nos termos das condições gerais, perante a solicitação da ofendida, o que não foi efectuado e os danos invocados relativamente ao autor não são cobertos pela apólice.
Os réus ............. – Agência de Viagens e Turismo, L.da e DD também contestaram, excepcionando a incompetência absoluta do tribunal, bem como a ilegitimidade dos réus, uma vez que o proprietário do buggy transferiu a responsabilidade civil do veículo para entidade sediada no Brasil - a Federação Nacional dos Seguros Privados e de Capitalização – F........... -, sendo o seguro obrigatório, pelo que os pedidos de indemnização deviam ser formulados contra a seguradora e não contra os réus – e impugnando a versão do acidente, constante da petição inicial.
Acrescentaram ainda que, para além do seguro de viagem, a 2ª ré celebrou com a.... Seguros, SA, um contrato de Seguro das Agências de Viagens, tendo transferido a sua responsabilidade para essa seguradora, pelo que sempre seriam os réus partes ilegítimas.

Os autores replicaram, dizendo - relativamente à contestação da seguradora - que a mesma não lhes deu conhecimento das cláusulas contratuais, tendo-se limitado a autora a assinar um recibo que lhe foi presente pela ré e só recentemente a incapacidade da autora pôde ser avaliada.
Quanto à contestação dos restantes réus, sustentaram a competência do tribunal e o desconhecimento da existência de algum seguro automóvel que, a existir, tal não eximiria de responsabilidade os réus.
Foi proferido despacho, convidando os autores a fazer intervir a F..........., e os 2º e 3º réus a requerer a intervenção da seguradora.....
Tais intervenções foram requeridas, tendo sido admitida a intervenção principal das chamadas.

A F........... foi citada e não contestou ; e a Companhia de Seguros.... apresentou contestação, sustentando, nomeadamente, que, de acordo com as condições gerais do contrato celebrado com a ré ............., estão expressamente excluídos os danos decorrentes de acidentes de viação provocados por veículos obrigados a seguro, o que seria o caso dos autos.

Foi julgada improcedente a excepção de incompetência absoluta do tribunal e, no despacho saneador, decidiu-se que o Tribunal é o competente.
Foram igualmente as partes consideradas legítimas, tendo sido julgadas improcedentes as excepções de ilegitimidade passiva invocadas.

Foi proferido despacho a fixar a Base Instrutória, não tendo sido apresentadas reclamações.

Procedeu-se a julgamento, sendo seguidamente, proferida sentença, em que se julgou a acção parcialmente procedente , decidindo-se em consequência:

1) - Condenar o réu DD e a Interveniente Federação Nacional dos Seguros Privados e Capitalização – F........... - a pagar à autora AA:
a) - a quantia de € 393,75, acrescida de juros de mora vencidos desde a data da citação e vincendos, à taxa de 4% ano e até integral pagamento;
b) - a quantia de € 13.000, acrescida de juros de mora vincendos desde a data presente sentença, à mesma taxa de 4%, até integral pagamento e
2) - Condenar os mesmos a pagar ao autor BB a quantia € 354,40, acrescida de juros de mora vencidos desde a data da citação e vincendos, à taxa de 4% ano e até integral pagamento;
3) - Absolver os mesmos do mais que contra si era peticionado e
4) - Absolver as rés Companhia de Seguros ............., S.A., ............. –Agência de Viagens e Turismo, L.da e a Interveniente Companhia de Seguros...., SA da totalidade do pedido.

2. Inconformado, apelou o réu DD, tendo a Relação, porém, confirmado a decisão recorrida.

Novamente inconformado, interpôs o mesmo R. DD a presente revista, que encerra com as seguintes conclusões que, como é sabido, lhe delimitam o objecto:

1- O Recorrente discorda parcialmente da decisão da primeira instância e totalmente do Douto Acórdão proferido a fls. conforme se propõe explicitar.
2- Na verdade, o ora Recorrente entende que está a ser vítima de uma grande injustiça e vem fazer um último apelo a Vossas Excelências a fim de se fazer Justiça na última instância deste país.
3- Pois, o Recorrente entende que a sentença e o Acórdão proferido tem vícios que ferem a validade dos mesmos, nomeadamente por falta de fundamentação legal e deficiente aplicação e interpretação da lei.
Posto que:
4- A decisão da Ia instância no parágrafo 7 da pág. 13 e o Douto Acórdão de fls. partiu do pressuposto de que:
"Da matéria provada resulta que os AA. e os RR. são portugueses e que aqueles e os RR. ............. - Agência de Viagens e Turismo, Lda. e DD se encontravam ocasionalmente no Brasil, pelo que, em termos de responsabilidade extracontratual também é aplicável a lei portuguesa".
5- Daqui partindo, urge aplicar o direito e esse no caso concreto forçosamente não poderá passar pela fundamentação de condenar o ora Recorrente com base no princípio da exclusão de partes.
6- Portanto, em violação manifesta do princípio da legalidade material previsto no art° 659° n° 2, 158°, 666° n° 3, 660° do C. P. C, bem como, do art° 13° e 208° da Constituição da República Portuguesa do C. P. C. e o princípio da tipicidade prevista na lei civil.
7- Visto que, ao contrário do que acontece nos negócios jurídicos (vide art° 405° do C. C.) que vigora o princípio da liberdade contratual, na responsabilidade civil extracontratual (art° 483° e 497° do C. C), a lei tipifica direitos, negócios, efeitos ou situações jurídicas não reconhecendo outros para além desses, que nela se encontrem expressamente previstos.
8- Assim sendo, o Douto Acórdão da Relação e o Tribunal da Ia instância condenou o Réu ora recorrente com base na responsabilidade solidária sem que para tal existe qualquer fundamento legal porque não enquadrável no art° 497° ou noutra disposição legal.9- A sentença e o Acórdão ora recorrida são nulos porque não fundamentados em disposição legal em violação manifesta do princípio da legalidade material a que o juiz está necessariamente vinculado pois, numa decisão judicial deve ser indicar e aplicar o direito (vide art° 659° n° 2 do C. P. C), ou seja, indicar a (s) norma (s) que sustenta a sua fundamentação de direito.
10- De tal modo que, para efeitos do instituto do direito de regresso a seguradora não pode dele fazer uso quando haja mera culpa do responsável pelo acidente, nos termos do art° 19° ai. a) do dec. Lei n° 522/85 de 31 de Dezembro em vigor à data do acidente.
11- Se a lei portuguesa não exige ao culpado, em acidente automóvel, que reembolse a seguradora os danos que pagou ao lesado, como pode exigir que aquele seja com esta solidariamente responsável?
12- Bem pelo contrário, visto que, por força do art° 29° n° 1 ai. a) desse mesmo diploma os responsáveis civis são partes ilegítimas na presente acção porque as acções de responsabilidade civil automóvel, devem ser intentadas tão somente contra a seguradora do veículo interveniente no sinistro automóvel.
13- Recorda-se que, sendo a âncora da decisão recorrida a aplicação do direito do direito português aos presentes autos e estando provado nos autos que:
a) O proprietário do "buggy", EE, transferiu a responsabilidade civil deste veículo automóvel para a Federação Nacional dos Seguros Privados e Capitalização - F........... -, através do competente seguro DPVT, titulado pelo bilhete n° 000000000000 (vide ponto 46 da pág. 10 da sentença ora recorrida);
b) É um seguro obrigatório de danos pessoais causados por veículos automotores de via terrestre (DPVAT) (vide ponto 46 da pág. 10 da sentença ora recorrida);
c) O ora Recorrente realizou as funções aludidas na alínea C) dos Factos Assentes por conta, ordem, direcção e no interesse da 2a R. (vide ponto 47 da pág. 10 da sentença ora recorrida).
d) A ocorrência do acidente ficou a dever-se a culpa efectiva do condutor do veículo e dos próprios AA. (vide 4 parágrafo da pág. 19 da decisão recorrida).
14- Como se pode chegar à conclusão que, de algum modo o ora Recorrente pode ser responsável pelo pagamento de qualquer quantia a título indemnizatório aos Autores?
15- A que título!!!!!!!? Com que fundamento legal?!
16- Pois tal como o seu conceito assim define o contrato de seguro não é mais do que um meio através do qual o segurador garante o segurado contra os danos que este seja responsável e por força desse contrato o segurador fica obrigado a cumprir as obrigações de indemnizar que o seu segurado venha a ter relativamente a terceiros (vide art° 137° e 138° do Dec. Lei n° 72/2008 de 16 de Abril).
17- Portanto, existe uma transferência de responsabilidade do segurado para o tomador do seguro!
18- Deste modo, e estando um seguro obrigatório validamente celebrado com a Ré F........... só ela poderá ser condenada nos presentes autos.
19 - Não se querendo retirar tais consequências desse contrato só se poderá admitir então que deverá ser responsável a Ré Companhia de Seguros.....
20 - Visto que, a R. ............. celebrou com a Companhia de Seguros...., S. A. um contrato de seguro de responsabilidade civil, regido pelas condições particulares e gerais que se encontram juntas a fls. 160 a 176 (vide ponto 8 da pág. 6 da sentença ora recorrida).
21 - E, nesse caso não deverá ser invocada a excepção prevista no artigo 4o das Condições Gerais respeitantes desse seguro consta:
"Art° 4º
- Exclusões
Excluem-se sempre os seguintes danos:
(...) - alínea b) - decorrentes de acidentes de viação provocados por veículos que, nos termos da legislação em vigor, sejam obrigados a seguro (...) "(vide ponto 6 da pág. 6 e 56 da pág. 11 da sentença ora recorrida);
22 - Assim sendo, de modo algum poderá o Réu ora Recorrente ser co-responsável com a F........... no pagamento de qualquer indemnização que seja devida no âmbito dos presentes autos.
23 - Por outro lado, não se deve argumentar que, por as vítimas não terem requerido a indemnização perante a F........... o pagamento da indemnização devida deve ser co-imputado ao ora Recorrente tal responsabilidade.
24 - Visto que, tal era inverter a estrutura de um Estado de Direito Democrático e penalizava-se o ora Recorrente pelo ónus que assiste aos Autores.
25 - A F........... foi devidamente citada nos presentes autos para, querendo, contestar a presente acção e nada disse.
26- Do que se infere que se conformou com o pedido.
27- Qualquer outra conclusão é abusiva e ilegal.
28- E não se invoque que atento o disposto na Lei do Seguro Obrigatório vigente no Brasil à data do acidente - Lei n° 6.1945, de 19 de Dezembro de 1974, aplicável por força do disposto no artigo 42°, n° 1 do Código Civil -, para além do R. DD, é ainda responsável pelo pagamento das quantias referidas a interveniente F..........., pois considerou-se que nessa Lei não existe norma equivalente ao disposto no art° 29° do Dec. Lei n° 522/85, 31 de Dezembro, e que o R. não invocou qualquer outra norma que permita concluir que face à existência de seguro a sua responsabilidade ficaria excluída.
29- Porque recorda-se está assente que a lei a aplicar é a portuguesa (vide parágrafo 7 da pág. 13).
30- Então porque se pretende aplicar nuns casos a Lei Brasileira e noutra a Lei Portuguesa? Só por manifesta contradição!
31- Mas se assim se pretende qual é a norma do direito brasileiro ou do diploma em causa que responsabiliza o Réu no pagamento em causa?
32- A Lei do Seguro Obrigatório vigente no Brasil à data do acidente, ou seja, a Lei n° 6.1945, de 19 de Dezembro de 1974, não contém qualquer disposição que responsabilize o responsável pela produção do acidente pelo pagamento de qualquer indemnização ao lesado.
33- Bem como não prevê, em relação a situações de indemnizações por veículos não identificados, com seguradora não identificada, seguro não realizado ou vencido, nesses casos é responsável pelo pagamento um consórcio constituído, obrigatoriamente, por todas as sociedades seguradoras que operem no seguro objecto desta lei (vide art° 7o).
34- E, nos casos particulares enunciados no número anterior, esse diploma prevê, a título excepcional, que o consórcio poderá exercer o direito de regresso contra o proprietário do veículo dos valores que desembolsar (vide § Io do art° 7o).
35- Ou seja, também neste caso, o Consórcio responde primeiro perante o lesado e só depois poderá exercer o direito de regresso, não contra o culpado do acidente, mas contra o proprietário.
36- Deste modo, também por via desta fundamentação o ora Recorrente não poderia ser responsável pelo pagamento de qualquer quantia que seja devida aos A A.
37- No caso concreto, acreditamos que mesmo fazendo uso da figura da interpretação extensiva ou analógica não poderemos chegar ao entendimento vertido na sentença e Acórdão ora recorridos.
38- Face ao precedente, deverá o Recorrente ser absolvido "in totum" do pedido.
39- Nesses termos, entende-se, com todo o respeito, que os vícios e as omissões da sentença ora recorrida são, pois, mais do que evidentes, o que se invoca nos termos e efeitos do art° 668° n° lai. b) e c) C. P. C.
40- Na verdade, e por via da fundamentação de facto e de direito já exposta, o ora Recorrente entende que, deve ser absolvido do pedido e ser condenado tão somente a interveniente principal F...........a pagar as quantias que o Tribunal "a quo" considerou como devidas aos AA com a consequente absolvição do Recorrente.
41- Por fim, dir-se-á ainda que a indemnização, no valor de 25.000,00 €, arbitrada pelo Tribunal "a quo" à A. e a título de danos não patrimoniais afigura-se manifestamente excessiva face à matéria factual dada como provada e constante nos pontos 16, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 32, 33, 34, 35, 36,37, 38, 53 e 58 do relatório da sentença ora recorrida e cujo conteúdo se dá integralmente como reproduzido.
42- Bem como, aos critérios constantes no art° 496° n° 3 do Código Civil, que mandam atender ao grau de culpabilidade do agente, à situação económica deste e do lesado e às demais circunstâncias do caso.
43- Sendo certo que o Tribunal " a quo" deverá ter sempre como referência máxima os valores atribuídos a título de indemnização por dano morte.
44- Pelo que, o Apelante entende que tal valor deverá ser reduzido, sugerindo-se, desde já a quantia de 10.000,00 €.
45 - No caso concreto há no entanto que ter em conta a repartição de culpa, na proporção de 50% para o Apelante e para a Autora, o que se invoca nos termos e para os efeitos dos art° 668° n° 1 ai. c) e d), 660° e 661° do C. P. C..
46 - Nestes termos, a sentença ora recorrida violou o art° 8°, 9o, 10°, 496° n° 3 e 497° do Código Civil, art° 158°, 668°, 659° n° 2 e 666° do C. P. C, art° 13° e 208° da Constituição da República Portuguesa, a Lei Brasileira n° 6.1945, de 19 de Dezembro de 1974, o n° 2 ai. a) do art° 51° do Dec. Lei n° 209/97 de 13 de Agosto, o art° 29 n° 1 ai. a) do Dec. Lei n° 522/85 de 31 de Dezembro, o art° 137° e 138° do Decreto Lei n° 7272008 de 16 de Abril, pelo que deve ser revogada na parte ora recorrida e nos termos sobreditos.

A recorrida.... contra-alegou, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.

3. As instâncias fizeram assentar a decisão do pleito na seguinte matéria de facto:

1 - Os autores são casados um com o outro (alínea A).
2 - A H....... encarregou a 2ª ré de organizar a viagem dos autores, constando o respectivo programa, fornecido aos participantes, do anexo de fls 11 (alínea B).
3 - O 3º réu, DD, foi o guia acompanhante do grupo durante a viagem (alínea C).
4 - Faz parte das condições da viagem, estando incluída no respectivo preço, a efectivação de um seguro de viagem, no montante de 5.000.000$00, contratado com a 2ª ré, Companhia de Seguros ..........., SA (alínea D).
5 - O “buggy” é um veículo automóvel sem tejadilho, sendo um meio de transporte de passageiros muito utilizado, designadamente no Brasil, para passeios nas praias e nas dunas (alínea E).
6 - Os autores admitem que a ré ................ já liquidou as despesas hospitalares, médicas e medicamentosas efectuadas com a autora no Brasil (alínea F).
7 - A ré ............, SA, entendeu aplicável ao caso a apólice de fls 32 a 43, apenas no tocante à rubrica: despesas de tratamento e de repatriamento – 500.000$00 – e por isso indemnizou a autora nesse montante e nos termos de fls 44 (alínea G).
8 - A Companhia de Seguros...., SA, celebrou com a ré Plenotour um contrato de seguro de responsabilidade civil, regido pelas condições particulares e gerais que se encontram juntas de fls 160 a 176 (alínea H).
9 - No dia 12/05/2001, os autores deslocaram-se ao Recife – Brasil, integrados numa viagem turística (quesito 1º).
10 - A viagem destinava-se aos gestores comerciais de diversas empresas distribuidoras de produtos H........, entre elas a Karma Portugal, SA, à data entidade patronal da autora, mulher, a quem foi gratuitamente proporcionada tal viagem (quesito 2º).
11 - O autor marido acompanhou a autora, sua mulher, na viagem aludida na alínea A) e o mesmo pagou tal viagem, a qual importou no montante de € 1.134,07 (resposta aos quesitos 3º, 40º e 65º.
12 - Uma das actividades incluídas no programa de viagem foi um passeio de “buggy”pelas praias próximas de Porto Galinhas (resposta ao quesito 4º).
13 - Na manhã do dia 16/05/01, os autores e os demais participantes deslocaram-se do hotel onde estavam hospedados para o local onde teve início o passeio de “buggy” (resposta ao quesito 5º).
14 - Os participantes foram distribuídos por seis “buggies”, sendo o veículo, onde seguiam os autores, conduzido pelo 3º réu, DD (resposta ao quesito 6º).
15 - Nesse dia, cerca das 15.30 e já no regresso do passeio, quando circulavam no areal da praia, DD, perante a aproximação de uma onda e para se afastar da mesma, efectuou uma guinada repentina, para a direita, ao volante do “buggy”, o que determinou o capotamento do mesmo, tendo os respectivos ocupantes sido projectados para fora da viatura (resposta ao quesito 7º).
16 - Em consequência do que consta da resposta ao quesito 7º, a autora mulher sofreu, além de escoriações várias, fracturas em ambos os pulsos e ferida inciso-contusa no joelho esquerdo (resposta ao questo 8º).
17 - Após o acidente, foi imediatamente transportada para o Centro de Saúde local da Senhora do Ó e daí foi transferida para o Real Hospital Português do Recife (resposta ao quesito 9º).
18 - Neste hospital, foi assistida na unidade de ortopedia, onde foi submetida a duas intervenções cirúrgicas aos pulsos (uma em cada um), tendo sido colocado um fixador no esquerdo e encavilhamento de fios de Kirschnher no direito (resposta ao quesito 10º).
19 - A autora foi sujeita a sutura ao joelho esquerdo (resposta ao quesito 11º).
20 - Em consequência da ferida aludida na resposta ao quesito 8º, a autora contraiu uma necrose, a qual consiste na degenerescência dos tecidos (resposta ao quesito 12º).
21 - A autora esteve internada no referido hospital durante 11 dias, ou seja, até 27/05/2001, data em que regressou a Portugal (resposta ao quesito 13º).
22 - Quando regressou a Portugal, a autora trazia ambos os pulsos e o joelho esquerdo imobilizados, deslocando-se em cadeira de rodas (resposta ao quesito 14º).
23 - Em Lisboa, a autora continuou o seu tratamento, passando a ser acompanhada na Unidade de Ortopedia do Hospital Curry Cabral, onde em 12/07/2001 foi sujeita a nova intervenção cirúrgica para a remoção do fixador e dos fios de Kirscnher que lhe haviam sido colocados nos pulsos (resposta ao quesito 15º).
24 - Após essa remoção, a autora iniciou um programa de reabilitação que se prolongou por seis meses (resposta ao quesito 16º).
25 - Durante dois meses após o acidente, a autora apenas se pôde deslocar em cadeira de rodas e foi submetida a consultas semanais no Hospital Curry Cabral (resposta aos quesitos 17º e 30º).
26 - Entre Julho/2001 e Janeiro/2002, a autora foi submetida inicialmente a tratamentos diários de fisiatria, passando depois tais tratamentos a ser efectuados três vezes por semana (resposta ao quesito 18º).
27 - A autora continua a apresentar dores nos punhos e cicatriz horizontal no nível do joelho esquerdo, o que lhe determina uma Incapacidade Geral Permanente Parcial Global de8% (resposta ao quesito 20º).
28 - As dores aludidas no quesito 20º são sentidas principalmente durante a noite e quando a autora realiza esforços (resposta ao quesito 21º).
29 - A autora tem dificuldade em estar de joelhos (resposta ao quesito).
30 - Em consequência das lesões aludidas no quesito 8º, a autora tem dificuldade em passar a ferro, em pegar em pesos e em conduzir por longos períodos (resposta ao quesito 24º).
31 - A autora gostaria de realizar a intervenção cirúrgica aludida na resposta ao quesito 36º (resposta ao quesito 25º).
32 - Em consequência dos ferimentos aludidos na resposta ao quesito 8º, das intervenções referidas nos quesitos 10º, 15º e na resposta ao quesito 11º e dos tratamentos aludidos na resposta ao quesito 18º, a autora sofreu dores e angústia (resposta ao quesito 26º).
33 - Após o acidente, a autora ficou perturbada psicologicamente e angustiada, apresentando receio de ficar com sequelas para toda a vida (resposta ao quesito 27º).
34 - Aquando do internamento hospitalar aludido no quesito 13º, a autora sofreu tristeza e ansiedade (resposta ao quesito 28º).
35 - A autora sofreu dores antes e após as intervenções cirúrgicas (resposta ao quesito 29º).
36 - Durante o período aludido na resposta aos quesitos 17º e 30º, a autora esteve sempre dependente do apoio de terceiros para se vestir, se alimentar e tratar da sua higiene pessoal (resposta ao quesito 31º).
37 - O que consta da resposta ao quesito 31º provocou sofrimento à autora (resposta ao quesito 32º).
38 - A autora nasceu no dia 25/09/1972 (resposta ao quesito 34º).
39 - A cirurgia que permitirá diminuir a cicatriz aludida na resposta ao quesito 23º importará no montante de € 1.000 (resposta ao quesito 36º).
40 - Em consequência do acidente, a autora esteve durante 4 meses e meio impossibilitada de trabalhar e durante esse período a mesma deixou de auferir comissões de vendas, as quais ascendiam a cerca de 175 euros mensais (resposta ao quesito 37º).
41 - Durante o período aludido no quesito 13º, o autor marido acompanhou a autora diariamente no hospital e que após o regresso a Portugal acompanhou a mesma aquando da realização dos tratamentos a que esta foi sujeita (resposta ao quesito 42º).
42 - Entre a data do acidente e Janeiro de 2002, o autor prestou auxilio à autora (resposta ao quesito 43º).
43 - O seguro respeitante à apólice de fls 42 a 43 apenas cobria danos da autora, em caso de morte ou invalidez permanente até ao montante de 1.000.000$00; despesas de tratamento e repatriamento até 500.000$00 e que o autor não se encontrava abrangido por tal seguro (resposta ao quesito 44º).
44 - O “buggy” onde seguiam os autores está matriculado no Brasil (resposta ao quesito 46º).
45 - O proprietário do “buggy”, EE, transferiu a responsabilidade civil deste veículo automóvel para a Federação Nacional dos Seguros Privados e Capitalização (F...........), através do competente seguro DPVT, titulado pelo bilhete nº 000000000 (resposta ao quesito 47º).
46 - O seguro aludido no quesito 47º trata-se do seguro obrigatório de danos pessoais causados por veículos automotores de via terrestre (DPVAT) (resposta ao quesito 48º).
47 - O 3º réu realizou as funções aludidas na alínea C), por conta, ordem, direcção e no interesse da 2ª ré (resposta ao quesito 50º).
48 - O passeio era orientado pelo proprietário do buggy aludido –FF (resposta ao quesito 51º).
49 - O 3º réu conduzia o buggy a pedido do proprietário do mesmo (resposta ao quesito 52º).
50 - O 3º réu, à data do acidente, era portador de carta de condução de veículos ligeiros (resposta ao quesito 53º).
51 - O réu DD já tinha conduzido buggys uma outra vez no âmbito da sua actividade profissional (resposta ao quesito 56º).
52 - O 3º réu circulava a cerca de 30/40 Kms/hora (resposta ao quesito 58º).
53 - O 3º réu realizou todos os esforços necessários para que a autora tivesse uma boa assistência médica e hospitalar (resposta ao quesito 62º).
54 - Enquanto a 1ª autora esteve no Brasil a receber tratamento hospitalar, a 2ª ré suportou todas as despesas de alojamento e alimentação do 2º autor (resposta ao quesito 66º).
55 - A ............. antes do início da viagem entregou aos autores o documento de fls 11, dando-se o seu teor por integralmente reproduzido (resposta ao quesito 67º).
56 - A autora apôs a sua assinatura no documento cuja cópia consta de fls 44, do qual consta:
“(…) Natureza da Indemnização Valores Despesas de Tratamento e Repatriamento ….. 500.000$00 (…)” (resposta aos quesitos 68º e 69º).
57 - Do artigo 4º das Condições Gerais respeitantes ao seguro aludido em H) consta:
“Artigo 4º - Exclusões
Excluem-se sempre os seguintes danos:
(…) – alínea b) – decorrentes de acidentes de viação provocados por veículos que, nos termos da legislação em vigor, sejam obrigados a seguro (…)”(resposta ao quesito 71º).
58 - Aquando do acidente, os autores faziam-se transportar no buggy com os pés em cima do assento traseiro e sentados na protecção traseira do mesmo (resposta ao quesito 73º).
59 - E encontravam-se agarrados à barra de protecção existente no buggy (resposta ao artigo 73º).
4. A particularidade do presente litígio decorre decisivamente de estarmos confrontados com danos corporais e morais emergentes de um acidente de viação, ocorrido no Brasil, envolvendo viatura pertencente a cidadão brasileiro, matriculada e segurada no Brasil, onde seguiam, como passageiros e condutor, respectivamente, os AA./lesados e o 3ºR, cidadãos portugueses que ali se encontravam ocasionalmente e por período curto, no âmbito de uma viagem turística, organizada pela 2ª R.

O enquadramento do litígio implica, deste modo, que – no plano do direito internacional privado - se comecem por definir as normas de conflitos aplicáveis – tendo as instâncias considerado que:
- a responsabilidade civil extracontratual rege-se pelo direito português, nos termos do nº3 do art. 45º do CC, já que tanto os AA. como os RR. ............. e DD são portugueses que se encontravam ocasionalmente no Brasil;
- ao contrato de seguro obrigatório celebrado entre o proprietário do veículo, matriculado no Brasil, e a entidade brasileira denominada F..........., chamada a intervir, é aplicável o direito brasileiro, por força da norma de conflitos constante do nº1 do art. 42º do CC, identificando-se (cfr. art. 348º do CC) como lei brasileira, reguladora do seguro DPVAT, em vigor à data do acidente, a Lei 6194, de 19/12/1974.

Partindo de tais pressupostos, o acórdão recorrido começou por aferir a responsabilidade civil extracontratual do condutor ocasional do veículo à face da lei portuguesa, considerando que o mesmo teria actuado culposamente no exercício da condução, nos termos do nº2 do art. 487º do CC, e aplicando à consequente obrigação de indemnizar os arts 562º e segs., bem como o nº2 do art. 570º, ao considerar que os AA./lesados – tendo em conta o modo inseguro e precário como se faziam transportar na viatura acidentada – teriam contribuído com uma percentagem de 50% para a produção dos danos.

No que se refere à aferição de responsabilidades emergentes da celebração do contrato de seguro obrigatório dos riscos de circulação da viatura matriculada e segurada no Brasil, aplicou o acórdão recorrido a citada Lei 6194, afirmando, nomeadamente:

A questão fulcral do recurso consiste então em saber se, tendo o proprietário do “buggy” transferido a responsabilidade civil deste veículo automóvel para a Federação Nacional dos Seguros Privados e Capitalização – F........... – através do competente seguro DPVT, titulado pelo bilhete n.º 0000000000, os danos peticionados pelos autores se encontram cobertos e, nesse caso, se deveria o réu ter sido absolvido.
O proprietário do “buggy”, EE, transferiu a responsabilidade civil deste veículo para a Federação Nacional dos Seguros Privados e Capitalização – a interveniente F........... -, através do seguro DPVAT – seguro obrigatório de danos pessoais causados por veículos automotores de via terrestre.
Estamos em face de um contrato de seguro obrigatório celebrado entre sujeitos brasileiros.
Atento o disposto na Lei do Seguro Obrigatório vigente no Brasil à data do acidente – Lei nº 6.194, de 19 de Dezembro de 1974 supra citada -, aplicável por força do disposto no artigo 42º, nº 1, do CC Português, para além do réu DD, é ainda responsável pelo pagamento das quantias referidas a interveniente F............
O Seguro DPVAT cobre vidas no trânsito. Como o próprio nome diz, indemniza vítimas de “Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre”.

Isto significa que o DPVAT é um seguro que indemniza vítimas de acidentes causados por veículos que têm motor próprio e circulam por terra ou por asfalto (via terrestre) (artigo 2º).

O DPVAT, por ser um seguro exclusivamente restrito a danos pessoais, prevê que, em caso de acidente, as situações indemnizadas são a morte ou invalidez permanente e, sob a forma de reembolso, despesas comprovadas com atendimento médico – hospitalar (artigo 3º), nos valores aí determinados, por pessoa vitimada.

Os pedidos de indemnização e/ou de reembolso são simples, gratuitos e não exigem a contratação de intermediário. Basta juntar a documentação necessária e levar enviar para o ponto de atendimento mais próximo.

Outro dado importante é que o Seguro DPVAT é obrigatório porque foi criado por lei em 1974. Essa lei determina que todos os veículos automotores de via terrestre, sem excepção, paguem o seguro DPVAT (artigo 1º).

A obrigatoriedade do pagamento garante às vítimas de acidentes com veículos o recebimento de indemnização, ainda que os responsáveis pelos acidentes não arquem com a sua responsabilidade, ou seja, “o pagamento da indemnização será efectuado mediante simples prova do acidente e do dano decorrente, independentemente d a existência de culpa, haja ou não resseguro, abolida qualquer franquia de responsabilidade do segurado (artigo 5º).
Como se verifica, não existe na referida lei qualquer norma equivalente ao disposto no artigo 29º do DL nº 522/85, de 31 de Dezembro, nem a situação coberta pelo seguro DPVAT é tão abrangente quanto a dos seguros por acidentes de viação previstos nesse diploma.

Não tendo, por um lado, as vítimas requerido a indemnização perante a F..........., nem havendo qualquer outra norma que permita concluir que, face à existência do seguro, a responsabilidade do réu DD ficaria excluída, e, por outro lado, porque a F..........., apesar de responsável por um seguro destinado apenas a danos pessoais, se conformou com a decisão, são, assim, solidariamente, responsáveis pelo referido pagamento o réu/recorrente e a F............

Considera-se que este enquadramento, feito pelas instâncias, se mostra correcto e adequado, não merecendo qualquer censura : apenas importaria referir que, se se tratasse de acidente ocorrido aquando da circulação do veículo em via pública, a regra da aplicação do direito português à aferição da responsabilidade civil extracontratual do condutor teria de ser temperada, por força do estatuído na parte final do nº3 do art. 45º do CC com a ponderação das regras de circulação estradal vigentes no Estado local, por estas serem naturalmente aplicáveis «indistintamente» a todas as pessoas. Porém, a especificidade do acidente dos autos, ocorrido em condução fora de estrada, em plena praia, inferindo-se, consequentemente , a culpa do condutor, não da violação de específicas normas estradais, mas antes da infracção de um dever geral de prudência e perícia no exercício da condução fora das vias públicas, torna praticamente irrelevante para a solução do litígio o referido regime vigente no direito estradal brasileiro, cuja aplicabilidade se poderia extrair da previsão normativa constante da parte final do preceito atrás citado.

Salienta-se que algumas das objecções formuladas pelo recorrente quanto à coerência lógico-jurídica da decisão recorrida – pretensa violação dos arts. 8º, 9º e 10º do CC e dos arts. 158º, 668º, 659º e 666º do CPC - são manifestamente improcedentes: assim, não ocorre obviamente qualquer «falta de fundamentação» no acórdão recorrido, já que é por demais evidente a forma como se alcançou a responsabilidade extracontratual do condutor/lesante, assente decisivamente num juízo de verificação, quanto a ele, dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, - particularmente, o juízo de culpa efectiva, decorrente da violação de um dever geral de prudência e perícia na condução fora de estrada da viatura sinistrada, geradora da lesão dos direitos dos AA e causadora dos consequentes danos na sua esfera jurídica.

E, nesta perspectiva, é evidente que não pode seguramente afirmar-se que a «responsabilidade solidária» imposta ao condutor que teria actuado culposamente no exercício da condução estaria privada de qualquer fundamento legal, violando os princípios da tipicidade e da legalidade material : bem pelo contrário, tal solução jurídica emerge naturalmente da aplicação das normas constantes, nomeadamente, dos arts. 483º, 487ºe 497º do CC, alcançados através da norma de conflitos atrás identificada, - dos quais resulta, de modo incontroverso, que quem tenha violado culposamente direitos alheios responde pelos danos causalmente derivados do acto ilícito praticado pelo lesante – sendo solidária a responsabilidade que, porventura, incida sobre os vários responsáveis ou lesantes…

Não é, por outro lado, exacta a afirmação segundo a qual a mera existência de um contrato de seguro, «transferindo» a responsabilidade do lesante para uma seguradora, «apaga» ou preclude inelutavelmente a responsabilidade que sobre aquele pudesse recair, com base no preenchimento da «fattispecie» que consta do art. 483º do CC : como adiante melhor se verá, a circunstância de, em sede de seguro obrigatório português, tal responsabilidade civil do lesante não poder ser – por força do estatuído no art. 29º do DL 522/85- processualmente efectivada, dentro dos valores compreendidos no seguro obrigatório, mediante iniciativa dos lesados, não radica na própria «natureza das coisas», representando antes uma concreta e particular opção legislativa – favorável ao lesante, que, em regra, não poderá ser incomodado com pretensões indemnizatórias contra ele deduzidas pelo lesado e que não ultrapassem aquele valor – assente na peculiar natureza da relação de seguro obrigatório, tal como se mostra regulada no ordenamento jurídico nacional e na intensidade da tutela que este directamente confere ao lesado .


Não pode, porém, estabelecer-se como regra irrestrita, valida necessariamente em todas as ordens jurídicas, independentemente do modo como estas configurem a relação de seguro obrigatório, a de que ao lesado seria sempre impossível demandar pessoalmente o lesante, «apagando» a relação de seguro – ao outorgar aos lesados acção directa contra a seguradora - a própria responsabilidade extracontratual em que tivesse incorrido o lesante.
E daqui decorre que – sendo inquestionavelmente aplicável a lei brasileira a um contrato de seguro dos riscos de circulação em território brasileiro , celebrado no Brasil entre entidades brasileiras e reportado a veículo matriculado no Brasil – não pode, pura e simplesmente, invocar-se a regra de legitimidade que consta da lei do seguro obrigatório português para, sem mais, precludir ao lesado a eventual formulação de pretensão indemnizatória directamente contra o lesante .
É que, para tal, seria necessário ou que:

- o direito brasileiro contivesse norma análoga à que consta do referido art. 29º - o que não está minimamente alegado e demonstrado;

- a referida norma, constante do art. 29º, fosse automaticamente aplicável a todas as acções de responsabilidade civil intentadas perante tribunais portugueses, independentemente da natureza e conteúdo da relação de seguro, regida pela lei estrangeira, aplicável por força das normas de conflitos vigentes.

Importa, aliás, notar que o regime do seguro obrigatório automóvel em vigor no Brasil apresenta traços específicos que o demarcam substancialmente do vigente no ordenamento jurídico português ( veja-se, nomeadamente o recente estudo de Mariana Paupério Pereira, intitulado O Seguro obrigatório de Circulação Automóvel nos Sistemas Jurídicos Português e Brasileiro, in www.meujus.com.br/revista/texto/18165); assim, e desde logo, tal seguro não aparece estruturado como seguro de responsabilidade civil do lesante, já que o pagamento ao lesado da indemnização pela seguradora não depende da demonstração dos pressupostos da responsabilidade civil do condutor ou proprietário do veículo, funcionando, deste modo, independentemente da comprovação da culpa – assumindo, por isso, uma vertente ou natureza social, apenas pressupondo a demonstração da ocorrência de dano pessoal ( morte ou invalidez permanente, total ou parcial). Daqui decorre que – tratando-se, afinal, de um seguro de determinados danos pessoais, causados a potenciais vítimas dos riscos de circulação da viatura segurada ,- cobrindo directamente estes, e não a responsabilidade civil do condutor – baste a simples prova do dano para que a vítima ou os seus sucessores tenham direito à indemnização, obtida normalmente por via extrajudicial simplificada, precisamente porque é irrelevante a controvérsia sobre as exactas causas do acidente e culpas dele determinantes.
E nada parece obstar a que a pretensão indemnizatória possa também ser formulada – agora com base no instituto da responsabilidade civil extracontratual – contra o responsável directo pela lesão: de acordo com o art. 788º do CC, a indemnização decorrente de acidentes de trânsito é paga, até o limite do valor fixado em lei, pelo segurador directamente ao terceiro prejudicado, independentemente da comprovação da culpa, por ter tal seguro natureza social. O lesado, caso queira, também pode demandar directamente contra o lesante, exigindo o ressarcimento integral pelos prejuízos sofridos, com base na culpa. Nada impede que a vítima comprove a culpa do lesante ou que este traga provas da ocorrência de algum dos casos de exclusão do nexo causal. Como já foi dito, a produção dessas provas não obsta à indemnização da vítima pelo seguro DPVAT (cfr. obra atrás cit., ponto 3.3).
Por outro lado, o direito de regresso conferido à seguradora contra o causador do acidente não tem , no direito brasileiro, a menor conexão com as causas e particulares circunstâncias ( especialmente censuráveis) em que ocorreu a lesão, dependendo exclusivamente da inexistência de seguro válido e eficaz, contratado pelo proprietário do veículo.

Ora, não podendo extrair-se das normas de direito brasileiro aplicáveis à disciplina do seguro automóvel uma regra sobre a legitimidade análoga à que consta do referido art. 29º do nosso DL 522/85, temos igualmente como certo que esta norma especial do ordenamento jurídico nacional não pode aplicar-se automaticamente a todas as acções propostas perante os tribunais portugueses, ainda que regidas, em termos de direito internacional privado, por um ordenamento jurídico estrangeiro: como atrás se realçou, tal regime de legitimidade – particularmente favorável ao lesante, ao limitar a acção directa do lesado no seu confronto, desde que a pretensão indemnizatória deduzida contra a seguradora não ultrapasse os valores do seguro obrigatório – surge como um corolário da natureza do seguro automóvel e da intensidade que o respectivo regime material nacional confere aos lesados, não podendo transpor-se automaticamente - e de modo acrítico - para relações jurídicas regidas, na sua substância, por direitos estrangeiros, em que o seguro assume uma natureza e fisionomia substancialmente diversas das que resultam da ordem jurídica nacional. E sendo, a nosso ver, evidente e incontroverso que, em caso de dúvida, o princípio fundamental a ponderar terá de ser o da tutela efectiva dos lesados, evitando que estes possam ficar, na prática, desprotegidos perante a necessidade que lhes pudesse ser imposta de efectivarem as suas pretensões indemnizatórias apenas contra entidades estrangeiras, não sediadas em território português, isentando o lesante – que actuou com culpa na produção do sinistro – de qualquer ónus ou risco de impulsionar e garantir o pagamento da indemnização devida em consequência do ilícito que praticou.

Note-se que, na situação dos autos, a condenação «solidária» do lesante e da seguradora brasileira não significa que a responsabilidade dos RR se não possa vir a consubstanciar numa situação de solidariedade imprópria ou imperfeita, ficando naturalmente o lesante dispensado de custear definitivamente a indemnização devida se e na medida em que a seguradora acabe por assumir integralmente o ressarcimento do lesado : ou seja, tal condenação, nos termos em que foi proferida pelas instâncias, significa essencialmente que recai sobre o condutor culposo o ónus de diligenciar pelo pagamento à vítima dos danos cobertos pelo seguro DPVAT, de modo a, com tal pagamento, ver afastada a eventualidade de poder vir a ser, ele próprio, responsabilizado com fundamento na responsabilidade extracontratual que sobre ele recai - em vez de se limitar a imputar e remeter tal ónus de diligenciar pelo pagamento no confronto da seguradora brasileira aos lesados e vítimas do acidente.

E, ao contrário do pretendido pelo recorrente, esta solução normativa não viola qualquer preceito ou princípio constitucional, não podendo seguramente inferir-se do princípio da igualdade que as regras da legitimidade nas acções de indemnização fundadas no seguro obrigatório automóvel tenham de ser sempre as mesmas, independentemente do local do acidente , da nacionalidade da seguradora e do conteúdo jurídico-materiais da relação de seguro, moldada, em certos casos, pelo direito estrangeiro, face às regras de conflitos aplicáveis.

5. Improcedem, finalmente as duas últimas objecções, formuladas pelo recorrente quanto ao acórdão recorrido.
Assim, não ocorre manifestamente qualquer violação das normas que regem acerca do âmbito do seguro de responsabilidade civil das agências de viagens, nomeadamente a exclusão consubstanciada em o sinistro invocado ter sido um acidente de viação provocado por veículo sujeito legalmente a seguro obrigatório ; verificada obviamente e de modo incontroverso, esta situação no caso dos autos e existindo efectivamente o contrato que titula tal relação de seguro, por que responde , aliás, a R. F..........., é manifesto que nenhuma censura merece a absolvição decretada quanto à.....

Por outro lado, não se vê o menor fundamento para, face à gravidade das lesões sofridas, reduzir a indemnização arbitrada pelos danos não patrimoniais, comprovadamente sofridos, entendendo-se que o valor arbitrado, com base em juízos de equidade, - €25.000,00 – é adequado e inteiramente razoável, mostrando-se conforme aos padrões jurisprudenciais que devem ser seguidos.

6. Nestes termos e pelos fundamentos apontados nega-se provimento à revista.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 07 de Junho de 2011

Lopes do Rego (Relator)
Orlando Afonso
Távora Victor