Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1786/17.9T8PVZ.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: RECURSO DE APELAÇÃO
REJEIÇÃO DE RECURSO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
VIOLAÇÃO DE LEI
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO ESPECIFICADA
OBJETO DO RECURSO
CONCLUSÕES
Data do Acordão: 02/02/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Os ónus primários previstos nas alíneas a), b) e c) do art.º 640.º do CPC são indispensáveis à reapreciação pela Relação da impugnação da decisão da matéria de facto.

II. O incumprimento de qualquer um desses ónus implica a imediata rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 1786/17.9T8PVZ.P1.S1[1]



*



Acordam no Supremo Tribunal de Justiça – 1.ª Secção[2]:


I. Relatório


NORMAGO – Reabilitação de Edifícios, Lda., instaurou a presente acção declarativa, com processo comum, contra AA e BB, pedindo que estes sejam condenados a pagarem-lhe a quantia de 48.248,30 €, acrescida dos juros de mora vincendos, à taxa legal, até integral e efectivo pagamento.

Para tanto, alegou, em resumo, que, no exercício da sua actividade de construção civil, acordou com os réus construir uma moradia, em conformidade com uma lista de trabalhos orçamentados, pelo preço de 131.733,06 €, acrescido de IVA à taxa em vigor, que os réus não pagaram na totalidade, tendo resolvido o contrato e impedido a autora de prosseguir com a obra, sem que tivessem pago os trabalhos realizados, no valor de 39.874,74 €, e impossibilitando-a de auferir um lucro de 7.974,95 €.


Os réus contestaram, por impugnação, e deduziram reconvenção, formulando os seguintes pedidos:

a) Ser declarada válida a resolução do contrato de empreitada promovida pelos réus, por facto imputável à autora. Consequentemente,

b) Ser a autora/reconvinda condenada a pagar aos autores uma indemnização pelos danos causados, de natureza patrimonial, consubstanciados:

 b.1) no valor de 500,00 € prevista na cláusula penal moratória no artigo 9.º do contrato de empreitada;

b.2) na quantia de 6.114,91 € pelos danos resultantes de obra contratada não realizada pela autora reconvinda, mas integralmente paga pelos réus;

b.3) na quantia correspondente aos trabalhos integralmente pagos, mas apenas parcialmente executados, identificados nas verbas 4.4 e 10.1 do orçamento, cujo montante presentemente se desconhece e que, no caso de não ser apurado até à data da audiência de julgamento, deve ser relegado para ser liquidado em execução de sentença;

b.4) na quantia relativa ao custo do arrendamento que vem sendo suportado pelos réus desde 01.10.17 em virtude do incumprimento do contrato de empreitada pela autora, presentemente no valor de 2.250,00 €, valor que, no caso de não ser apurado até à data da audiência de julgamento, deve ser relegado para ser liquidado em execução de sentença;

c) Ser a autora condenada a pagar aos réus uma indemnização pelos danos causados, de natureza não patrimonial, no montante de 5.000,00 €.

Como fundamento da reconvenção deduzida, alegaram, em síntese, que a autora não executou a totalidade dos trabalhos nem cumpriu os prazos acordados, o que levou os réus a resolverem o contrato, tendo sofrido ainda prejuízos que discriminam e quantificam.


A autora replicou impugnando motivadamente os factos alegados pelos réus como fundamento da reconvenção e invocando a excepção de não cumprimento do contrato.


Na audiência prévia realizada, foi admitida a reconvenção deduzida e foi proferido despacho saneador tabelar, bem como foi fixado o objecto do litígio e foram enunciados os temas de prova, sem reclamações.

           

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, onde se decidiu:

a) julgar a acção improcedente e absolver os réus do peticionado;

b) julgar a reconvenção parcialmente procedente e, em consequência:

b.1) Declarar validamente resolvido o contrato de empreitada celebrado entre a autora e os réus;

b.2) Absolver a autora do demais que foi peticionado pelos réus.


Inconformada, a autora interpôs recurso de apelação em que impugnou tanto a matéria de facto como a matéria de direito, apresentando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:

“1. É nula a sentença, quando o juiz condene em objecto diverso do pedido (art.º 615.º, n.º a, alínea e) do C.P.C.;

2. Em nenhum momento do processo, os Recorridos peticionaram que a Recorrente perdesse os créditos que detinha sobre a Recorrente;

3. Os Recorridos peticionaram a compensação de créditos e contestaram a perfeição dos trabalhos prestados pela Recorrente, mas nunca peticionaram, ou sequer, invocaram, que a Recorrente perdesse os créditos e totalidade do valor que teria a receber pelos trabalhos que se dessem por efectivamente provados terem sido prestados;

4. O Tribunal a quo julgou incorrectamente o facto da Recorrente se ter atrasado na entrega da obra, tendo por fundamento a falta de pagamento, pelos Recorridos, de créditos existentes a favor da Recorrente, não considerando que o atraso na entrega da obra se ficou a dever, igualmente, ao facto dos Recorridos não terem providenciado pela finalização dos trabalhos da sua competência (zinco, serralharia e carpintaria) e que condicionou o prosseguimento da obra pela Recorrente;

5. Julgou incorrectamente esses concretos pontos de facto;

6. Existem provas constantes do processo, designadamente, a audição das testemunhas CC, DD, EE, FF, que confirmaram a inexistência de clarabóias no local e falta de colocação das placas de zinco e de janelas e vidros, que possibilitassem que a Recorrente pudesse prosseguir as obras de pladur e pinturas interiores da moradia;

7. Sem a colocação de clarabóias, placas de zinco e janelas e vidros, a Recorrente nunca poderia ter prosseguido e concluído a sua parte da obra, designadamente, com a colocação de pladur e pinturas interiores da moradia, sob pena, de estragar e inutilizar os trabalhos, em caso de entrada de chuvas;

8. Os Recorridos abusam do seu direito de invocar atrasos na obra pela Recorrente, quando contribuíram para tais atrasos, com a não finalização, por eles, dos trabalhos que lhes competiam (serralharia, colocação de zinco);

9. Esses concretos meios probatórios, constantes do processo, impunham decisão diversa da recorrida, porquanto, o atraso na entrega da obra não foi culpa exclusiva da empreiteira, mas, também dos Recorridos, que contribuíram para tal atraso com a ausência de finalização da sua parte nos trabalhos de empreitada;

10. Deveria, assim, ter sido proferida decisão que não reconhecesse a culpa exclusiva da Recorrente no atraso da entrega da obra e que os Recorridos contribuíram igualmente para tal desiderato não providenciando pela finalização dos trabalhos que lhes competia fazer, alguns deles condicionantes do trabalho da empreiteira;

11. A realização desses trabalhos por parte dos Recorridos era condição absoluta do prosseguimento dos trabalhos pela Recorrente;

12. A Recorrente não poderia prosseguir com a execução dos trabalhos de pladur e pinturas interiores da moradia, sem que a casa estivesse convenientemente fechada e com a colocação de janelas e clarabóias e zinco colocado na cobertura;

13. A sentença proferida confere um enriquecimento sem causa avultado aos Recorridos à custa dos trabalhos efectivamente prestados pela Recorrente, aquando da sua saída da obra;

14. O Tribunal a quo pecou por omissão na análise destes concretos pontos de facto, que ficaram confirmados, de forma concludente, pelos meios probatórios – prova testemunhal – testemunhas CC, EE, DD e FF e nas passagens dos respectivos testemunhos reproduzidas no corpo do presente articulado;

15. Esses testemunhos impunham decisão diversa da proferida, reconhecendo-se a quota parte de responsabilidade dos Recorridos no atraso de entrega de obra pela Recorrente;

16. A testemunha DD, prestou declarações, cujas passagens se reproduzem no corpo do presente articulado e aqui se fazem remissão, das quais resultam que a empreiteira ora Recorrente sempre entregou autos de medição para obter os pagamentos dos seus trabalhos da parte dos Recorridos, não ficando à espera de terminar fases de trabalhos;

17. Esse testemunho foi completamente desconsiderado pelo Tribunal a quo, sem fundamentação bastante;

18. Violando-se, assim, os princípios aplicáveis, de boa fundamentação;

19. A 31 de Julho de 2017, deveria ter ocorrido pagamento por parte dos Recorridos, de parte da obra, à Recorrente, conforma resulta da cláusula 4.ª, alínea 4.2, ponto 4) do contrato de empreitada;

20. A falta de pagamento, pelos Recorridos, justifica a excepção de não cumprimento do contrato invocada pela Recorrente, referente a falta de pagamentos da parte dos Recorridos;

21. Pese embora o reconhecimento da soberania das partes no estabelecimento da cláusula penal, o nosso ordenamento jurídico permite possíveis abusos, a redução de cláusula penal, em termos de equidade, conforme o art.º 812.º do Código Civil;

22. É manifestamente excessivo a perda da Recorrente de todos os créditos que tiver pendentes contra os Recorridos;

23. Tal acarreta um enriquecimento desmesurado e desproporcional dos Recorridos à custa da Recorrente;

24. O valor da cláusula pena não poderá exceder o da obrigação principal, sob pena de se tornar fonte de enriquecimento sem causa (art.º 811.º do Código Civil);

25. O valor da obrigação principal dos Recorridos perante a Recorrente era o valor das facturas emitidas pela Recorrente, correspondentes à obrigação principal de pagamento;

26. Por tal motivo, o teor da cláusula penal aplicada pelo Tribunal a quo, correspondente ao art.º 28.º, n.º 2 do caderno de encargos, é manifestamente excessivo e/ou ilegal;

27. Constitui, ademais, uma onerosidade excessiva a um dos contratantes com manifesto enriquecimento indevido da outra parte;

28. Em nenhuma fase do processo e nem na própria audiência de julgamento, os Recorridos alegaram e invocaram a aplicação do art.º 28.º do caderno de encargos;

29. Nos termos do art.º 639.º, n.º 2, alínea c) e 640.º, alínea a), ambos do Código de Processo Civil, existiu erro na determinação da norma aplicável;

30. Deveria ter sido aplicada a cláusula penal prevista no contrato de empreitada, nomeadamente, a cláusula 9.ª do contrato de empreitada, que fixa o regime em caso de incumprimento, pela Recorrente, do prazo de entrega da obra;

31. Essa é a norma contratualizada entre as partes e a norma que deveria ter sido aplicada e não foi (para efeitos do art.º 639.º, n.º 2, alínea c) do C.P.C.);

32. Existindo outra norma contratualizada entre as partes e prevista no art.º 28.º, n.º 2 do caderno de encargos, que trata também do incumprimento do prazo de entrega de obra pela empreiteira e existindo divergência do teor das duas normas, essa divergência seria sanada com a aplicação do art.º 3.º, alínea d) do caderno de encargos, segundo os termos acordados por ambas as partes de que resulta a prevalência, em caso de divergência do teor de normas, do acordado entre as partes no contrato de empreitada;

33. Não ocorreu menção, pelo Tribunal a quo, a tal norma do caderno de encargos (art.º 3.º, alínea d)), violando-se assim o princípio da liberdade contratual e os termos do acordo celebrado entre as partes;

34. Requer-se, assim, em conclusão, a alteração ou anulação da decisão proferida pelo Tribunal a quo.

Termos em que deverá dar-se provimento ao presente recurso, fazendo-se justiça.”


O Tribunal da Relação ..., por acórdão de 18/11/2021, rejeitando o recurso na parte relativa à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, deliberou julgar a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida.


Ainda irresignada, a autora interpôs recurso de revista e apresentou as correspondentes alegações que terminou com as seguintes conclusões:

“1.- A Recorrente discorda do indeferimento do recurso apresentado quanto à matéria de facto defendido pela Relação ...;

2.- A Recorrente defende que os dispositivos legais apontados na decisão proferida, para fundamento do indeferimento do recurso, foram cumpridos aquando da apresentação do recurso no Tribunal da Relação ...;

3.- A decisão sobre a questão do teor das conclusões apresentadas, se servem ou não para respeitar o disposto no art.º 640.º do Código de Processo Civil, consubstancia, uma violação do art.º 202.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, não podendo os tribunais indeferir o recurso sobre matéria de facto por questão puramente formal, sem análise da questão substancial e sem dar possibilidade de aperfeiçoamento ou contraditório, caso entendam que a questão formal irá prevalecer;

4.- A Revista pode ter por fundamento a violação ou errada aplicação da lei de processo;

5.- O Tribunal a quo violou o disposto no art.º 640.º, alínea a) e c) do C.P.C., tendo, erroneamente, aplicado o referido dispositivo na medida em que constam das conclusões do recurso apresentado na Relação ..., as conclusões que o Tribunal em causa diz que não constam;

6.- Constam das conclusões do recurso então apresentado, nas conclusões n.º 4 e n.º 5, quais foram os concretos pontos de facto que o Recorrente, na altura, considerou incorrectamente julgados, cumprindo-se, assim, o disposto na alínea a) do art.º 640.º do C.P.C.;

7.- Constam das conclusões do recurso então apresentado, nas conclusões n.º 9, n.º 10, n.º 11 e n.º 12, qual a decisão que deveria ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, cumprindo-se, assim, o disposto na alínea c) do art.º 640.º do C.P.C.;

8.- Tendo-se cumprido o disposto no art.º 640.º, alíneas a) e c) do C.P.C., cremos que a apreciação que resultou em indeferimento do recurso na parte da matéria de facto, pecou, por excesso, porquanto, o teor das conclusões n.º 4, n.º 5, n.º 9, n.º 10, n.º 11 e n.º 12, é suficiente para o julgador entender a motivação do recurso do recorrente e a decisão que o recorrente entendia que deveria ter sido proferida;

9.- Não tendo assim entendido, violou o Tribunal a quo, o disposto no art. 640.º, alíneas a) e c) do C.P.C.;

10.- Nas conclusões, refere-se, inclusivamente, qual a prova produzida que sustenta o porquê dos pontos de facto terem sido incorrectamente julgados, cabendo ao Tribunal da Relação a sistematização daí decorrente quanto à manutenção, ou não, dos factos provados e não provados decididos pelo Tribunal de 1.ª instância;

11.- O relator, em caso de dúvida, deveria convidar o recorrente a completar e esclarecer as conclusões apresentadas, mesmo na parte da matéria de facto, nas partes que considere deficientes ou obscuras, no prazo de 5 dias, nos termos do disposto no art.º 639.º, n.º 3 do C.P.C., por analogia, ou, decorrente da imposição do art.º 652.º, alínea a), parte final, ou mesmo, no mínimo, ao abrigo dos princípios do acesso à justiça, da justa composição do litígio e da prevalência do princípio de acesso à justiça e não denegação do acesso a justiça sobre questões de índole puramente formal que são menores e falecem perante princípios de substancialidade de maior gravidade a que os tribunais estão sujeitos, sendo que entendendo-se de forma diversa tal não serve para aumentar a confiança dos cidadãos na justiça.

Nestes termos e nos melhores de Direito, requer-se a V. Exas., a reforma ou revogação da decisão proferida pelo Tribunal da Relação ..., impondo-se que o Tribunal a quo profira decisão sobre a matéria de facto e reforme a sua decisão quanto a matéria de direito que esteja relacionada com aquela.”


Os réus/recorridos contra-alegaram pugnando pela confirmação do acórdão recorrido.

O recurso foi admitido como de revista, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, modo de subida e efeito que foram mantidos pelo Relator.

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.

Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais de conhecimento oficioso, que aqui não relevam, e tendo presente que se apreciam questões e não razões, a única questão que importa dirimir consiste em saber se foram, ou não, observados os ónus impostos pelo art.º 640.º, n.º 1, als. a) e c) do CPC.


II. Fundamentação


1. De facto


No acórdão recorrido, reproduzindo os da sentença, foram dados como provados os seguintes factos:

1) A autora é uma empresa que se dedica à construção civil.

2) Entre autora e réus, em 17.03.17, foi celebrado um acordo pelo qual a autora se comprometeu em dar continuidade, parcial, à construção de uma moradia sita na Rua..., ...), em ..., da União de Freguesias ..., ... e ..., nos termos que constam do documento intitulado «contrato de empreitada de obras particulares», apresentado a fls. 8-9v do processo, do documento intitulado «orçamento ... D», apresentado a fls. 191-194v do processo, do documento intitulado «caderno de encargos», apresentado a fls. 68v-80v e 84-105 do processo, e do documento intitulado «plano de trabalhos», apresentado a fls. 107 do processos;...

3) …De acordo com a lista de trabalhos elencados no documento intitulado «orçamento ... D», composta por 14 itens, a saber:

4.1) Trabalhos preparatórios, no valor de Euros 4.669,00 + IVA;

4.2) Pavimento da Garagem, no valor de Euros 987,90 + IVA;

4.3) Cobertura, no valor de Euros 8.311,25 + IVA;

4.4) Escadas metálicas;

4.5) Paramentos, no valor de Euros 14.352,93 + IVA;

4.6) Isolamentos, no valor de Euros 4.403,16 + IVA;

4.7) Revestimento de paredes, no valor de Euros 42.784,30 + IVA;

4.8) Revestimento de pavimentos, no valor de Euros 8.154,21 + IVA;

4.9) Arranjos Exteriores, no valor de Euros 18.353,65 + IVA;

4.10) Cerâmicos e Pinturas, no valor de Euros 8.547,95 + IVA;

4.11) Soleiras e peitoris, no valor de Euros 1.680,00 + IVA;

4.12) Instalações hidráulicas, no valor de Euros 16.938,71 + IVA;

4.13) Diversos, no valor de Euros 2.550,00 + IVA; …

4) Estando excluídos os trabalhos de serralharia, zinco, electricidade e carpintaria.

5) O orçamento apresentado pela autora foi adjudicado pelos réus a 14.03.17.

6) Autora e réus acordaram que os trabalhos a realizar pela autora teriam início em 16-03-17 e estariam concluídos em 30.09.17.

7) Mensalmente, por acordo das partes, a autora elaborou autos de medição dos trabalhos executados, tendo enviado aos réus os autos de medição até ao n.º 5, inclusive.

8) Repartindo os valores devidos em dois autos mensais, na proporção de 50%, cada; …

9) Uma vez que os pagamentos eram feitos em separado.

10) Com o desenrolar da obra, a autora enviou aos réus o auto de medição n.º 1 e 1B, referente à adjudicação, no dia 15.03.17; …

11) E os autos de medição n.º 2 e 2B, 3 e 3B, 4 e 4B, 5 e 5B, nos dias 26.04.17, 26.05.17, 26.06.17 e 26.07.17, respectivamente, correspondentes aos trabalhos, entretanto, executados, e, onde neles eram descritos os trabalhos executados em quantidade e valores; …

12) Tendo os réus pago os valores mencionados nesses autos.

13) A moradia objecto do acordo celebrado entre autora e réus destinava-se à habitação dos réus.

14) A autora elaborou os autos de medição n.º 6 e n.º 6-B, com o teor que consta dos documentos apresentado a fls. 16v-19 e 19v-22; …

15) Tendo-os enviado aos réus em 06.09.17.

16) A autora elaborou os autos de medição n.º 7 e n.º 7-B, com o teor que consta dos documentos apresentado a fls. 23-26 e 26v-28v, os quais se dão aqui por integralmente reproduzidos; …

17) Tendo-os enviado aos réus em 26.09.17.

18) Os réus não pagaram à autora o valor dos autos de medição n.º 6, n.º 6-B, n.º 7 e n.º 7-B.

19) Em Outubro de 2017, a autora suspendeu os trabalhos; …

20) Por os réus não terem procedido ao pagamento do valor dos autos de medição n.º 6, n.º 6-B, n.º 7 e n.º 7-B.

21) A suspensão ocorreu no dia 04.10.17.

22) Após ter suspendido os trabalhos, a autora não mais os recomeçou.

23) No dia 06.10.17, os réus enviaram à autora a carta com o teor que consta do documento junto a fls. 29v, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido, que foi recebida pela autora.

24) No dia 16.10.17, os réus enviaram à autora a carta com o teor que consta do documento junto a fls. 30, que foi recebida pela autora.

25) A autora elaborou os autos de medição n.º 8 e n.º 8-B, com o teor que consta dos documentos apresentado a fls. 31-33 e 33v-35v; …

26) Tendo-os enviado aos réus em 03.11.17.

27) A autora emitiu as seguintes facturas:

- Factura n.º ...37, no valor de Euros 4.141,84, referente ao auto 6;

- Factura n.º ...32, no valor de Euros 4.141,84, referente ao auto 6B;

- Factura n.º ...33, no valor de Euros 6.761,27, referente ao auto 7;

- Factura n.º ...34, no valor de Euros 6.761,27, referente ao auto 7B;

- Factura n.º ...35, no valor de Euros 10.396,99, referente ao auto 8;

- Factura n.º ...36, no valor de Euros 7.671,51, referente ao auto ...;

com o teor que consta dos documentos juntos a fls. 36-38v do processo.

28) Estas facturas foram enviadas aos réus por carta datada de 06.11.17, com o teor que consta a fls. 119v-120, que foi recebida pelos réus em data anterior a 10-11-17.

29) Os réus não pagaram à autora seja o valor dos autos de medição n.º 8 e n.º 8-B, sejam as quantias mencionadas nas facturas n.ºs ...32 a ...37, acima referidas.


As instâncias consideraram que, com relevo para a decisão da causa, não se provaram os seguintes factos:

30) Autora e réus acordaram que os trabalhos executados pela autora seriam pagos de acordo com as medições feitas e pelo valor unitário dos trabalhos efectivamente realizados, no prazo de 5 dias a contar da apresentação dos autos de medição.

31) Em Agosto de 2017, autora e réus acordaram em prorrogar o prazo de conclusão da obra.

32) A margem de lucro da autora nas obras por esta realizadas é de 20%.


2. De direito


A recorrente sustenta que a Relação violou o disposto no art.º 640.º, n.º 1, als. a) e c), do CPC ao rejeitar a reapreciação da matéria de facto por si impugnada com o fundamento, que considera errado, de que não havia cumprido os ónus ali impostos.

Coloca, assim, a questão acima enunciada, de natureza processual, que consiste em saber se existem, ou não, os fundamentos invocados para a rejeição do recurso de apelação, na parte relativa à impugnação da matéria de facto.

 A alegada violação de lei processual, imputada à Relação, descaracteriza a dupla conforme entre as decisões das instâncias, nada obstando ao conhecimento da questão colocada em sede de revista.

Trata-se de jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal[3], cujo entendimento reside na circunstância de a decisão da Relação de não conhecimento da impugnação da matéria de facto se formar ex novo na própria Relação, não tendo qualquer ligação com a decisão produzida na 1.ª instância[4].

           

Sob a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, o citado art.º 640.º dispõe, no seu n.º 1, o seguinte:

Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

No n.º 2 regula a forma como se deve proceder quanto à especificação dos meios probatórios, no caso irrelevante, dado que não vem posto em causa o cumprimento desse ónus que a Relação considerou verificar-se.

Neste regime, é possível distinguir dois tipos de ónus, como tem vindo a entender a jurisprudência deste Supremo[5] e está bem explícito no acórdão de 29/10/15, processo n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1[6], a saber:

- “um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação - que tem subsistido sem alterações relevantes” e consta do transcrito n.º 1 do art.º 640.º; e

 – “um ónus secundário – tendente, não tanto a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida – que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização das passagens da gravação relevantes”[7], previsto no n.º 2 do mesmo preceito.

O ónus primário refere-se à exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, conforme previsto nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do citado artigo 640.º, visa fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto e tem por função delimitar o objeto do recurso.

O ónus secundário consiste na exigência da indicação exacta das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na alínea a) do n.º 2 do mesmo artigo, e visa possibilitar um acesso aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida.

Os requisitos formais, impostos para a admissibilidade da impugnação da decisão de facto, têm em vista, no essencial, garantir uma adequada inteligibilidade do objecto e alcance teleológico da pretensão recursória, de forma a proporcionar o contraditório esclarecido da contraparte e a circunscrever o perímetro do exercício do poder de cognição pelo tribunal de recurso[8].

Relativamente ao ónus primário, nem sequer é possível recorrer às alegações para suprir deficiências das conclusões, uma vez que são estas que enumeram as questões a decidir e delimitam o objecto do recurso, devendo, quanto à impugnação da decisão de facto, identificar os concretos pontos de facto impugnados e a decisão pretendida sobre os mesmos, bem como os concretos meios de prova que imponham tal decisão.

Daí que, quando falte a especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, deva ser rejeitado o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, o mesmo sucedendo quanto aos restantes dois requisitos, nomeadamente a falta de indicação da decisão pretendida sobre esses mesmos factos.

O Conselheiro Abrantes Geraldes resume[9] as obrigações impostas ao recorrente que impugne a matéria de facto no domínio actual[10] do seguinte modo:

“a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;

b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;

c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;

d) O recorrente pode sugerir à Relação a renovação da produção de certos meios de prova, nos termos do art. 662.º, n.º 2, al. a), ou mesmo a produção de novos meios de prova nas situações referidas na al. b).(…);

e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente.

(...)”

A verificação do cumprimento destas exigências deve ser feita à “luz de um critério de rigor”, pois “trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”, e na medida em que tais exigências devem ser o “contraponto dos esforços de todos quantos, durante décadas, reclamaram a atenuação  do princípio da oralidade pura e a atribuição à Relação de efetivos poderes de sindicância da decisão da matéria de facto como instrumento de realização de justiça” [11].

O não cumprimento dos aludidos ónus acarreta a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, de acordo com o estatuído no citado art.º 640.º, nºs 1 e 2, não havendo, nestes casos, lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento.

É o que resulta do disposto naquele preceito e no art.º 652.º, n.º 1, al. a), do CPC, que limita os poderes do relator ao despacho de aperfeiçoamento “das conclusões das alegações, nos termos do n.º 3 do artigo 639.º”, o qual não contempla a inobservância dos mencionados ónus.

Assim tem entendido a melhor doutrina[12].

E assim vem decidindo este Supremo Tribunal, como se pode constatar, entre outros, pelos arestos que se indicam e cujo sumário aqui se transcreve, na parte relevante:

- Acórdão de 02-06-2016, processo n.º 781/07.0TYLSB.L1.S1[13]:

“III - No âmbito da impugnação da matéria de facto, não é admissível o convite ao recorrente, designadamente, para completar as conclusões, sendo inaplicável o disposto no n.º 3 do art. 639.º do NCPC.”


- Acórdão de 14-07-2016, processo n.º 111/12.0TBAVV.G1.S1[14]:

“II - A inobservância deste ónus de alegação, quanto à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, implica, como expressamente se prevê, no art. 640.º, n.º 1, do NCPC, a rejeição do recurso, que é imediata, como se acentua na al. a), do n.º 2, desse artigo.

III - Nesta sede, foi propósito deliberado do legislador não instituir qualquer convite ao aperfeiçoamento da alegação a dirigir ao apelante. A lei é a este respeito imperativa, ao cominar a imediata rejeição do recurso, nessa parte, para a falta de incumprimento pelo recorrente do referido ónus processual (art. 640.º, n.º 2).

IV - De resto, esse eventual convite, além de redundar num (novo) alargamento do prazo de oferecimento da alegação, contraria abertamente a ratio legis, de desencorajar impugnações temerárias e infundadas da decisão da matéria de facto.”


- Acórdão de 27-10-2016, processo n.º 3176/11.8TBBCL.G1.S1[15]:

“III. Omitindo o recorrente o cumprimento do ónus processual fixado na alínea c) do nº 1 do art. 640º do CPCivil, impõe-se a imediata rejeição da impugnação da matéria de facto, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões.

IV. A rejeição da impugnação da matéria de facto não está dependente da observância prévia do contraditório no quadro dos art.s 655º e 3º do CPCivil.

V. A interpretação dos art.s 639º e 640º do CPCivil no sentido de a rejeição da impugnação da matéria de facto não dever ser precedida de um despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões não viola o art. 20º da Constituição da República Portuguesa.”


- Acórdão de 24-05-2018, processo n.º 4386/07.8TVLSB.L1.S1[16]:

“V - A interpretação da expressão “sob pena de rejeição” consagrada no art. 640.º, n.º 1, do CPC, relacionada com a circunstância de o recorrente beneficiar já de um prazo suplementar de 10 dias, acrescido ao prazo normal do recurso de 30 dias, no caso de impugnar a decisão da matéria de facto com base na prova gravada (art. 638.º, n.os 1 e 7, do CPC), inculca a ideia que o desrespeito do cumprimento do respectivo ónus é sancionado com imediata rejeição do recurso, não havendo, neste particular, espaço para qualquer convite intercalar ao aperfeiçoamento.”


- Acórdão de 27-09-2018, proc. nº 2611/12.2TBSTS.L1.S1[17]:

“III - Relativamente ao recurso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto não há lugar ao despacho de aperfeiçoamento das respectivas alegações uma vez que o art. 652.º, n.º 1, al. a), do CPC, apenas prevê a intervenção do relator quanto ao aperfeiçoamento “das conclusões das alegações, nos termos do n.º 3 do art. 639.º”, ou seja, quanto à matéria de direito e já não quanto à matéria de facto”.


- Acórdão de 03-10-2019, Revista n.º 77/06.5TBGVA.C2.S2 - 2.ª Secção[18]:

“I - Para efeitos do disposto nos arts. 640.º e 662.º, n.º 1, ambos do CPC, impõe-se distinguir, de um lado, a exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, previstas nas als. a), b) e c) do n.º 1 do citado art. 640.º, que integram um ónus primário, na medida em que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto. E, por outro lado, a exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na al. a) do n.º 2 do mesmo art. 640.º, que integra um ónus secundário, tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida.

II - Na verificação do cumprimento dos ónus de impugnação previstos no citado art. 640.º, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

III - Nesta conformidade, enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no n.º 1, als. a), b) e c) do referido art. 640.º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada, já, quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o n.º 2, al. a) do mesmo artigo, tal sanção só se justifica nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso.


V - Relativamente ao recurso da decisão da matéria de facto, está vedada ao relator a possibilidade de proferir despacho de aperfeiçoamento, na medida em que, em matéria de recursos, o art. 652.º, n.º 1, al. a), do CPC, limita essa possibilidade às «conclusões das alegações, nos termos do n.º 3 do art. 639.º».

(…)”


- Acórdão de 08-10-2019, Revista n.º 581/15.4T8ABT.E1.S2 - 1.ª Secção[19]:

“I - O recorrente que pede na apelação a reapreciação da matéria de facto e não identifica os pontos de facto impugnados nem a resposta a dar aos mesmos, não cumpre o ónus de alegação previsto no art. 640.º, n.º 1, als. a) e c), do CPC, o que implica a rejeição do recurso nessa parte.

II - A interpretação feita em I não viola qualquer preceito constitucional.”


-Acórdão de 02-06-2020, Revista n.º 1678/12.8TBMCN.P2.S2 - 6.ª Secção[20]:

“I - Os ónus primários descritos nas três alíneas do n.º 1 do art. 640.º são indispensáveis à concretização do objecto da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

II - O incumprimento de qualquer um deles implica a imediata rejeição do recurso de apelação, nos termos da referida norma.”


- Acórdão de 25/3/2021, já citado:

III - Omitindo o recorrente o cumprimento do ónus processual fixado na alínea a) e c) do nº 1 do art. 640º do CPCivil, impõe-se a imediata rejeição da impugnação da matéria de facto, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões.”


O Tribunal da Relação, ao apreciar o cumprimento daqueles ónus pela recorrente, escreveu o seguinte:

«…O citado artigo 640.º, n.ºs 1 e 2 impõe às partes ónus rigorosos, cujo incumprimento acarreta a imediata rejeição do recurso, como expressamente ali se diz, sem possibilidade de convite ao aperfeiçoamento das conclusões – conforme vem sendo entendimento dominante da doutrina e da jurisprudência, quer no âmbito da versão do CPC introduzida pela Lei 41/13, quer no âmbito da versão anterior (redacções do DL 329-A/95, de 12.12 e do DL 303/07, de 24.08) [3] [21].

Como salienta Abílio Neto [4][22], a jurisprudência encontra-se dividida quanto à (des)necessidade de levar às conclusões do recurso a impugnação de decisão relativa à matéria de facto, e, na hipótese afirmativa, qual o grau de concretização exigível.

Sobre esta matéria, perfilhamos a posição adoptada no acórdão do STJ de 23.02.10 [5][23], em que se escreveu: “Não se exige que o recorrente, nas conclusões, reproduza o que alegou acerca dos requisitos enunciados no art. 690º-A, nº 1, a) e b) e nº 2, do Código de Processo Civil, o que tornaria as conclusões, as mais das vezes, não numa síntese, mas uma complexa e prolixa enunciação repetida do que afirmara no corpo alegatório. Mas esta consideração não dispensa o recorrente de fazer alusão àquela questão que pretende ver apreciada, mais não seja pela resumida indicação dos pontos concretos que pretende ver reapreciados, de modo que ao ler as conclusões das alegações resulte inquestionável que o recorrente pretende impugnar o julgamento da matéria de facto.” [6][24].

No caso, nem no corpo das alegações, nem nas conclusões, indicou a autora quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados. Não o fez nem por referência à numeração ínsita na sentença recorrida, nem por reprodução desses concretos pontos; assim como não indicou concretos factos por si alegados na petição inicial, que entenda que tenham sido incorrectamente julgados.

E, não tendo indicado os concretos pontos que considera incorrectamente julgados, também a autora não indicou a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre os mesmos.

É certo que na conclusão 4ª, a autora escreveu o seguinte:

4ª – O Tribunal a quo julgou incorrectamente o facto da recorrente se ter atrasado na entrega da obra, tendo por fundamento a falta de pagamento, pelos recorridos, de créditos existentes a favor da recorrente, não considerando que o atraso na entrega da obra se ficou a dever, igualmente, ao facto dos recorridos não terem providenciado pela finalização dos trabalhos da sua competência (zinco, serralharia e carpintaria) e que condicionou o prosseguimento da obra pela recorrente.”.

Mas o que consta de tal conclusão é de tal forma vago e genérico que não permite que este Tribunal apreenda, com certeza e com segurança, quais os concretos pontos da matéria de facto que a autora entende terem sido incorrectamente julgados nem a decisão que deve ser proferida sobre os mesmos.

Sendo que, dessa forma, também os réus estão impedidos de cumprir o contraditório.

E, no corpo das alegações, nada mais diz a autora para além do que verteu na conclusão 4.º.

Tem, pois, de se considerar que a autora não deu cumprimento aos ónus previstos no artigo 640.º, n.º 1, als. a) e c) – embora tenha cumprido o ónus previsto no n.º 2, al. a) daquele preceito.

Mas o incumprimento dos ónus previstos no artigo 640.º, n.º 1, als. a) e c) é suficiente para que proceda a questão prévia do incumprimento dos ónus previstos de impugnação da matéria de facto, suscitada pelos réus, pelo que o recurso terá de ser rejeitado na parte respeitante àquela impugnação.»


Analisadas as conclusões da apelação, atrás transcritas, confirma-se que a apelante não só não indicou os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, como não indicou a decisão que, no seu entender, devia ser proferida sobre as questões de facto genericamente impugnadas, sendo que no que respeita ao sentido da decisão impetrada, o mesmo nem sequer consta do corpo das alegações.

A referência, na conclusão 4.ª, à falta de finalização dos trabalhos cuja execução não era da sua responsabilidade para justificar o atraso na conclusão da obra, para além da falta de pagamento do preço devido, não é suficientemente concretizadora para que a Relação pudesse, com certeza e segurança, proceder a uma reapreciação da prova.

A afirmação, contida na conclusão 5.ª, de que “Julgou incorrectamente esses concretos pontos de facto” nada releva, pois que, além de conclusiva, nada concretiza.

As conclusões 9.ª, 10.ª, 11.ª e 12.ª também não indicam qual decisão que, no seu entender, deveria ser proferida sobre as questões de facto concretamente impugnadas, contrariamente ao sustentado pela recorrente, pela simples razão de que não concretizou os factos que entendeu terem sido mal julgados. O que a apelante fez foi tecer considerações sobre a eventual culpa da parte contrária ou terceiros no atraso de entrega da obra. Mas sem suporte em factos alegados, em tempo oportuno, e que, por conseguinte, não foram dados como provados nem como não provados. Ela deveria ter impugnado os factos que considerou mal julgados, reportando-se aos factos provados ou não provados, depois de terem sido alegados nos respectivos articulados.

A recorrente não fez referência, nem sequer de forma sumária, nas conclusões de recurso, aos concretos pontos de facto que pretendia impugnar, incorrendo numa omissão absoluta e indesculpável do cumprimento do ónus primário contido no n.º 1 do art.º 640.º do CPC. Esta omissão não pode ser suprida, nomeadamente com convite ao aperfeiçoamento das conclusões, pela simples razão de não ser admissível.

Nestas circunstâncias, a decisão do Tribunal da Relação de rejeitar a impugnação da decisão de facto mostra-se perfeitamente legal e consentânea com a jurisprudência dominante deste Supremo Tribunal, ainda que tenha citado legislação revogada e jurisprudência pouco actual. No entanto, isso mostra-se irrelevante, porquanto, como já se disse, estamos perante um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação da impugnação que tem subsistido perante vária legislação sem alterações relevantes, constando actualmente do n.º 1 do art.º 640.º do CPC e mantendo-se a sua interpretação pela larga maioria da jurisprudência.

A tolerância na verificação do cumprimento dos ónus ali impostos “não pode ir ao ponto de exigir ao Tribunal da Relação que ande a descortinar ou a intuir na motivação qual a resposta que o apelante considerava correcta e que pretendia fosse dada em alternativa.

A resposta pretendida deve constar de forma inequívoca na motivação e preferentemente também nas conclusões, já que são estas que delimitam o objecto do recurso.”[25]

No caso em análise, para além de não ter especificado os “concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados”, a apelante não indicou a “decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”. E o sentido da resposta que pretende não consta explicitamente nas conclusões, nem sequer na motivação, com reporte a factos provados ou não provados.

Por isso, não pode considerar-se que a recorrente tenha cumprido os ónus primários previstos no art.º 640.º, n.º 1, als. a) e c), do CPC.

A inobservância deste ónus implica a rejeição do recurso, não havendo lugar a qualquer despacho de aperfeiçoamento, pelas razões já referidas, por imperativo legal [art.º 639.º, n.º 3 ex vi art.º 652.º, n.º 1, al. a), não susceptível de aplicação analógica] e pelos antecedentes legislativos.

Bem andou, pois, o Tribunal da Relação ao rejeitar o recurso na parte relativa à impugnação da decisão de facto.

O recurso não merece provimento.


Sumário:

1. Os ónus primários previstos nas alíneas a), b) e c) do art.º 640.º do CPC são indispensáveis à reapreciação pela Relação da impugnação da decisão da matéria de facto.

2. O incumprimento de qualquer um desses ónus implica a imediata rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões.

I. Decisão

Pelos fundamentos expostos, acorda-se em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.


*


Custas pela recorrente por ter ficado vencida (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).

*



Lisboa, 2 de Fevereiro de 2022


Fernando Augusto Samões (Relator)

Maria João Vaz Tomé (1.ª Adjunta)

António José Moura de Magalhães (2.º Adjunto)

____________

[1] Do Tribunal Judicial da Comarca do ... – Juízo Central Cível da ... - Juiz 2.
[2] Relator: Conselheiro Fernando Samões
1.º Adjunto: Juíza Conselheira Maria João Vaz Tomé
2.º Adjunto: Juiz Conselheiro António Magalhães
[3] Cfr., por todos, os acórdãos de 17-12-2019, proc. n.º 363/07.7TVPRT-D.P2.S1 e de 08-07-2020, proc. n.º 4081/17.0T8VIS.C1-A.S1.
[4] Cfr. acórdão de 18-01-2018, proc. n.º 668/15.3T8FAR.E1.S2.
[5] Cfr. entre outros, o acórdão de 22-11-2018, Revista n.º 2337/06.6TBTVD.L1.S2.
[6] Acessível em www.dgsi.pt.
[7] No mesmo sentido, citando o referido aresto, o acórdão do STJ de 25/3/2021, revista n.º 756/14.3TBPTM.L1.S1 in www.dgsi.pt.
[8] Cfr. acórdãos do STJ, de 22-03-2018, proc. n.º 290/12.6TCFUN.L1.S1 e de 18/1/2022, processo n.º 243/18.0T8PFR.P1.S1
[9] Na sua obra “Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª edição, 2108, Almedina, págs. 165 e 166.
[10] Do CPC de 2013, aqui aplicável.
[11] Abrantes Geraldes, obra citada, pág. 169.
[12] Abrantes Geraldes, obra citada, pág. 167.
[13] Acessível em www.dgsi.pt.
[14] Disponível no mesmo sítio.
[15] Disponível no mesmo sítio.
[16] Disponível no mesmo sítio.
[17] Acessível em www.dsgi.pt.
[18] In Sumários do STJ.
[19] In Sumários do STJ.
[20] Idem.
[21] [3] Na doutrina, pronunciaram-se Abílio Neto, CPC Anotado, 22ª ed., pág. 1051, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 3ª ed., págs. 158 e 159 e obra citada na nota anterior, pág. 128, Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª ed., pág. 170, nota 331, Lebre de Freitas, CPC Anotado, 3º, I, 2ª ed., págs. 61 a 63 e Lopes do Rego, Comentário ao CPC, I, pág. 466. Na jurisprudência, ver, por todos, o acórdão do STJ de 09.02.12, www.dgsi.pt, em que se citam vários outros arestos.
[22] [4] Obra e lugar citados.
[23] [5] www.dgsi.pt.
[24] [6] No mesmo sentido, ver os acórdãos do STJ de 13.07.06, 08.11.06, 07.02.07, 05.10.07, 30.10.07 e 27.10.09 e 04.07.13, todos em www.dgsi.pt.
[25] Citado acórdão de 25/3/2021.