Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
23992/18.9T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RAIMUNDO QUEIRÓS
Descritores: ASSEMBLEIA DE CONDÓMINOS
DELIBERAÇÃO
IMPUGNAÇÃO
LEGITIMIDADE PASSIVA
CONDOMÍNIO
REPRESENTAÇÃO
ADMINISTRADOR DE CONDOMÍNIO
Data do Acordão: 11/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - O condomínio é um ente colectivo, constituído pelo conjunto dos condóminos, que manifesta a sua vontade através das deliberações da assembleia dos condóminos.
II - A deliberação tomada pela assembleia de condóminos exprime a vontade do condomínio, do grupo, e não dos condóminos individualmente considerados, designadamente dos que a aprovaram.
III - A própria essência de uma deliberação constitui um conteúdo autonomizado da vontade dos sujeitos individuais que nela intervieram e para ela contribuíram, configurando-se não como a soma das vontades singulares, mas como uma realidade autónoma e distinta.
IV - Na acção de impugnação de deliberações da assembleia de condóminos, a legitimidade passiva pertence ao condomínio, representado pelo respectivo administrador.
Decisão Texto Integral:


Processo nº 23992/18.9T8LSB.L1.S1- 6ª Secção       

       

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça    

        

Relatório:

AA e outros, intentaram acção de declaração de nulidade de deliberação de assembleia de condomínio, sob a forma de processo comum, contra BB e outros condóminos.

Peticionam os Autores que :

A- Seja anulada a deliberação tomada na assembleia de condóminos da ..." que reuniu no dia 31 de Agosto de 2018 e de cuja execução resultará o aparafusamento das pedras que revestem exteriormente as paredes do edifício designado por Bloco ... ; e

B- Sejam os RR. condenados no pagamento das custas do processo.

Alegaram os autores, em síntese que :

- AA. e RR. são donos e legítimos possuidores de fracções autónomas do Bloco ..., B, C e D, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal denominado L... 4.51.01, sito na Rua ..., Rua ... e Av. ..., no ..., em ..., designado por "...;

- Ocorre que, em Assembleia de Condóminos do "Condomínio ..." e que reuniu no dia 31 de Agosto de 2018, foi tomada a deliberação - aprovada, com os votos favoráveis dos RR. e com os votos contra dos AA - de “Dever ser dada uma oportunidade ao empreiteiro, a empresa G..., de finalizar a obra e corrigir os defeitos de acordo com o que foi definido pelo Tribunal, devendo, por isso, antes da resolução do contrato, ser notificada judicialmente a G... para no prazo de quinze dias após a notificação dar início às obras e no prazo de um mês finalizar”.

-Acontece que a referida deliberação, porém, não só contraria uma deliberação anterior aprovada e não impugnada (tomada na assembleia de 20 de Abril de 2018) como, ademais, é ainda ilegal, já que tendo por objecto uma inovação, não foi aprovada pela maioria necessária e legalmente exigida;

- Consequentemente, e ao abrigo do n° 1 do art. 1433°, do Código Civil, porque de deliberação se trata que é contrária à lei, é a mesma anulável (o que pretendem os AA que seja declarado) a requerimento de qualquer condómino que a não tenha aprovado.

Em sede de despacho liminar o Juiz na 1ª instância proferiu a seguinte decisão:

(…)

No caso concreto, os Autores peticionam a anulação de deliberações de um condomínio.

Ora, nesta sede a apreciação da legitimidade terá de ser feita com base na relação material controvertida, tal como configurada pelo autor na petição inicial.

(…)

Ora, tratando-se de anulação de deliberações, parece-nos que a legitimidade é do condomínio.

Nesta conformidade, julgo a excepção de ilegitimidade da Ré, em consequência, absolvo a mesma da instância”.

Desta decisão vieram os Autores interpor recurso de apelação

O Tribunal da Relação ..., por unanimidade, negou provimento à revista, confirmando a decisão da 1ª instância.  

Inconformados os Autores interpuseram recurso de revista excepcional, ao abrigo do disposto na alínea c) do nº1 do artº 672º, invocando a contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão do STJ de 6/11/2008, proferido no processo nº 08B2784, de que juntaram cópia, formulando as seguintes conclusões:

a) O presente recurso é de revista excepcional por o, aliás douto, acordo recorrido estar em oposição com o douto acórdão deste Colendo Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 6 de Novembro de 2008 (de que se junta cópia sob doc. nº. 1), de que foi relator o CC, estando em causa a questão fundamental de Direito da legitimidade passiva nas acções de impugnação das deliberações da assembleia de condóminos;

b) A extensão da personalidade judiciária do condomínio, a que alude a alínea e) do art. 12º. do Código de Processo Civil, apenas existe relativamente às acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador;

c) Sendo um dos poderes do administrador do condomínio executar as deliberações da assembleia, não decorre daí a legitimidade do condomínio para ser demandado nas acções de impugnação (nem nos procedimentos cautelares para     suspensão) das deliberações que lhe cumpre executar;

d) Tal     atribuição não consta  nas taxativamente enumeradas no art. 1436º. do Código Civil;

e) O nº. 6 do art. 1433º. do Código Civil estabelece a representação judiciária dos condóminos (e não do condomínio) contra quem as acções de impugnação das deliberações são propostas, como decorre claramente do texto daquela norma, onde não figura o substantivo “condomínio”;

f) A unidade do sistema jurídico, primeiro critério a ter em conta na interpretação da lei, de acordo com o estatuído no nº. 1 do art. 9º. do Código Civil, impõe que as acções de anulação das deliberações da assembleia de condóminos sejam propostas contra estes e não contra o condomínio, única forma de harmonizar o citado nº. 6 do art. 1433º. do Código Civil com o nº. 2 do art. 383º. do Código de Processo Civil, no qual também se refere a representação judiciária dos condóminos e não do condomínio;

g) O Código Civil de 1966 é um primoroso diploma legal, antecedido de anteprojectos da autoria dos mais Ilustres juristas portugueses e de um projecto que foi alvo de cuidadosíssima revisão ministerial, tendo sido escolhidas com o mairo rigor as palavras utilizadas, sendo grande leviandade afirmar que ocorreu uma incorreção      do legislador, que quereria escrever “condomínio” onde escreveu “condóminos”;

h) Tal alegada incorreção – a existir – teria decerto sido corrigida ao longo dos 53 anos que o Código Civil leva de vigência;

i) A interpretação do nº. 6 do art. 1433º. do Código Civil defendida no, aliás douto, acórdão recorrido, viola os nºs. 2 e 3 do referido art. 9º. do Código Civil, pois que não tem na letra da lei um mínimo de correspondência verbal e contraria a presunção de que o legislador consagrou a solução mais acertada e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados;

j) O, aliás douto, acórdão recorrido procedeu a errada interpretação e aplicação do nº. 6 do art. 1433º. do Código Civil”.

Responderam os Réus, pugnando pela manutenção do acórdão.

A Formação, reconhecendo a contradição jurisprudencial entre o acórdão recorrido, que negou a legitimidade dos condóminos demandados por considerar que essa legitimidade cabia ao condomínio, e o acórdão-fundamento que afirmou, peremptoriamente, a legitimidade dos condóminos demandados, negando-a ao condomínio, e que se trata da mesma questão fundamental de direito, admitiu a revista excepcional ao abrigo do disposto na alínea c) do n.° 2 do artigo 672.° do CPC.

II- Apreciação do Recurso:

- Objecto do recurso

O objecto do recurso está delimitado pelo despacho da Formação que admitiu a revista excepcional.

Assim, importa saber se, no âmbito de uma acção intentada por alguns dos condóminos contra os demais, demandados a título individual, cujo objecto é a anulação da deliberação da respectiva assembleia, este tipo de acção deve ser proposta contra os condóminos, individualmente, ou contra o condomínio representado pelo respectivo administrador.

III- Fundamentação

A factualidade a atender é a que consta do relatório

IV- Cumpre decidir

No acórdão recorrido, foi adoptada a solução de que, tendo em conta o preceituado no artigo 12º, alínea e) do CPC, conjugado com o disposto nos artigos 1437º, n°s 1 a 3, e 1436º, alínea h), sem olvidar o disposto no artº 1433º, nº 6, todos do CC, as acções de impugnação de deliberação aprovada em assembleia de condóminos devem ser intentadas contra o condomínio representado pelo seu administrador e não contra os condóminos que votaram favoravelmente a deliberação impugnada.

Em sentido oposto, no acórdão fundamento (do STJ, de 06/11/2008, processo nº 08B2784) prolatou-se o entendimento de que o artigo 1433º, nº 6, do CC, embora o não refira expressamente, estabelece uma pista decisiva no afastar da legitimidade do próprio condomínio e no afirmar a legitimidade dos condóminos, tornando inquestionável que a acção terá necessariamente de ser proposta contra todos aqueles que votaram a favor da aprovação da deliberação cuja anulação se pretende. Além disso, foi também ali entendido que, de acordo com o disposto no mesmo normativo, tais condóminos são representados na acção pelo administrador ou por pessoa que a assembleia designe para o efeito. Nesse contexto, concluiu que, tendo sido demandados todos os condóminos que votaram a favor da aprovação da deliberação cuja anulação se pretendia, não se podia questionar a sua legitimidade como tinha sido decidido pela Relação. O que sucedia era que, tendo aqueles condóminos sido citados nas suas próprias pessoas e não na pessoa ou pessoas a quem cabia tal representação em juízo- o administrador do condomínio- ocorria uma mera irregularidade, mas sem influência no exame ou na decisão da causa.

Vejamos:

Basicamente estão em confronto duas posições, que tem dividido a doutrina e a jurisprudência.

Uma expressa pelo acórdão recorrido que defende que, no âmbito das acções de impugnação das deliberações da assembleia de condóminos, a legitimidade passiva pertence ao condomínio representado pelo administrador[1]

A outra expressa no acórdão fundamento segundo o qual a legitimidade passiva compete a todos os condóminos que tiverem votado favoravelmente a deliberação anulanda, devendo todos eles serem demandados e citados, sem prejuízo, porém, de a respectiva representação judiciária estar legalmente cometida ao administrador do condomínio ou a outra pessoa que a assembleia para o efeito designar[2].

Vejamos:

Sobre o conceito de legitimidade, estipula o art° 30°, n.° 1 do CPC que "o autor é parte legitima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima, quando tem interesse directo em contradizer" e o n° 2 que "o interesse directo em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção; o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha”.

E, sendo certo que o critério assente no interesse directo em demandar ou contradizer se presta a sérias dificuldades na sua aplicação prática, o legislador fixou uma regra supletiva para a determinação da legitimidade, esclarecendo o n° 3 do mesmo preceito que "na falta de indicação em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como ela é configurada pelo autor”.

A legitimidade é um pressuposto processual relativo à posição das partes perante uma causa que se exprime pelo interesse do autor em demandar, fazendo valer o réu o seu direito em contradizer tal pretensão, tendo em conta a relação material controvertida tal como é configurada pelo autor.

A legitimidade tem de ser apreciada e determinada pela utilidade (ou prejuízo) que da procedência (ou improcedência) da acção possa advir para as partes, face aos termos em que o autor configura o direito invocado, sendo a legitimidade aferida pela posição que as partes, perante o pedido formulado e a causa de pedir, têm na referida relação jurídica material controvertida configurada nos termos descritos.

Segundo Manuel de Andrade (in Noções Elementares de Processo Civil, p. 83) o critério de determinação da legitimidade, fixado pelo art. 30.° traduz-se "em ser demandante ( legitimidade activa ) o titular do direito e demandado ( legitimação passiva ) o sujeito da obrigação, suposto que o direito e a obrigação na verdade existam".

Descendo ao caso dos autos, os Autores peticionam a anulação de uma deliberação da assembleia de condóminos de um prédio constituído em regime de propriedade horizontal.

Na propriedade horizontal, a administração das partes comuns do prédio cabe, em, conjunto, a dois órgãos - a assembleia dos condóminos e o administrador - artigo 1430° do CC.

A assembleia dos condóminos é o órgão deliberativo composto por todos os condóminos, competindo-lhe decidir sobre os problemas do condomínio que se refiram às partes comuns, encontrando soluções para os resolver, delegando no administrador a sua execução e controlando a actividade deste.

Por sua vez, o administrador do condomínio é o órgão executivo da administração, cabendo-lhe desempenhar as funções elencadas no art.° 1436° do CC e ainda as que lhe forem delegadas pela assembleia ou que lhe couberem por força de outros dispositivos legais.

O art.° 12°, al. e) do CPC, por razões de ordem prática e por forma a tornar efectivo o exercício dos poderes processuais do condomínio, contornando os obstáculos decorrentes da sua falta de personalidade e capacidade jurídicas, atribui, a título excepcional, personalidade judiciária ao condomínio, que em princípio, nunca a poderia ter por carecer de personalidade jurídica. O que lhe permite intervir como autor ou réu em determinadas acções, concretamente a que “se inserem no âmbito dos poderes do administrador”. Sendo que a representação do condomínio pertence ao administrador nos termos do artº 1437º do Código Civil (CC).

Assim, atendendo ao pedido concretamente formulado na presente acção e à respectiva causa de pedir, entendemos que quem tem legitimidade passiva nesta acção é o “condomínio”, representado pelo administrador, por ser aquele que tem interesse em contestar a acção, porquanto a deliberação tomada pela assembleia de condóminos exprime a vontade do condomínio, do grupo, e não dos condóminos individualmente considerados, designadamente dos que a aprovaram.

 Com efeito, a assembleia dos condóminos é o órgão deliberativo composto por todos os condóminos, competindo-lhe decidir sobre os problemas do condomínio que se refiram às partes comuns, encontrando soluções para os resolver, delegando no administrador a sua execução e controlando a actividade deste.

A própria essência de uma deliberação constitui um conteúdo autonomizado da vontade dos sujeitos individuais que nela intervieram e para ela contribuíram, configurando-se não como a soma das vontades singulares, mas como uma realidade autónoma e distinta. 

Como refere Sandra Passinhas[3], “a deliberação exprime a vontade do condomínio, do grupo, e não dos condóminos (individualmente considerados, ou dos que aprovaram a deliberação)”. E, sendo um acto do condomínio, a legitimidade passiva cabe ao administrador”

(…)

“… as controvérsias respeitantes à impugnação de deliberações da assembleia de condóminos só satisfazem exigências colectivas da gestão condominial, sem atinência directa com o interesse exclusivo de um ou vários participantes, com a consequência que, nessas acções, a legitimidade para agir em juízo cabe exclusivamente ao administrador”.

No mesmo sentido, Jorge Aragão Seia[4] esclarece que a representação judiciária dos condóminos compete ao administrador ou à pessoa que a assembleia nomear para o efeito e que o representante age apenas em nome e no interesse do condomínio, ou seja do conjunto dos condóminos, não necessitando de apresentar procuração individual dos condóminos mas apenas acta da assembleia geral, que o nomeou administrador ou representante especial.

Os defensores da tese oposta (negatória da personalidade judiciária do condomínio neste tipo de acções) argumentam que a legitimidade passiva nas acções de anulação das deliberações da assembleia não pertence ao condomínio, mas sim aos condóminos que tenham aprovado a deliberação, por força do estatuído na parte final do artº 12, al. e) do CPC (ações que se inserem no âmbito dos poderes do administrador) e no artº 1433º, nº 6, quando refere que “A representação judiciária dos condóminos contra quem são propostas as ações compete ao administrador ou à pessoa que a assembleia designar para o efeito”. E, neste contexto, entendem que a matéria relacionada com a validade das deliberações tomadas em assembleia de condóminos consubstancia um tema que é estranho ao exercício das competências do administrador, pelo que deve a acção integrar no lado passivo todos os condóminos perante os quais o condómino autor pretende que se produzam os efeitos da impugnação da deliberação da assembleia, sem prejuízo de solicitar o autor que a citação se efectue na pessoa do administrador.

Não podemos concordar com esta posição.

Com efeito, como adianta Abílio Neto[5], de acordo com a corrente que atribui legitimidade passiva ao condomínio, com a reforma processual de 1995/96, e que atribuiu personalidade judiciária ao condomínio, “o legislador minus dixit quam voluit, devendo o inciso constante do n° 6 do art. 1433.° do Cód. Civil - " a representação judiciária dos condóminos contra quem as acções são propostas... “ - passar a ser interpretado extensivamente, por forma a ver nele escrito que "a representação judiciária do conjunto dos condóminos contra quem as acções são propostas ...”. Pelo que, segundo esta tese, “O administrador do condomínio é, pois, ope legis, o representante judiciário dos condóminos nas acções de impugnação ou no procedimento cautelar de suspensão das deliberações da assembleia, E, enquanto representante judiciário, age em nome e no interesse do colectivo de condóminos, ou seja, do condomínio”.

E, como bem refere o acórdão recorrido, uma primeira incongruência logo ressalta da letra da lei do n° 6, do artigo 1433° do Código Civil, quando em relação aos condóminos (pessoas singulares ou colectivas, por regra dotados de personalidade jurídica) se determina deverem ser representados judiciariamente pelo administrador do condomínio. De facto, como se salienta no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13-02-2017 [6], “… mal se percebe que os condóminos, pessoas singulares ou coletivas, dotados de personalidade jurídica, careçam de ser representados judiciariamente pelo administrador do condomínio. De facto, a representação judiciária apenas se justifica relativamente a pessoas singulares desprovidas total ou parcialmente de capacidade judiciária ou relativamente a entidades colectivas, nos termos que a lei ou respectivos estatutos dispuserem, ou ainda relativamente aos casos em que as pessoas colectivas ou singulares se venham a achar numa situação de privação dos poderes de administração e disposição dos seus bens por efeito da declaração de insolvência”.

A aludida incongruência por si só, sem prejuízo das regras de interpretação referidas no artº 9º do Código Civil, justifica considerar-se que (tal como o considerou o TRP no acórdão acabado de citar) a referência aos condóminos prevista no n° 6, do artigo 1433° do Código Civil, tenha resultado de uma incorrecção do legislador, querendo o mesmo aludir a uma entidade colectiva, a assembleia de condóminos corporizada pelos condóminos que votaram favoravelmente a deliberação impugnada, o condomínio vinculado pelas deliberações impugnadas e cuja execução compete ao administrador.

Mas, ainda que se admita ser inquestionável que, antes da alteração introduzida pelo DL nº 329-A/95 de 12 de Dezembro ao artº 6º do CPC de 1961 (actual 12º), o condomínio não constituía um ente autónomo, pois a lei não lhe reconhecia personalidade judiciária, e como tal estava carecido da legitimidade que aqui se discute, com a referida alteração, a lei ao reconhecer-lhe esse pressuposto processual, veio a atribuir ao condomínio a legitimidade passiva nas acções em que estejam em causa deliberações da assembleia de condóminos. Daí que o aludido nº 6 do artº 1433º do CC, redigido em momento temporal anterior ao reconhecimento da personalidade judiciária do condomínio, não possa manter-se na sua interpretação originária, face à alteração introduzida pelo referido Decreto-Lei, ou mesmo se considere tacitamente revogado. Como refere Aragão Seia[7]:

“Face à actual redacção da al. e) do artigo 6º do CPC, em consonância com o nº 6 citado, diversamente do que acontecia antes da Reforma de 1995, o condomínio, ou seja, o conjunto dos condóminos, pode ser directamente demandado quando, designadamente, estejam em causa deliberações da assembleia, devendo o administrador ser citado como representante legal do condomínio – nº 1, do artigo 231º, do CPC –, embora a assembleia possa designar outra pessoa para prosseguir a acção”[8].

Esta mesma posição é seguida por Miguel Mesquita[9], defendendo uma interpretação actualista do art. 1433.º, n.º 6, do CC, que atribua a legitimidade passiva neste tipo de acções ao condomínio representado pelo administrador:

Esta norma – cuja redacção deriva do DL n.º 267/94, de 25/10 – foi redigida numa época em que o condomínio não gozava de personalidade judiciária, ou seja, não podia, enquanto tal, ser parte activa ou passiva num processo cível. A causa dizia respeito ao condomínio? Pois bem, tornava-se indispensável a intervenção, do lado activo ou do lado passivo, de todos os condóminos.

Só muito mais tarde, a Reforma processual de 1995/1996 veio estender, no art. 6.º, alínea e), a personalidade judiciária ao condomínio. E o art. 231.º, n.º 1, cuja redacção deriva da mesma Reforma, acrescentou que o condomínio é citado ou notificado na pessoa do seu legal representante (o administrador). Quer dizer, o condomínio é parte, e parte legítima, assumindo o administrador o papel de representante de uma entidade desprovida de personalidade jurídica, sendo incorrecto, por isso, afirmar-se que a legitimidade pertence ao administrador.

Torna-se, assim, necessário levar a cabo uma interpretação actualista do citado art. 1433.º, n.º 6, do CC, substituindo a expressão condóminos pela palavra condomínio.

(…)

À luz da interpretação por nós propugnada, é citado aquele a quem cabe a representação judiciária do condomínio e não dos condóminos”.

Por outro lado, se é certo que na alínea e), do artigo 12º do Código de Processo Civil [sob a epígrafe de “Extensão da personalidade judiciária“], diz-se que “Têm ainda personalidade judiciária “o condomínio resultante da propriedade horizontal, relativamente às acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador”, não deixa de ser verdade que o artº 1436º, do Código Civil, na sua alínea h) indica como funções do administrador precisamente a “execução das deliberações da assembleia”. Daqui se inferindo que o condomínio goza de personalidade judiciária e de legitimidade passiva relativamente às acções que se inserem nos poderes do administrador, designadamente as que visam impedir a execução das deliberações da assembleia. Com efeito, se incumbe ao administrador executar as deliberações da assembleia de condóminos (artigo 1436°, alínea h), do Código Civil), bem se compreende que, estrutural e processualmente lhe cumpra também a tarefa de sustentar a validade e eficácia dessas mesmas deliberações, em representação do condomínio.

Esta solução, no entender de Miguel Mesquita[10] tem a vantagem de afastar “uma série de problemas que resultam da obrigatoriedade de demandar, em litisconsórcio necessário, os condóminos que votaram a favor da deliberação inválida, seja por causa do elevado número de condóminos de certos edifícios sujeitos ao regime da propriedade horizontal, seja pela impossibilidade prática, na esmagadora maioria das vezes, de identificar, na acta da assembleia, os condóminos que votaram a favor da deliberação inválida”. De facto apenas esta interpretação é consentânea como os tempos modernos onde existem condomínios constituídos por centenas de condóminos, evitando a citação de todos os que votaram a favor da deliberação (e eventualmente dos que se abstiveram ou não estiveram presentes) numa litigância directa e individualizada, prejudicial à harmonia e bom funcionamento do condomínio.

Deste modo, a presente acção deveria ter sido intentada contra o condomínio, representado pelo seu administrador.

V- Decisão:

Pelo exposto, nega-se provimento à revista.

Custas pelos Recorrentes

Lisboa, 24 de Novembro de 2020

Raimundo Queirós (Relator)

Ricardo Costa

Ana Paula Boularot

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1] A favor desta tese, na doutrina, encontramos:

- Sandra Passinhas,  A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, 2ª Edição, Almedina , Setembro de 2009, p. 338 a 347

- Jorge Aragão Seia, Propriedade Horizontal, Almedina, 2ª Edição, p. 182 a 191

- Miguel Mesquita, Cadernos de Direito Privado, n° 35, Julho/Setembro 2011, páginas 41 a 56 em artigo intitulado “A Personalidade Judiciária do Condomínio nas Acções de Impugnação de Deliberações da Assembleia de Condóminos’” e em anotação ao acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25 de Junho de 2009

- Na jurisprudência, são a favor desta tese, os seguintes acórdãos do STJ:

- de 25-09-2012, revista nº 3592/09.5TbPtM.E1.S1 , Salreta Pereira (Relator)

- de 20-05-2007, revista 1484/07, Urbano Dias (Relator), in www.dgsi.pt

- de 14-06-2007, agravo 502/07, Oliveira Vasconcelos (Relator)

- de 10-01-2006, revista 3727/05, Ribeiro de Almeida (Relator)

- de 05-05-2005, revista 114/05, Ferreira de Sousa (Relator)

[2] A favor desta corrente, na doutrina:

- Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV Volume (4ª edição revista e actualizada, Almedina, p. 107/110.

- Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Volume I, 3ª edição revista e actualizada, Lisboa 1999, página 57

- Abílio Neto, Manual da Propriedade Horizontal, Ediforum, 4ª Edição, Março de 2015, p.729 a 733

Na Jurisprudência, para além do acórdão fundamento, encontramos a favor, os seguintes acórdãos do STJ:

-  de 30-09-2014, revista 22/11.6TBEPS.S1.G1, Gabriel Catarino (Relator)

-  de 24-06-2008, agravo nº 1755/08, Moreira Camilo (Relator), in www.dgsi.pt

- de20-09-2007, agravo 787/07, Bettencourt Faria (Relator), in www.dgsi.pt

- de 02-02-2006, agravo 4296/05, Moitinho de Almeida (Relator), in www.dgsi.pt

- de 299-11-2006, revista 2913/06, Moreira Alves (Relator), in www.dgsi.pt

[3] Ob., cit., p. 346/347.

[4] Ob., cit., p. 191.

[5] Ob., cit., p. 730. Muito embora este autor mantenha a tese da legitimidade passiva dos condóminos.

[6] Processo nº 232/16.0T8Mts.P1, Carlos Gil (Relator), in www.dgsi.pt

[7] Ob., cit., p. 216/217.

[8] No mesmo entendimento, o já citado acórdão do STJ, revista 07A1484, Urbano Dias (Relator)

[9] Ob., cit., p. 41 a 46.

[10] Ob., cit., p. 41/56.