Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1319/10.8TXCBR-U.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Relator: SÉNIO ALVES
Descritores: RECURSO DE DECISÃO CONTRA JURISPRUDÊNCIA FIXADA
PRESSUPOSTOS
RECURSO PARA O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
INTERRUPÇÃO DO PRAZO DE RECURSO
RECURSO PENAL
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
Data do Acordão: 01/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: REJEITADO O RECURSO EXTRAORDINÁRIO, CONVOLADO EM RECURSO ORDINÁRIO PARA O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ...
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - O recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada apenas pode ser interposto após o trânsito em julgado da mesma.

II - O recurso interposto para o Tribunal Constitucional interrompe os prazos para a interposição de outros que porventura caibam da decisão, os quais só podem ser interpostos depois de cessada a interrupção.

III - Interposto recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada ao abrigo do art. 446.º do CPP antes de transitada a mesma, deve o recurso ser remetido ao Tribunal da Relação competente.

Decisão Texto Integral:

     Acordam, em conferência, os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça:



     I. O Exmº Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal de Execução de Penas ...., considerando que a decisão aí proferida em 28/1/2020 contraria o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 7/2019 (publicado no DR de 29/11/2019), veio interpor o presente recurso, ao abrigo do disposto no art. 242.º, n.º 1, al. a) do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade, com os seguintes fundamentos:

 «Porque é total a nossa concordância com os pontos expendidos pela Mmª Juíza na decisão de que ora se recorre, abstemo-nos de tecer quaisquer considerações sobre a matéria, que sempre seriam descabidas.»

  O recurso foi admitido por despacho de 16/10/2020.


   II. Neste Supremo Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta promoveu que se solicitasse ao Tribunal a quo informação sobre a data da notificação ao MºPº da decisão recorrida.

Obtida a informação de que tal notificação havia ocorrido em 5/2/2020, emitiu douto parecer, que se transcreve:

«I. Da admissibilidade do presente recurso extraordinário contra jurisprudência fixada

1. Tramitação processual

1.1. Por decisão  do TEP de ....., datada de 20.12.2019, foi  recusada/ não aplicada a norma constante do artigo 63º nº4  do Código Penal, na interpretação dada pelo acórdão de fixação de jurisprudência nº 7/2019,(publicado no DR de 29/11/2019 – I série), com o fundamento de que a aplicação dessa norma, na interpretação introduzida pela jurisprudência fixada, viola o disposto nos artigos 2º, 9, al. d), 18º n.º 2, 26º n.º 1, e 30º nº 1 , da CRP.

Fundamentou-se em tal decisão “que a orientação interpretativa dimanada do APFJ 7/2019 (havendo lugar à execução sucessiva de várias penas pelo mesmo condenado, caso seja revogada a liberdade condicional de uma pena com fundamento na prática de um crime pelo qual o arguido foi condenado em pena de prisão, o arguido terá de cumprir o remanescente dessa pena por inteiro por força do disposto no artigo 63º, n.º 4, do CP, não podendo quanto a ela beneficiar de liberdade condicional) além de ignorar a norma constante do n.º 4 do artigo 64º do C.Penal, interpreta o sobredito artigo 63º, 4 do CPenal em colisão com o princípio da proibição do excesso, maxime na sua dimensão de princípio da proporcionalidade das sanções penais (artigo 18º n.º  2, da CRP) e o princípio (implícito) da socialidade, que impõe ao Estado um dever de ajuda ao condenado, proporcionando-lhe as condições necessárias para a reintegração na sociedade, decorrente da caracterização da República Portuguesa como um Estado de direito (art. 2º, 9º al. d), 26º, 1 e 30º, 1, todos da CRP).

 Tal desadequação à Constituição conduz, nos termos do artigo 204º da CRP, à sua inaplicabilidade, pelo que se passará a efectuar o cômputo das penas em cumprimento, tendo em atenção que o condenado se encontra privado da liberdade desde 08/02/2019, havendo que proceder ao desconto de um dia de detenção.

Assim o meio das penas em cumprimento ocorrerá em 12.04.2021, os 2/3 em 22.09.2022, os 5/6 em 13.06.2024 verificando-se o fim das penas em 13.08.2025.”

1.2. Tal decisão foi notificada ao MºPº junto do TEP de ..... em  05.02.2020.

1.3. Nesse mesmo dia 05.02.2020 o MºPº interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo dos artigos 70, nº 1. a), e 72, nº 1-. a), e nº 3, da Lei nº 28/82, de 15.11, invocando ter o Sr. Juiz do TEP, na decisão proferida, recusado/desaplicado a norma constante do artigo 63º, nº 4, do CP, na interpretação dada pelo acórdão de fixação de jurisprudência 7/2019 do STJ, com o fundamento de que a aplicação dessa norma, na interpretação introduzida pela jurisprudência fixada, viola o disposto nos artigos 2º, 9º, al. d), 18º, n.º 2, 26º, n.º 1, e 30º,n.º 1, todos da CRP .

1.4. Em 14-08-2020 foi proferida a Decisão Sumária, no Tribunal Constitucional, transitada em julgado em 10.09.2020, que considerou:

“Resta concluir que, constituindo a prévia instauração de recurso obrigatório uma condição de recorribilidade, e não tendo, neste caso, sido interposto previamente pelo MºPº tal recurso obrigatório para o STJ, como exige o nº 5 do art. 70º da LTC, não é possível conhecer do presente recurso de constitucionalidade.”

1.5. Em 06.10.2020, o MºPº junto do TEP interpôs recurso obrigatório contra jurisprudência fixada no AUJ nº 7/2019, para o Supremo Tribunal de Justiça.

II. Apreciação sobre a admissibilidade do presente recurso.

1. Cumpre desde já realçar que a questão suscitada nos presentes autos foi já objeto de decisão na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, nos acórdãos de 12.11.2020, processos 1283/11.6TXPRT-O.S1 e 3150/10.1TCPRT-R.S1 (Cons. Helena Moniz), cujo sumário se transcreve:

I. Nos termos do art. 446.º, do CPP, o recurso contra jurisprudência fixada apenas pode ser interposto após o trânsito em julgado da decisão; o acórdão do TC transitou em julgado a 09-07-2020, e os prazos para interposição de recurso ordinário foram interrompidos, nos termos do art. 75.º, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15-11; assim sendo, a partir do dia 09-07-2020, começaram a correr novamente os prazos para interposição de recurso ordinário da decisão do Tribunal de Execução de Penas; tendo em conta o disposto no art. 446.º, do CPP, o recurso foi extemporaneamente interposto, porque interposto (a 28-07-2020) antes de transitada em julgado a decisão recorrida.

II - O art. 242.º, n.º 4, do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade (CEPMPL), determina que o recurso deve ser interposto no prazo de 30 dias após a “prolação da decisão”, mas deve considerar-se que este apenas se refere aos recursos interpostos nos termos do art. 242.º, n.º 1, al. b), do CEPMPL; isto porque, por força do disposto no art. 244.º, do CEPMPL, as regras relativas, nomeadamente, à interposição desta espécie de recurso devem seguir o disposto no art. 446.º, do CPP, ou seja, apenas deverá ser interposto recurso contra jurisprudência fixada quando a decisão recorrida já tenha transitado em julgado e após o seu trânsito (no prazo de 30 dias).

III - No caso dos presentes autos ainda era admissível recurso ordinário, dado que os prazos para a sua interposição recomeçaram após o trânsito em julgado da decisão do TC (a 09-07-2020). E tendo recomeçado quando o recurso (aqui em análise) foi interposto, não tinha ainda a decisão transitado em julgado, devendo apenas recorrer-se a um recurso especial como o de contra jurisprudência fixada apenas somente estando esgotadas as possibilidades de recurso ordinário, isto é, as possibilidades de as instâncias poderem (ou não) alterar a decisão recorrida

2. Assim, renovamos no presente parecer os fundamentos invocados pela signatária no âmbito do processo 1283/11.6TXPRT-O.S1, com as necessárias adaptações.

O artigo 446.º do CPP (Recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça), na redação de 59/98, 25.08, estabelecia o seguinte:

«1 - O Ministério Público recorre obrigatoriamente de quaisquer decisões proferidas contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, sendo o recurso sempre admissível.

2 - Ao recurso referido no número anterior são correspondentemente aplicáveis as disposições do presente capítulo.

3 - O Supremo Tribunal de Justiça pode limitar-se a aplicar a jurisprudência fixada, apenas devendo proceder ao seu reexame se entender que está ultrapassada.»

Discutia-se, à data, qual o alcance da expressão “quaisquer decisões”.

A propósito desta questão, formou-se no STJ uma corrente que defendia que as decisões de primeira instância não eram passíveis de recurso extraordinário por violação de jurisprudência fixada sem que se tivessem esgotado os graus ordinários de recurso.

Na atual redação, dada pela Lei nº 48/2007, de 27.08, o artigo 446º (Recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça) estabelece:

«1 - É admissível recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, de qualquer decisão proferida contra jurisprudência por ele fixada, a interpor no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida, sendo correspondentemente aplicáveis as disposições do presente capítulo.

2 - O recurso pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.

3 - O Supremo Tribunal de Justiça pode limitar-se a aplicar a jurisprudência fixada, apenas devendo proceder ao seu reexame se entender que está ultrapassada.»

Verifica-se assim que, por um lado, no nº 1, a lei fala em “recurso direto”. Mas, ao mesmo tempo, fala em “trânsito em julgado da decisão recorrida”.

Ora, perante estas duas exigências é de concluir que o recorrente não tem, verdadeiramente, a possibilidade de optar entre o recurso ordinário (para a Relação) e o recurso extraordinário. Na verdade, se o recorrente ainda estiver em tempo de interpor recurso ordinário, a decisão ainda não terá transitado em julgado e, portanto, não poderá optar pelo recurso extraordinário.

Em face disto e como bem explica o acórdão do STJ, de 06-07-2011, processo nº 4044/09.9 TAMTS.S1 (relator Cons. Souto de Moura)

«Mas então, das duas uma: ou se considera inadmissível o recurso extraordinário em foco se, apesar de ter transitado a decisão recorrida, o recorrente não esgotou todos os recursos ordinários, quando a seu tempo o poderia ter feito (…) ou se admite sempre o recurso extraordinário, diretamente para o S T J, por omissão de interposição atempada de recurso ordinário, se a decisão recorrida já tiver transitado.

“Na primeira hipótese, a expressão introduzida pela Lei 48/2007 de 29 de Agosto, “É admissível recurso direto para o Supremo Tribunal de Justiça” ficaria sem o mínimo conteúdo útil, pelo que tem que ser rejeitada.

“A segunda via padece do inconveniente de se estar a sancionar a incúria do recorrente (para já não falar de uma opção deliberada), que deixou passar os 20 dias de que dispunha para interpor o recurso ordinário, e interpôs o recurso extraordinário nos 30 dias seguintes, perdendo-se a oportunidade da instância de recurso ordinário rever a decisão proferida contra a jurisprudência fixada. A esta objeção haverá que responder que o legislador pretendeu que, apesar de tudo, não subsistisse no comércio jurídico uma decisão contra a jurisprudência fixada, secundarizando o comportamento do recorrente, em face do interesse geral da uniformização da jurisprudência, e da segurança do direito, portanto.

“Por isso é que já no acórdão de 13/11/2011 que relatámos (Pº 1304/08-5ª Secção), se disse sobre a expressão “recurso directo” que a mesma “só pode ter por conteúdo útil esclarecer que o trânsito em julgado da decisão recorrida não implica que se tenham que ter esgotado todos os graus de recurso ordinário dessa decisão. Assim sendo, a nova redacção da norma assume um carácter interpretativo do mesmo preceito, tal como ele se apresentava na anterior redacção. Ou seja, tendo em conta o disposto no nº 1 do artº 13º do C.C., e sabido que não resultava directa e inequivocamente da anterior redacção, que as decisões de 1ª instância deviam ser excluídas deste tipo de recurso, a tal se tendo chegado por via interpretativa, então, ao ter que se aplicar o nº 1 do artº 446º do C.P.P. na anterior redacção, mas depois da entrada em vigor da Lei 48/2007 de 29 de Agosto, encarar-se-á a nova redacção do preceito como interpretação autêntica da anterior”.

“Na doutrina, a introdução da expressão “recurso directo” para o STJ foi encarada como a desnecessidade de se esgotarem os recursos ordinários para que se pudesse lançar mão deste tipo de recurso extraordinário (assim Manuel Simas Santos e Manuel Leal Henriques in “Recursos em Processo Penal”, pág. 196, ou, os mesmos e João Simas Santos, in “Noções de Processo Penal” pag. 544). A intervenção do Pleno das Secções Criminais do STJ, exigida para apreciar o recurso em foco, foi também reservada, por outros autores, só para as situações em que a decisão não era recorrível pelos meios ordinários por já não o admitir, ou por se terem esgotado os recursos ordinários admissíveis (assim Maia Gonçalves in “Código de Processo Penal” pág. 1048 ou Paulo P. Albuquerque in “Comentário do Código de Processo Penal” pág. 1192).

“A justificação para o recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada, ou seja, a uniformização da jurisprudência (ou ainda a actualização da jurisprudência já fixada), só cobra verdadeira razão de ser quando já não é possível corrigir, através de recurso ordinário, a jurisprudência que se desviou da que se declarou, nos termos do Código, obrigatória. Mas enquanto essa correcção puder ter lugar, não fará nenhum sentido banalizar a intervenção de um órgão com as características do Pleno das Secções Criminais do S T J.

“Diz-nos Manuel Simas Santos e Leal Henriques:

“(…) a redacção dada ao nº 1 do art. 446º, pela revisão de 2007, vem prescrever, diversamente, que “é admissível recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, de qualquer decisão proferida contra jurisprudência por ele fixada”, donde que não seja obrigatório o esgotamento prévio dos recursos ordinários.

“Não significa isso, no entanto, que não possam, e a nosso ver devam, ser interpostos previamente aqueles recursos, designadamente pelo Ministério Público (…) Na verdade, quando o legislador da revisão de 2007 quis que o recurso directo fosse obrigatório, disse-o expressamente, como é o caso do nº 2 do artº 432º, o que não acontece com o artº 446º” (in “Recursos…” pág. 196).

“O recurso poderá ser directo para o S T J, não tanto porque esteja na mão do recorrente optar entre o recurso ordinário da decisão, ou o recurso extraordinário para o S T J, mas porque se configuram situações em que a decisão já não é “recorrível pelos meios ordinários” (cf. P. P. Albuquerque loc. cit.).

“Tratando-se de um recurso extraordinário, em nosso entendimento não pode ser interposto se for admissível recurso ordinário” (cf. Maia Gonçalves in “Código de Processo Penal Anotado” pág. 1048).

“Ou seja, segundo estes autores, a posição correcta será sempre a de esgotar os recursos ordinários. Mas no caso de tal não ter tido lugar e se ter deixado transitar em julgado a decisão de primeira instância, então subsistirá sempre, desde que tempestivo, o recurso extraordinário, directo para o S T J e obrigatório para o Mº Pº.

“A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem sufragado o ponto de vista apontado: “(…) o recurso deste teor cobra enquadramento ao nível dos recursos extraordinários, de adoptar, por definição, quando o jogo dos recursos normais já não funciona, ou seja, quando o lançar mão do expediente normal de impugnação enfrenta o trânsito do julgado” (cf. Ac. de 2/4/2008, Pº 408/08-3ª Secção. Em consonância, v. g. Ac.s de 16/1/2008, Pº 4270/07-3ª Secção, de 12/3/2009, Pº 478/09-3ª Secção, de 12/11/2009, Pº 1133/08.0PAVNF.S1, ainda da 3ª Secção, ou a nossa decisão sumária de 25/1/2011, Pº 224/09.5 ECLSB.L1.S1, da 5ª Secção, para além do atrás referido).» (realce nosso)

No caso vertente, o MºPº, da decisão do TEP ......, interpôs o presente recurso extraordinário de decisão contra jurisprudência fixada. Não interpôs recurso ordinário para o Tribunal da Relação.

E interpôs o presente recurso extraordinário depois de ter transitado em julgado a decisão do Tribunal Constitucional.

Ora, nos termos do artº 75º nº 1 da Lei do Tribunal Constitucional, “o prazo de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional é de 10 dias e interrompe os prazos para a interposição de outros que porventura caibam da decisão, os quais só podem ser interpostos depois de cessada a interrupção.”

E a interrupção do prazo implica que, após o termo, seja recomeçada a contagem de um novo prazo desde o início.

Daí que, tendo o MºP sido notificado da decisão do TEP (de 28.01.2020), no dia 05.02.2020, tendo interposto recurso para o Tribunal Constitucional no mesmo dia, nesta data interrompeu-se o prazo para interposição de recurso ordinário.

Só no dia 10.09.2020, com o trânsito em julgado da decisão do Tribunal Constitucional, é que recomeçou a contagem do novo prazo para interposição de recurso ordinário. 

Nessa medida, os 30 dias após a notificação da decisão do TEP ocorreriam em 10.10.2020.

Consequentemente, uma vez que o prazo para interposição de recurso é de 30 dias e conta-se a partir da notificação da decisão (artº 411º nº 1 do CPP), o presente recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada, interposto em 06.10.2020, é extemporâneo.

Na verdade, em 06.10.2020, não se havia ainda esgotado o prazo para interposição do recurso ordinário.

Contudo, uma vez que o presente recurso foi interposto antes do trânsito em julgado da decisão do TEP, entende-se que o tal “jogo dos recursos normais” ainda pode funcionar. Ou seja, pode-se ainda “lançar mão do expediente normal de impugnação” convolando-se o presente recurso em recurso para o Tribunal da Relação, ao abrigo do princípio do aproveitamento dos atos processuais. (neste sentido, vd Acórdãos do STJ de 08.01.2015, processo nº 1039/10.3 IDLSB.L1.S1, 3ª secção; de 30.10.2019, processo nº 2882/16.5 TDLSB.L1-A.S1).


   III. Realizado exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre decidir, em conferência.


  E o primeiro ponto a resolver prende-se, naturalmente, com a questão prévia suscitada pela Exmª Procuradora-Geral Adjunta – inadmissibilidade do recurso, por intempestividade do mesmo.

    A factualidade relevante, para a resolução desta questão, é a seguinte:           

  a) Por decisão do Tribunal de Execução de Penas ........, de 28.01.2020, notificada ao MºPº em 5/2/2020, foi decidido que “o meio das penas em cumprimento ocorrerá em 12/04/2021, os 2/3 em 22/09/2022, os 5/6 em 13/06/2024 (...) verificando-se o fim das penas em 13/08/2025”.

 b) O arguido encontra-se condenado na pena de 7 anos de prisão, pela prática “de crimes de detenção de arma proibida, furto qualificado, resistência e coacção sobre funcionário, ofensa à integridade física, furto qualificado, ameaça, dano, furto de uso de veículo e condução sem habilitação legal”.

  c) Na sequência do trânsito em julgado da decisão de revogação da liberdade condicional, “o condenado tem agora para cumprir um remanescente de um ano, oito meses e um dia”.

 d) No mesmo dia em que foi notificado dessa decisão (5/2/2020), o Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional que, por decisão sumária proferida em 14/8/2020 e transitada em 10/9/2020, não conheceu do objeto de recurso interposto, considerando que a admissibilidade do recurso está dependente da prévia instauração do recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada, nos termos do art. 446.º, do CPP.

 e) E o Magistrado do MºPº junto do TEP ....... instaurou, então – em 6/10/2020 – este recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada.


   Posto isto:

  É inquestionável que no momento em que o MºPº interpôs o recurso ora em apreciação, ainda não se mostrava transitada a decisão proferida pelo TEP ..........:

- o MºPº, no próprio dia em que dela foi notificado (5/2/2020) recorreu para o TC;

- nos termos do artº 75º nº 1 da Lei do Tribunal Constitucional, “o prazo de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional é de 10 dias e interrompe os prazos para a interposição de outros que porventura caibam da decisão, os quais só podem ser interpostos depois de cessada a interrupção”;

- no dia 10.09.2020, com o trânsito em julgado da decisão do Tribunal Constitucional, recomeçou a contagem do novo prazo para interposição de recurso ordinário; 

- assim, os 30 dias para a interposição do recurso da decisão do TEP ocorreriam em 10.10.2020;

- contudo, este recurso foi interposto em 6/10/2020.

  Por outras palavras: em 06.10.2020, não se havia ainda esgotado o prazo para interposição do recurso ordinário.

    Como se assinala no douto parecer do MºPº, questões idênticas à dos presentes autos foram já objecto de apreciação e decisão nos recentes Acs. deste STJ de 12/11/2020, proferidos nos Procs. 3150/10.1TCPRT-R.S1 e 1283/11.6TXPRT-O.S1, ambos relatados pela Cons. Helena Moniz.

   Refere-se no primeiro desses acórdãos:

«Ponto é saber se o recurso contra jurisprudência fixada pode ser interposto antes de esgotados os recursos ordinários e antes de transitada em julgado a decisão.

(…)

E apesar, de o art. 242.º, n.º 4, do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade (CEPMPL), determinar que o recurso deve ser interposto no prazo de 30 dias após a “prolação da decisão”, deve considerar-se que este apenas se refere aos recursos interpostos nos termos do art. 242.º, n.º 1, al. b), do CEPMPL. Isto porque, por força do disposto no art. 244.º, do CEPMPL, as regras relativas, nomeadamente, à interposição desta espécie de recurso devem seguir o disposto no art. 446.º, do CPP, ou seja, apenas deverá ser interposto recurso contra jurisprudência fixada quando a decisão recorrida já tenha transitado em julgado e após o seu trânsito (no prazo de 30 dias).

Aliás, como é jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, um recurso contra jurisprudência fixada não pode ser interposto quando a decisão recorrida ainda possa ser modificada em sede de recurso ordinário. Na verdade, tendo havido interrupção dos prazos aquando da interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, ainda poderia o Ministério Público ter interposto recurso ordinário dando assim possibilidade às instâncias de rever a decisão recorrida. Como se afirmou no acórdão deste Supremo Tribunal, de 06.07.2011, a “justificação para o recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada (...) só cobra verdadeira razão de ser quando já não é possível corrigir, através de recurso ordinário, a jurisprudência que se desviou da que se declarou, nos termos do Código, obrigatória.” E prossegue:

“(…) a redacção dada ao nº 1 do art. 446º, pela revisão de 2007, vem prescrever, diversamente, que “é admissível recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, de qualquer decisão proferida contra jurisprudência põe ele fixada”, donde que não seja obrigatório o esgotamento prévio dos recursos ordinários.

Não significa isso, no entanto, que não possam, e a nosso ver devam, ser interpostos previamente aqueles recursos, designadamente pelo Ministério Público (…) Na verdade, quando o legislador da revisão de 2007 quis que o recurso directo fosse obrigatório, disse-o expressamente, como é o caso do nº 2 do artº 432º, o que não acontece com o artº 446º” (in “Recursos…” pág. 196).

O recurso poderá ser directo para o S T J, não tanto porque esteja na mão do recorrente optar entre o recurso ordinário da decisão, ou o recurso extraordinário para o S T J, mas porque se configuram situações em que a decisão já não é “recorrível pelos meios ordinários” (cf. P. P. Albuquerque loc. cit.).

“Tratando-se de um recurso extraordinário, em nosso entendimento não pode ser interposto se for admissível recurso ordinário” (cf. Maia Gonçalves in “Código de Processo Penal Anotado” pág. 1048).       

Ou seja, segundo estes autores, a posição correcta será sempre a de esgotar os recursos ordinários. Mas no caso de tal não ter tido lugar e se ter deixado transitar em julgado a decisão de primeira instância, então subsistirá sempre, desde que tempestivo, o recurso extraordinário, directo para o S T J e obrigatório para o Mº Pº.

A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem sufragado o ponto de vista apontado: “(…) o recurso deste teor cobra enquadramento ao nível dos recursos extraordinários, de adoptar, por definição, quando o jogo dos recursos normais já não funciona, ou seja, quando o lançar mão do expediente normal de impugnação enfrenta o trânsito do julgado” (cf. Ac. de 2/4/2008, Pº 408/08-3ª Secção. Em consonância, v. g. Ac.s de 16/1/2008, Pº 4270/07-3ª Secção, de 12/3/2009, Pº 478/09-3ª Secção, de 12/11/2009, Pº 1133/08.0PAVNF.S1, ainda da 3ª Secção, ou a nossa decisão sumária de 25/1/2011, Pº 224/09.5 ECLSB.L1.S1, da 5ª Secção, para além do atrás referido). “

Ora, no caso dos presentes autos ainda era admissível recurso ordinário, dado que os prazos para a sua interposição recomeçaram após o trânsito em julgado da decisão do Tribunal Constitucional (a 09.07.2020). E tendo recomeçado quando o recurso (aqui em análise) foi interposto, não tinha ainda a decisão transitado em julgado, devendo apenas recorrer-se a um recurso especial como o de contra jurisprudência fixada apenas somente estando esgotadas as possibilidades de recurso ordinário, isto é, as possibilidades de as instâncias poderem (ou não) alterar a decisão recorrida.

(…)

Assim, ainda que o recurso tenha sido interposto extemporaneamente, porque deveriam ter sido esgotados os recursos ordinários, deverão os autos ser convertidos em recurso ordinário, ao abrigo do princípio do aproveitamento dos atos processuais.

Termos em que, pelo exposto, acordam os juízes da secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça em não admitir o recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal, e em decidir convolar o recurso interposto em recurso ordinário para o Tribunal da Relação de Coimbra, para onde os autos serão enviados oportunamente».

  Trata-se de entendimento que sufragamos e que está, aliás, em consonância com a jurisprudência constante deste Supremo Tribunal de Justiça.

   Na realidade, também no Ac. STJ de 12/11/2009, Proc. 1133/08.0PAVNF.S1, se entendeu de forma semelhante, embora concluindo pela rejeição do recurso:

“IV - Acresce que a interposição do recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo STJ está sujeita a um prazo, diferente e dissociado do prazo estabelecido para a interposição dos recursos normais.

V - Quanto a esse prazo (de interposição de recurso), já se entendia que o mesmo era de 30 dias a contar da data do trânsito em julgado da decisão recorrida; porém, a redacção dada ao n.º 1 do art. 446.º do CPP pela Lei n.º 48/2007, de 29-08, veio dissipar qualquer dúvida, ficando agora claro que o prazo de interposição deste recurso é de 30 dias contados do trânsito em julgado da decisão.

VI - No caso concreto, a decisão recorrida foi notificada ao MP em 20-01-09 e, em 21-01-09, o MP interpôs recurso da mesma para o TC, que, por decisão sumária, proferida em 22-04-09, decidiu não tomar conhecimento do objecto desse recurso. Essa decisão sumária transitou em julgado em 11-05-09 e o processo foi remetido ao MP do tribunal de origem em 12-05-09. Na sequência, o MP interpôs o presente recurso para este STJ em 15-05-09. Por isso, nessa data – 15-05-09 – a decisão recorrida ainda não tinha transitado em julgado, uma vez que nos termos do disposto no art. 75.º, n.º 1, da LOFTC (Lei 28/82, de 15-11), o prazo de interposição de recurso para o TC interrompe os prazos para a interposição de outros que porventura caibam da decisão, os quais só podem ser interpostos depois de cessada a interrupção.

VII - Daqui decorre que à data da interposição do presente recurso extraordinário a decisão recorrida era ainda passível de recurso ordinário, pelo que o recurso é claramente intempestivo, pois que foi interposto antes do tempo legalmente estabelecido, motivo que justifica a sua rejeição – cf. arts. 441.º, n.º 1, e 446.º, n.º 1, ambos do CPP».

  Também no Ac. STJ de 18/5/2006, rel. Cons. Sousa Fonte, se considerou: «I - O recurso interposto de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo STJ - obrigatório para o MP - só tem natureza de extraordinário quando a decisão impugnada não admita (ou já não admita) recurso ordinário, ou seja, depois do trânsito em julgado da decisão visada».

  E no Ac. STJ de 21/6/2007, rel. Cons. Simas Santos:

«Tem sido jurisprudência uniforme e constante deste Supremo Tribunal de Justiça que da decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo STJ, só é admissível a interposição do recurso extraordinário previsto no art. 446.º do CPP, quando não seja já susceptível de recurso ordinário, como se pode ver, por todos, do Ac. de 13.12.01 (Acs STJ IX, 3, 235, com o mesmo Relator).

Assim, só esgotados os recursos ordinários, se for o caso, pode ser interposto recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência obrigatória nos termos do invocado art. 446.º: "sendo o recurso sempre admissível" (n.º 1, parte final).

Como se escreveu naquele aresto de 13.12.01, só se justifica o recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo STJ, regulado nos art.ºs 446.º e 448.º do CPP, quando a decisão já não é susceptível de recurso ordinário.

O recurso obrigatório para o Ministério Público, previsto no art. 446.º do CPP, visa garantir o controle do respeito pela jurisprudência fixada, por via do reexame pelos Tribunais Superiores, pois que, com revogação do carácter obrigatório daquela jurisprudência, não se pretendeu desautorizar o STJ na sua função uniformizadora da aplicação da lei, mas sim aumentar a margem de iniciativa dos tribunais de instância, no provocar seu eventual reexame.

Nesta lógica de controlar a aplicação da jurisprudência fixada pelos Tribunais Superiores, através do recurso, não faz sentido o recurso directo da 1.ª instância para o Supremo Tribunal de Justiça, antes de esgotada a possibilidade da 2.ª instância repor o "respeito" pela jurisprudência fixada pelo STJ.

(…)

Como se disse, o presente recurso foi interposto no prazo de interposição dos recursos ordinários, pelo que, na óptica deste Supremo Tribunal de Justiça que acima se referenciou, pode e deve ser conhecido na Relação de Lisboa, com vista ao esgotamento dos recursos ordinários que abra caminho, então sim, ao recurso extraordinário do art. 446.º, se aquele Tribunal Superior vier a confirmar a decisão aqui recorrida.

Pelo exposto, acordam os Juízes da (5.ª) Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em ordenar a remessa do presente processo à Relação de Lisboa para aí ser conhecido como recurso ordinário».


 Sendo este, também, o nosso entendimento, resta concluir dizendo:

1. O recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada apenas pode ser interposto após o trânsito em julgado da mesma.

  2. O recurso interposto para o Tribunal Constitucional interrompe os prazos para a interposição de outros que porventura caibam da decisão, os quais só podem ser interpostos depois de cessada a interrupção.

  3. Interposto recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada ao abrigo do artº 446º do CPP antes de transitada a mesma, deve o recurso ser remetido ao Tribunal da Relação competente.


  IV. São termos em que, sem necessidade de mais considerações, acordam os Juízes deste Tribunal em rejeitar o recurso, porque inadmissível, convolando-o em recurso ordinário para o Tribunal da Relação ....., para onde os autos serão enviados oportunamente.

     Sem custas.

      Lisboa, 27 de Janeiro de 2021 (processado e revisto pelo relator – artº 94º, nº 2 do CPP)


Sénio Alves (Juiz relator)

Atesto o voto de conformidade do Exmº Sr. Juiz Conselheiro Manuel Matos – artº 15º do DL 10-A/2020, de 13/3.