Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
085768
Nº Convencional: JSTJ00025875
Relator: MIRANDA GUSMÃO
Descritores: ARRENDAMENTO
CONTRATO INOMINADO
INTERPRETAÇÃO DA VONTADE
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ199411300857682
Data do Acordão: 11/30/1994
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - TEORIA GERAL / DIR OBG / DIR CONTRAT.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 236 N1 N2 ARTIGO 238 N1 ARTIGO 405 N1 ARTIGO 874 ARTIGO 1022 ARTIGO 1029 ARTIGO 1054 ARTIGO 1087 ARTIGO 1089 ARTIGO 1095.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1993/04/29 IN CJ TII ANOI PÁG73.
ACÓRDÃO STJ PROC84993 DE 1994/05/26.
ACÓRDÃO STJ PROC85580 DE 1994/11/03.
Sumário : I - São as partes que modelam os contratos que querem celebrar, dentro dos limites da lei, com a inclusão de um ou mais contratos típicos e de cláusulas atípicas, isto é, com cláusulas tidas como essenciais, não figurando nos contratos típicos.
II - Será através de todas as cláusulas introduzidas na convenção negocial, na interpretação do sentido das declarações de vontade das partes, que o contrato acabará por ser caracterizado (qualificado).
III - O artigo 236, n. 1 do Código Civil de 1966 consagra a teoria da impressão do destinatário.
IV - O Supremo pode exercer censura sobre o modo como as instâncias ao interpretar as declarações de vontade das partes fizeram uso do preceituado no artigo 236 n. 1 e
238 do Código Civil de 1966.
V - É atípico (e não de arrendamento) o contrato, que as partes denominaram de "cedência temporária", em que uma das partes cede à outra mediante retribuição mensal, por um ano, não renovável, um escritório, a ser utilizado no período de funcionamento das instalações onde se integra, podendo o contrato ser revogado por qualquer das partes mediante aviso com certa antecedência.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça.
I
- No Tribunal Judicial da Comarca de Cascais, Vila - Realização e Produção de Filmes Limitada intentou acção especial de manutenção de posse entre Duportel - Sociedade de Centros Desportivos Limitada, com o fundamento em que, por contrato celebrado em 1 de Maio de 1988, a Ré cedeu de arrendamento à Autora um gabinete nas instalações do Country Club de Cascais, propriedade da Ré, pela contrapartida de 20000 escudos de renda mensal, onde a autora exerceu a sua actividade social, nela recebendo clientes e fornecedores e trabalhando empregados ao seu serviço.
- Todavia, em 6 de Maio de 1989, pessoas não identificadas, a mando da Ré, pregaram a porta de acesso ao gabinete impedindo, fisicamente, a entrada nas instalações à Autora.
- Esta fez instaurar procedimento cautelar de restituição provisória de posse, que foi deferido, vindo a Autora a recuperar as referidas instalações a 14 de Julho do mesmo ano de 1989.
A Ré, porém no dia seguinte, - ao arrepio da decisão judicial - reocupou o dito gabinete, privando a Autora da sua utilização.
Requerida, de novo, a instauração do tribunal veio a
Autora a recuperar as instalações em 12 de Setembro seguinte, com a intervenção das autoridades policiais, dada a atitude de resistência, por parte da Ré, em proceder à entrega do dito gabinete.
A Autora viu-se privada, durante um período de cinco meses, da utilização das instalações, o que afectou profundamente a sua actividade social, provocando-lhe prejuízos, que estima de ordem dos 50000000 escudos.
Pretende, porém, a sua restituição, à posse definitiva do feudo e consequente manutenção das instalações objecto do contrato e, bem assim, a condenação da Ré a pagar-lhe uma indemnização, pelos danos sofridos, de 50000000 escudos.
A Ré contestou, alegando que o contrato firmado com a
Autora e que envolveu a cedência do gabinete em causa, não consubstancia um contrato de locação "stricto sensu", mas sim um contrato de cedência precária e intermitente e limitada ao período de funcionamento do Country Club de Cascais, propriedade da Ré, tal como resulta dos termos contratuais.
Razão pela qual lhe assiste o direito de pôr termo ao contrato, pelo que fez notificar a Autora para colocar à sua disposição as instalações em causa, o que esta não fez oportunamente.
- Pretende, ainda, em reconvenção, no caso do contrato em causa ser reconhecido como de arrendamento, que o mesmo seja anulado por erro sobre o objecto do negócio.
- A Autora impugnou o pedido reconvencional.
- Procedeu-se a audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença a julgar improcedentes a acção e a reconvenção, com as consequentes absolvições dos pedidos.
2. A autora apelou. A Relação de Lisboa, por acórdão de
27 de Janeiro de 1994, revogou a decisão recorrida e, em consequência, declarou que: a) o contrato celebrado pela Autora e Ré, objecto desta acção, é um contrato de arrendamento comercial; b com base nele, a Autora tem o direito de utilizar o gabinete, até à resolução ou denúncia do mesmo, mantendo-se na sua posse, nos termos e por força do disposto no artigo 1277 do Código Civil; c) a Autora tem o direito de ver-se ressarcida dos prejuízos causados pela ré.
E, com base em tais declarações, julgou a acção procedente por provada, na parte não transitada e, assim, condenar a Ré a reconhecer o direito à Autora em se manter no gabinete locado e a indemnizá-la pelos prejuízos causados e sofridos com a ocupação, cuja quantificação alegou pela execução da sentença.
A Ré pede revista, formulando as seguintes conclusões:
1) o acórdão recorrido é nulo por omissão de pronúncia, nos termos da alínea d) e n. 1 do artigo 668, aplicável por remissão do artigo 716, ambos do Código de Processo
Civil, devendo baixar à Relação, de acordo com o disposto no artigo 31 n. 2, do mesmo diploma.
2) por a Ré ter deduzido nos artigos 19 e 20 da sua contestação a excepção como vício causador da anulabilidade do contrato, o qual não foi apreciado pelo Tribunal "a quo", sabendo-se que a invocação de um facto impeditivo do autor é, seguramente, uma questão submetida ao Tribunal e, por tal, o Tribunal deverá pronunciar-se, pronúncia esta que conduziria à absolvição do pedido.
3) as partes celebraram um contrato com carácter acentuadamente transitório, temporário e intermitente.
4) Estas características resultam claramente de quatro das seis cláusulas do contrato. Assim, o título do contrato "contrato de cedência temporária", a cláusula
1 "cede o título precário"; a cláusula 2 denominando a contrapartida paga como sendo "a título de compensação"; a cláusula 4 que refere a possibilidade de livre resolução do contrato por qualquer das partes e finalmente, a cláusula 5 que limita o acesso ao gabinete ao período de funcionamento do Country Club de
Cascais.
5) Esses elementos não podem consubstanciar um contrato de arrendamento que, precisamente se caracteriza pela estabilidade, certeza e segurança.
6) Nomeadamente, a lei proíbe, em princípio, que o senhorio denuncie o contrato, de acordo com o artigo
1095 do Código Civil.
7) os elementos caracterizadores, o fim e a razão de ser e ainda o dispositivo legal do contrato de arrendamento nada têm ver com o contrato celebrado.
8) a precaridade e a transitoriedade do contrato, para além de resultarem do texto do acordo, foram razões determinantes para a Ré contratar (respostas ao quesito
6); o que a Autora, ora recorrida, não desconhecia
(resposta ao quesito 7); acresce que se a Ré soubesse que estava a vincular-se a um contrato de locação não o teria celebrado (resposta ao quesito 8).
9. o que a Autora não desconhecia, ou pelo menos não devia ignorar, tendo-se apressado a referir que a Ré não pudesse resolver o contrato, precisamente por se tratar de um contrato de arrendamento.
10. Verificando-se claramente que houve erro sobre o objecto do negócio, nos termos do artigo 251 do Código
Civil, pois estão preenchidos os dois requisitos exigidos, isto é a essencialidade e a cognoscibilidade.
11. E, ainda que assim não fosse, sempre se verificariam os requisitos do erro sobre os motivos, de acordo com o n. 1 do artigo 252, Código Civil.
12. Pois, para além da essencialidade, ficou denominado o assentimento da Autora ao motivo que a Ré considerou determinante para a celebração do negócio, como resulta das respostas aos quesitos 6 a 7.
13. A posse da Autora sobre o gabinete objecto do contrato é, assim, ilegítima, não lhe cabendo qualquer compreensão, pois o contrato celebrado terminou no dia
1 de Março de 1989.
14. Caso se entenda, no entanto, que se estará perante um contrato de arrendamento, cujo direito de denúncia não assiste, em princípio, ao senhorio (artigo 1095 do
Código Civil), e atendendo à vontade das partes verifica-se que esse contrato de arrendamento é anulável, nos termos dos artigos 247 e 251 ambos do
Código Civil.
15. A actuação do recorrente no sentido de reaver a posse que lhe assistia não merece qualquer censura pois esta empregou os meios necessários e com vista a realizar o próprio direito.
16. Contudo, a questão da acção directa não foi suscitada na acção.
17. A julgar como o fez, a decisão recorrida violou entre outros, os artigos 236, 237, 247, 251, 252 n. 1,
334, 336, 405, 762 todos do Código Civil, e os artigos
668 n. 1 alínea d), 716 e 1277 do Código de Processo
Civil.
4. A recorrida apresentou contra-alegações onde salienta que:
1) O acórdão do Meretíssimo Juiz "a quo" não é nulo por omissão de pronúncia por ter havido pronúncia sobre a matéria da excepção alegada pela Ré no sentido de a mesma ter transitado em julgado por falta de recurso da douta sentença da primeira instância que não se pronunciou sobre a mesma.
2) O contrato junto aos autos é um contrato de arrendamento pois preenche todos os elementos essenciais, e não só, que a lei consagra para a sua classificação como tal (artigo 1022 Código Civil).
3) Mesmo no caso de se considerar o contrato como misto de arrendamento e prestação de serviços, no âmbito do artigo 405 Código Civil, o predomínio claro da vertente arrendamento faz com que o seu regime prevaleça sobre o dos outros tipos contratuais em jogo (artigo 1028
Código Civil).
4) O disposto nos artigos 1054, 1095 e 1096 Código
Civil obstam a que seja possível à Ré resolver o contrato com aviso prévio de trinta dias, sendo a cláusula contratual respectiva parcialmente inválida nessa parte.
5) Quanto à renovação do contrato, uma vez que não está previsto no contrato e dado o teor da cláusula 6 do contrato, é regulamentada pelas regras do arrendamento.
6) De resto, a renovação está implícita no contrato, ou não se compreenderia a obrigatoriedade de aviso prévio de trinta dias para resolução.
7) Ainda que pudesse resolver o contrato, a Ré fê-lo ao arrepio do contrato, não respeitando o prazo de aviso prévio.
8) As atitudes da Ré só poderiam ter justificação, no
âmbito da lei, em caso de acção directa.
9) O apuramento dos prejuízos e a respectiva condenação da Ré no seu ressarcimento devem ter lugar em sede de processo cível.
10) Não é verdade que a Ré tenha agido em erro ao celebrar o contrato.
11) Para além disso, e em caso de dúvida, a interpretação que levou a um maior equilíbrio das prestações é a de que o contrato é de arrendamento.
12) A Ré deve indemnizar a Autora nos exactos termos em que é peticionado na petição inicial.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II
Elementos a tomar em conta.
1) Autora e Ré celebraram, entre si, um contrato, que intitularam de cedência temporária de um gabinete no
Clubhouse da Country Club de Cascais;
2) o gabinete destinava-se ao exercício da actividade da Autora.
3) A autora obrigava-se a pagar a importância mensal de
20000 escudos, até ao dia 5 de cada mês, a título de compensação obrigando-se, ainda a manter em bom estado de conservação o dito gabinete.
4) o contrato era válido por um ano, a partir dessa data, podendo ser resolvido por qualquer das partes, desde que, para tanto, emita aviso, com a antecedência mínima de trinta dias, através de carta registada.
5) O acesso ao gabinete cedido ficou limitado ao período de funcionamento do Country Club de Cascais.
6) O contrato celebrado entrava em vigor no dia 1 de
Maio de 1988 e reger-se-ia, em tudo o não especialmente nele regulado, pela legislação aplicável.
7) A Ré emitiu os recibos de folhas 13, 14 e 15 nos montantes de 23400 escudos, que intitulou "aluguer de escritório" e ainda o recibo de folha 15, que por lapso não foi numerado, em igual montante e que intitulou de
"ocupação de escritório", rasurando a palavra "aluguer" e datado de 7 de Abril de 1989.
8) Em 3 de Abril de 1989, a Ré escreveu uma carta à
Autora, que esta recebeu, apenas, em 7 de Abril de
1989, onde lhe comunicava a resolução do contrato e de que o gabinete devia ficar livre e desocupado até ao dia 30 do mês em curso, ou seja, 30 de Abril de 1989.
9) A Autora respondeu a esta carta, em 17 de Abril de
..., dizendo que se tratava de um contrato de arrendamento que não podia ser resolvido por vontade unilateral do senhorio e que, por outro lado, não tinha sido cumprido o prazo acordado de 30 dias, relativamente à desocupação do gabinete.
10) A Ré manifestou à Autora a intenção de instalar no gabinete cedido uma nova empresa acabada de constituir.
11) Em 30 de Maio de 1989, a Ré comunicou à Autora que havia retirado todo o material do gabinete, devido ao facto de necessitar de acesso aos motores de ventilação do Clubhouse.
12) A Autora escreveu uma carta à Ré, em 31 de Maio de
1989, onde a informava da disposição de receber o material retirado, sem prejuízo do direito que lhe assistia às instalações e do apuramento de responsabilidades criminais pelo acto praticado.
13) A 5 de Maio de 1989, o administrador da Ré ameaçou a Autora de que, se não fossem entregues as chaves do locado até às 20 horas desse dia, arrombaria a porta do gabinete e tomaria as instalações à força, ameaça concretizada no dia seguinte, impedindo a entrada nas instalações à Autora.
14) Apenas em 14 de Julho de 1989, a Autora veio a recuperar as suas instalações, em virtude da decisão judicial de entrega provisória de posse.
15) Todavia, em 15 de Julho do mesmo ano, a Ré recuperou, de novo, o mesmo gabinete, ao arrepio da decisão judicial.
16) Só em 12 de Setembro desse mesmo ano a Autora veio a recuperar o gabinete, após intervenção das autoridades policiais.
17) O gabinete foi apenas cedido à Autora, provisoriamente, por tempo intermitente, correspondente ao horário de funcionamento do Country Club de Cascais, pertencente à Ré e suportando esta as despesas de água e luz e da limpeza do gabinete, tudo incluído no montante mensal acordado com a Autora.
18) A razão que determinou a vontade das partes na cedência do gabinete, foi a intenção formal da Ré em conseguir a declaração de utilidade turística do
Country Club de Cascais, o que veio a suceder, por despacho do Secretário de Estado do Turismo, de 4 de
Abril de 1989.
19) A precaridade e transitoriedade do contrato foi a razão determinante para a Ré contratar, o que a Autora não desconhecia.
20) Se a Ré soubesse que estava a vincular-se a um contrato de locação, não teria assinado o contrato.
III
Questões a apreciar no presente recurso.
1. A apreciação e a decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões das alegações, deveria passar, fundamentalmente, pela análise de três questões: a primeira, se houve omissão de pronúncia no acórdão recorrido; a segunda, se a posse da Autora sobre o objecto do contrato é ilegítima, não lhe cabendo qualquer compensação por o contrato celebrado ter terminado no dia 1 de Maio de 1989; a terceira, se o contrato celebrado deverá ser anulável, se qualificado como arrendamento.
- A segunda questão receberá resposta afirmativa no caso de o contrato celebrado ser qualificado de arrendamento, e negativa no caso de ser qualificado como contrato inominado.
- Daqui que a segunda questão leve de novo à apreciação da questão da qualificação jurídica do contrato celebrado entre a Ré a a Autora (questão a apreciar e a decidir à luz do Código Civil).
2. No presente recurso não serão apreciadas a primeira e a terceira questão.
- No que concerne à primeira questão (omissão de pronúncia do acórdão recorrido, dado a Ré ter excepcionado a anulabilidade do contrato por erro sobre o objecto do negócio, o que não foi apreciado), o acórdão recorrido pronunciou-se a tal respeito, nos moldes seguintes: "A Ré não recorreu, pelo que se considera transitada a decisão da primeira instância, relativamente à excepção por esta invocada na contestação, bem assim no que concerne ao pedido reconvencional, isto por força do disposto no artigo
667 do Código de Processo Civil".
- No que concerne à terceira questão (se o contrato sendo de arrendamento deveria ser anulável! dir-se-á que a mesma foi um dos pedidos formulados na reconvenção - confrontar artigo 20 da contestação com os termos da sua conclusão -, de sorte que esta mesma questão não pode ser agora apreciada dado os termos do acórdão recorrido: a decisão da primeira instância transitou no que concerne ao pedido reconvencional.
IV
A qualificação jurídica do contrato celebrado entre a
Ré e a Autora.
1. A Relação de Lisboa decidiu, no seu acórdão de 27 de
Janeiro de 1994, que o contrato celebrado entre a Ré e a Autora deve ser qualificado como de arrendamento e não como decidira a primeira instância: um contrato precário, intermitente e transitório.
- Enquanto o recorrente sustenta a qualificação dada pela primeira instância, a recorrida pugna pela qualificação dada pela Relação.
De que lado se encontra a razão?
2. O preceito basilar que serve de trave-mestra da teoria dos contratos é o da liberdade contratual, que consiste na faculdade que as partes têm, dentro dos limites da lei, de fixar, de acordo com a sua vontade, o conteúdo dos contratos que analisaram, celebrar contratos diferentes dos prescritos no Código ou incluir nestes cláusulas que lhes aprouver - artigo 405 n. 1, do Código Civil.
- Como puro corolário do princípio enuncionado no n.
1, o artigo 405 n. 2, do Código Civil destaca ainda a possibilidade das partes reunirem no mesmo contrato regras de dois ou mais contratos tipicamente regulados na lei.
- Reveste certa dificuldade saber quando é que as cláusulas introduzidas na convenção negocial das partes respeitam ainda o contrato típico ou nominado que eles declarem querer celebrar e quando é que essas cláusulas de que os contraentes (ou um deles) se não dispõe a abdicar, atiram a convenção negocial para a categoria dos contratos inominados, atípicos.
O Professor Antunes Varela ensina que o critério a adoptar na resolução da dificuldade é muito simples de definir: "se as cláusulas especiais introduzidas pelos contraentes na convenção especial não prejudicam a causa do contrato típico (ou seja, a função económico-social própria do tipo de contrato que a lei tem diante dos olhos ao fixar o seu regime) em que ele se integra, atentas as cláusulas restantes, a convenção negocial celebrada continua a pertencer a esse tipo de negócio, embora com modificações impostas pela vontade das partes".
"Se, pelo contrário, as cláusulas introduzidas pelas partes na convenção negocial afastam a composição dos seus interesses de qualquer dos modelos básicos de contratação tipificados, padronizados ou standardizados pela lei, a convenção cai inexoravelmente na categoria dos contratos inominados".
- E acrescenta:
"De acordo com este critério - o único compatível com a chave de sistematização subjacente à autonomização dos contratos em especial (artigos 874 e seguintes do
Código Civil) - os contratos mistos, para os quais aponta de modo especial o prescrito no n. 2 do artigo
405 deste diploma, tanto podem ser contratos nominados como contratos inominados, consoante as tais regras dos dois ou mais negócios típicos, que os contraentes reúnem na mesma convenção negocial unitária, respeitam a causa (stricto sensu) de um dos contratos típicos ou escapam, na sua conjunção, à causa própria de cada um deles" (Revista Legislação e Jurisprudência ano 127; página 181).
3. Analisando-se a noção do artigo 1022, vê-se que os elementos de locação são três: a) em primeiro lugar, resulta da locação para uma das partes (o locador) a obrigação de proporcionar o gozo de uma coisa à outra parte, o gozo da coisa, ou seja, o aproveitamento das suas utilidades no âmbito do contrato, pode consistir no simples uso da coisa locada ou no uso e fruição dela. b) o segundo elemento essencial da locação é o prazo, pois o gozo da coisa que o locador se compromete a proporcionar ao locatário deve ser "temporário", valendo o contrato, em princípio, pelo prazo que for estipulado entre as partes.
Findo o prazo do arrendamento, porém, o contrato renova-se por períodos sucessivos se nenhuma das partes o tiver denunciado nos termos legais; o prazo de renovação é igual ao do contrato, ou apenas de um ano se o prazo do contrato for mais longo (artigo 1054).
Apesar deste contrato ser imprescindivelmente temporário, não é essencial à sua regularidade que se estipule concretamente uma duração, determinada ou indeterminada, pois há leis supletivas que, sendo ele omisso a tal respeito, estatuem a duração que no caso deverá ser - artigo 1087 do código Civil. c) Finalmente, o gozo da coisa deve ser concedido mediante retribuição. Se não se convencionar retribuição, o contrato não é de locação mas de comodato (artigo 1129 do Código Civil). Tratando-se de arrendamento urbano, a retribuição (renda) tem de ser acordada em escudos (artigo 1089 do Código Civil).
Todos os autores destacam estes elementos como essenciais da locação em geral e do arrendamento em particular (Pereira Coelho, Arrendamento, Coimbra,
1988, páginas 7 e seguintes; Pinto furtado, Curso de
Direito dos Arrendamentos vinculativos, 1984, páginas
38 e seguintes; Galvão Telles, Arrendamento, 1944-1945, páginas 5 e seguintes; João de Matos, Manual de Arrendamento e Aluguer, volume I, 1968, páginas 66 e seguintes; Pinto Loureiro, Tratado de locação, volume
I, 1943, página 63).
- O contrato de locação é um contrato nominado ou típico por gozar duma regulamentação tipificada ou especificada.
- Caracteriza-se por ter uma função económico-social própria, dando a doutrina a essa função a designação de causa.
- Consabida a destrinça que separa a causa-motivo da causa-função (Galvão Telles, Dos Contratos em Geral,
2 edição, páginas 249 e seguintes), a segunda atém-se antes ao fim objectivo, imediato, funcional definindo, a função económico-social do contrato: a função própria de cada tipo ou categoria de negócios jurídicos.
Imprime carácter no contrato, como contrato de certa espécie; da-lhe fisionomia; modela a sua estrutura.
- Como ensina Galvão Telles "não é mais que o conjunto de elementos específicos, vistos em síntese ou na sua unidade... (obra citada, 252).
- Na locação a causa está na concessão do gozo temporário de uma coisa mediante retribuições (Antunes
Varela, Das Obrigações em geral, volume I, 6 edição, página 273/verso.
4. De acordo com a orientação firmada por este Supremo
Tribunal, a interpretação das declarações negociais constitui matéria de facto da competência exclusiva das instâncias, embora este Supremo Tribunal possa exercer censura sobre o resultado interpretativo sempre que, tratando-se do caso previsto no n. 1 do artigo 236 do
Código Civil, esse resultado não coincide com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, pudesse deduzir do comportamento do declarante (salvo se este não pudesse razoavelmente contar com ele), ou tratando-se de situação prevista no n. 1 do artigo 238 do mesmo Código, não tenha um mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso (acórdão deste Supremo
Tribunal de 29 de Abril de 1993 - Colectânea de Jurisprudência - acórdãos do Supremo Tribunal de
Justiça, ano I, tomo II, página 73 -, e de 26 de Maio de 1994 - no recurso de revista n. 84993, 2 secção, não publicado; e no recurso de revista n. 85580,2 secção, de 3 de Novembro de 1994, não publicado).
A interpretação das declarações negociais somente integra matéria de direito quando deve ser feita nos termos dos referidos artigos 236 n. 1 e 238, uma vez que então não se trata de fixar apenas factos, mas de aplicar um critério legal normativo e, portanto, uma disposição legal, devendo o tribunal apreciar se esse critério foi correctamente entendido e aplicado pelas instâncias (Vaz Serra, Rev. Leg. e Jurisp., ano 109, página 95).
5. O n. 1 do artigo 236 representa a consagração legal da chamada "teoria da impressão do declaratário", teoria esta que entende que a declaração negocial deve ser interpretada como um declaratário razoável, colocado na posição concreta do declaratário, a interpretaria, com o que se procura, num conflito entre o interesse do declarante no sentido que atribui à sua declaração e o interesse do declaratário no sentido que podia razoavelmente atribuir a esta, que se julga merecedor de maior protecção, não só porque era mais fácil ao declarante evitar uma declaração não coincidente com a sua vontade do que ao declaratário aperceber-se da vontade real do declarante, mas também porque assim se defendem melhor os interesses gerais do tráfico do comércio jurídico.
Mostra isto que a interpretação das declarações negociais não se dirige (salvo no caso do n. 2 do artigo 236) a fixar um simples facto - o sentido que o declarante quis imprimir à sua declaração - mas o sentido jurídico, normativo, da declaração " (Vaz
Serra, Rev. Leg. Jurisp., ano 103, página 287).
6. As considerações expostas em 2) a 5) permitem trazer luz à questão da qualificação do contrato que a Autora e Ré celebraram.
Primo facie, parece que as partes quiseram celebrar um contrato de arrendamento urbano para comércio por na convenção negocial terem sido introduzidas cláusulas que parecem patentear os elementos essenciais de locação:
1. A Ré, dona do Clubhouse, nas instalações do Country
Club de Cascais, proporcionou à Autora o gozo de um gabinete no seu Clubhouse, no âmbito e para os fins do contrato que celebraram: exercício da actividade da
Autora.
2. O prazo é de um ano.
3. A Autora obrigou-se a pagar, até ao dia 5 de cada mês, a importância de 20000 escudos.
Se das cláusulas inseridas na convenção negocial se surpreendem os elementos caracterizadores da locação e se estes elementos essenciais aglutinam a causa deste contrato (concessão do gozo temporário de uma coisa mediante retribuição), parece que as partes quiseram celebrar um contrato típico (o de locação), submetido a normas, quase todas de natureza imperativa, onde se destaca o da renovação automática (artigo 1095 do
Código Civil).
7. A perturbar essa caracterização do contrato encontram-se aspectos terminológicos e substanciais
(introdução na convenção de outras cláusulas).
Por um lado, assinala-se que a importância mensal a pagar pela Autora será a título de compensação. Tal terminologia é absolutamente inócua para afectar a caracterização do negócio celebrado, uma vez que traduz a ideia de contraprestação, talqualmente como a expressão "retribuição" empregue no artigo 1022, do
Código Civil.
- Por outro lado, introduziram-se na convenção negocial cláusulas (expressas e verbais, cuja validade não foi posta em causa) que bem podem prejudicar (pôr em crise) a causa do contrato de locação.
Das cláusulas expressas destacam-se a quarta (o contrato pode ser resolvido por qualquer das partes desde que para tanto emita aviso, com a antecedência mínima de 30 dias) e a quinta (o acesso ao gabinete agora cedido, fica limitado ao funcionamento do Country
Club de Cascais).
Das cláusulas verbais destaca-se a da Ré suportar as despesas de água e luz e de limpeza do gabinete.
- São as partes que modelam os contratos que querem celebrar com a inclusão de cláusulas de um ou mais contratos tipícos e com cláusulas atípicas (isto é, cláusulas tidas como essenciais, não figurando nos contratos típicos), de sorte que será através de todas estas cláusulas, na interpretação do sentido das declarações de vontade das partes, que o contrato acabará por ser caracterizado (qualificado).
Não basta só surpreender entre as cláusulas insertas na convenção negocial os elementos caracterizadores de um contrato típico, como seja o da locação, para afirmar, como afirmou o Professor Almeida Costa que as partes não podem afastar o regime de locação, quando se verificam os elementos essenciais que o caracterizam
(Rev. Leg. e Jurisp. e ano 118, página 217).
Para afastar tão radical posição basta ter presente a posição assumida pela doutrina quanto à natureza jurídica dos contratos de instalação dos lojistas nos
Centros Comercias (Professor Antunes Varela, em anotação ao Acórdão deste Supremo Tribunal e de 12 de
Julho de 1994, na Rev. Leg. e Jurisp., ano 127, páginas
174 e seguintes).
8. Para a caracterização do contrato que a Autora e a
Ré quiseram celebrar não se pode deixar de ter presente as cláusulas quarta e quinta, deixadas transcritas, introduzidas na convenção negocial.
Com a inclusão da cláusula quarta frustrado fica o regime vinculistico com que a lei assegura, no contrato de arrendamento, a posição do inquilino, na medida em que a denúncia nesses contratos está em princípio proibida em relação ao senhorio - artigo 1095, Código
Civil.
A inclusão de tal cláusula na convenção negocial não tem outro sentido senão que as partes quiseram celebrar um contrato que se afastasse da disciplina do dos arrendamentos.
Com a inclusão da claúsula quinta na convenção negocial as partes puseram em crise o primeiro elemento caracterizador do contrato de arrendamento: proporcionar o gozo da coisa.
Enquanto no contrato de arrendamento a coisa é entregue ao arrendatário em inteira disponibilidade (poder retirar dela as utilidades próprias sempre que quiser e no momento que bem entender), no contrato que a Autora e Ré celebraram houve o "propósito de limitar o gozo do gabinete ao tempo do funcionamento do Country Club de
Cascais.
Pretendeu-se, com a inclusão de tal claúsula, celebrar um contrato que não tivesse natureza locativa, ou seja, pretendeu-se celebrar um contrato em que o gozo da coisa fosse intermitente, não dependente da vontade do outorgante a quem a coisa (gabinete) foi entregue.
Com a inclusão da claúsula verbal pretenderam as partes introduzir no contrato cláusulas próprias do contrato de prestação de serviços, sendo certo que a mesma se apresenta como essencial nesse contrato.
A inclusão de tais cláusulas descaracterizam os elementos definidores do contrato de locação. Através das mesmas em crise fica a causa do contrato de locação, que como se apontou, na esteira dos ensinamentos do Professor Galvão Telles, apresentou-se como um elemento resultante dos elementos essenciais desse contrato, ou seja, como elemento aglutinador dos mesmos.
Tais cláusulas apontam que as partes pretendem celebrar um contrato não sujeito ao regime dos contratos de arrendamento, ou seja, pretenderam celebrar um contrato
(atípico, inominado, que intitularam, contrato de cedência temporária), com um regime especifico: o fixado pelas cláusulas validamente queridas.
Que as partes celebraram um contrato atípico, inominado, sujeito ao regime das cláusulas que validamente inseriram (cessão de um escritório por um ano, não renovável, a ser utilizado no período de funcionamento das instalações onde se integrava), resulta de estar conforme o sentido que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição de declaratário efectivo (a Autora) daria à declaração da vontade da Ré, tendo em vista os termos do contrato, conjugado com as circunstâncias em que o mesmo foi celebrado (as referidas em 18) e 19), II presente acórdão).
Sentido da declaração de vontade da Ré que vale por ter correspondência no texto do contrato celebrado, precisamente nas cláusulas quarta e quinta analisadas.
Conclui-se, assim, que as partes celebraram um contrato
-atípico, a que denominaram "contrato de cedência temporária".
V
Conclusão:
Do exposto, poderá extrair-se que:
1) São as partes que modelam os contratos que querem celebrar, dentro dos limites da lei, com a inclusão de cláusulas de um ou mais contratos típicos e de cláusulas atípicas, ou seja, com cláusulas tidas como essenciais, não figurando nos contratos típicos.
2) Será através de todas as cláusulas introduzidas na convenção negocial, na interpretação do sentido das declarações de vontade das partes, que o contrato acabará por ser caracterizado (qualificado).
3) O n. 1 do artigo 236 do Código Civil consagra a teoria da impressão do destinatário.
4) O Supremo Tribunal pode exercer censura sobre o modo como as instâncias ao interpretarem as declarações de vontade das partes fizeram uso do preceituado nos artigos 236 n. 1, 238, ambos do Código Civil.
Face a tais conclusões, em conjugação com os elementos reunidos nos autos poderá precisar-se que:
1) Autora e Ré celebraram um contrato atípico, a que denominaram: contrato de cedência temporária, sujeito ao regime das cláusulas que validamente inseriram (a cessão de um escritório por um ano, não renovável, a ser utilizado no período de funcionamento das instalações onde se integra).
2) A posse da autora passou a ser ilegítima a partir do termo do contrato referido em 1), não lhe cabendo direito a qualquer compensação.
3) O acórdão recorrido não pode ser mantido por ter inobservado o afirmado em 1) e 2).
Termos em que se concede a revista, e assim revoga-se o acórdão recorrido e absolve-se a Ré/recorrente dos pedidos.
Custas pela Autora/recorrida.
Lisboa, 30 de Novembro de 1994.
Miranda Gusmão.
Araújo Ribeiro.
Raúl Mateus.
Decisões impugnadas:
I - Sentença de 23 de Setembro de 1992, do 4 Juízo / 1
Secção de Cascais.
II - Acórdão de 27 de Janeiro de 1994 da Relação de
Lisboa.