Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
96A697
Nº Convencional: JSTJ00031315
Relator: MARTINS DA COSTA
Descritores: SUSPENSÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL
PROCEDIMENTOS CAUTELARES
DELIBERAÇÃO SOCIAL
INEXISTÊNCIA JURÍDICA
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
RENOVAÇÃO DO NEGÓCIO
SOCIEDADE POR QUOTAS
SÓCIO GERENTE
DESTITUIÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: SJ199612040006971
Data do Acordão: 12/04/1996
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N462 ANO1997 PAG441
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 1180/95
Data: 02/05/1996
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: A REIS IN CPC ANOTADO VOLI PAG678 VOLV PAG114. R VENTURA IN SOC POR QUOTAS VOLII PAG247 VOLIII PAG116. V SERRA IN RLJ ANO110 PAG371.
Área Temática: DIR COM - SOC COMERCIAIS. DIR PROC CIV - PROCED CAUT / RECURSOS.
Legislação Nacional: CPC67 ARTIGO 2 ARTIGO 396 ARTIGO 397 N3 ARTIGO 399 ARTIGO 722 N2 ARTIGO 762.
CSC86 ARTIGO 58 N1 C N4 A ARTIGO 62 N2 ARTIGO 191 N7 ARTIGO 257 N1 N5 N7.
Sumário : I - Os procedimentos cautelares destinam-se, em geral, a acautelar o efeito útil da acção, impedir que, na pendência, a situação de facto se altere, de modo a tornar-se ineficaz uma sentença porventura favorável.
II - O pedido de suspensão de uma deliberação social pressupõe a existência dela. Não faz sentido fundamentar-se o requerente na inexistência jurídica da deliberação.
III - Deliberação inexistente é aquela a que falte o mínimo dos requisitos essenciais ou a que, nem na aparência, é adequada a vincular a sociedade.
IV - Uma deliberação social pode ser simplesmente renovatória ou interpretativa de outra.
V - Nas sociedades por quotas apenas com dois sócios, a destituição de um deles da gerência pode ser objecto de deliberação social, se não for invocada justa causa, tendo então o destituido direito a indemnização.
Decisão Texto Integral: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça:
I - A requereu, contra "B, Lda., a providência cautelar de suspensão de deliberação social tomada na assembleia geral de 21 de Abril de 1995 e a intimação da requerida para reconhecer que ele se mantém no pleno gozo de todos os direitos de sócio-gerente, bem como para o reintegrar em todos os seus poderes de gerente, designadamente em determinados poderes.
Houve contestação e, produzida a prova oferecida, decretou-se a providência.
Em recurso de agravo, o acórdão da Relação, de fls. 319 e seguintes, revogou a decisão e indeferiu a providência.
No presente recurso de agravo, o requerente da providência pretende a revogação daquele acórdão com base, em resumo, nas seguintes conclusões:
- no caso de deliberações materialmente inexistentes, a sua execução consubstancia dano apreciável, por violar a confiança na justiça que todos os cidadãos devem ter;
- a própria lei processual apenas faculta mas não impõe a não decretação da providência no caso de o dano resultante da suspensão ser superior ao da execução;
- mesmo que assim se não entenda, os autos contêm elementos suficientes para avaliação dos danos sofridos pelo recorrente e para se concluir pelo seu prejuízo apreciável; sem necessidade da sua enumeração específica na matéria dada como provada;
- tais danos desdobram-se na gravidade da falta de remuneração no orçamento familiar, na impossibilidade de controlo da vida da empresa e nos graves danos morais;
- alguns destes aspectos encontram-se admitidos por acordo ou confessados, outros são notórios e outros encontram a sua fundamentação na vasta documentação do apenso e da acção principal, a que o tribunal atendeu, como se refere na decisão da 1. instância;
- na assembleia geral de 30 de Março de 1995, não foi tomada qualquer deliberação de destituição do recorrente nem tal foi discutido ou podia sê-lo, por não constar da ordem de trabalhos;
- uma deliberação que não existiu não pode ser rectificada, aclarada ou renovada;
- a deliberação de 21 de Abril de 1995 é pois absolutamente inócua, carecendo de qualquer sentido a pretensão de que, através dela, se destituiu o requerente da gerência da sociedade;
- porque não existiu nenhuma deliberação que o destituísse da gerência, deve, sem mais, ser decretada a providência requerida, independentemente da indagação dos prejuízos decorrentes da sua execução;
- foi violado o disposto nos artigos 396, 397 e 659 n. 3 do Cód.P.Civil.
A recorrida, por sua vez, sustenta ser de negar provimento ao recurso.
II - Factos dados como provados:
O requerente é sócio da requerida, "B, Lda., que se dedica ao comércio, por grosso, de géneros alimentícios, bebidas, cosmética, higiene e limpeza, artigos escolares, lacticínios e congelados.
A sociedade tem um capital de 30000000 escudos que se encontrava dividido em duas quotas de 12000000 escudos e 18000000 escudos pertencentes, pela ordem indicada, ao requerente e ao sócio C, com o esclarecimento de que, por escritura, de 14 de Março de 1995, o sócio C dividiu a sua quota de 18000000 escudos, que detinha na requerida, em três quotas, uma de 16000000 escudos que reservou para si e duas de 1000000 escudos que doou a cada um dos seus filhos, D e E.
- Com data de 4 de Abril de 1995, foi o requerente convocado para uma assembleia geral da sociedade requerida, que se realizou no dia 21 de Abril de 1995, conforme convocatória de fls. 55 e acta de fls. 40 e ss..
- Nessa assembleia veio a deliberar-se o seguinte: - Que na assembleia geral de trinta de Março ao serem nomeados gerentes C e D se quis destituir da gerência A, com efeitos a partir dessa data e, como tal, deve ser promovido o registo de designação de gerentes apenas em relação a esses dois sócios e o registo de cessação de funções ou de destituição de gerente do sócio A.
- Nessa assembleia geral participaram, além do requerente e do sócio C, os filhos deste, D e E, que se arrogaram da qualidade de sócios.
- Até 13 de Julho de 1995, ninguém comunicou qualquer cessão de quotas ao requerente.
- A cláusula 5. do pacto social dispõe: - "cessão total, ou parcial, de quotas, bem como as consequentes divisões, são livres entre sócios; porém, a favor de estranhos, os sócios terão sempre o direito de preferência".
- Não constava da ordem de trabalhos da convocatória e actas juntas a fls. 64, 65 e seguintes qualquer proposta de deliberação para destituição da gerência relativamente ao requerente.
Da referida "convocatória de fls. 55", aqui junta a fls. 145, consta, como "ordem de trabalhos": "1. - deliberação sobre o significado e alcance da deliberação tomada quanto ao 3. ponto da ordem de trabalhos da assembleia geral de 30 de Março de 1995 e no sentido de destituição de gerente do sócio A; 2. - deliberar sobre a propositura de acção para exclusão judicial de sócio do sócio A ...".
Da convocatória de "fls. 64", agora junta a fls. 154, consta, como n. 3 da ordem de trabalhos, "nomeação de gerentes e fixação da remuneração dos gerentes".
Da acta de "fls. 65 e seguintes", agora junta a fls. 164 e seguintes, consta que votaram a favor daquele ponto 3. os sócios C e D e, contra, o sócio A.
III - Quanto ao mérito do recurso:
1. - Considerações gerais:
Os procedimentos cautelares destinam-se, em geral, a "acautelar o efeito útil da acção" (artigo 2 do Cód. P. Civil), ou seja, a "impedir que, durante a pendência de qualquer acção ..., a situação de facto se altere de modo a que a sentença nela proferida, sendo favorável, perca toda a sua eficácia ou parte dela", pretendendo-se assim prevenir os perigos da normal demora do julgamento da acção (A. Varela e outros, no Manual Proc. Civil, p.22).
A providência de suspensão de deliberações sociais tem como requisitos específicos haver "deliberações contrárias à lei, aos estatutos ou ao contrato" e mostrar ao sócio requerente que a sua execução "pode causar dano apreciável" (artigo 396, n. 1 do citado Código).
A respectiva decisão baseia-se em prova sumária (artigo 397, n. 3 do cit. Código), determinada pela estrutura simplificada do procedimento e pela natureza provisória da medida, em ordem a obter-se uma resolução em curto prazo, pelo que não é de exigir aqui, mesmo quanto ao dano, uma prova completa, bastando a existência de sérios indícios ou de "uma probabilidade muito forte" (A. Reis, no Cód. Anot., I, p.678).
Na decisão da 1. instância, decretou-se a providência por ter havido fraude à lei, pelo sócio C, o qual, com a divisão da sua quota e doação de duas quotas aos filhos, "mais não terá ... pretendido do que contornar a disposição legal do artigo 191, n. 7 do C.S.C." (quereria referir-se ao artigo 257, n. 5 do mesmo Código, segundo o qual, nas sociedades por quotas com apenas dois sócios, "a destituição da gerência com fundamento em justa causa só pelo tribunal pode ser decidida em acção intentada pelo outro"), e por "inexistência de factos concretos de onde se possa extrair a existência de justa causa", não se tendo feito qualquer referência ao "dano apreciável".
O acórdão recorrido, por sua vez, revogou aquela decisão e julgou improcedente a providência por falta de prova de danos para o requerente ou para a sociedade e, mesmo que eles existissem, da "sua medida e extensão".
O recorrente suscita, no essencial, duas questões: a inexistência de deliberação de destituição da gerência, pelo confronto entre as deliberações de 21 de Abril de 1995 e 30 de Março de 1995, hipótese em que não seria exigível o dano, como requisito autónomo; e, a não se entender assim, haver elementos de facto para se concluir pela integração desse requisito.
2. - Inexistência de deliberação:
A deliberação social é o acto da sociedade pelo qual, através dos seus órgãos competentes, ela exprime uma declaração de vontade destinada à produção de certos efeitos jurídicos.
A figura da "deliberação inexistente" não está prevista na lei, de certo por não ser susceptível de produzir qualquer efeito, e tem sido considerada na doutrina como aquela em que "falte absolutamente" algum dos seus "elementos essenciais especifícos" (entre outros, Raúl Ventura, nas "Sociedades por Quotas", II, p.247), ou, tal como se verifica em relação à sentença, "o acto que não reúne o mínimo de requisitos essenciais para que possa ter a eficácia jurídica própria" de uma deliberação (A. Reis, no Cód. Anot., V, p.114).
Em resumo, dir-se-á que não existe deliberação social quando um certo acto não seja adequado, nem sequer na sua aparência material, a vincular a sociedade pelos efeitos jurídicos por ele visados.
Na deliberação em causa, de 21 de Abril de 1995, ocorreram todos os requisitos formais de uma deliberação social: convocatória dos sócios, reunião destes, discussão, votação sobre os pontos da ordem de trabalhos e elaboração da acta. E tal deliberação tem o sentido expresso e inequívoco de que se "quis destituir da gerência A ..." pois, apesar de o objectivo, definido na convocatória, ter sido o de determinar "o significado e alcance" da deliberação de 30 de Março de 1995, "no sentido de destituição de gerente do sócio A ...", não deixou aí a sociedade de formular, de modo directo, a vontade de proceder à destituição desse sócio da sua gerência.
De-resto, sendo lícita a renovação de uma deliberação anulável, como meio de cessação da sua anulabilidade (artigo 62, n. 2 do C.S.C.), não pode deixar de ser permitida também uma deliberação destinada à fixação do sentido de uma outra anterior e, no caso de esta enfermar de algum vício que a tornasse anulável, a ser entendida com o alcance agora visado, à remoção desse vício. Ou seja, uma deliberação social pode ser, ao mesmo tempo, interpretativa e renovatória de uma outra.
Não ocorre pois o vício de inexistência de deliberação de destituição da gerência do sócio A, a qual foi tomada, pelo menos, na assembleia geral de 21 de Abril de 1995.
Aliás, a tratar-se de deliberação inexistente, o procedimento adequado não seria a suspensão da execução, prevista no citado artigo 396, a qual pressupõe ter sido tomada uma efectiva deliberação, mas a providência cautelar não especificada, prevista no artigo 399 do Cód.
P.Civil, como meio de reacção contra a lesão resultante de destituição da gerência não deliberada e antes imposta como simples situação de facto (cfr. Vaz Serra, na Rev. Leg. J., 110, p. 371).
3. - Requisitos da providência:
Um desses requisitos é o ter sido tomada deliberação contrária à lei ou ao pacto social.
A deliberação social de 30 de Março de 1995, com o sentido que lhe veio a ser dado de destituição do requerente da gerência da sociedade, seria anulável, por falta de menção desse assunto no aviso convocatório (artigo 58 ns. 1 alínea c) e 4 alínea a) do C.S.C.), mas isso já se não verifica quanto à deliberação em causa, de 21 de Abril de 1995, a qual tem a natureza de deliberação interpretativa e renovatória, uma vez que, na sua convocação, se faz expressa referência àquela destituição.
Por outro lado, mesmo a entender-se que a sociedade tinha apenas dois sócios, por irrelevância da divisão da quota do sócio C e da cessão de quotas por ele feita aos filhos, em consequência de falta da respectiva comunicação ao requerente, ou que teria havido com isso propósito fraudulento, como se considerou na 1. instância, aquela deliberação poderia ser tomada só com o voto favorável desse sócio, que era titular de quota correspondente à maioria do capital social.
Na verdade, do confronto entre os ns. 1, 5 e 7 do artigo 257 do C.S.C. resulta que, mesmo nas sociedades com apenas dois sócios, a destituição da gerência pode ser deliberada, em princípio, por maioria simples; só na hipótese de invocação de justa causa é que se mostra necessário o recurso a acção judicial; e, se a destituição tiver lugar por deliberação, não pode ser invocada justa causa e o gerente tem direito a indemnização (cfr. Raúl Ventura, na obra cit., III, p.116).
A deliberação questionada não pode pois ter-se como anulável, por não ser contrária à lei ou ao pacto social, pelo que se não verifica um dos requisitos essenciais da providência requerida.
Apesar de desnecessário, nota-se ainda que faltaria também o requisito do "dano apreciável" derivado da execução da deliberação.
Terá porventura havido aqui uma certa omissão da decisão da 1. instância, ao descrever os factos provados e ao reportar-se "à vasta documentação ...", sem a especificar, uma vez que, não se tendo feito aí referência àquele dano, se terá partido do pressuposto de ele não ser necessário.
De qualquer modo, trata-se de matéria excluída da competência deste tribunal (artigos 722, n. 2 e 762 do Cód. P. Civil) e o juízo sobre a existência ou a gravidade do dano, assente nos factos provados, reconduz-se também a matéria de facto (cfr. A.Reis, no Cód. Anot., I, p.678).
Em conclusão:
A deliberação social inexistente é o acto a que falte o mínimo dos requisitos essenciais para que possa ter a eficácia jurídica própria de uma deliberação ou que não seja adequado, nem sequer na sua aparência material, a vincular a sociedade.
Uma deliberação social pode ser, ao mesmo tempo, interpretativa e renovatória de uma outra (artigo 62, n. 2 do C.S.C.).
Nas sociedades por quotas apenas com dois sócios, a destituição de um deles da gerência pode ser objecto de deliberação social, se não for invocada justa causa, tendo então esse sócio direito a indemnização (artigo 257 do cit. Código).
Pelo exposto:
Nega-se provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 4 de Dezembro de 1996.
Martins da Costa.
Pais de Sousa.
Machado Soares.