Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3056/06.9TBVFR.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: POSSE
PRESUNÇÃO IURIS TANTUM
CORPUS
AQUISIÇÃO
PRÉDIO RÚSTICO
FRUTOS
BENFEITORIAS
LEVANTAMENTO DE BENFEITORIAS
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 11/23/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário : I - A posse é um poder de facto sobre a coisa, juridicamente relevante, quando falham os mecanismos normais da ordenação dominial definitiva dos bens, ou seja, um vínculo de ordenação dominial provisória dos bens não ordenados, a fim de evitar que se criem situações de dúvida sobre a existência, espécie e títulos de domínio.
II - A posse é ainda um direito real provisório, porquanto os seus efeitos são independentes da circunstância de se saber quem é o titular do direito real sobre a coisa que está na esfera do possuidor.
III - A presunção da posse, em caso de dúvida, naquele que exerce o poder de facto, para além de um sinal, é um bem que garante o interesse objectivo da paz pública, mais do que o interesse subjectivo do possuidor.
IV - O corpus não exige um permanente e contínuo contacto físico com a coisa, bastando que esta esteja, virtualmente, no âmbito do poder de facto do possuidor ou que este dela retire as vantagens económicas correspondentes, designadamente, a recolha dos frutos, mas já não se limita a um contacto fugaz ou passageiro com a mesma, sendo necessária uma ligação estável, de modo que, durante todo esse período, se tenham praticado actos respeitantes ao direito de propriedade, qualquer que seja a intensidade do aproveitamento efectuado mediante tais actos.
V - Sempre que alguém cultiva um prédio rústico e colhe os seus frutos pratica actos suficientes para adquirir a posse dele, procedendo como o verdadeiro proprietário, porquanto esses actos traduzem o exercício do direito real correspondente.
VI - O direito à indemnização por benfeitorias exige, como pressuposto indispensável, que aquele que a reclama tenha uma posse, em nome próprio, sobre o respectivo prédio ou parte dele, que cede perante o direito sobre a coisa, maxime, o do proprietário.
VII - O não levantamento das benfeitorias úteis devido ao detrimento da coisa, pressuposto do direito de indemnização correspondente e contrapartida da obrigação de entrega da coisa, refere-se não ao levantamento das benfeitorias, mas antes à da coisa benfeitorizada, cabendo o ónus da prova da existência do prejuízo aquele que o invoca, e dependendo ainda o referido direito de indemnização do facto de o dono da coisa se opor ao levantamento das benfeitorias com fundamento em detrimento da coisa benfeitorizada.
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (1):

AA e esposa, BB, residentes na Rua da V..., nº ..., A..., Stª Maria da Feira, propuseram a presente acção declarativa, com processo comum, que, posteriormente, assumiu a forma ordinária, contra a Freguesia de Arrifana, com sede na Av.a do Corgo, Arrifana, Stª Maria da Feira, pedindo que, na sua procedência, seja declarado que os autores são os proprietários do prédio, abaixo-identificado, e a ré condenada a entregar ou restituir-lhes, imediatamente, o tracto de terreno, posicionado a Sul, do aludido prédio, e que a ré ora ocupa, alegando, para tanto, e, em síntese, que, em 1977, compraram a CC, por contrato verbal, o prédio em causa, e, desde então, que agem sobre o mesmo como se fossem seus donos, aí praticando diversos actos agrícolas, fruindo todas as suas utilidades, sem oposição ou violência, continuamente, à vista de toda a gente, e ignorando que lesavam ou estavam a lesar direitos de outrem, pelo que o adquiriram por usucapião, que invocam.
Em 2002, os autores entregaram uma parte do terreno de tal prédio, gratuitamente, à ré, pelo período de três meses e para que esta aí depositasse materiais de construção, prazo esse que, posteriormente, prorrogaram, por mais três meses, a pedido da ré, e acederam a que esta procedesse à vedação do prédio, a Poente, com um muro e um portão, para melhor protecção dos materiais.
Decorrido o prazo da prorrogação, a ré não entregou, voluntariamente, aquele terreno, pelo que os autores a interpelaram, por diversas vezes, para o efeito, mas sem êxito.
Na contestação, a ré conclui no sentido da improcedência da acção, mas caso tal não suceda, em sede reconvencional, pediu que os autores fossem condenados a pagar-lhe a quantia de €4.780,00, ou outra que se apurar, em sede de julgamento, acrescida de juros, à taxa legal, desde a notificação até integral pagamento, invocando, para o efeito, que os autores apenas cultivam, cerca de 1/4 do prédio em causa, nunca o tendo adquirido, a quem quer que fosse, e nunca tendo estado na sua posse.
Este prédio encontrava-se, há mais de 20 e 30 anos, coberto de silvas e votado a um total abandono, sendo o autor marido quem, em 1996, informando que não sabia quem era o dono do terreno e porque tinha a sua casa de habitação perto do mesmo, pediu que a ré procedesse à sua limpeza, para que não fosse ocupado por ciganos, solicitando ainda à ré autorização para cultivar uma pequena área do prédio.
Depois da ré ter procedido à limpeza do terreno, os autores passaram a cultivar, cerca de ¼ do mesmo, para fins domésticos.
Assim, apesar de interpelada pelos autores para entregar o terreno em causa, a ré recusou, por os não reconhecer como seus proprietários.
De todo o modo, caso a acção venha a ser julgada procedente, deverão os autores ser condenados a pagar à ré a quantia por esta despendida com a realização das obras de vedação ou se tal não se entender, na medida da valorização que as mesmas trouxeram ao aludido prédio, valor esse que deverá ser quantificado num mínimo de €4.780,00.
É verdade que a ré procedeu à vedação do prédio, construindo um muro em blocos, encimado por rede, e instalou um portão, por onde passavam e continuam a passar as suas viaturas, que aí são aparcadas, vindo ainda a utilizar o terreno, ao longo de alguns anos, para depósito de materiais utilizados nas obras que a autarquia leva a efeito na área da sua jurisdição.
Na réplica, os autores reafirmam, em suma, o alegado na petição inicial, impugnando ainda os valores invocados pela ré, em sede de reconvenção, por exagerados, assim como as características do muro, por desconhecimento, terminando com o pedido da improcedência da reconvenção.
A sentença julgou a acção, totalmente, improcedente, e, em consequência, absolveu a ré do pedido deduzido pelos autores e julgou extinta a instância reconvencional, por inutilidade superveniente da lide.
Desta sentença, os autores interpuseram recurso, tendo o Tribunal da Relação julgado procedente a apelação, revogando a decisão recorrida, e, em consequência, julgou a acção procedente, por provada, e, por via disso, declarou que os autores são proprietários do prédio, identificado no artigo 1º da petição inicial, condenando a ré a entregar/restituir, imediatamente, aos autores o tracto de terreno, posicionado a sul desse prédio, e que ocupa, e o pedido reconvencional improcedente, por não provado, e, em consequência, absolveu os autores do mesmo.
Do acórdão da Relação do Porto, interpôs a ré, agora, por seu turno, recurso de revista, terminando as alegações com o pedido da sua revogação, julgando-se a acção improcedente, como foi decidido em 1ª instância, mas, na hipótese meramente académica de tal se não entender, cautelarmente, deverá ser revogado o acórdão, na parte em que julgou improcedente o pedido reconvencional, substituindo-se tal decisão por outra que condene os recorridos a pagar à recorrente a importância pedida, a título de benfeitorias, com base no disposto nos artigos 473º e 474º, do Código Civil, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem:
1ª – Os recorridos, em audiência de julgamento em 1ª instância, não lograram provar que a prática dos actos referidos no nº 2 da base instrutória, fosse levada a cabo na convicção de o fazerem na convicção do exercício dum direito correspondente ao de propriedade;
2ª - E alegaram tal facto na petição (artº 5 - da mesma peça processual);
3ª - Não lograram provar, embora tivessem alegado, que a prática de tais actos fosse levada a cabo," continuamente (sem interrupção no tempo ou até reiteradamente, com exclusão de outrem (resposta negativa ao nº 3 da base instrutória);
4ª - Contrariamente, na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, mesmo não considerando a fundamentação apoiada nas testemunhas da ré, o M. Juiz de 1ª Instância, escreve em relação ao depoimento da testemunha, DD, testemunha dos recorridos, que "O A. jamais assumiu ser proprietário do terreno em causa, dizendo-lhe apenas que precisava do terreno para cultivar, a quando da sua ocupação pela R.;
5ª - Também a testemunha dos autores, EE, vizinha do autor há mais de quarenta anos, e conhecedora também do local diz expressamente que "os AA. lhe referiram que a proprietária do terreno, D. CC os deixou cultivar gratuitamente o terreno e ainda que o A. lhe disse que se o terreno fosse vendido, teria preferência".
6ª - Entende a recorrente que, logo por estas razões - já não considerando o depoimento das testemunhas da ré que, sobre tal, foram claros, de que os recorridos não se consideravam donos do terreno, pensando que, também com base em tal decisão e fundamentação, que elidiu , só com as testemunhas dos recorridos, a presunção júris tantum estabelecida no nº 2 do artº 1252º do Cod. Civ., até não falando dos depoimentos das testemunhas por si arroladas;
7ª - Ainda, como se escreve na douta sentença de 1ª instância, a recorrente, também foi solicitada pelo recorrido marido em 1966, para prevenir a ocupação do terreno pelos ciganos que nas imediações acampam, para proceder à vedação do trato de terreno referido em C). Ora um pedido deste estilo não é compatível, como resulta do senso comum, com uma invocada qualidade de proprietário do terreno em causa,
8ª - Também por esta razão julga a recorrente ter elidido a presunção júris tantum e, consequentemente não lhe deverá ser aplicável o acórdão uniformizador deste Venerando Tribunal, publicado no DR, II série, de 24/06/96, que fundamenta a decisão do Tribunal da Relação;
9ª - Tal interpretação e situação foi consagrada no acórdão deste Venerando Tribunal datado de 19/02/1998 in CJ do STJ, 1998, tomo 1, pag. 96 e segs.
Assim, ao revogar a sentença proferida pelo M. Juiz de 1ª instância, o Tribunal da Relação fez errada aplicação ao caso do disposto nos artigos 1252º, nº 2, al. a) e b), 1253º, 1263 al. a) do nº 1 e 1287º todos do Cod. Civ.
10ª - Igualmente, no caso da não esperada improcedência do presente recurso, entende também que andou mal o Tribunal da Relação do Porto, ao denegar procedência ao pedido reconvencional já que está a beneficiar, ao arrepio da lei, a ausência de prova do contrato de comodato, sendo que o mesmo foi invocado pelos recorridos;
11ª - Ao decidir como decidiu, o Tribunal da Relação veio permitir que os recorridos se enriqueçam injustificadamente à custa da recorrente, pois, paradoxalmente, se aqueles tivessem logrado provar a existência dum contrato de comodato, cuja existência alegaram, no caso dos autos, dadas as respostas à matéria de facto, teriam de reembolsar a recorrente na medida do que a mesma despendeu ou do que enriqueceu os autores, situação que parece contrariar os mais elementares princípios que subjazem às situações em análise;
12ª - Estar-se-ia perante uma situação de enriquecimento injustificado dos recorridos à custa da recorrente, situação que não é permitida nos termos dos artºs 473º e 474º do Cod. Civ.
Nas suas contra-alegações, os autores sustentam que o douto acórdão deve ser confirmado, porquanto não é aceitável trazer, nesta fase e pela forma tentada, opiniões sobre o que as testemunhas disseram, como disseram e ou deixaram de dizer [1], as conclusões subscritas pela ré não abalam a decisão proferida pelo Tribunal de 2a Instância [2], devendo manter-se a decisão da Relação do Porto sobre o pedido reconvencional, por, além de justa, reflectir, na íntegra, o espírito e a letra do Código Civil [3].
O Tribunal da Relação entendeu que se devem considerar demonstrados os seguintes factos, que este Supremo Tribunal de Justiça aceita, nos termos das disposições combinadas dos artigos 722º, nº 2 e 729º, nº 2, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz:
1. O prédio rústico, composto por terreno de cultura, com a área de 790 m2, sito na Rua da V..., freguesia de A..., concelho de Santa Maria da Feira, a confrontar do Norte com tanque público e Rua R... S... I..., do Sul com Eng.º FF, do Nascente com Edifício P... e do Poente com Rua da V... (caminho da f...), não se encontra inscrito na matriz, mas foi participada a sua omissão, em 24-11-2005 – A).
2. Os autores têm a sua habitação a poucas dezenas de metros desse terreno - B).
3. Num tracto de terreno, posicionado a Sul do prédio descrito em 1., na parte em que este não tinha qualquer protecção, a ré construiu um muro, encimado por rede, e instalou um portão - C).
4. A ré ocupa tal tracto de terreno, aí depositando materiais utilizados nas obras e aparcando viaturas - D).
5. Os autores interpelaram a ré para proceder à entrega do aludido tracto de terreno, tendo esta recusado a sua entrega - E).
6. Desde 1977, que os autores vão arando, plantando produtos hortícolas, semeando e colhendo o semeado e plantado, e ocupando com objectos seus o prédio, mencionado em 1. - 2º.
7. À vista de toda a gente e, mormente, das pessoas residentes nas proximidades de tal prédio - 4º.
8. Sempre sem oposição ou violência de quem quer que fosse – 5º.
9. Em 1996, para prevenir a ocupação pelos ciganos, que, frequentemente, acampam nas imediações, o autor marido solicitou à ré a vedação do tracto, referido em 3. – 10º.
10. O muro, aludido em 3., está construído em blocos de betão com 20 cm de espessura, com uma altura variável entre 2 e 1,20 metros, com fundações em betão, com pilares de travamento e com uma área aproximada de 70 m2, cujo custo é de €3.000,00 – 11º.
11. A mencionada rede é plastificada, com a malha de 50x13x10, tendo a mesma 1 metro de altura, numa extensão de 30 metros, e 1,5 metros, numa extensão de 20 metros – 12º.
12. Sendo o referido portão de ferro de correr, em rede electrosoldada, com o comprimento de 5,80 metros e a altura de 2 metros – 13º.
13. O custo da rede e do portão ascendem, no global, a €1.780,00 – 14º.
14. A construção do muro, a colocação da rede e a implantação do portão de ferro melhorou o terreno, aumentando o seu valor – 15º.
15. O muro e o portão foram colocados para permitirem e impedirem o acesso ao terreno – 16º.
16. Se forem levantados, o muro, o portão e a rede perdem, totalmente, o seu valor – 17º.
17. A construção do muro, a colocação da rede e a implantação do portão foram levados a cabo pela ré, com conhecimento dos autores e a pedido do autor – 18º.
*
Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir, na presente revista, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3, 690º e 726º, todos do CPC, são as seguintes:
I – A questão da posse boa para a usucapião.
II – A questão do enriquecimento injustificado dos autores, à custa da ré, pelas despesas por esta realizadas.

I. DA POSSE BOA PARA A USUCAPIÃO

Defende a ré, no essencial relevante das suas conclusões de revista, que os autores não lograram provar que a prática dos actos de posse fosse levada a cabo na convicção de o fazerem no exercício de um direito correspondente ao de propriedade, e bem assim como que a prática de tais actos fosse realizada "continuamente (sem interrupção no tempo ou até reiteradamente, com exclusão de outrem (resposta negativa ao nº 3 da base instrutória), e que, portanto, elidiu a presunção «juris tantum» estabelecida no artigo 1252º, nº 2, do Código Civil”.
Efectuando uma síntese da factualidade que ficou consagrada, importa reter, neste particular, que os autores, desde 1977, vão arando, plantando produtos hortícolas, semeando e colhendo o semeado e plantado, ocupando com objectos seus o prédio rústico controvertido, à vista de toda a gente e, mormente, das pessoas residentes nas suas proximidades, sempre sem oposição ou violência de quem quer que seja, sendo certo que, em 1996, para prevenir a ocupação pelos ciganos, que, frequentemente, acampam nas imediações, a solicitação do autor marido, a ré procedeu à vedação de um tracto de terreno, posicionado a Sul do aludido prédio, na parte em que este não tinha qualquer protecção, construindo um muro, encimado por rede, e instalando um portão, ocupando-o, desde então, e nele depositando materiais utilizados nas obras e aparcando viaturas, contra a vontade dos autores, que a interpelaram, sem sucesso, para proceder à entrega do aludido tracto de terreno.
Por seu turno, não se provou, por tal haver merecido resposta negativa, que os mencionados actos de posse tenham sido praticados pelos autores, “continuamente” e “na convicção de que são donos desse mesmo prédio”.
O pedido formulado na presente acção de reivindicação tem como fundamento o instituto da usucapião, que se traduz, nos termos do preceituado pelo artigo 1287º, do Código Civil (CC), na faculdade concedida ao possuidor de adquirir o direito a cujo exercício corresponde a sua actuação, salvo disposição em contrário, através da posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida durante certo lapso de tempo.
A posse do direito é, assim, um dos requisitos estruturais da usucapião, que funciona como condição «sine qua non» da prescrição aquisitiva, sendo o outro o decurso de certo lapso de tempo da duração da posse do direito.
Efectivamente, através da estrutura dos direitos reais tipificados, consegue-se alcançar a ordenação dominial definitiva, que é uma ordenação tão concreta quanto possível, a qual, para que se torne completa, ou seja, para que não deixe lacunas na regulamentação dos bens, a fim de evitar que se criem situações de dúvida sobre a existência, espécie e títulos de domínio, impõe o recurso ao sistema da ordenação dominial provisória, que tem subjacente a posse.
A posse é, assim, um poder de facto sobre a coisa, juridicamente relevante, quando falham os mecanismos normais da ordenação definitiva dos bens, ou seja, um vínculo de ordenação dos bens não ordenados(2).
O artigo 1251º, do CC, define a posse como “…o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”.
Esta função integradora da posse, destinada a proteger a situação de facto em que se traduz de outras situações de facto e contra pretensões de direito não devidamente comprovadas, alcança-se através dos mecanismos da tutela possessória, dominados pelo princípio da preferência material do possuidor.
Assim, estipula o artigo 1252º, nº 2, do CC, que “em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto…”, e isto porque a posse, para além de um sinal, é, também, um bem, na medida em que garante o interesse objectivo da paz pública, mais do que o interesse subjectivo do possuidor(3).
Resulta ainda do preceituado pelos artigos 1251º e 1253º, do CC, que o legislador nacional acolheu a corrente subjectivista da posse, isto é, a posse que é exercida em termos de proprietário, que está integrada por dois elementos estruturais, e que exige a presença do «corpus» ou elemento material, que se objectiva como o exercício actual ou potencial de um poder de facto sobre a coisa, enquanto apreensão material da mesma, e do «animus possidendi» ou elemento psicológico, que se traduz na intenção de o agente se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados (4).
Com base na conjugação destes dois elementos da posse que decorrem da adesão à corrente subjectivista, é possível distinguir a posse ou «ius possessionis» da mera detenção ou «ius detentionis».
E, assim, a posse é formal quando não é expressão de um direito real anterior, quer porque não existe, quer porque existindo se abstrai dele, ou causal, quando não tem autonomia, isto é, se baseia numa causa anterior.
Ao invés, a posse precária ou mera detenção pode repartir-se em posse em nome alheio, de natureza causal, isto é, a situação dos “representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, de todos os que possuem em nome de outrem” [artigo 1253º, b), do CC] ou não causal, ou seja, a situação dos “que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito” [artigo 1253º, a) do CC] (5), e posse simples, sem «animus», isto é, a situação daqueles “que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito” [artigo 1253º, b), do CC].
Porém, traduzindo-se o «corpus» no exercício de poderes de detenção ou fruição, com ocupação da coisa, na hipótese de se tratar de imóvel, não se exige um permanente contacto físico com a mesma, bastando que esta esteja, virtualmente, no âmbito do poder de facto do possuidor ou que este dela recolha as vantagens económicas correspondentes, designadamente, proceda à colheita dos frutos (6).
Mas, se a posse exige que a coisa se encontre no domínio empírico do seu titular, na sua zona de efectiva disponibilidade, não impõe que seja contínua, porquanto não se perde a posse por suspensões momentâneas, podendo até acontecer que a própria lógica das coisas imponha interrupções na posse (7).
De todo o modo, a posse não se limita a um contacto fugaz ou passageiro com a coisa, sendo necessário uma ligação estável, ainda que não permanente ou contínua, dependendo o modo de utilização do bem da própria natureza das coisas.
A prática reiterada dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito, como requisito imposto pelo artigo 1263º, a), do CC, para a aquisição originária da posse, não se basta, por via de regra, com um acto único, sendo essencial que, embora variáveis de caso para caso, os actos que a suportam se dirijam ao estabelecimento de uma duração duradoura com a coisa (8).
Para que se verifique o «corpus» que consubstancia a posse de um direito de propriedade é desnecessária a manutenção inalterável de uma forma de exploração dada ao prédio, ao longo de todo o prazo legal da usucapião, porquanto o que interessa é que durante todo esse período de tempo se tenham praticado actos de posse correspondentes ao direito de propriedade, qualquer que seja a intensidade do aproveitamento efectuado mediante tais actos (9).
Revertendo ao caso dos autos, registe-se que o poder dos autores sobre o prédio rústico analisado, corporiza-se na pratica de actos materiais de arar, plantar produtos hortícolas, semear e colher o semeado e plantado e ocupar o mesmo com objectos seus, enquanto manifestação de uma acção correspondente ao exercício do direito de propriedade, atento o disposto pelo artigo 1251º, do CC, isto é, traduz uma situação de posse.
E quem está na posse da coisa, na generalidade das situações, goza da presunção da titularidade do direito correspondente, excepto se existir a favor de outrem presunção fundada em registo anterior ao início da posse, nos termos do preceituado pelo artigo 1268º, nº 1, do CC, razão pela qual se lhe não exige, desde logo, uma actividade probatória dirigida à demonstração do seu direito de propriedade sobre ela, sendo suficiente a prova da posse.
Efectivamente, considerando a dificuldade em demonstrar o «animus» e a consequente posse, em nome próprio, ressalvada a situação em que haja coincidência com a prova do direito aparente, consagrou-se uma presunção de posse, em nome próprio, por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa – «corpus» -, razão pela qual, quando seja necessário o «corpus» e o «animus», em caso de dúvida, o exercício daquele faz presumir a existência deste, com base no disposto pelo artigo 1252º, nº 2, do CC(10).
É, portanto, a outra missão da posse, para além da garantia da tutela possessória, isto é, a de constituir presunção da titularidade do direito e, consequentemente, pela via da usucapião, conduzir a uma autêntica dominialidade.
Por isso, a posse é um direito real provisório, porquanto os seus efeitos são independentes da circunstância de se saber quem é o titular do direito real sobre a coisa que está na esfera do possuidor, pelo que só actua, enquanto não for, definitivamente, apurado quem é o autêntico titular do direito real sobre o bem, e “cessa, não havendo, anteriormente, usucapião, perante a acção de reivindicação” (11).
Quer isto dizer, portanto, que à pessoa que retém ou frui uma coisa basta provar a posse, a qual, se for uma posse de ano e dia, ou seja, uma posse superior a um ano, nada mais se impõe que seja averiguado, nos termos do disposto pelo artigo 1278º, nº 2, do CC, não sendo, consequentemente, a contraparte admitida sequer a provar que tem melhor posse (12).
De facto, os autores demonstraram que, sem embargo de não disporem de qualquer registo de inscrição do prédio, a seu favor, encontram-se na sua retenção e fruição, enquanto que ré, por seu turno, não provou a respectiva inscrição dominial, na sua titularidade, muito embora esteja a ocupar parte do aludido prédio rústico, contra a vontade dos autores, que a interpelaram, sem sucesso, para proceder à sua entrega (13).
E a posse, como já se disse, caracteriza-se pelo poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, atento o estipulado pelo artigo 1251º, adquirindo-se, originariamente, como é a situação que aqui interessa considerar, porquanto surgiu na esfera do possuidor, sem ser transmitida pelo anterior possuidor, pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito, como resulta do preceituado pelo artigo 1263º, a), ambos do CC.
Esta aquisição originária da posse, a que se reporta o artigo 1263º, a), do CC, acabada de considerar, exige como seus requisitos, essencialmente, constitutivos, a pratica reiterada, a publicidade e o consenso público.
A pratica reiterada, não se bastando, em princípio, com o cometimento de um acto isolado, exige um contacto estável, mas não reclama, como já se disse, uma ligação permanente ou contínua, podendo a sua manutenção revestir uma intensidade inferior à que é exigida para a sua constituição (14), referindo-se a reiteração mais à intensidade do que à duração dos actos possessórios (15).
Na verdade, sempre que alguém cultiva um prédio rústico e colhe os seus frutos pratica actos suficientes para adquirir a posse dele, procedendo como o verdadeiro proprietário.
A publicidade contende com o conhecimento ou cognoscibilidade da situação pelos interessados, conforme resulta do estipulado pelo artigo 1262º, do CC, enquanto que o consenso público significa que esses actos traduzem o exercício do direito real correspondente.
E todos estes pressupostos fácticos, como já se referiu, estão demonstrados nos autos.
Por outro lado, na aquisição originária da posse, importa ainda considerar, em conformidade com o disposto pelo artigo 1257º, nº 1, do CC, que esta se mantém enquanto durar a actuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a continuar, presumindo-se que continua nos mesmos termos que a caracterizavam no seu início, sem necessidade de prova da posse ulterior, como se refere no respectivo nº 2, conservando-se enquanto a coisa estiver submetida à vontade do sujeito, de tal modo que este possa renovar, querendo, a sua actuação material sobre ela, só deixando de existir o «corpus», extinguindo-se a posse, quando o poder de gozo não é exercido(16).
Ora, sendo certo que a aquisição originária da posse, a que alude o artigo 1263º, a), em complemento do disposto pelo artigo 1251º, ambos do CC, exige, de igual modo, o «corpus» e o «animus possidendi», a prova deste último elemento psicológico pode resultar de uma presunção, isto é, o exercício do «corpus» faz presumir a existência do «animus possidendi» (17).
E os factos que ficaram provados nas instâncias, e outros, em princípio, não podem ser objecto do conhecimento por este Supremo Tribunal de Justiça, atento o disposto pelos artigos 722º, nº 2 e 729º, nºs 2 e 3, do CPC, cujas excepções não ocorrem, nem a fundamentação da decisão proferida sobre a matéria de facto podem ser utilizados para demonstrar eventuais insuficiências da factualidade que ficou consagrada, ou até seriam irrelevantes para esse efeito, não permitindo considerar ilidida a presunção da titularidade do direito, a que alude o artigo 1268º, nº 1, do CC, sendo certo, como já se disse, que a ré não demonstrou a existência, a favor de outrem, de presunção fundada em registo anterior ao início da posse.
Efectivamente, «podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa» (18).
Na verdade, a ré não demonstrou, como lhe competia, que os autores, enquanto detentores, não são possuidores, já que se arrogavam a essa posse, por força do preceituado pelo artigo 350º, nº 1, do CC, sendo certo que estes, por terem a seu favor a presunção legal, estavam dispensados de provar o facto a que ela conduz.
Deste modo, mostram-se preenchidos os requisitos do «corpus» mas, também, do «animus possidendi», por parte dos autores, quer no momento da aquisição da posse, como na ocasião da sua conservação, em conformidade com o que se dispõe no artigo 1257º, do CC.
E porque a aludida posse decorreu pelo tempo necessário à aquisição do imóvel por usucapião, não pode a acção deixar de proceder, tal como julgou a Relação.

II. DO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA

Sustenta, igualmente, a ré que o pedido reconvencional deve proceder, porquanto os autores estão a ser beneficiados, ao arrepio da lei, pela ausência de prova do contrato de comodato, que os mesmos invocaram, permitindo o seu enriquecimento injustificado, à custa da ré.
Ficou provado, neste particular, com interesse relevante para a decisão da questão em apreço que, num tracto de terreno do prédio rústico em discussão, na parte em que este não tinha qualquer protecção, a ré construiu um muro, em blocos de betão, com 20 cm de espessura, com uma altura variável entre 1,20 e 2 metros, com fundações em betão, com pilares de travamento e com uma área aproximada de 70 m2, cujo custo é de € 3.000,00.
O aludido muro foi encimado por rede plastificada, com a malha de 50x13x10, tendo a mesma 1 metro de altura, numa extensão de 30 metros, e 1,5 metros, numa extensão de 20 metros.
Nesse local, a ré instalou um portão de ferro de correr, em rede electro-soldada, com o comprimento de 5,80 metros e a altura de 2 metros.
O custo da rede e do portão ascendeu a €1.780,00, sendo certo que a construção do muro, a colocação da rede e a implantação do portão de ferro melhoraram o terreno, aumentando o seu valor, tendo o muro e o portão sido colocados para permitirem e impedirem o acesso ao terreno.
A isto acresce que a construção do muro, a colocação da rede e a implantação do portão de ferro foram levados a cabo pela ré, a pedido do autor, sendo certo que se forem levantados perdem, totalmente, o seu valor.
Por outro lado, a ré ocupa o aludido trato de terreno, nele depositando os materiais utilizados nas obras e aparcando as viaturas, recusando-se a entregá-lo aos autores, que a interpelaram para o efeito.
Efectivamente, como já se disse, os autores encontram-se na retenção e fruição do aludido prédio rústico, enquanto que ré, por seu turno, está a ocupar parte do mesmo, contra a vontade daqueles, que a interpelaram, sem sucesso, para proceder à sua entrega.
Assim sendo, trata-se de uma situação de posse em nome alheio, contemplada pelo artigo 1253º, c), do CC, equivalente à de comodatário, mas cujo título em concreto não ficou demonstrado, sendo certo que o próprio comodatário de um prédio é equiparado, quanto a benfeitorias, ao possuidor de má fé, atento o estipulado pelo artigo 1138º, nº 1, do CC.
Estabelecendo o artigo 216, n°1, do CC, o conceito de benfeitorias, como sendo “todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa”, distingue, nos respectivos nºs 2 e 3, a noção de benfeitorias necessárias, como sendo aquelas “que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa”, de benfeitorias úteis, como aquelas” que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam, todavia, o valor”, e de benfeitorias voluptuárias como as “que, não sendo indispensáveis para a sua conservação nem lhe aumentando o valor, servem apenas para recreio do benfeitorizante”.
Deste modo e, face ao quadro factual apurado, as despesas efectuadas pela ré, no questionado tracto do prédio rústico, não sendo indispensáveis para a sua conservação, destinaram-se a melhorar o mesmo, aumentando-lhe o respectivo valor, configurando-se como uma modalidade de benfeitorias úteis.
A isto acresce, que quer “o possuidor de boa fé como o de má fé têm direito a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possam fazer sem detrimento dela”, sendo certo que, “quando para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao levantamento das benfeitorias, satisfará o titular do direito ao possuidor o valor delas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa”, por força do preceituado pelo artigo 1273º, nºs 1 e 2, do CC.
Com efeito, o pedido de indemnização por benfeitorias que não podem levantar-se sem detrimento da coisa destina-se a evitar um enriquecimento sem causa, à custa do possuidor, que é obrigado a entregar a coisa benfeitorizada.
Porém, o direito de indemnização por benfeitorias úteis, contrapartida da obrigação de entrega da coisa, depende ainda de o seu dono se opor ao levantamento das mesmas com fundamento em detrimento da coisa benfeitorizada (19).
É que a possibilidade de o levantamento poder ser efectuado com ou sem detrimento do prédio depende do dono da coisa (20)..
Por outro lado, o detrimento a que pode dar lugar o levantamento das benfeitorias refere-se não a estas, mas antes à coisa benfeitorizada, sendo necessário alegar quais as obras que correspondem a cada uma das espécies, a valorização da coisa, como consequência necessária e directa das mesmas, a deterioração resultante do levantamento e o respectivo custo e actual valor(21).
A isto acresce que sendo constitutivo o direito ao valor das benfeitorias úteis, a prova do facto de que o seu levantamento pode causar detrimento à coisa cabe aquele que o invoca (22).
Finalmente, o direito à indemnização por benfeitorias exige, como pressuposto indeclinável, que aquele que a reclama tenha uma posse em nome próprio sobre o respectivo prédio que cede perante o direito sobre a coisa, «maxime», o proprietário (23).
Ora, no caso «sub judice», embora se tenha demonstrado que as obras realizadas pela ré aumentaram o valor do prédio, já não ficou provado que o seu levantamento seja feito em detrimento da coisa onde se radicaram, que constitui um dos pressupostos do direito à indemnização por benfeitorias úteis, mas antes em prejuízo das próprias obras realizadas, o que é uma realidade distinta.
Por outro lado, também não se demonstrou que os autores se oponham ao seu levantamento com fundamento em detrimento da coisa benfeitorizada, nem o respectivo valor actual.
Assim sendo, embora se esteja perante uma situação de benfeitorias úteis, que constituem parte integrante do prédio, não cabe à ré, se impossibilitada de as levantar, o direito à correspondente indemnização, por se tratar de um possuidor em nome alheio, por se não haver demonstrado o detrimento para a coisa benfeitorizada ou a oposição dos autores ao seu levantamento, nem o valor actual das mesmas obras.
Por outro lado, constituindo requisitos, essencialmente, integrantes do direito à indemnização, por benfeitorias úteis, invocado pela ré, a valorização do prédio, o custo das despesas efectuadas, o seu valor actual e a deterioração da coisa com o levantamento das benfeitorias (24), ficaram demonstrados os dois primeiros, mas não já os restantes, em especial, o último, ou seja, o pressuposto da deterioração da coisa com o levantamento das benfeitorias, cujo ónus aquela competia, como facto constitutivo do direito a que se arroga, nos termos do estipulado pelo artigo 342º, nº 1, do CC.
Porém, os factos que permitiriam conduzir ao conceito de detrimento teriam que ser demonstrados, não podendo o mesmo retirar-se, conclusivamente, das regras da experiência da vida e do que é normal acontecer, por forma a chegar-se à sua demonstração, como mera dedução lógica, no âmbito das designadas presunções judiciais ou naturais.
E isto é assim, além de que a presunção não elimina o ónus da prova, mas antes altera o facto que ao onerado incumbe demonstrar, ou seja, em vez do facto presumido, teria de provar a realidade do facto que serve de base à presunção, nos termos do disposto pelos artigos 349º e 351º, do CC.
Se o levantamento ocasiona detrimento para o prédio, o que é distinto do detrimento das benfeitorias, propriamente ditas, depende da natureza das obras, dos materiais utilizados, do tipo de construção, tudo isto contendendo com a matéria de facto e não com juízos de valor susceptíveis de se retirarem, por ora, da restante prova produzida.
E nem sequer o detrimento se traduz num facto notório, porquanto, como já se salientou, não se refere às benfeitorias, mas antes ao prédio que se pretendeu favorecer, sendo certo que o seu levantamento poderá causar e causa, seguramente, prejuízos à construção beneficiadora, mas já não é inequívoco que os possa originar em relação ao prédio melhorado (24).
Aliás, a ré não invocou os factos essencialmente constitutivos do requisito «detrimento», limitando-se, no artigo 27º da contestação-reconvenção, a alegar que “quer o muro de vedação…, quer o portão de ferro…bem como a rede não podem ser levantados sob pena de perderem totalmente o seu valor”.
Assim sendo, não tendo a ré provado que do levantamento das benfeitorias realizadas resultava detrimento para o prédio, não goza do direito de exigir dos autores o pagamento da indemnização pelo seu valor.
Improcedem, pois, com o devido respeito, as conclusões constantes das alegações de revista da ré.

CONCLUSÕES:

I - A posse é um poder de facto sobre a coisa, juridicamente relevante, quando falham os mecanismos normais da ordenação dominial definitiva dos bens, ou seja, um vínculo de ordenação dominial provisória dos bens não ordenados, a fim de evitar que se criem situações de dúvida sobre a existência, espécie e títulos de domínio.
II - A posse é ainda um direito real provisório, porquanto os seus efeitos são independentes da circunstância de se saber quem é o titular do direito real sobre a coisa que está na esfera do possuidor.
III – A presunção da posse, em caso de dúvida, naquele que exerce o poder de facto, para além de um sinal, é um bem que garante o interesse objectivo da paz pública, mais do que o interesse subjectivo do possuidor.
IV – O «corpus» não exige um permanente e contínuo contacto físico com a coisa, bastando que esta esteja, virtualmente, no âmbito do poder de facto do possuidor ou que este dela retire as vantagens económicas correspondentes, designadamente, a recolha dos frutos, mas já não se limita a um contacto fugaz ou passageiro com a mesma, sendo necessária uma ligação estável, de modo que, durante todo esse período, se tenham praticado actos respeitantes ao direito de propriedade, qualquer que seja a intensidade do aproveitamento efectuado mediante tais actos.
V - Sempre que alguém cultiva um prédio rústico e colhe os seus frutos pratica actos suficientes para adquirir a posse dele, procedendo como o verdadeiro proprietário, porquanto esses actos traduzem o exercício do direito real correspondente.
VI – O direito à indemnização por benfeitorias exige, como pressuposto indispensável, que aquele que a reclama tenha uma posse, em nome próprio, sobre o respectivo prédio ou parte dele, que cede perante o direito sobre a coisa, «maxime», o do proprietário.
VII - O não levantamento das benfeitorias úteis devido ao detrimento da coisa, pressuposto do direito de indemnização correspondente e contrapartida da obrigação de entrega da coisa, refere-se não ao levantamento das benfeitorias, mas antes à da coisa benfeitorizada, cabendo o ónus da prova da existência do prejuízo aquele que o invoca, e dependendo ainda o referido direito de indemnização do facto de o dono da coisa se opor ao levantamento das benfeitorias com fundamento em detrimento da coisa benfeitorizada.

DECISÃO (26):

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em negar a revista, confirmando o douto acórdão recorrido.
Custas pela ré.
Notifique.

Lisboa, 23 de Novembro de 2010
Helder Roque (Relator)
Sebastião Póvoas
Moreira Alves

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(1) Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Sebastião Póvoas; 2º Adjunto: Conselheiro Moreira Alves.
(2) Orlando de Carvalho, Direito das Coisas, Apontamentos das aulas organizados por França Pitão e Borges Pinto, 1976, 33 a 36.
(3) Manuel Rodrigues, A Posse, Estudo de Direito Civil Português, 1981, 3ª edição, 27.
(4) Manuel Rodrigues, A Posse, Estudo de Direito Civil Português, 1981, 3ª edição, 181 e ss.; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 1987, 5 e ss.; Orlando de Carvalho, Introdução à Posse, RLJ, 122º, 65 e ss.; Mota Pinto, Direitos Reais, 1970-1971, 177 e ss.; Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1967, 65 e ss.
(5) Penha Gonçalves, Direitos Reais, 2ª edição, 1993, 233.
(6) Mota Pinto, Direitos Reais, 1970/1971, 181 e 182.
(7) Orlando de Carvalho, Direito das Coisas, Apontamentos das aulas organizados por França Pitão e Borges Pinto, 1976, 50.
(8) Henrique Mesquita, Direitos Reais, Coimbra, 1967, 84; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 2ª edição, revista e actualizada, com a colaboração de Henrique Mesquita, 1987, 26.
(9) Pires de Lima, Direito de Propriedade. Direito de Superfície e Usucapião, RDES, 18º, 249.
(10) Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 1987, 8; Mota Pinto, Direitos Reais, 1970/1971, 191; Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1967, 72; Moitinho de Almeida, Restituição de Posse e Ocupação de Imóveis, 2ª edição, 1978, 76; STJ, de 2-3-1974, BMJ nº 235, 285.
(11) Mota Pinto, Direitos Reais, 1970/1971, 215.
(12) Mota Pinto, Direitos Reais, 1970/1971, 126 a 129 e 209 a 211.
(13) Manuel Rodrigues, A Posse, Estudo de Direito Civil Português, 1981, 3ª edição, 185.
(14) Meneses Cordeiro, Direitos Reais, 1979, 662.
(15) Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 1983, 87.
(16) Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 1987, 13 e 14; Henrique Mesquita, Direitos Reais, 84 a 86; Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 1983, 89 e 127.
(17)Mota Pinto, Direitos Reais, 1970/1971, 191.
(18) Acórdão de Uniformização Jurisprudência do STJ, Pº nº 085204, de 14-5-1996, in www.dgsi.pt
(19) STJ, de 27-4-1999, BMJ nº 486, 273.
(20) Sá Carneiro, RT, 89º, 111; e 91º, 286.
(21) STJ, de 3-4-1984, BMJ nº 336, 420.
(22) STJ, de 26-2-1992, BMJ nº 414, 556; STJ, de 3-5-1990, TJ, 6º, 312 e ss.
(23) STJ, de 28-5-2002, Pº nº 00000443, www.dgsi.pt
(24) STJ, de 3-4-84, BMJ nº 336, 420.
(25) STJ, de 27-4-99, BMJ nº 486, 273; STJ, de 26-2-92, BMJ nº 414, 556; STJ, de 3-4-84, BMJ nº 336, 420.
(26) Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Sebastião Póvoas; 2º Adjunto: Conselheiro Moreira Alves.