Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
Relator: | LEONOR FURTADO | ||
Descritores: | RECURSO PER SALTUM TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE MEDIDA DA PENA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA | ||
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Data do Acordão: | 11/23/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO. | ||
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Sumário : | I - O crime de tráfico de estupefacientes está previsto nos termos do art. 21.º, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, que constitui a norma referência para as diversas modalidades de que se reveste o crime, designadamente o agravado (art. 24.º) e o de menor gravidade (art. 25.º), todos os preceitos do mesmo diploma legal. II - O bem jurídico protegido com a incriminação é a saúde pública, nas suas componentes física e mental, tal com tem vindo a ser assinalado pela jurisprudência e doutrina. III - Na sua aplicação concreta há que atender a circunstâncias relacionadas com a atuação delituosa do arguido, tais como o facto de ceder vários tipos de estupefaciente – no caso, cocaína e heroína –, a quantidade e qualidade do produto estupefaciente, o número de pessoas a quem a droga é cedida/vendida e a frequência e o local do “abastecimento” efectuado pelo arguido, bem como o proveito que o mesmo retirou da sua actividade. IV - Já no que respeita ao art. 25.º, do mesmo diploma, o DL 15/03, referente ao tráfico de menor gravidade, importa ter presente que há que ter em conta que a ilicitude do facto se mostre consideravelmente diminuída, e de ter em consideração circunstâncias específicas, mas objectivas e factuais, verificadas na acção concreta, nomeadamente os meios utilizados pelo agente, a modalidade ou as circunstâncias da acção, e a qualidade ou a quantidade dos produtos. V - A pena de substituição de suspensão da execução constitui uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, de forte exigência no plano individual, particularmente adequada para, em certas circunstâncias e satisfazendo as exigências de prevenção geral, responder eficazmente a imposições de prevenção especial de socialização, ao permitir responder simultaneamente à satisfação das expectativas da comunidade na validade jurídica das normas violadas, e à socialização e integração do agente no respeito pelos valores do direito, através da advertência da condenação e da injunção que impõe para que o agente conduza a vida de acordo com os valores socialmente mais relevantes. | ||
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Decisão Texto Integral: | Recurso Penal Processo n.º 42/20.0.PESTB.S1 5ª Secção Criminal ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA I – RELATÓRIO 1. AA interpôs recurso penal do acórdão de 23/06/2023, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal Juízo Central Criminal de ... - J... ., doravante Tribunal de 1ª Instância, que o julgou, em tribunal colectivo, decidindo: “ a) CONDENAR o arguido AA pelo cometimento, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, n.º 1 do Decreto Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com referência às Tabelas I-A e I-B anexa, na pena de 5 (cinco) anos e 10 (dez) meses de prisão efetiva;” – negrito nosso. 2. O Recorrente definiu nas conclusões das suas alegações o objecto dos presentes recursos, pugnando pela suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada, concluiu nos termos seguintes: “B) CONCLUSÕES: 1 – Não contesta o arguido os factos dados como provado pelo Douto Tribunal. 2 – Encontra – se em desacordo, sim, com a medida da pena e regime de cumprimento da mesma, prisão efetiva, exarada no Douto Acórdão. 3 – O arguido, decorrendo da aplicação de pena de prisão, tomou consciência da censurabilidade e caráter de ilicitude do seu comportamento, fazendo com que abstenha de os voltar a praticar no futuro. 4 – O arguido em mais de 68 (sessenta e oito) anos de vida, sempre se pautou por vida de trabalho, mantendo – se sempre afastado de qualquer comportamento ilícito, sendo por isso Primário, neste tipo de ilícito. 5 – Os fatores que contribuíram para o comportamento e prática dos ilícitos, nomeadamente aqueles relacionados com o facto de se encontrar impedido de trabalhar por motivos de saúde e a consequente perda de rendimentos e meio de subsistência, encontram – se hoje totalmente ultrapassados. 6 – Também ao nível familiar, o arguido tem o apoio dos filhos, especialmente da filha, pessoa responsável e totalmente inserida, sendo por um lado garante de que os comportamentos ilícitos não se repetirão, e por outro, funcionará como fator de incentivo e motivação para tal abstenção de ilícitos tornando - se fator positivo e decisivo para a reinserção do arguido. 7 – Finalmente, mas muito importante, o muito débil estado de saúde do arguido, o qual perdeu praticamente a sua mobilidade mesmo em cadeiras de rodas, além de outras patologias graves de que padece, reforça esse estado de consciência e intensão do arguido de não voltar a praticar qualquer ilícito. 8 – A aplicação de pena de prisão em medida que não exceda os 5 anos e o cumprimento da mesma em regime de suspensão por prazo a definir por esse douto Tribunal, demonstra-se assim como Justa, equilibrada e promotora de todos os objetivos que a sua aplicação visa atingir. Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas. VENERANDOS DESEMBARGADORES, que aqui expressamente se invoca, deve ser dado provimento ao presente recurso, reduzindo – se a medida da pena para prazo até 5 anos e aplicando – se o cumprimento da mesma em regime de suspensão por prazo a definir.”. 3. O Exmo. Magistrado do MP, junto do Tribunal de 1ª Instância, respondeu ao recurso, pugnando por a decisão recorrida dever manter-se, concluindo em síntese, que: “III – CONCLUSÕES: 1ª – Contra o Recorrente sobressaem o grau de ilicitude dos factos (já de relevo, mesmo no contexto da ilicitude típica do crime de tráfico previsto no artº 21º nº 1 doD.L. nº 15/93 de 22/01, perante o considerável período temporal em que se desenrolou a actividade delituosa – mais de dois anos –, a regularidade desta – diária – e a qualidade dos produtos estupefacientes vendidos e detidos para venda – cocaína e heroína, incluídos no grupo das chamadas “drogas duras”, de elevado poder aditivo e nefandas consequências para o consumidor e para a sociedade), a modalidade do dolo (directo e de intensidade acentuada), a circunstância de o Recorrente não ser consumidor de substâncias estupefacientes e a sua conduta posterior aos factos (ausência de manifestação de qualquer sentimento de arrependimento ou auto-censura); 2ª – Mesmo assim, o acórdão recorrido fixou a pena concreta de prisão ainda no primeiro terço da respectiva moldura abstracta – a revelar que o tribunal ponderou, na sua justa medida, todas as circunstâncias susceptíveis de beneficiar o Recorrente, designadamente algumas das que são invocadas no recurso; 3ª – Ao consagrar a preferência de pena não privativa da liberdade sobre pena privativa da liberdade, o artº 70º do C.P. refere-se a crimes puníveis alternativamente com pena de prisão ou pena de multa; 4ª – Na determinação da medida concreta da pena o tribunal fez adequada aplicação dos critérios contemplados no artº 71º nºs 1 e 2 do C.P. e ponderou judiciosamente as finalidades das penas, consagradas no artº 40º nº 1 do mesmo código, pelo que a pena de cinco anos e dez meses de prisão deverá ser mantida; 5ª – São consabidamente fortíssimas as exigências de prevenção geral do crime de tráfico de estupefacientes, não sendo despiciendas as necessidades de prevenção especial perante a falta de evidências de interiorização mínima do desvalor da conduta; 6ª – Ainda que, por hipótese (que só por dever de ofício se equaciona), a pena de prisão venha a ser reduzida para medida não superior a cinco anos, não deverá haver lugar à suspensão da respectiva execução já que, perante as circunstâncias enunciadas em 1ª e 5ª, a simples censura do facto e a ameaça da prisão nunca satisfariam adequada nem suficientemente as finalidades da punição, em particular a protecção dos bens jurídicos afectados – arts. 50º nº 1 e 40º nº 1 do C.P.”. 4. Por despacho judicial do Tribunal de 1ª Instância de 06/09/2023, Ref.ª Cítius ......31, o recurso foi admitido e por despacho de 16/10/2023, Ref.ª Cítius ......28 foi ordenada a sua remessa para este Supremo Tribunal. 5. O Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto, junto deste Supremo Tribunal emitiu parecer, dizendo “(…) que o recurso deverá ser julgado improcedente, confirmando-se integralmente o acórdão recorrido.” Por, em síntese: “Em suma, a pena concreta aplicada respeita os princípios constitucionais da intervenção mínima, da proporcionalidade das penas e da igualdade, e sobretudo o princípio da culpa, pois a realização da justiça penal num Estado de Direito democrático tanto se alcança na proibição da punição sem culpa ou para além da culpa (nulla poena sine culpa – princípio da proibição do excesso), como se cumpre por meio de uma punição adequada dos culpados, quando necessária for para salvaguarda do interesse púbico subjacente ao respeito pelo Direito do próprio Estado (nulla culpa sine poena – princípio da realização do Estado de Direito); ou seja, a adequada proteção de bens jurídicos, enquanto finalidade principal das penas, deve estar alinhada com a reintegração tão rápida quanto possível do arguido em sociedade. Neste caso, a reintegração ocorrerá através do cumprimento efetivo da pena aplicada, que não é excessiva, mas antes adequada e necessária à reação penal que o caso justifica, situando–se abaixo do primeiro ¼ da pena abstrata. Da leitura da decisão recorrida resulta terem sido considerados os fatores relevantes: ilicitude assinalável, culpa elevada, correspondente ao dolo direto, exigências elevadas de prevenção geral, exigências de prevenção especial, tendo sido devidamente ponderada a ausência de antecedentes criminais, que constitui a nosso ver o único fator com relevância atenuativa e que nos parece ter sido significativamente refletida no quantum concreto da pena aplicada, ainda que o tribunal recorrido também tivesse aditado a idade e limitada condição de mobilidade física (p. 39 do acórdão) aos fatores atenuativos. Afigura-se que, de forma suficiente, na medida da pena, o tribunal a quo se alicerçou corretamente na consideração da culpa e da prevenção como princípios regulativos dessa medida, e também foi fiel à medida da necessidade de tutela de bens jurídicos face ao caso concreto. Assim, a pena aplicada pelo tribunal de 1.ª instância revela–se uma pena necessária, justa e adequada, por estar dentro do quadro proporcional da culpa e por atender às necessidades de prevenção geral e especial. * Neste contexto, por fim, não estando preenchido o pressuposto formal de condenação em pena de prisão não superior a 5 anos, não há que ponderar a respetiva suspensão.” 6. O recorrente foi notificado, para se pronunciar, conforme art.º 417.º, n.º 2 do CPP, nada tendo respondido. 7. Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir. II – FUNDAMENTOS 1. De facto O acórdão do Tribunal de 1ª Instância, de 23/06/2023 fixou a matéria de facto dada como provada, nos seguintes termos: “Da discussão da causa, com relevo para a decisão da mesma, resultaram provados os seguintes factos: Advenientes da acusação pública: 1) Desde pelo menos desde data não apurada do ano de 2018 até 23/04/2021, o arguido dedicou-se à venda de produtos estupefacientes, nomeadamente cocaína e heroína, a um número não determinado de consumidores, mediante a entrega por estes de quantias em dinheiro. 2) Para assegurar esta atividade diária de venda direta a consumidores/clientes, no período referido, o arguido abasteceu-se de cocaína e heroína em termos e a pessoas não concretamente apurados. 3) Após, o arguido preparava, separava e acondicionava devidamente as substâncias estupefacientes a vender, a fim de proceder à sua venda aos seus clientes/consumidores. 4) O valor do produto estupefaciente variava consoante a quantidade e qualidade do produto solicitado pelos consumidores/clientes ao arguido, sendo todavia o valor de 10,00€ (dez euros) o correspondente a cada dose, fosse da cocaína ou de heroína. 5) O arguido vendeu sempre o produto estupefaciente aos clientes/consumidores que se dirigiram diretamente à sua residência, sita em Alameda ..., .... 6) Desde junho de 2020 e até 11/09/2020, BB comprou, por pelo menos 15 ocasiões, heroína ao arguido, pagando sempre por cada dose a quantia de 10,00€ (dez euros). 7) No dia 11/09/2020, cerca das 17h.20m, BB dirigiu-se à residência do arguido e comprou-lhe um panfleto de heroína, pelo preço de 10,00€ (dez euros). 8) Pelo menos, desde data não apurada do ano de 2018 e até 23/04/2021, CC comprou diariamente uma dose de heroína ao arguido, pagando sempre a quantia de 10,00€ (dez euros). 9) Assim aconteceu no dia 14/10/2020, cerca das 8h48m, dirigindo-se à residência do arguido e comprando-lhe, um panfleto de heroína, pelo preço de 10,00€ (dez euros). 10)No dia 16/10/2020, cerca das 07h45m, DD dirigiu-se à residência do arguido e ali comprou-lhe um panfleto de heroína, por valor não concretamente apurado. 11)Pelo menos, desde abril do ano de 2020 até 23/04/2021, EE comprou com regularidade quase diária heroína ao arguido, pagando, por aquisição, entre €20,00 a €30,00 (por 2 a 3 doses). 12)Assim aconteceu nos dias 30/03/2021 e 13/04/2021 (e não 12/04/2021 conforme por mero lapso constava da acusação pública), cerca das 07h.35m. e 07h37m., respetivamente, dirigindo-se à residência do arguido e comprando-lhe, de cada vez, 2 ou três doses de heroína, por valor unitário de 10,00€ (dez euros) – implicando assim a entrega dos já aludidos €20,00 a €30,00. 13)Desde data não apurada do ano de 2020 até 16/04/2021, FF adquiriu, por pelo menos três ocasiões, heroína ao arguido, pagando sempre por cada dose a quantia de 10,00€ (dez euros). 14)Assim aconteceu no dia 16/04/2021, cerca das 08h13m., dirigindo-se à residência do arguido e comprando-lhe um panfleto de heroína, pelo preço de 10,00€ (dez euros). 15)No dia 21/04/2021, cerca das 11h.40m, GG dirigiu-se à residência do arguido e ali comprou-lhe, um panfleto de heroína, pelo preço de 10,00€ (dez euros). 16)Pelo menos nos dois dias antecedentes a tal data, o mencionado GG havia também comprado heroína ao arguido, pagando sempre por cada dose a quantia de 10,00€ (dez euros). 17)No dia 23/04/2021, cerca das 08h32m., HH dirigiu-se à residência do arguido e comprou-lhe um panfleto de heroína, por valor não apurado; 18)HH já adquiria, previamente a tal data, ao arguido, pelo menos por uma ocasião, a mesma substância. 19)No dia 23/04/2021, cerca das 09h.15m., o arguido, no exercício da atividade de tráfico por si levada a cabo, tinha guardado na sua residência, os seguintes produtos, objetos e quantias em dinheiro: a) 520,00€ (quinhentos e vinte euros) em dinheiro; b) 22 (vinte e dois) panfletos de cocaína, com o peso total de 5,852 gramas, com o grau de pureza de 23,6%, suficientes para 6 (seis) doses médias individuais diárias; c) 15 (quinze) panfletos de heroína, com o peso total de 7,152 gramas, com o grau de pureza de 5,2%, suficientes para 3 (três) doses médias individuais diárias; d) 1 (um) pacote de heroína com o peso de 17,344 gramas, com o grau de pureza de 4,8%, suficientes para 8 (oito) doses médias individuais diárias; e) 1 (uma) balança digital de precisão de marca M2, modelo TEC, cinzenta; e f) 2 (dois) telemóveis, um de marca Alcatel e outro de marca F2. 20) O arguido pretendia vender todo o produto estupefaciente que detinha aos seus clientes/consumidores, com vista à obtenção de lucro económico. 21)O arguido tinha perfeito conhecimento das características dos produtos que transportava, detinha, preparava, guardava e vendia, bem como da falta de autorização para fazê-lo. 22)O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, com o propósito concretizado de transportar, deter, preparar e vender produtos de natureza estupefaciente, designadamente cocaína e heroína, bem sabendo que não estava autorizado a fazê-lo. 23)O arguido conhecia a proibição e punição das suas condutas. Do contexto vivencial do arguido: 24)À data dos factos que constam da acusação, AA, que é natural de ..., residia sozinho na morada comunicada aos autos, que corresponde a uma habitação social, atribuída ao próprio há 29 anos, através da candidatura a renda apoiada pela Câmara Municipal de ..., situação que se mantem inalterada. 25)AA está exclusivamente habilitado com o 1º ano de escolaridade, tendo abandonado o processo de aprendizagem por volta dos 9 anos de idade, ao se ter confrontado em ... com dificuldades de adaptação ao sistema de ensino, como tal atualmente apresenta iliteracia. 26)O arguido, de 67 anos de idade, que reside em Portugal desde que atingiu a maioridade e tem nacionalidade Portuguesa, apresenta hábitos de trabalho e um percurso laboral aparentemente regular, ainda que registando elevada mobilidade geográfica, enquanto servente na construção civil. 27)AA afirma ter-se mantido ativo até completar os 60 anos de idade, altura em que os constrangimentos ao nível da saúde terão condicionado a sua inserção ocupacional, visto padecer de diversas patologias (problemática cardíaca, dificuldade respiratória, doença hepática crónica etanolíca, diabetes tipo II e limitações de mobilidade ao nível dos membros inferiores). 28)AA deparou-se assim, nos últimos sete anos, com uma degradação gradual e sucessiva da sua condição económica, na medida em que usufruiu inicialmente de subsídio de desemprego no valor de €477.00, tendo o valor sido atualizado, ao fim de três anos para €366.00 mensais, enquanto subsídio social de desemprego, apoio que, entretanto, veio a cessar. 29)À data da instauração do presente processo, o arguido permanecia desempregado, revelando incapacidade para o trabalho e como tal beneficiava do rendimento social de inserção no valor de €174.21 mensais. 30)Ainda que se observe um envolvimento da descendente na vida de AA, designadamente no que respeita ao acompanhamento da sua situação jurídico-penal e vigilância da sua condição de saúde, aparentemente à data o arguido, que evidenciava maior autonomia, não contava com qualquer apoio familiar ao nível financeiro, nem tão pouco usufruía de apoio alimentar institucional, estando a sua subsistência exclusivamente assente na prestação social de que era beneficiário. 31)De acordo com a declaração emitida em 07-02-2022 pela Segurança Social, verifica-se que AA aufere desde março de 2022 de pensão por velhice no valor de €311.11, aguardando ainda pelo acréscimo de rendimentos, decorrente da recente atribuição do complemento solidário para idosos que corresponde a €69.91, situação que indubitavelmente favoreceu a sua atual condição de vida, proporcionando-lhe estabilidade financeira e consequentemente maior serenidade. 32)Tendo em consideração a situação de inatividade laboral e concomitantemente a ausência de oferta ocupacional (que eventualmente fosse providenciada ao arguido, enquanto beneficiário do RSI), nos últimos anos o quotidiano de AA tem-se mantido predominantemente desestruturado, sendo o tempo preenchido mediante a realização de tarefas domésticas e convívio familiar e social na zona de residência. 33) Ao longo da vida o arguido desenvolveu um padrão de consumo regular de álcool, prática que tem vindo a desvalorizar, tendo só muito recentemente e na sequência de uma hospitalização, reconhecido a necessidade de reduzir os consumos. 34)Por motivos profissionais AA alternou de residência sobretudo entre a área metropolitana de Lisboa e a região do Algarve, onde terá vivido cerca de 20 anos, partilhando por diversas vezes o alojamento com colegas de profissão. 35)Todavia, este tem há décadas morada fixa no bairro da ..., que está conotado com problemáticas sociais e práticas criminais, podendo eventualmente a desocupação ter favorecido a exposição/aproximação a contextos relacionados com o tráfico e consumo de estupefacientes. 36)Na perspetiva da descendente, o condenado está bem integrado no meio comunitário, sendo estimado pela vizinhança. 37)Contudo este tem tendência para se comportar de modo inconsequente, revelando necessidade de garantir a sua independência, desvalorizando sistematicamente as recomendações de terceiros. 38)AA foi inicialmente sujeito à medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com recurso a vigilância eletrónica, permanecendo em confinamento no período compreendido entre 24-05-2021 e 26-07-2021. 39)Ainda que a medida tenha decorrido com a normalidade prevista, revelando o arguido capacidade para cumprir regras, colaborando com a Equipa de Vigilância Eletrónica, constata-se que as restrições decorrentes da mesma foram sobretudo penosas para a saúde física, pois aparentemente tiveram repercussões negativas na sua capacidade de mobilidade. 40)Acabou por ser encaminhado pelo médico de clínica geral para sessões de fisioterapia. 41)Por outro lado, o despacho judicial datado de 23-07-2021, que desagravou e substituiu a referida medida de coação pela obrigação de apresentação periódica diária nos órgãos de polícia criminal, permitiu ao arguido recuperar a liberdade de movimentos. 42)O arguido conta sobretudo com o suporte familiar por parte da descendente, II, de 40 anos, que é gerente na empresa Burger King em ..., considerando que o outro filho se revela menos disponível para o apoiar. 43)Embora AA tenha irmãos e sobrinhos a residir em ..., no bairro da ..., manifesta intenção de regressar a ..., assim que resolver a sua situação jurídica, pois considera que terá melhores condições de vida no seu país de origem, onde perspetiva dedicar-se ao trabalho agrícola e onde permanecem vários familiares. 44)AA demonstra reconhecer, em abstrato a ilicitude da tipologia criminal em apreço. 45)No entanto, manifesta reduzida capacidade de análise, assim como défices ao nível do pensamento alternativo, sendo evidente a adoção de um discurso autocentrado, focado nas suas necessidades pessoais. Do passado criminal do arguido: 46)Do CRC do arguido nada consta.”. 2. De direito 1. Enquadramento legal Verifica-se que o arguido interpôs o recurso per saltum, para este Supremo Tribunal de Justiça, fundando-se no disposto nos artigos 427.º e 432.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, pois visa, apenas, a reapreciação da matéria de direito no que concerne à medida concreta da pena aplicada. O recorrente foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. nos termos do art.º 21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 5 (cinco) anos e 10 (dez) meses de prisão, e pretende ver reduzida a pena de prisão em medida que não exceda os 5 anos de prisão, pedindo que a sua execução seja suspensa por prazo a definir por este Supremo Tribunal. Nos termos das suas alegações, o recorrente visa, essencialmente, a apreciação dos critérios utilizados no acórdão recorrido, tendo em consideração a sua idade (68 anos), o facto de se encontrar impedido de trabalhar por motivos de saúde e a consequente perda de rendimentos e meios de subsistência, o facto de beneficiar do apoio familiar e de a sua saúde ser débil e de se ter agravado com o tempo, factores esses que são determinantes para que a escolha e a medida da pena de prisão não exceda os 5 (cinco) anos de prisão e que lhe seja aplicada a suspensão da execução da pena, tudo conforme o disposto nos art.ºs 40.º, 50.º, 70.º e 71.º, do Código Penal – conclusões 4 a 8, das alegações de recurso. 2. Versando o recurso exclusivamente matéria de direito, sendo a pena a apreciar superior a 5 anos de prisão, o STJ é competente para conhecer do recurso, pois, detém a competência para apreciar as condenações superiores a 5 anos de prisão, vindas do julgamento em tribunal coletivo, estando em discussão apenas matéria de direito – conforme jurisprudência mais recente do STJ ( Ac. do STJ de 16/02/2017, Proc. n.º 2118/13.0PBBRG.G1.S1; Ac. do STJ de 10/11/2022, Proc. n.º 5270/20.5JAPRT.P1.S1; Ac. do STJ de 27/04/2023, Proc. n.º 360/19.0PBFAR.S1, todos em www.dgsi.pt) . 3. O crime de tráfico de estupefacientes está previsto nos termos do art.º 21.º, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, que constitui a norma referência para as diversas modalidades de que se reveste o crime, designadamente o agravado (art.º 24.º) e o de menor gravidade (art.º 25.º), todos os preceitos do mesmo diploma legal. O bem jurídico protegido com a incriminação é a saúde pública, nas suas componentes física e mental, tal com tem vindo a ser assinalado pela jurisprudência e doutrina – a título de exemplo, vd. o Ac. do STJ de 10/10/2018, Proc. n.º 5/16.0GAAMT.S1 ou o Ac. de 02/10/2014, Proc. n.º 45/12.8SWSLB.S1, ambos em www.dgsi.pt. Nos termos dos art.ºs 21.º, do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, para a verificação do crime de tráfico de estupefacientes, pelo qual o arguido foi condenado basta que alguém, “(…) sem que para tal se encontrar autorizado, (…) por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver (…) substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III …”, sendo punido com penas de prisão de 4 (quatro) a 12 (doze) anos e de “(…) um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI; b) Prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV.”. Na sua aplicação concreta há que atender a circunstâncias relacionadas com a atuação delituosa do arguido, tais como o facto de ceder vários tipos de estupefaciente – no caso, cocaína e heroína –, a quantidade e qualidade do produto estupefaciente, o número de pessoas a quem a droga é cedida/vendida e a frequência e o local do “abastecimento” efectuado pelo arguido, bem como o proveito que o mesmo retirou da sua actividade. A estas circunstâncias acresce a verificação dos factores atinentes às exigências de prevenção geral presentes no caso, a intensidade do dolo, a ilicitude e as exigências de prevenção especial, relativa ao arguido. Já no que respeita ao art.º 25.º, do mesmo diploma, o DL 15/03, referente ao tráfico de menor gravidade, importa ter presente que há que ter em conta que a ilicitude do facto se mostre consideravelmente diminuída, “(…) tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade e as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações”. Trata-se de se ter em consideração circunstâncias específicas, mas objectivas e factuais, verificadas na acção concreta, nomeadamente os meios utilizados pelo agente, a modalidade ou as circunstâncias da acção, e a qualidade ou a quantidade dos produtos. Como se referiu no Ac. do STJ de 30/04/2008, Proc. n.º 08P1416, em www.dgsi.pt “A diversificação dos tipos apenas conforme o grau de ilicitude, com imediato e necessário reflexo na moldura penal, não traduz, afinal, senão a resposta a realidades diferenciadas que supõem respostas também diferenciadas: o grande tráfico e o pequeno e médio tráfico. A justeza da intervenção, para a adequada prossecução também de relevantes finalidades de prevenção geral e especial, justifica as opções legais tendentes à adequada diferenciação do tratamento penal entre os grandes e médio traficante (artigos 21º, 22º e 24º) e o pequeno (artigo 25º), e ainda daqueles que desenvolvem um pequeno tráfico com a finalidade exclusiva de obter para si as substâncias que consomem (artigo 26º).”. O critério a seguir será a avaliação do conjunto da acção tendo em conta o grau de lesividade ou de perigo de lesão, (o crime de tráfico é um crime de perigo abstracto), e do bem jurídico protegido, a saúde pública. 4. Nos termos do art.º 71.º, do CP, a medida concreta da pena é determinada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e, em especial, verificadas todas as circunstâncias, referidas expressamente no fundamento da sentença que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, designadamente: “a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.”. Ou seja, a determinação da medida da pena é fixada dentro dos limites da moldura penal abstracta, em função da culpa do agente e de critérios de prevenção geral e especial, visando-se com a sua aplicação “(…) a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, conforme art.º 40.º, n.º 1, do CP. A culpa funciona como limite da medida da pena (n.º 2, do art.º 40.º, do CP). 5. E, quanto à suspensão da execução da pena de prisão, dispõe o artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal que “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Para a decisão de suspender ou não as penas de prisão são, decisivos, os critérios de prevenção geral e especial de socialização, sem qualquer apelo aos critérios da culpa. A suspensão da execução da pena só poderá ser aplicada se o Tribunal concluir por “um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido”, na medida em que a simples censura da pena realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Na verdade, a pena de substituição de suspensão da execução constitui uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, de forte exigência no plano individual, particularmente adequada para, em certas circunstâncias e satisfazendo as exigências de prevenção geral, responder eficazmente a imposições de prevenção especial de socialização, ao permitir responder simultaneamente à satisfação das expectativas da comunidade na validade jurídica das normas violadas, e à socialização e integração do agente no respeito pelos valores do direito, através da advertência da condenação e da injunção que impõe para que o agente conduza a vida de acordo com os valores socialmente mais relevantes. Não são, por outro lado, considerações de culpa que devem ser tomadas em conta, mas juízos de prognose sobre o desempenho da personalidade do agente perante as condições da sua vida, o seu comportamento e as circunstâncias do facto, que permitam fazer supor que as expectativas de confiança na prevenção da reincidência são fundadas. 3. Do recurso 1. Enquadramento jurídico penal: tráfico de menor gravidade Importa observar o seguinte, considerando o enquadramento jurídico que o tribunal recorrido fez dos factos provados, condenando o arguido pela prática de um crime de tráfico, p. e p. nos termos do art.º 21.º do DL 15/93. O Acórdão n.º 4/95, de 07/06/1995, Proc. n.º 047407, publicado no DR 1ª Série A, de 06/07/1995 e em www.dgsi.pt , fixou a seguinte jurisprudência que se mantém actual: “O tribunal superior pode, em recurso, alterar a qualificação jurídico-penal efectuada pelo tribunal recorrido, mesmo que para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus.”. No caso, o recorrente AA interpôs o presente recurso alegando essencialmente que o tribunal não formulou não teve em consideração a sua idade, a sua saúde débil e a ausência de antecedentes criminais, não tendo formulado um juízo de prognose favorável ao arguido e, consequentemente, não determinou a suspensão da execução da pena. Entende que estão reunidos os pressupostos objectivo e subjectivo para que a pena aplicada fosse não superior a 5 anos de prisão e que fosse suspensa na sua execução, atento o disposto no art.º 50.º e segs. do Código Penal, pugnando por que, assente na ausência de antecedentes criminais, na postura do arguido face ao ilícito praticado, na assunção dos factos e na manifestação de arrependimento, na inserção familiar e social, a sua pena possa ser suspensa na sua execução, tudo conforme as conclusões 4 a 8, das suas alegações. Como já se deixou dito, o crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade implica que se verifique uma considerável diminuição do grau da ilicitude, por referência à verificação na acção concreta do arguido, de circunstâncias objectivas e factuais, designadamente dos meios utilizados pelo agente, a modalidade ou as circunstâncias da acção e a qualidade ou a quantidade dos produtos, transacionados. Da matéria de facto provada resulta demonstrado que o arguido AA se dedicava à actividade de venda de estupefacientes (cocaína e heroína), desde data não concretamente apurada de, pelo menos, o ano de 2018 até 23 de Abril de 2021, na sua residência, sita na Alameda ..., em ..., cedendo tais produtos directamente e pelo preço de 10 (dez) euros o panfleto, a alguns consumidores que o contactassem para o efeito – nomeadamente a BB, por mais de 15 vezes; CC; DD; EE; FF; GG e HH –, tudo como provado nos pontos 6 a 18, da matéria de facto provada e que aqui se dá por inteiramente reproduzida. Tais circunstâncias de tempo, modo de abastecimento, venda e número de consumidores, sendo de fornecimento regular de cocaína e heroína, pelo menos a 7 (sete) consumidores, bem como a característica de droga “dura” inerente àqueles estupefacientes, não se pode considerar como se tratando de circunstâncias ocasionais ou esporádicas, nem se tratando de um fornecimento isolado de rua. Pelo contrário, o que se verifica é que o concreto modo de fornecimento e transacção de estupefacientes protagonizado pelo arguido era contínuo e reiterado, a “clientes” certos, e que ocorreu durante um período alargado, só interrompido pela sua detenção. Saliente-se, no entanto, que a quantidade de estupefaciente detida pelo arguido no dia 23/04/2021, que corresponderia, pelo menos, a 17 doses individuais (9 de cocaína e 8 de heroína), representa uma quantidade de estupefaciente detida pelo arguido, relativamente pouco expressiva, tendo em consideração o número de “clientes” que o frequentavam (recorde-se 7), o preço praticado por cada dose e a qualidade do produto cujo grau de pureza (pelo menos do estupefaciente detido pelo arguido no dia 23/04/2023), variava entre os 4,8% e os 23,6%, o que faz crer que o produto por si cedido aos seus “clientes” teria o mesmo grau. Tudo isto, sem prejuízo de tal significar que o mesmo se dedicava à cedência deste tipo de estupefacientes, com carácter regular e visando ganhos pecuniários, como se salienta no acórdão recorrido – pontos 19 e 20, da matéria de facto provada. Ora, considerando os meios utilizados, a modalidade, a quantidade e a qualidade do produto traficado ou a traficar e as circunstâncias da acção do arguido, que se movia num quadro de actuação individual, por sua conta, não se lhe tendo reconhecido fornecedores ou, sequer, que actuasse por conta de outrém, ou integrado numa qualquer estrutura organizada, há que reconhecer que o grau de ilicitude da sua conduta é mediano, atendendo à quantidade de estupefaciente detida e vendida e à qualidade do produto por referência ao eventual grau de danosidade para os bens jurídicos protegidos. Como se referiu no sumário do Ac. do STJ de 11/10/2023, Proc. n.º 10/21.4GALLE.S1: “A jurisprudência deste Tribunal tem afirmado a necessidade de uma “avaliação global do facto”, nas suas circunstâncias particulares, as quais, no seu conjunto, devem permitir afirmar que as quantidades de estupefacientes detidas, vendidas, distribuídas, oferecidas ou proporcionadas a outrem (atividades que se incluem na definição do tipo de crime fundamental, do artigo 21.º), são reduzidas; que a sua qualidade, aí se incluindo o potencial grau de danosidade para os bens jurídicos protegidos pela incriminação, também deverá ser reduzida; que os meios utilizados, o modo e as circunstâncias da ação deverão ser simples, não planeados, não organizados” e, ainda “Os “meios utilizados” hão de reportar-se à organização e à logística de que o agente lançou mão; quanto à “modalidade ou circunstâncias da ação”, será de avaliar o grau de perigosidade revelado em termos de difusão das substâncias; quanto à “qualidade” das substâncias, não deve esquecer-se que a organização e colocação nas tabelas segue, como princípio, o critério da sua periculosidade intrínseca e social, e quanto à “quantidade”, importa considerar o nível dos riscos de difusão, devendo a sua ponderação ser efetuada através de uma “apreciação complexiva, finalística, isto é, dirigida à obtenção de um resultado final, qual seja o de saber se objetivamente a ilicitude da ação é de relevo menor” que a verificada no tipo fundamental.”. Ponto assente é que “O tipo privilegiado de tráfico de menor gravidade (art. 25.º) pressupõe uma dimensão da ilicitude do facto, consideravelmente menor do que a ínsita no tipo fundamental (art. 21.º), enquanto o tipo qualificado, exigindo em regra uma ilicitude maior que a pressuposta no art. 21.º, beneficia de uma indicação taxativa de situações passíveis de integrar o tipo qualificado.” – conforme Ac. do STJ de 23/06/2022, Proc. n.º 11/20.0GACLD.C1.S1, em www.dgsi.pt. Impõe-se, assim, considerar que a actividade desenvolvida pelo arguido AA, e dada como provada, se integra, antes, no crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. nos termos do art.º 25.º, do DL 15/93. Neste sentido, veja-se o Ac. do STJ de 21/09/2011, Proc. n.º 556/08.0GVIS.C1.S1, Ac. do STJ de 12/03/2015, Proc. n.º 7/10.OPEBJA .S1 ou mais recentemente, o Ac. do STJ, de 21/06/2023, Proc. n.º 2/21.3GASCD.C1.S1 ou, todos os acórdãos em www.dgsi.pt. Por isso, face ao quadro de regularidade apontado e, considerando as necessidades de prevenção geral e especial, tal como salientado no acórdão recorrido “(…) Contra o arguido pesa o dolo, agora perspetivado sob o ponto de vista volitivo, que se revelou em plano de dolo direto, porquanto o arguido sempre representou a ilicitude da sua condutas (artigo 14º, n.º 1 do Código Penal e artigo 71º, n.º 2, alínea b) do Código Penal).”, a verdade é que, o grau de ilicitude dos factos e da culpa que, em face das circunstâncias dadas como provadas e que relativamente ao arguido ficou demonstrado, indicam que a sua actividade ilícita era caracterizada por ser de: i) de âmbito local, ii) de actuação individual e não organizada, iii) prolongada no tempo, desde 2018 a 2021, iv) cedendo pequenas quantidades de estupefaciente, de baixo grau de pureza e a preços baixos e v) que os produtos estupefacientes eram de molde a produzir danosidade pessoal e social. Tais circunstâncias são compatíveis com uma incriminação de tráfico de menor gravidade, posto que, apesar da natureza dos produtos estupefacientes e do período em que durou a actividade ilícita, nem por isso o arguido auferiu grandes rendimentos económicos, mantendo-se muito modesta a sua condição social e sendo de grau médio a ilicitude e a culpa manifestadas na prática dos actos por que vem condenado. Na aplicação concreta da pena atende-se ao grau de ilicitude colocado na comissão do ilícito, revelada no modo da sua execução, persistência de prosseguimento da acção e intensidade do propósito de concretizar o desígnio criminoso, circunstâncias estas apuradas em sede de audiência de julgamento. O crime de tráfico de estupefaciente é caracterizado como um ilícito penal que fica preenchido com um único acto conducente ao resultado previsto no tipo, sendo um crime de perigo comum, cuja punição se exige a ponderação da prevenção da prática de futuros crimes – neste sentido, Ac. do STJ de 13/05/2020, Proc. n.º 168/17.7PAMDL.S1, em www.dgsi.pt. Nestes termos, discorda-se da qualificação jurídica que o tribunal a quo fez e como se referiu no Ac. do STJ de 21/06/2023, Proc. n.º 2/21.3GASCD.C1.S1, já citado, num caso em tudo semelhante ao presente “(…) A aparente inexistência de comportamento aditivo, a circunstância de possuir (pelo menos, à data da prisão) outros meios de subsistência e de ter desenvolvido, com regularidade, atividade profissional, em Portugal e no estrangeiro, apontam para um grau médio de prevenção especial. Quanto ao comportamento anterior à prática do crime, releva o facto de o recorrente ser primário. A necessidade de prevenção geral, acautelada, em primeira linha, pela moldura penal, é elevada, face à natureza das substâncias estupefacientes em causa e ao impacto social na comunidade gerado pela atividade de tráfico provada.”. Por isso que, considerando a fixação da jurisprudência pelo Acórdão n.º 4/95, se altera oficiosamente a qualificação jurídico penal efectuada pelo tribunal recorrido (crime de tráfico, p. e p. nos termos do art.º 21.º do DL 15/93) e o arguido será condenado pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. nos termos do art.º 25.º, do mesmo DL 15/93. 2. Redução da medida da pena e suspensão da execução da pena. O crime de tráfico de menor gravidade é punido com uma pena em abstracto a que corresponde prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI. O recorrente discorda da medida da pena aplicada por crime de tráfico, pretendendo a sua redução para pena de prisão, que não exceda os 5 anos de prisão. No caso, o tribunal recorrido considerou que relativamente ao arguido AA se verificavam as seguintes circunstâncias a ter em consideração na aplicação da pena: “ (…)Assim, temos a salientar: Em favor do arguido: - a ausência de passado criminal; - a idade do arguido e condicionalismo da sua situação física. Depondo contra si: - a ausência de qualquer gestos de arrependimento ou contrição quanto aos factos (ou demonstração de “eco” censurativo da sua ação); - a abrangência temporal e repetição da sua ação; - o tipo de substâncias transacionadas, potenciadores de maior danosidade física e social. Assim, ponderando as exigências cautelares (gerais e especiais) sentidas, e sobrelevando a ausência de passado criminal do arguido, afigura-se-nos ser ainda possível a determinação da pena a aplicar no 1/3 terço da moldura abstrata. Não obstante, a intensidade e repetição da atuação do arguido, desde logo temporal, aliada à ausência de qualquer interiorização do desvalor das suas ações, não concederá, num contexto de inatividade laboral que ainda hoje se faz incidir, uma mais sedimentada possibilidade de inversão comportamental, tornando assim real o risco de continuação da ação ilícita. Outrossim, não obstante a idade e condição física do arguido, deverá o Tribunal salientar que as mesmas eram já vigentes no momento de ocorrência dos factos, não tendo obstado à atuação continuada e consistente do arguido nos termos explicitados.”. Nestes termos, o tribunal recorrido entendeu como adequada a condenação do arguido na pena de 5 anos de prisão e 10 (dez) meses de prisão quanto ao crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. nos termos do art.º 21.º do DL 15/93. Porém, atendendo à desqualificação jurídica efectuada, ponderando relevantemente as suas circunstâncias pessoais, as circunstâncias do caso, os interesses preventivos e o nível da culpa, entende-se que uma pena graduada, próximo do limite da pena abstrata aplicada, se mostra adequada e satisfaz as exigências de prevenção que no caso importa salvaguardar – atente-se que se trata de arguido sem antecedentes criminais, com idade de 68 anos, que, até aos 60 anos, sempre trabalhou enquanto esteve na vida activa, e de saúde débil –, julgando-se adequado à gravidade dos factos praticados pelo arguido aplicar, pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art.º 25.º, al. a), do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, a pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão. Como já se disse, a justeza da pena determina-se mediante a ponderação individualizada dos factos e a aplicação dos critérios legais, mormente os estabelecidos pelo art.º 71.º do Código Penal, à conduta e situação relevante de cada arguido. É certo que o juiz deve exercer os poderes que a lei lhe confere com observância do princípio da igualdade – na vertente de que o igual deve ser tratado igualmente e o desigual desigualmente, na medida da diferença significante – e que os tribunais devem prevenir o risco de arbítrio, sobretudo aí onde a concretização da vontade normativa lhe defira inescapável margem de apreciação, como sucede na graduação das penas, mediante a observância dos standards emergentes da prática judiciária. Assim, tendo em consideração o exposto e por se atender aos elementos factuais em causa, entende-se que, a simples ameaça da prisão poderá realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, pelo que, se determina a suspensão da execução da pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão aplicada ao arguido, por igual período, conforme o disposto no art.º 50.º, n.ºs 1 e 5, do Código Penal. Nestes termos o recurso merece provimento. III – DECISÃO Termos em que, acordando, se decide: a. Conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido; b. Condenar o arguido pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. nos termos do art. 25.º do DL n.º 15/93 de 22 de Janeiro, a pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão; c. Suspender a execução da pena aplicada, por igual período de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses; d. Sem custas. Lisboa, 08 de Novembro de 2023 (processado e revisto pelo relator) Leonor Furtado (Relatora) Heitor Vasques Osório (Adjunto) João Rato (Adjunto) |