Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5779/18.0T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: CONTRATO DE COMODATO
EXTINÇÃO DO CONTRATO
CASA DE HABITAÇÃO
RESOLUÇÃO
DENÚNCIA
RESTITUIÇÃO DE IMÓVEL
CASO DE FORÇA MAIOR
RESIDÊNCIA HABITUAL
RESIDÊNCIA PERMANENTE
Data do Acordão: 02/04/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - Se o comodato tiver prazo certo, a restituição deve ser realizada até ao termo do prazo previsto; não tendo o comodato prazo, a restituição deve ocorrer logo que finde o uso do prédio.

II - No contrato de comodato sem prazo, mas que tenha por fim o uso de habitação familiar, não há obrigação de restituir o andar, enquanto continuar a ter esse uso porque a necessidade da proteção familiar pode estender-se à casa objeto de um contrato de comodato, para habitação.

III - Quando tenham sido celebrados entre o comodante e a comodatária dois comodatos tendo por objecto dois imóveis destinados a habitação, tendo a comodatária residência num deles, o destino dos imóveis não importa para se obter protecção dos interesses familiares relativamente àquele em que não se tenha residência permanente.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I - Relatório

AA intentou a presente ação declarativa de condenação, com forma de processo comum, contra BB pedindo a condenação deste a:

- reconhecer a legitimidade da Autora enquanto comodatária de dois bens imóveis determinados, que identifica;

- entregar à Autora, devoluto, livre de pessoas e bens, o imóvel de ..., ordenando-se a sua imediata restituição;

- pagar à Autora a quantia global de € 29.184,19, acrescida do valor diário de € 200,00 até à entrega do imóvel em causa, bem como dos juros legais vincendos desde a data de citação até integral e efetivo pagamento.

Alega que na sequência da ação de divórcio entre as partes a autora outorgou testamento a seu favor sob a garantia de que ficaria com o “usufruto” das casas; entre setembro de 2015 e julho de 2017, a Autora pagou de prestações bancárias e seguros devidos pelo Réu um montante total de € 24.184,19.

Na contestação o réu em reconvenção pediu a condenação da autora no pagamento do valor de € 12.104,80, relativo a valores mutuados pelo Réu à Autora e, até ao momento, por esta não liquidados, e - na entrega imediata ao Réu/Reconvinte do imóvel sito em …., bem como numa sanção pecuniária não inferior a 200 euros/dia por cada dia de atraso na entrega do mesmo.

A autora replicou e, instruídos os autos, veio a ser proferida sentença que julgou a acção improcedente e, consequentemente, absolveu o Réu do pedido e julgou a reconvenção parcialmente procedente e determinou a condenação da autora a restituir ao Réu/Reconvinte a posse do imóvel sito na Rua ..., nº …, freguesia ..., em …; e a pagar-lhe a quantia de € 1.350,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a citação até integral pagamento, absolvendo-a do mais peticionado.

A autora interpôs recurso de Apelação que foi julgado parcialmente provido e alterou a sentença recorrida n segmento em que julgou improcedente o pedido de condenação do réu apelado a pagar a quantia de 24.184,19 € correspondentes à soma das prestações bancárias e seguros inerentes ao empréstimo hipotecário relativo ao imóvel .... que a autora suportou nos anos de 2015, 2016 e 2017 condenando-se o réu a pagar à autora a quantia de 24.184,19 € acrescida de juros de mora vencidos e vincendos desde a data de citação até integral pagamento à taxa legal dos juros moratórios civis.

A autora interpôs recurso de Revista excepcional que foi admitida pela Formação a que alude o art. 672 nº 3 do CPC.

A recorrente conclui que:

“Pede-se a intervenção do Venerando Supremo Tribunal de Justiça para a correta e adequada apreciação jurídica da posição processual do ora Recorrente.

2.º Com interesse direto para o presente recurso em referência aos imóveis id. a fls. e objeto destes autos tem de se determinar, pelo menos, a garantia da proteção do direito à habitação da Recorrente que se viu desapossada de todo o seu património na sequência do divórcio.

3.º Assim, no presente processo ao estar em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito e quando são questionados interesses de particular relevância social, a proteção do direito à habitação familiar, assim como, a não validação da ação direta, a Recorrente invoca a excecionalidade do recurso de revista que interpõe.

4.º Em causa está a defesa o interesse privado da Recorrente, a par de outros direitos pessoais e coletivos da proteção da família e da sua habitação inviolável pelo agir particular de qualquer cidadão.

5.º Qualquer decisão judicial sobre estas matérias não pode ser proferida de ânimo unicamente dirigido aos interessados diretos na quezília civil, mas à sociedade em geral.

6.º Em apreço nos presentes autos, o contrato de “comodato”, (doc. 4 da p.i.), celebrado sem prazo, apenas terminando por caso de força maior.

7.º Tal contrato visava assegurar a habitação da Recorrente, (doc. 4 da p.i.).

8.º A dita “força maior” foi concretizada pelas partes como sendo:

necessidades económicas ou motivos de saúde que implicassem despesas vultuosas, sendo obrigatória a demonstração através de justificação comprovada para se proceder à alienação de um dos imóveis, (doc. 4 da p.i.).

9.º No que concerne à casa …, esta continua a ser a residência da Recorrente, prolongando o uso da casa de morada de família que a si estava atribuída no processo de divórcio.

10.º A proteção legal da habitação de família faz cair a pretensão do Recorrido.

11.º A posição da Apelante encontra conforto na jurisprudência e invocam-se as doutas decisões: Ac. STJ de 05 de junho de 2018, 7.ª Secção, Proc. n.º 1281/13.5TBTMR.E1.S1,  http://www.gde.mj.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/8 49e44f30988e548 802582a4003b95c5?OpenDocument

12.º Mais, em referência à casa de ... o Recorrido através de ação direta tomou a sua posse vendendo-a de seguida a terceiros.

13.º O meio utilizado - via de facto não consiste no meio idóneo que a lei põe ao alcance do comodante que é a interpelação, cfr. art.º 1137.º n.º 2 do CC seguida da correspondente ação judicial de reivindicação de propriedade.

14.º O Recorrido agiu através de métodos de ação direta proibidos legalmente, cfr. art.º 336.º do CC e art.º 1.º do CPC.

15.º Ao atuar desta forma, o Recorrido denega na prática o direito da Recorrente de defender os seus direitos ao criar uma situação de facto de difícil resolução e violando o art.º 20.º da CRP.

16.º Com relevância para a decisão a formular, estão violados pela sua indevida apreciação o teor dos 287.º n.º 2; 336.º; 1129.º; 1133.º n.º 2; 1137.º n.º 2; 1140.º; 1277.º a 1279.º todos do C.C. 1.º do CPC e 20.º da CRP.

 O recorrido contra-alegou defendendo a confirmação da decisão recorrida.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação

Foram considerados provados os seguintes factos:

 “1. A Autora e o Réu foram casados entre si, tendo contraído casamento em 29 de agosto de 1979, sob o regime da comunhão de adquiridos, e tendo-se divorciado por mútuo consentimento, por decisão proferida em 26 de novembro de 2012 e transitada em julgado em 16 de janeiro de 2013 no âmbito do Proc. n.º … do Juízo de Trabalho e Família e Menores …... da extinta Comarca …....

2. Na relação de bens comuns apresentada então pelo ora dissolvido casal constavam os seguintes imóveis:

- Uma moradia de rés-do-chão e logradouro destinada a habitação, inscrita na matriz sob o n.º  … e descrita na Conservatória de Registo Predial ….... sob o n.º …, a que atribuíram o valor de € 64.940,00;

- Um prédio urbano composto por quatro pavimentos, cave com duas arrecadações, sendo o rés-do-chão composto por uma assoalhada, cozinha, casa- de-banho, vestíbulo e logradouro e o primeiro andar composto por duas assoalhadas, uma casa-de-banho, vestíbulo, terraço e sótão com arrecadação e terraço, descrito na Conservatória de Registo Predial de ... sob o n.º …, da freguesia …… e inscrito na respetiva matriz sob o artigo n.º …, a que atribuíram o valor de € 109.607,58.

3. A 22 de setembro de 2015, em Cartório Notarial, a Autora e o Réu celebraram uma escritura de partilha por divórcio.

4. Os únicos bens partilhados foram os dois imóveis, adjudicados por inteiro ao Réu.

5. O Réu assumiu os encargos bancários, num total de € 155.725,89.

6. Ficou declarado que a Autora recebeu tornas no montante de € 37.392,97.

7. Ainda a 22 de setembro de 2015, o Réu celebrou com a Autora um contrato através do qual lhe cedeu, em regime de comodato, os dois imóveis suprarreferidos, com destino à habitação desta.

8. O contrato foi celebrado sem prazo, prevendo-se o seu término imediato no caso de “força maior, designadamente, necessidades económicas ou motivos de saúde que impliquem despesas vultuosas, que demonstrem ser necessária a alienação de um dos imóveis”.

9. Nos termos acordados, a Autora obrigou-se a pagar diretamente “todas as despesas e encargos inerentes ao uso dos imóveis, nomeadamente os gastos com fornecimento de eletricidade, fornecimento de água e gás, telefone e outros”.

10. Nos termos da cláusula 8 do contrato “quando a qualquer título se extingam os efeitos do presente contrato, a segunda contraente estará obrigada a entregar os imóveis ao primeiro contraente”

11. Por carta registada, datada de 08 de fevereiro de 2018, o Réu, invocando o incumprimento do pagamento do empréstimo que onerava o imóvel sito em ... desde agosto e cuja responsabilidade era da Autora, e que o processo bancário estava em fase contenciosa, o que fazia com que o imóvel viesse a ser vendido para fazer face aos valores em dívida, declarou resolver o contrato, com efeitos imediatos.

11. Solicitando a entrega imediata dos bens, mudou as fechaduras da casa ..... e procedeu à venda do imóvel.

12. O réu enviou uma carta à autora em que dizia “em face da já referida resolução do contrato de comodato venho interpelar V. Exª para, num prazo de 10 dias, me informar em que data pretende vir levantar os referidos bens móveis”.

13. A autora jamais respondeu a essa carta.

14. Solicitando a entrega imediata dos bens da casa …, mudou as fechaduras e procedeu à venda do imóvel.

15. O passivo relativo aos empréstimos que oneravam os imóveis supra referidos encontra-se saldado.

16. Em 2015 a autora pagou de prestações bancárias e seguros inerentes ao empréstimo hipotecário relativo ao imóvel sito em ... a quanto de 5. 049,95 €; em 2016 o montante pago pela autora foi de 11.359,13; e em 2017 a autora liquidou por conta desse empréstimo a quantia de 7.775,61 € num total de 24.184,19 €.

17. Em agosto de 2017, a Autora informou o Réu que não tinha pagado a prestação relativa ao imóvel … mas que a situação estava controlada e que estava na iminência de resolver os seus problemas financeiros pois, em outubro de 2017, iria assinar o contrato promessa de compra e venda de um determinado bem da herança dos seus pais.

18. No entanto, tal assinatura não se concretizou e o incumprimento da Autora nos pagamentos do empréstimo continuaram.

19. O Réu, apercebendo-se que o seu nome constava da lista de incumprimentos do Banco de Portugal, entrou em contacto com o Banco para saber da situação e foi informado que o assunto estava prestes a seguir para contencioso.

20. A Autora manifesta um sentimento de tristeza, mágoa, ressentimento.

21. Foi a Autora que teve a iniciativa para o divórcio.

22. Durante anos, o Réu ajudou o pai da Autora, colaborando nas atividades …. que aquele detinha nas suas explorações, bem como na construção … “…”, em ...

23. O Réu sempre manteve uma postura de total independência material e financeira perante a família da Autora.

24. Vivendo do seu trabalho e dos seus vencimentos como … em empresas….., de funcionário da … e da sua reforma desde 2013.

25. O Réu recebe como pensão de aposentação um valor líquido de € 2.327,19.

 26. Aquando a morte dos seus progenitores, a Autora herdou um património acompanhado de dívidas.

27. A questão da partilha entre Autora e Réu foi abordada por diversas vezes e foram encaradas inúmeras hipóteses de como dividir os bens entre o casal.

28. A Autora pretendia ficar com os dois imóveis sem ter possibilidades de assegurar o pagamento de dois empréstimos.

29. A Autora sabia que se fosse ela a ficar com a propriedade dos imóveis corria o risco de estes virem a ser penhorados num futuro próximo atentas as dívidas fiscais da sua titularidade.

30. A Autora fez testamento a favor do Réu pois, em face das desavenças que tem com a irmã, não queria que fosse ela sua herdeira.

31- Em 2017, a autora começou a pedir ao réu que lhe emprestasse dinheiro, pois, segundo a mesma, não tinha sequer dinheiro para comer, ao que o réu foi acedendo.

32. O imóvel ….. é onde actualmente reside a autora.

33. O Réu tem vindo a pagar os valores referentes ao consumo de água feito pela Autora, liquidando, ainda, o seguro da casa num valor anual de € 101,83 euros.

34. Já após o divórcio, o Réu pagou contas da titularidade da Autora relativas aos serviços utilizados por aquela nas casas … e de ..., no total de € 13.665,39, do qual a Autora liquidou apenas € 3.000,00.

35. Em 16 de agosto de 2017, o Réu emprestou à Autora € 350,00, tendo-se esta obrigado ao pagamento no prazo de quatro meses

36. A 27 de agosto de 2017, o Réu emprestou mais € 500,00 à Autora, tendo-se esta obrigado ao pagamento no prazo de três meses.

37. A 13 de outubro de 2017, o Réu emprestou à Autora mais € 100,00, tendo-se esta obrigado ao pagamento no prazo de dois meses.

38. Tendo emprestado, em 25 e 27 de outubro de 2017, mais € 400,00, tendo-se a Autora obrigado ao pagamento no prazo de dois meses.

39. O Réu liquidou o seguro trimestral do veículo automóvel que a Ré utiliza, no valor de € 89,41.

40. O Réu pagou contas da água do imóvel …, no valor total de € 166,44.

41. A 18 de julho de 2018, no seguimento da venda do imóvel ..... e uma vez que a Autora não foi levantar os seus bens móveis, o Réu decidiu pô-los num armazém, tendo pagado, pelo transporte e depósito, desde julho de 2018 até abril de 2019, € 2.157,42.

42.  O Réu pagou o seguro relativo ao imóvel …, no valor de € 104,40.

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das Recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido nos arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

O conhecimento das questões a resolver, delimitadas pelas alegações, importa em apreciar e decidir se a Apelação deve ser revogada e julgada a acção procedente com a respectiva condenação do recorrido nos pedidos formulados.

Na análise da questão observamos em primeiro lugar que, autora e réu, que foram casados entre si, divorciaram-se e acordaram em escritura de partilhas que os dois prédios que tinham em comum, um em … e outro em ..., fossem adjudicados ao réu. E como proprietário destes dois imóveis o réu celebrou, a seguir, com a autora um contrato através do qual lhe cedeu, em regime de comodato, os dois imóveis supra referidos, com destino à habitação desta, tendo sido o contrato celebrado sem prazo, prevendo-se o seu término imediato no caso de “força maior, designadamente, necessidades económicas ou motivos de saúde que impliquem despesas vultuosas, que demonstrem ser necessária a alienação de um dos imóveis”.

Decorre do art. 1129 do CCivil que o “comodato é o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega á outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir”.

Sendo na previsão legislativa anterior - no CCivil de 1867 -  uma modalidade do contrato de empréstimo, o comodato autonomizou-se e, com natureza real - quod constitucionem, conquanto só se completa pela entrega da coisa – é gratuito e sem lugar a qualquer contra prestação por parte do comodatário, mantendo no entanto uma bilateralidade imperfeita envolvendo obrigações para ambos os contraentes, sem no entanto existir entre estas a interdependência e reciprocidade que possa configurar um sinalagma – vd. Pires de Lima e Antunes varela CCivil anotado vol. II pg. 580 e 581. Assim é que, a gratuidade do comodato não é afastada pela existência de cláusulas modais impostas pelo comandante, tais como o pagamento de contribuições e impostos referentes ao prédio ou outras, uma vez que esses encargos não têm um sentido correspectivo ao das prestações nem afastam, nem pelo seu valor e natureza, o interesse principal do contrato que é o do comodatário.

Estas considerações confirmam como comodato o contrato celebrado entre as partes nos autos, referentes à utilização por parte da autora de dois imóveis, a tal não se opondo que tenha sido acordado que a autora pagaria diretamente todas as despesas e encargos inerentes ao uso dos imóveis, nomeadamente os gastos com fornecimento de eletricidade, fornecimento de água e gás, telefone e outros.

Num segundo momento, verificamos que, quanto ao termo do contrato e restituição da coisa, ficou acordado que ela teria lugar no caso de força maior, prevendo-se como um desses casos a ocorrência de necessidades económicas ou motivos de saúde que implicassem despesas vultuosas, que demonstrem ser necessária a alienação de um dos imóveis.

A previsão legal para a restituição colhe-se no art. 1137 do CCivil onde se estabelece que, se não tiver sido fixado prazo certo (como no caso em decisão não foi) e se o empréstimo tiver sido para uso determinado, o comodatário deve restituí-la logo que o uso finde, sendo que, se não foi fixado nem prazo nem uso, a restituição tem lugar logo que o comodante a exija.

A regra base implícita na letra deste preceito, e que se extrai da sua leitura, é a de que o comodato se extingue pelo termo do prazo estipulado não havendo quanto a este a limitação do art. 1025 do CCivil relativo à locação – e que determina que o prazo desta não pode exceder os 30 anos - embora, mesmo que sem fixação de uso determinado e com prazo fixado, é razoável o entendimento de que a restituição deve realizar-se antes se a coisa deixou de ser necessária ao comodatário – Vd. Pires de Lima /Antunes varela, op. e loc. cit. p.595. Acresce ainda que, em reforço do que dizemos, o nº 2 do art. 1137 previne que na falta de fixação de prazo e uso determinados o comodante pode exigir a todo o tempo a restituição. De facto, a não estipulação de um prazo limite tem de conjugar-se com a natureza do contrato, que supõe que a cedência seja sempre limitada a um certo período de tempo, a fim de não desrespeitar a função social que preenche e cuja causa é sempre uma gentileza, um favor não conciliável com um uso muito prolongado e que o converta numa doação indirecta - cfr. Rodrigues Bastos in Notas ao CCivil, Vol. IV, p, 242-243.

Também esta dimensão da extensão temporal como traço do contrato foi referida na jurisprudência do STJ com o alcance de o “uso determinado a que se refere o art. 1137º, do CC, pressupõe uma delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não podendo considerar-se como determinado o uso de certa coisa se não se souber, quando aquele uso não vise a prática de atos concretos de execução isolada mas antes atos genéricos de execução continuada, por quanto tempo vai durar, caso em que se deve haver como concedido por tempo indeterminado. Assim, o uso só é determinado se o for também por tempo determinado ou, pelo menos, determinável” - cf., neste sentido, entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 13.5.2003, revista n.º 1323/03, Relator: Silva Salazar; de 27.5.2008, revista n.º 1071/08, Relator: Alberto Sobrinho; 31-03-2009 ; de 31.3.2009, revista n.º 359/09, Relator: Pereira da Silva; de 16.11.2010, revista n.º 7232/04.0TCLRS.L1.S1, Relator: Alves Velho e de 21-3-2019, proc. 2/16.5T8MGL.C1.S, Relator: Maria do Rosário Morgado, disponíveis in www.dgsi.pt..

Na análise dos contratos discutidos, tendo os mesmos sido celebrados sem prazo e dizendo-se que tinham por “destino” a habitação da recorrente, fez-se constar que a restituição poderia ter lugar “em caso de força maior”, o que, em face da exegese do art. …, seria desnecessário uma vez que a existência de justa causa como fundamento para a restituição apenas seria de exigir nas situações em que o comodato tivesse prazo certo e não já, como no caso em discussão, quando não tenha sido estabelecido, o que pode abonar-se na leitura do art. … o qual, só para os casos em que tenha sido fixado prazo, faculta a possibilidade de resolução antecipada  se existir justa causa.

A decisão recorrida expendeu ainda que, mesmo que o réu não tivesse justa causa para resolver o contrato, por não se verificar o condicionalismo que as partes haviam definido como constituindo força maior susceptível de determinar a cessação imediata do mesmo, poderia sempre denunciar o contrato ad nutum nos termos legais, e em verdade tem de confirmar-se essa conclusão em atenção ao que deixámos dito quanto à inexistência de um prazo e, também, quanto à determinabilidade da extensão do uso. Por outro lado, a circunstância de se ter provado que o imóvel discutido (o de ...) foi vendido a terceiros pelo autor, não se tendo previsto para o comodato uma norma semelhante à do art. … para a locação - que impede que o contrato de arrendamento termine quando o locador venda o imóvel sucedendo o comprador nos direitos e obrigações deste -, impõe que, em caso de venda pelo comodante, o comodato é inoponível ao terceiro comprador, caducando ope legis, a menos que o adquirente se obrigue a reconhecer o comodato – vd. Menezes Cordeiro Tratado de Direito Civil, XII, Contratos em Especial,  (2ª parte) Coimbra 2018, p. 168 e 169 e ac. STJ de 22-9-2017 no proc. 1448/12.3TBTMR.E1.S1 (Cons. Maria dos Prazeres Beleza) in dgs.pt e onde se pode ler “ um comodato celebrado entre os proprietários de um imóvel e terceiros não vincula futuros adquirentes do mesmo imóvel (…) Nem as partes do contrato de comodato lhe poderiam atribuir semelhante eficácia por a tanto se opor a regra da tipicidade dos direitos reais”.

Com este sentido interpretativo e estando assente nos autos que o imóvel sito em ... foi vendido a terceiros, ter-se-ia também por esta razão, que entender que o comodato celebrado quanto a este imóvel havia caducado ope legis na data de realização da venda.

Em resumo, decorrendo dos factos provados que as casas foram cedidas com destino a habitação - finalidade que, mesmo que não tivesse sido convencionada pelos outorgantes, sempre resultaria do art. 1131º, do CC - e sem indicação de prazo certo para a restituição, a que foi accionada pelo réu mostra-se regulada pelo nº 2, do art. 1137º, do CC, norma que visa precisamente impedir a perpetuação das relações obrigacionais de comodato para as quais não tenha sido fixado prazo de duração, nem determinado o uso da coisa. Consequentemente, é de concluir que, não se estipulando prazo, nem se delimitando a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, o comodante tem direito a exigir, em qualquer momento, a restituição do imóvel, denunciando o contrato, ao abrigo do disposto no n.º 2 do citado art.º 1137º, do CC.

A tudo isto opõe a recorrente, o argumento de que o STJ - no ac.de 5 de julho de 2018, no proc. 1281/13.5TBTMR.E1.S1 (relator Cons. Olindo Geraldes) - com base na protecção legal da família entendeu que, vigorando um contrato de comodato sem prazo para uso de habitação familiar, não há obrigação de restituir o andar, enquanto continuar a ter esse uso.

Sendo este o enunciado que a recorrente reclama como sustento de razão, a verdade é que a realidade decidida nesse acórdão, desta mesma secção, tem especificidades que a não serem sublinhadas se tornam equívocas. Atente-se que, nesse caso, o imóvel discutido (um único) havia sido cedido pelos pais do aí recorrente ao casal formado pelo próprio recorrente e pela aí recorrida, para sua utilização temporária como habitação e casa de família. Esse contrato não tinha prazo certo mas tinha uso determinado e específico, consistente no da habitação efectiva do casal em termos de ser considerada a casa de morada de família, sendo este o elemento que foi relevado, não só importante como decisivo, quando se sublinha que “Faltando um prazo certo, mas destinando-se a cedência do prédio a habitação, a sua restituição tem lugar quando finde o uso a que foi destinado, sem necessidade de interpelação, como decorre do disposto no art. 1137.º, n.º 1, do CC. De modo que, se o comodato tiver prazo certo, a restituição deve ser realizada até ao termo do prazo previsto; não tendo o comodato prazo, a restituição deve ocorrer logo que finde o uso do prédio (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, II, 2.ª edição, 1981, págs. 595 e 596).

A duração do comodato depende, pois, do termo do prazo estipulado ou de findo o uso determinado, sendo irrelevante, para a sua vigência, a motivação presente no momento da sua celebração.”

Desta circunstância, que envolve a confirmação de existência de um uso especificamente acordado e com incidência familiar é retirada a conclusão de que “Tratando-se, no caso, de contrato sem prazo e para uso de habitação familiar, não há obrigação de restituir o … andar do prédio identificado, enquanto continuar a ter esse uso, atento o disposto no art. 1137.º, n.º 1, do CC.

Na verdade, aquele andar constituiu a casa de morada da família do casal formado pelo Recorrente e Recorrida, tendo depois sido atribuída, por acordo, na sequência do respetivo divórcio, à Recorrida, que aí manteve a sua residência, com os filhos.

A Recorrente e a Recorrida, de resto, tinham toda a legitimidade para celebrar o acordo sobre a atribuição da casa de morada de família, como também o podiam fazer se o prédio fosse arrendado, como está expressamente previsto na lei (arts. 1105.º do CC e 4.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio).

A proteção da família e, em particular, dos filhos, justifica igualmente a transmissão da cedência do prédio, sem necessidade do consentimento do comodante, como sucede no caso em que a casa morada de família é arrendada.

A necessidade da proteção familiar pode, por isso, estender-se à casa objeto de um contrato de comodato, para habitação (SALTER CID, A Proteção da Casa de Morada de Família no Direito Português, 1996, pág. 229).”

Julgamos bastar a transcrição para que tenha de concluir-se que é bem diverso o caso agora em decisão. Por um lado, dos dois prédios objecto de comodato - o de … e o de ... - apenas o primeiro, que se mantém, é aquele onde reside a autora (ponto 32 dos factos assentes) não se podendo argumentar, para efeitos de levar a interpretação do art. 1137 do CCivil a incorporar a protecção familiar – e sobretudo dos filhos – que ambos os comodatos, indistintamente, tinham como fim a habitação. De facto, sendo dois imóveis urbanos eles seriam ambos aptos, por natureza e condição, a proporcionarem habitação, só que o sentido protectivo afirmado no acórdão, com previsão normativa e sentido de justiça, não respalda a natureza dos imóveis, mas credencia a natureza da própria utilização de uma forma e com uma amplitude que a situação da recorrente não preenche. Mesmo que se soubesse- e a matéria provada não só o não deixa saber, bem como revela o contrário - que a autora habitava/residia em ambas as casas comodatadas, seria necessário apurar qual delas constituiria a “residência habitual” da comodatária, onde ela teria o seu trem de vida, para que a aludida protecção não fosse distribuída por interesses alheios à necessidade de uma única casa onde continuar a manter a família. Aliás, numa interpretação razoável, julgamos que a ausência de fixação de um prazo certo nos comodatos discutidos apenas poderá sufragar o entendimento segundo o qual, a resolução do comodato de ... e a alienação do imóvel não colhe os benefícios de uma interpretação das normas que comporte a protecção familiar, entendimento que é esclarecido pela certeza de a autora morar/residir na casa objecto de comodato em … e relativamente ao qual nenhuma questão se suscita.

Assim, entende-se ser de confirmar a apelação e, de negar provimento ao recurso.

Síntese conclusiva

Se o comodato tiver prazo certo, a restituição deve ser realizada até ao termo do prazo previsto; não tendo o comodato prazo, a restituição deve ocorrer logo que finde o uso do prédio.

No contrato de comodato sem prazo, mas que tenha por fim o uso de habitação familiar, não há obrigação de restituir o andar, enquanto continuar a ter esse uso porque a necessidade da proteção familiar pode estender-se à casa objeto de um contrato de comodato, para habitação.

Quando tenham sido celebrados entre o comodante e a comodatária dois comodatos tendo por objecto dois imóveis destinados a habitação, tendo a comodatária residência num deles, o destino dos imóveis não importa para se obter protecção dos interesses familiares relativamente àquele em que não se tenha residência permanente.

Decisão    

Pelo exposto acorda-se em julgar improcedente a revista e, em consequência confirmar a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 4 de Fevereiro de 2021.

Nos termos e para os efeitos do art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 20/2020, verificada a falta da assinatura dos Senhores Juízes Conselheiros adjuntos no acórdão proferido, atesto o respectivo voto de conformidade da Srª. Juiz Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza e do Sr. Juiz Conselheiro Tibério Silva.

Manuel Capelo (relator)