Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03P241
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SIMAS SANTOS
Descritores: BURLA POR DEFRAUDAÇÃO
ABUSO DE CONFIANÇA
INSOLVÊNCIA
ELEMENTOS DA INFRACÇÃO
FRAUDE
Nº do Documento: SJ200303200002415
Data do Acordão: 03/20/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1 J CR V N FAMALICÃO
Processo no Tribunal Recurso: 452/99
Data: 10/02/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Sumário : 1 - O crime de burla desenha-se como a forma evoluída de captação do alheio em que o agente se serve do erro e do engano para que incauteladamente a vítima se deixe espoliar, e é integrado pelos seguintes elementos:
- intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo;
- por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou;
- determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outrem, prejuízo patrimonial.
2 - É usada astúcia quando os factos invocados dão a uma falsidade a aparência de verdade, ou são referidos pelo burlão factos falsos ou este altere ou dissimule factos verdadeiros, e actuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado, de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro.
3 - Esses actos além de astuciosos devem ser aptos a enganar, podendo o burlão utilizar expedientes constituídos ou integrados também por contratos civis.
4 - A linha divisória entre a fraude, constitutiva da burla, e o simples ilícito civil, uma vez que dolo in contrahendo cível determinante da nulidade do contrato se configura em termos muito idênticos ao engano constitutivo da burla, inclusive quanto à eficácia causal para produzir e provocar o acto dispositivo, deve ser encontrada em diversos índices indicados pela Doutrina e pela Jurisprudência, tendo-se presente que o dolo in contrahendo é facilmente criminalizável desde que concorram os demais elementos estruturais do crime de burla.
5 - Há fraude penal:
- quando há propósito ab initio do agente de não prestar o equivalente económico:
- quando se verifica dano social e não puramente individual, com violação do mínimo ético e um perigo social, mediato ou indirecto;
- quando se verifica um violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, exige como única sanção adequada a pena;
- quando há fraude capaz de iludir o diligente pai de família, evidente perversidade e impostura, má fé, mise-en-scène para iludir;
- quando há uma impossibilidade de se reparar o dano;
- quando há intuito de um lucro ilícito e não do lucro do negócio
6 - Nos negócios, em que estão presentes mecanismos de livre concorrência, o conhecimento de uns e o erro ou ignorância de outros, determina o sucesso, apresentando-se o erro como um dos elementos do normal funcionamento da economia de mercado, sem que se chegue a integrar um ilícito criminal; mas pode também a fraude penal pode manifestar-se numa simples operação civil, quando esta não passa de engodo fraudulento usado para envolver e espoliar a vítima, com desprezo pelo princípio da boa fé, traduzindo-se num desvalor da acção que, por sua intensidade ou gravidade, tem como única sanção adequada a pena.
7 - Não há mera reserva mental só relevante no plano civil, mas sim de uma decisão pré-concebida de não cumprir o contrato de promessa de cessão de quotas de sociedade, quando nunca houve vontade de realizar o negócio correspondente, não sendo o respectivo contrato civil mais do que elemento do engano astuciosamente elaborado pelo arguido, que necessitava dele para cumprir o plano meticulosamente laborado e executado, obtendo o burlão todas as contrapartidas prometidas no contrato e usando dos poderes conferidos para descapitalizar a empresa e levá-la á falência, numa demonstração de patente má fé por parte do arguido, de absoluta deslealdade e desrespeito pelos legítimos interesses do assistente, a justificar uma reacção social traduzida numa pena criminal, toda a vez que estão presentes todos os outros elementos do tipo legal da burla.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I
1.1.

2.1. No período de Junho de 1989 a Junho de 1993, data do seu encerramento e declaração de falência, o arguido HFA e JLPF foram os únicos sócios da "T.E., Lda.", sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada, com sede no lugar da Senra, freguesia de Calendário, do concelho e comarca de Vila Nova de Famalicão, cuja actividade era a de tinturaria e acabamentos de fibras têxteis e outros;
2.2. De Junho de 1989 a 8 de Novembro de 1991 ambos exerceram a gerência, administração, direcção e representação daquela sociedade, nos termos constantes da escritura pública lavrada no 2.º Cartório Notarial de Vila Nova de Famalicão em 10/10/89; sendo que, nomeadamente, para a sociedade se considerar validamente obrigada eram necessárias as assinaturas conjuntas dos dois gerentes;
2.3. Entretanto por desentendimentos surgidos e cuja razões se não logrou conhecer, foi decidida a saída do JLPF da sociedade na sequência de negociações prévias para o efeito, com respeito pelos interesses nomeadamente patrimoniais de cada um dos sócios que respectivamente procuraram acautelar, e na sequência das quais, foi acordado e realizado o que a seguir se descreve;
2.4. A 8 de Novembro de 1991, em Assembleia Geral extraordinária, o sócio JLPF apresentou a sua renúncia à gerência da sociedade, aceite e aprovada pelo primeiro arguido que a partir daí passou a ser seu único sócio-gerente responsável directo pela sua administração, direcção e representação activa e passiva, bastando a sua assinatura para a obrigar em todos os seus actos, contratos e documentos;
2.5. Daquela Assembleia resultou que os suprimentos do sócio JLPF, no montante de 158.233.000$00 seriam transferidos, como vieram a ser, para a conta de suprimentos do outro sócio, o arguido HFA;
2.6. Na mesma data os dois sócios ainda celebraram um contrato promessa de cessão de quotas, nos termos do qual e designadamente:
- o sócio JLPF prometeu ceder ao arguido a sua quota na sociedade pelo preço de 410.000.000$00, comprometendo-se para tanto e desde logo a garantir que lhe fosse adjudicada a respectiva quota, que se encontrava relacionada no Inventário Obrigatório n.º 4/91 que por morte de sua esposa corria termos na 2.ª Secção do 3.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Barcelos;
- o pagamento seria efectuado em 96 prestações mensais e sucessivas, vencendo-se a primeira no dia 10 de Fevereiro de 1992 e as demais nos respectivos dias 10 de cada mês subsequente, nos montantes então também acordados,
- o JLPF responsabilizava-se pelas dívidas da sociedade à União de Bancos Portugueses, no montante de 40.000.000$00 e ao Banco Comercial Português no montante de 150.000.000$00, após cujo pagamento entregaria os documentos comprovativos ao arguido,
-- o saldo de 158.233.000$00 da conta de suprimentos de JLPF seria transferido para a conta de suprimentos do arguido (o que já fora deliberado na Assembleia extraordinária supra-referida),
- como garantia de cumprimento do contrato, o arguido emitiria um cheque no valor do preço referido de 410.000.000$00, o qual ficaria em poder do advogado do JLPF, até que fosse efectuada a escritura definitiva de cessão de quotas, data em que seria substituído por 96 cheques no mesmo montante total, o JLPF renunciaria de imediato à gerência da sociedade (o que também já resultava da dita Assembleia extraordinária);
- O pagamento da cessão da quota seria feito da seguinte forma:
a) as primeiras doze no montante de três milhões de escudos cada uma delas;
b) as dez seguintes no montante de quatro milhões e quinhentos mil escudos cada uma delas;
c) as duas seguintes no montante de três milhões e quinhentos mil escudos cada uma delas;
d) as oito seguintes no montante de quatro milhões de escudos cada uma delas;
e) as quatro seguintes no montante de cinco milhões de escudos cada uma delas;
f) as doze seguintes no montante de três milhões e quinhentos mil escudos cada uma delas;
g) as doze seguintes no montante de quatro milhões de escudos cada uma delas;
h) as trinta e seis seguintes no montante de cinco milhões de escudos cada uma delas;
2.7. No mesmo dia 8 de Novembro de 1991, o primeiro arguido subscreveu também a declaração, em que assumia a responsabilidade civil pelos vários títulos (nomeadamente letras, livranças e cheques) relativos à sociedade e subscritos pelo sócio JLPF "já que tal esteve no espírito do contrato promessa de cessão de quota social por ambos celebrado";
2.8. Nos termos constantes do prometido e acordado foi transferido o saldo de 158.233.000$00 da conta de suprimentos do JLPF para a do arguido e aquele renunciou efectivamente à gerência;
2.9. O JLPF cumpriu também as obrigações assumidas de pagamento das dívidas da sociedade à UBP e ao BCP;
2.10. E obteve a adjudicação da respectiva quota na sociedade no processo de inventário supra-referido;
2.11. Cumpriu, assim, todas as obrigações que no contrato celebrado assumira;
2.12. A escritura definitiva de cessão de quotas nunca chegou a realizar-se por o arguido HFA nunca se ter disponibilizada para o efeito, apesar de ter acordado, inclusive na transacção homologada judicialmente em 8/6/92, a outorgá-la no prazo de 30 dias a partir dessa data;
2.13. Não entregou nem permitiu que fosse entregue ao JLPF ou ao seu advogado, o mencionado cheque no valor de 410.000.000$00 ou qualquer outro cheque ou montante para pagamento da quota que nos termos atrás descritos prometera comprar;
2.14. E, na Execução Ordinária n.º 170/91 do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Famalicão, instaurada contra a "T.E., Lda." e ambos os sócios, com base numa letra aceite por aquela para pagamento da quantia exequenda de 4.311.667$00, permitiu que em Março de 1993 fosse penhorada a quota social no valor nominal de 55.000.000$00 pertencente ao JLPF, ao contrário do compromisso que assumira de lhes dar pagamento e de se responsabilizar pelo pagamento dos títulos referentes à empresa por aquele também subscritos;
2.15. A partir daquela data de 8 de Novembro de 1991, passou a gerir de facto a "T.E., Lda." como seu único sócio e gerente, sem que tivesse mais prestado quaisquer contas ao também ainda sócio JLPF;
2.16. E nessa qualidade passou a administrar a sociedade como se esta lhe pertencesse de facto, única e exclusivamente e, em seu único e exclusivo proveito;
2.17. Aliás, este tinha sido desde início o propósito do arguido, que sem nunca ter tido a intenção de pagar ao JLPF a sua quota ou de assumir os outros compromissos então declarados, levou este a afastar-se da empresa pela forma descrita só porque o convenceu da autenticidade das negociações e do contrato celebrado, com o que lhe causou um prejuízo correspondente ao preço não pago da respectiva quota, ao montante dos suprimentos que transferiu para o arguido e às dívidas da sociedade por ele pagas à União de Bancos Portugueses e ao Banco Comercial Português, num total de 758.233.000$00;
2.18. Assim, a partir da data já mencionada, passou a ser prática habitual da empresa e determinada pelo arguido, não facturar parte das transacções efectuadas ou dos serviços prestados ou facturar apenas 10% do seu valor real;
2.19. Com tal prática, o arguido apropriou-se de cerca de 90% do valor dos serviços efectivamente prestados neste período pela "T.E., Lda.";
2.20. As transacções apuradas e respectivas guias de remessa relativas a esse período registam na contabilidade da empresa, consequentemente, quantidades anormalmente reduzidas de produtos e serviços prestados, anómalas face à dimensão, existências, imobilizado e capacidade produtiva da mesma e uma gestão razoável, racional e economicamente rentável, o que se traduziu na sua crescente descapitalização e insolvência;
2.21. Para o efeito, o arguido fazia transportar a mercadoria da "T.E., Lda." para o cliente acompanhada de guias de remessa correspondentes à sua quantidade e valor reais para o caso de serem fiscalizados durante o transporte, regressando no entanto as guias àquela, para serem posteriormente facturadas apenas por 10% do valor real da mercadoria e serviços fornecidos e cujo pagamento era exigido de imediato;
2.22. Desta forma, o arguido apropriou-se de quantias em dinheiro, que fez seu, apesar de saber que não lhe pertencia mas à sociedade, à qual assim causou prejuízos, bem como ao outro sócio, JLPF e ao Estado na medida em que diminuiu o lucro tributável da empresa ao não contabilizar parte das transacções comerciais efectuadas;
2.23. Além disso, no dia 31 de Outubro de 1991, o arguido HFA actuando como representante legal da "T.E., Lda." e sem o conhecimento ou consentimento do seu sócio, relativamente a dois processos crime por emissão de cheque sem provisão que aquela sociedade instaurara contra AFGF, id. a fls. 336, derivados de transacções comerciais entre as respectivas empresas, a troco da declaração de desistência que permitisse a libertação daquele, em prisão preventiva à ordem daqueles processos, recebeu a importância de 7.000.000$00 em dinheiro e um cheque no valor de 9.000.000$00, datado de 30/12/92 e que fez posteriormente denunciar por falta de provisão;
2.24. O arguido convenceu o OCM, familiar do AFGF, que o contactou para obter aquela desistência da queixa e a sua consequente libertação, a emitir e entregar-lhe aquele cheque com o n.º 2796968155, sacado sobre a conta de que era titular n.º 220/052 14572 na agência da Póvoa de Varzim do Banco Português do Atlântico, datado de 30/12/92, sem que nenhuma relação comercial ou dívida tivesse com ele ou a "T.E., Lda." ou sequer tivesse conhecimento dos negócios existentes entre as empresas do arguido e do AFGF, seu cunhado;
2.25. E conseguiu convencê-lo a tal, apenas alegando e fazendo-o acredita que o único objectivo, declarado perante ele na altura e assumido por escrito, era o de obrigar o AFGF, após a sua libertação, a vir acertar contas com ele e garantir o respectivo pagamento, através da sua substituição posterior por cheques próprios e mensais, altura em que lhe seria devolvido;
2.26. Porém, o arguido não só recebeu e fez sua aquela quantia de sete milhões de escudos, apesar de saber que a mesma pertencia à sociedade a favor da qual não contabilizou nem usou, como de seguida endossou o dito cheque a sua filha ACGAV, com o que causou prejuízo à empresa, ao sócio JLPF e ao Estado em termos de lucro tributável não declarado;
2.27. Ao endossar à sua filha o cheque, em contrário do destino que se comprometera a dar-lhe e apesar de saber que ele titulava uma quantia de nove milhões de escudos que lhe não era devida pelo respectivo sacador, possibilitou que fosse apresentado contra este procedimento criminal e nele deduzida acusação, em contrário da verdade dos factos que ele bem conhecia;
2.28. Ao convencer aquele que ao emiti-lo e entregá-lo para pagamento de dívidas da sociedade da qual era sócio-gerente o seu cunhado, AFGF, como única forma de assim lhe conceder a desistência da queixa nos processos n.º 89 e 218/9 por crimes de emissão de cheque sem provisão e permitir a libertação daquele, preso preventivamente à ordem de tais processos, teve como propósito obter vantagem económica a que não tinha qualquer direito;
2.29. O arguido sabia que aquele cheque não se destinava a ser movimentado e não correspondia a nenhum prejuízo causado pelo seu sacador a si ou à "T.E., Lda." e muito menos à sua filha a quem o endossou, sendo esta mera funcionária na empresa desde Fevereiro de 1992 a Julho de 1993;
2.30. Visou apenas através do seu endosso e por intermédio da filha, obter o respectivo pagamento e valor, apesar de não lhe ser devido e por essa forma dele se apropriar em proveito próprio, causando um prejuízo correspondente ao seu titular;
2.31. Em 20 de Janeiro de 1992, no Processo de Execução n.º 244/91 de 2.ª Secção, do 1.º Juízo Cível desta Comarca, em que era exequente a "F.M.G., Lda." e executada a "T.E., Lda.", sendo a quantia exequente de 534.344$00, o arguido também por intermédio da filha ACGAV licitou e assim adquiriu pelo valor de 10.000.000$00, o "prédio urbano constituído por edifício destinado a indústria" que constituía as instalações da "T.E., Lda." e era onde a mesma funcionava e cujo valor real ascendia a pelo menos 120.000.000$00;
2.32. Actuou assim mais uma vez em contrário do compromisso que assumira de se responsabilizar pelas dívidas tituladas da empresa, para além daquelas que o outro sócio, obedecendo ao prometido, pagara, e gerindo a empresa contra os interesses desta e em seu prejuízo, ao desapropriá-la das sua instalações
2.30. Visou apenas através do seu endosso e por intermédio da filha, obter o respectivo pagamento e valor, apesar de não lhe ser devido e por essa forma dele se apropriar em proveito próprio, causando um prejuízo correspondente ao seu titular;
2.31. Em 20 de Janeiro de 1992, no Processo de Execução n.º 244/9 1 da 2.ª Secção, do 1.º Juízo Cível desta Comarca, em que era exequente a "F.M.G., Lda." e executada a "T.E., Lda.", sendo a quantia esquente de 534.344$00, o arguido também por intermédio da filha ACGAV licitou e assim adquiriu pelo valor de 10.000.000$00, o "prédio urbano constituído por edifício destinado a indústria" que constituía as instalações da "T.E., Lda." e era onde a mesma funcionava e cujo valor real ascendia a pelo menos 120.000.000$00;
2.32. Actuou assim mais uma vez em contrário do compromisso que assumira de se responsabilizar pelas dívidas tituladas da empresa, para além daquelas que o outro sócio, obedecendo ao prometido, pagara, e gerindo a empresa contra os interesses desta e em seu prejuízo, ao desapropriá-la das sua instalações por um valor muito inferior do seu valor real e por uma dívida desta que estava em condições de pagar face ao seu montante diminuto, sendo que por esta forma e por intermédio da filha adquiriu ele o edifício respectivo (verifica-se uma repetição da numeração 30, 31 e 32, mas praticamente com o mesmo conteúdo dos números anteriores);
2.33. Aí veio posteriormente a funcionar e funciona a "T-T.A.T., Lda." de que é sócia a arguida IMRVA, sendo o arguido seu encarregado geral e gerente;
2.34. Esta sociedade matriculada desde 22/12/94 teve como únicas instalações aquelas anteriormente pertencentes à "T.E., Lda.", e como seus únicos e exclusivos administradores e responsáveis de facto os arguidos HFA e IMRVA;
2.35. A arguida IMRVA havia sido funcionária da "T.E., Lda.", como chefe de planeamento e pessoa da confiança do arguido HFA com quem entretanto casou;
2.36. Em 13 de Dezembro de 1994, nos autos de Liquidação do Activo apensos ao Processo de Falência n.º 201/94 do 1.º Juízo Cível, deste Tribunal, a sociedade "T-T.A.T., Lda.", constituída para o efeito, adquiriu pelo preço de 27.000.000$00, os bens da "T.E., Lda.", quando o seu imobilizado era, a preços de aquisição, superior a 420.000.000$00;
2.37. Tal ocorreu na sequência de uma primeira proposta em carta fechada feita pelo arguido por intermédio mais uma vez da filha ACGAV, no montante de 25.000.000$00, que como não lograsse obter vencimento por haver proposta de valor superior, de 26.270.000$00, levou o próprio arguido a requerer e conseguir a adjudicação dos bens da massa falida à "T-T.A.T., Lda.", pelo montante referido de 27.000.000$00;
2.38. A Falência da "T.E., Lda." tinha, entretanto, sido decretada a 14 de Junho de 1993, por improcedência da acção de Recuperação da Empresa requerida pelo arguido como seu representante legal, em 4 de Maio de 1992;
2.39. A "T.E., Lda." possuía à data um imobilizado que a preços da aquisição era superior a 420 mil contos, para além dos equipamentos em utilização sob o regime de locação financeira e o controlo da empresa era bem assumido pelo arguido; pessoa que dominava perfeitamente as áreas industrial e comercial;
2.40. Com os factos descritos e sobretudo com a apropriação de quantias em dinheiro pertencentes à "T.E., Lda.", a não facturação ou subfacturação de parte da mercadoria, que passou a ser prática da empresa desde a saída da gerência do outro sócio JLPF, quando por outro lado apresentava em existência centenas de milhares de contos na Dec. Mod. 22, bem como, ao permitir que com o não pagamento de uma dívida de 534.344$00 fossem penhoradas as instalações da empresa por um valor manifestamente abaixo do seu verdadeiro valor e ainda ao permitir a penhora da quota do sócio JLPF por uma dívida de cerca de 4.000.000$00, bem como ao adquirir por interposta pessoa as instalações e equipamento da sociedade, o arguido HFA teve como único objectivo, na execução do plano traçado, descapitalizar a "T.E., Lda.", inviabilizá-la económica e financeiramente por forma a provocar a respectiva insolvência e falência e assim acabar por se apoderar das suas instalações, maquinaria e demais existências, livres de quaisquer ónus ou encargos, o que logrou conseguir por valores consideravelmente inferiores aos seus valores reais, com os descritos e manifestos prejuízos para o outro sócio e os seus credores;
2.41. Não existiam nem foram apresentados à Inspecção Fiscal que teve início em Novembro de 1995, no âmbito do processo de Averiguação Fiscal determinado já no decurso do presente processo, balancetes do razão ou gerais relativos a 1993, quaisquer extractos de contas correntes ou outros elementos que permitissem discriminar o IRS e Imposto do Selo retidos em 1991, 1992 e 1993, que ao arguido HFA como responsável pela gestão e administração da empresa competia elaborar e assegurar;
2.42. Foi ainda concluído pela Inspecção Fiscal a já descrita prática da empresa nos anos 1992 e até ao encerramento em Junho de 1993 da omissão de facturação de serviços prestados aos seus clientes traduzida na prática de vender por fora cerca de 90% de parte do serviço prestado;
2.43. Concluindo o relatório daquela Inspecção que a contabilidade da "T.E., Lda." no período de gestão do arguido HFA, de 1991 a 1993 (até à declaração de falência), por não merecer qualquer crédito face à sua desorganização e ao facto de faltarem peças fundamentais, para além das já indicadas, tais como inventários de existências de mercadorias, matéria-primas subsidiárias e de consumo, inventários das existências de produtos e de trabalhos em curso, não reflectia a sua exacta situação patrimonial e o resultado dela efectivamente obtido;
2.44. Concluiu ainda a Inspecção Fiscal por estimativa na base de métodos indiciários, que o valor total relativo a prestação de serviços omitidos por não facturados ascenderia nos anos de 1991, 1992 e 1993 a 541.571.081$00 e que no mesmo período não teria pago qualquer imposto (IVA, IRS, IRC, IS), o mesmo se passando com as retenções das contribuições para a Segurança Social (verifica-se um salto na numeração de 44 para 49);
2.49. A empresa apenas declarou e reteve, não tendo entregue ao Estado os valores de IVA referidos, o montante de IRS e de I. Selo de 1992 também mencionados, não tendo declarado impostos relativamente aos restantes anos e IRS, IS e IRC de 1993;
2.50. A empresa de que o arguido era sócio-gerente omitiu, pois, às declarações de IVA no ano de 1991 a importância de 28.598.082$00, no ano de 1992 a importância de 29.834.376$00 e no ano de 1993 (até 1517/93) a importância de 27.114.262$00, tendo declarado no mesmo período o valor total de 82.679.832$00 que também não pagou pelo que o valor em dívida de IVA é de 168.226.552$00;
2.51. Relativamente ao imposto de IRS, a empresa reteve sem ter pago ao Estado nos anos de 1991 a 15/7/93 os valores de 3.902.725$00, 5.269.680$00 e 2.446.637$00, respectivamente pelo que o valor total em dívida de IRS é de 11.619.042$00;
2.52. Em resultado do pagamento dos salários aos trabalhadores, a empresa reteve também o imposto de selo nos mesmos anos e respectivamente os valores de 377.132$00, 403.075$00 e 187,142$00, no total de 967.349$00 que não entregou nos Cofres do Estado;
2.53. E em consequência da omissão de rendimentos atrás referidas através de ocultação de vendas, no ano de 1992 omitiu um lucro tributável no valor de 116.293.225$00 e no ano de 1993 o lucro tributável de 15.969.609$00, correspondente a 76.816.193$00 e 9.024.904$00 de IRC não pago ao Estado e em dívida;
2.54. Ao não declararem ao Estado nas declarações de rendimento Mod. 22, dos anos de 1992 e 1993, às montantes supra-referidos, o arguido teve o propósito de omitir aqueles rendimentos que usou em seu próprio favor, locupletando-se com eles em prejuízo do Estado e do sócio JLPF:
2.55. Bem como, ao reter os impostos de IVA, IRS e Selo seus clientes e trabalhadores sabia também não lhe pertencerem e serem devidos ao Estado;
2.56. Os prejuízos fiscais declarados pela empresa resultam pelo menos da omissão deliberada das vendas de serviços e mercadoria subfacturada;
2.57. O arguido HFA mais agiu com o propósito e pela forma descrita de levar a empresa à falência, como o fez, apresentando-se ele próprio numa altura em que aquela já não tinha viabilidade em face da gestão ruinosa que deliberadamente levou a cabo e, assim, a vir a adquirir livre de quaisquer encargos ou ónus;
2.58. O arguido agiu deliberada, consciente e livremente, com intenção concretizada de obter benefícios e vantagens económicas e patrimoniais a que não tinha qualquer direito, dessa maneira prejudicando nomeadamente a "T.E., Lda.", os seus credores, o sócio JLPF e o fisco, tendo plena consciência dos valores envolvidos na sua actuação e que eram entendidos na comunidade como muito avultados;
2.59. Agiu sempre na execução da decisão inicialmente tomada relativamente a todos os factos que lhe são imputados e com pleno conhecimento da censurabilidade penal das suas condutas;
2.60. Os arguidos nunca responderam, são casados um com o outro, têm um filho com cinco anos de idade e possuem casa própria;
2.61. O arguido HFA é gerente da sociedade "T-T.A.T., Lda." e a arguida IMRVA é sócia-gerente da mesma sociedade, auferindo cada um deles a importância de 500.000$00 mensais, ilíquidos;
2.62. Os arguidos têm bom comportamento e encontram-se bem integrados na sociedade.
2.63. O arguido HFA possui o 12.º ano de escolaridade;
2.64. A arguida IMRVA possui o 10.º ano de escolaridade.
Não se provaram quaisquer outros factos, nomeadamente que:
a) a arguida IMRVA tenha actuado conjunta e concertadamente com o arguido HFA na execução do plano por ambos inicial e previamente engendrado, passando a administrar a "T.E., Lda." como se lhes pertencesse de facto, única e exclusivamente e em seu único e exclusivo proveito;
b) que tenha tido o propósito ou intenção de não ser paga ao JLPF a sua quota ou de assumir os demais compromissos do arguido HFA para com aquele e que o tenha levado a afastar-se da "T.E., Lda.";
c) que a arguida IMRVA tenha determinado que não fosse facturada parte das transacções efectuadas ou dos serviços prestados pela "T.E., Lda." ou que fosse facturado apenas 10% do seu valor real e que se tenha apropriado de cerca de 90 % do valor dos mesmos serviços;
d) que tenha feito transportar a mercadoria da "T.E., Lda." para o cliente acompanhada de guias de remessa correspondentes à sua quantidade e valor reais para o caso de serem fiscalizados durante o transporte, regressando no entanto as guias àquela para serem posteriormente - facturadas apenas por 10% do valor real da mercadoria e serviços fornecidos e cujo pagamento era exigido de imediato;
e) que a arguida IMRVA se tenha apropriado de avultadas quantias em dinheiro que fez seu e despendeu em proveito próprio, sabendo que não lhe pertencia, mas à sociedade, e assim lhe tenha causado sérios prejuízos, bem como ao outro sócio, JLPF e ao Estado, diminuindo de forma considerável o lucro tributável da empresa ao não contabilizar a maior parte das transacções comerciais efectuadas;
f) que a arguida IMRVA tenha engendrado e executado o plano de se apropriar das instalações e imobilizado da "T.E., Lda.", em prejuízo da mesma, dos seus credores e do sócio JLPF, para seu próprio e exclusivo beneficio;
g) que a arguida IMRVA tenha tido o propósito de omitir rendimentos ao Estado para os usar em proveito próprio, locupletando-se com eles em prejuízo do Estado e do sócio JLPF e que tenha retido impostos de IVA, IRS e Selo dos clientes e trabalhadores da "T.E., Lda.";
h) que a arguida IMRVA tenha agido deliberada, consciente e livremente, com intenção concretizada de obter benefícios e vantagens económicas e patrimoniais a que não tinha direito, dessa maneira prejudicando nomeadamente a "T.E., Lda.", os seus credores, o sócio JLPF e o fisco, tendo plena consciência dos valores envolvidos na sua actuação e que eram genericamente entendidos na comunidade como muito avultados;
i) que a arguida IMRVA tenha agido na execução da decisão inicialmente tomada relativamente a todos os factos que lhe são imputados na acusação e com pleno conhecimento da censurabilidade penal da sua conduta.
j) Não se provou que em 1992 em 104 transacções e em 1993 entre 209 a 250 transacções o arguido HFA se tenha apropriado de 90% do valor dos serviços prestados nesse período pela "T.E., Lda.", em montante mensal não inferior a 10.000.000$00, que reverteu exclusivamente em seu proveito próprio;
1) Que o arguido HFA tenha feito tudo e sacrificado o seu património e o seu bem estar para salvar a "T.E., Lda.";
m) Que o arguido HFA se não tenha apropriado de benefícios ilegais.
1.2. Esta a factualidade apurada no julgamento a que procedeu o Tribunal Colectivo do 1.º Juízo Criminal de Vila Nova de Famalicão (processo comum n.º 452/99), dos arguidos HFA e IMRVA, acusados pelo Ministério Público da prática, em co-autoria material e concurso efectivo, de um crime de burla dos art.º 313º, n.º 1, e 314º, al. c), e de um crime de abuso de confiança, na forma continuada, dos art.ºs 300º, n.º 1 e 2, al. a) e art.º 30º, n.º 2, todos do Cód. Penal de 1982, e ainda ao 1.º arguido a prática de 2 crimes de burla dos art.º 313º, n.º 1, e 314º, al. c), 1 crime de insolvência dolosa do art. 325º, n.º 1, als. a) b) e c) e 2, 1 crime de denúncia caluniosa do art. 408º, n.º 1 e 3, todos do Código Penal de 1982; 1 crime de fraude fiscal do art. 23º do RJIFNA, e 1 crime de abuso de confiança fiscal do art. 24º do mesmo diploma.
O Estado Português, representado pelo Ministério Público, deduziu pedido de indemnização civil contra o demandado HFA, pedindo a sua condenação a pagar a quantia de 266.654.040$00, acrescida de juros de mora à taxa legal.
O assistente JLPF deduziu igualmente acusação e formulou pedido de indemnização civil, com fundamento na acusação pública, contra o arguido HFA, no montante de 410.000.000$00, acrescido de juros à taxa legal desde a notificação.
1.3. O tribunal colectivo, por acórdão proferido em 15.5.01, decidiu, além do mais:
- absolver a arguida IMRVA da prática, em co-autoria e concurso efectivo de 1 crime de burla dos art.º 313º, n.º 1 e 314º, al. c) e de um crime de abuso de confiança, na forma continuada dos art.º 300º, n.º 1 e 2, al. a) e 30º, n.º 2, todos do Código Penal de 1982;
- absolver o arguido HFA da prática, de 1 crime de denúncia caluniosa p. e p. pelo art. 408º, n.º 1 e 3 do Código Penal de 1982;
- julgar extinto o procedimento criminal, por prescrição, os crimes de fraude fiscal do art. 23º do RJIFNA e abuso de confiança fiscal do art. 24º do mesmo diploma legal, de que o arguido HFA era acusado;
- condenar o arguido HFA pela prática de 1 crime de burla dos art. 313º e 314º, al. c) do Cód. Penal de 1982, na pena de prisão de 3 anos, 1 crime de burla dos art. 313º e 314º al. c) do Cód. Penal de 1982, na pena de prisão de 1 ano e 6 meses; 1 crime de abuso de confiança, na forma continuada dos art. 300º, n.º 1 e 2, al. a) e 30º, n.º 2, do Cód. Penal de 1982, na pena de prisão de 2 anos; 1 crime de insolvência dolosa p. e p. art. 325º, n.º 1, als. a), b) e c) e 2 do Cód. Penal de 1982, na pena de prisão de 1 ano e 6 meses, e, em cúmulo jurídico, na pena de prisão única de 5 anos e 6 meses.
- absolver o demandado HFA do pedido de indemnização civil formulado pelo Ministério Público; - julgar procedente, por provado, o pedido de indemnização civil formulado e, em consequência, condenar o demandado HFA a pagar ao demandante JLPF a quantia de 410.000.000$00, acrescida de juros de mora, às taxas legais, desde a notificação até efectivo e integral pagamento.
E, por acórdão de 16.5.01, foi aquela decisão corrigida com aplicação dos perdões concedidos pelas Leis n.º 15/94, de 11 de Maio, e n.º 29/99, de 12 de Maio, e, de acordo com o disposto no art. 8º, n.º 1, al. d), da referida Lei 15/94, declararam perdoado 1 ano da pena de prisão em que o arguido HFA foi condenado e, de harmonia com o disposto no art. 1º, n.º 1, da citada Lei 29/99, também declararam perdoado 1 ano da mesma pena de prisão.
II
2.1. Inconformado, o arguido HFA interpôs recurso para o este Supremo Tribunal de Justiça, que, por acórdão de 29.11.01, ordenou a remessa dos autos à Relação do Porto, por ser o competente para apreciação, de facto e de direito, do recurso.
2.2. A Relação do Porto, por acórdão de 2.10.02, decidiu conceder parcial provimento ao recurso, e, em consequência:
- absolver o arguido HFA da prática dos crimes de burla dos art. 313º e 314º al. c) do C. Penal de 1982, por que foi acusado;
- manter a condenação do mesmo arguido pela prática do crime de abuso de confiança, na forma continuada, dos arts. 300º, n.º 1 e 2, al. a), e 30º, n.º 2, do C. Penal de 1982, na pena de prisão de 2 anos; e do crime de insolvência dolosa, p. e p. art. 325º, n.º 1, als. a), b) e c) e 2 do C. Penal de 1982, na pena de prisão de um ano e seis meses, e, reformulando o cúmulo jurídico das penas parcelares, condenar o arguido na pena única de 2 anos e 9 meses de prisão;
- suspender a execução desta pena única pelo período de dois anos, sem prejuízo de, no caso de revogação, beneficiar dos perdões de pena das Leis n.º 15/94, de 11 de Maio e n.º 29/99, de 12 de Maio.
- julgar improcedente o pedido de indemnização civil conexo com o crime de burla, formulado pelo assistente e demandante JLPF, absolvendo de tal pedido o demandado HFA.

III
3.1. É dessa decisão que vem trazido o presente recurso pelo assistente JLPF, que concluiu na sua motivação:
1 - Foram dados como provados, em síntese, e no essencial para o julgamento do presente recurso, os seguintes factos que, a par do dolo (a intenção de lesar o Assistente, para se locupletar à sua custa), integram o artifício fraudulento que o Arguido usou para obter tal desígnio:
- Surgiram desentendimentos entre o Assistente e o Arguido, que, desde Junho de 1989 eram os únicos sócios da "T.E., Lda.", o que os levou a acordar na saída do Assistente, tendo-se desenvolvido negociações entre eles, destinadas a salvaguardar reciprocamente os seus interesses, que culminaram com a celebração de um contrato promessa de cessão de quotas em 8 de Novembro de 1991, pelo qual o Assistente assumiu obrigações que cumpriu, em proveito da sociedade, no montante de 190.000.000$00; cedeu ao Arguido os seus suprimentos, no montante de 158.233.000$00; e renunciou à gerência; e o arguido obrigou-se a responder por todos os compromissos que o Assistente assumira em proveito da sociedade; convencionando-se que o preço de cessão de quotas, seria de 410.000.000$00 (Quatrocentos e dez milhões escudos), pagáveis em prestações a partir de Fevereiro de 1992, devendo ser emitido pelo Arguido um cheque desse montante, que ficaria em poder do advogado do Assistente, para garantia do pagamento daquele preço, que seria substituído por tantos cheques quantas as prestações a pagar.
- Porém, o cheque de 410.000.000$00 acabou por não ficar na posse do advogado do Assistente, mas do advogado do Arguido, que (colaborante, e com que mérito!), o inutilizou como garantia, apondo-lhe a data do próprio dia da celebração do contrato (8 de Novembro de 1991 - fls. 566 - quando se destinava a ser utilizado nunca antes de 10 de Fevereiro de 1992), e foi sendo recusada pelo Arguido sucessivamente a sua entrega ao advogado do Assistente para este poder valer os seus direitos (ver nº. 12 da al. A) do antecedente nº. 1).
Depois de tomar conta, em exclusivo, da gerência, o Arguido passou a explorar a sociedade locupletando-se com cerca de 90% das suas receitas; provocou a venda judicial do edifício da sociedade, no valor de cerca de 120.000.000$00, através de uma execução, para o que não pagou o respectivo montante de 534.000$00, adquirindo-o através de uma sua filha, na venda judicial, por 10.000.000$00; não cumpriu a obrigação de pagar as responsabilidades do Assistente para com a sociedade, o que determinou que a quota deste fosse penhorada para satisfação de uma dessas responsabilidades, na sequência do que provocou a amortização dessa quota; acabou por conduzir a sociedade à falência; e constituiu em nome de sua mulher e de um cunhado uma outra sociedade "T-T.A.T., Lda.", que acabou por comprar, por acção sua, as máquinas da falida, e que continua a funcionar nas instalações, ora do Arguido, embora, aparentemente, em nome da filha.
- Ao agir como agiu, o Arguido procedeu, desde o início (note-se bem, desde o início), com o propósito de nada pagar ao Assistente, nem de cumprir qualquer das obrigações que assumiu por ele, causando-lhe um prejuízo do montante de 758.233.000$00 (SETECENTOS E CINQUENTA E OITO MIL DUZENTOS E TRINTA E TRÊS MIL ESCUDOS).
2 - Essa intenção, que civilisticamente tem o nome de reserva mental, e penalmente se chama dolo, foi conseguida através de negociações que culminaram com a celebração de um contrato promessa de cessão de quotas, acompanhada da emissão de um cheque, que, como sai dizer-se, "foi para inglês ver", destinado a permitir que o Assistente fosse proporcionando um meio expedito para, em caso de incumprimento do Arguido, fazer valer os seus direitos, mas que, na sequência da intenção inicial do Arguido, nunca chegou a ter o destino convencionado - a entrega ao advogado do Assistente.
3 - Esse procedimento complexo, que permitiu ao Arguido vigarizar o Assistente, constitui manifesto artifício fraudulento, sendo, salvo o devido respeito, irrisório justificar que assim não é, como pretende o, aliás, douto acórdão recorrido, com o fundamento de que o Assistente contratou livremente, nos termos do art. 405º C.C., sem ser enganado pelo Arguido, já que a reserva mental com que ele agiu não integra o artifício fraudulento indispensável à verificação da burla.
4 - Não está em causa a liberdade de actuação do Assistente, mas o logro em que caiu, através de contratação ardilosa que o Arguido com ele celebrou, a que não faltou a miragem do cheque que nunca chegou ao seu destino.
5 - Nem se confunde a intenção fraudulenta com o artifício que permitiu que a mesma se concretizasse (ver jurisprudência e doutrina citadas).
6 - Assim, o, salvo devido respeito, autêntico milagre da absolvição do Arguido só foi possível com a ofensa do disposto no art. 217º C.P., que, o, aliás, douto acórdão recorrido violou, pelo que deve ser revogado, e, consequentemente, o Arguido condenado pela prática do crime de burla que lhe é imputado.
7 - Condenado o Arguido por tal crime, deverá ser condenado na respectiva indemnização.
8 - Conforme resulta do nº. 16 da al. A) do nº. 1, o Arguido lesou o Assistente em 758.235.000$00, valor superior ao pedido.
9 - De qualquer maneira, nenhum Tribunal tem elementos para discordar do valor de 410.000.000$00 (Quatrocentos e dez milhões de escudos) que o Arguido e o Assistente atribuíram à quota deste, pelo que nessa quantia deverá ser condenado o Arguido, acrescida de juros legais.
10 - Se fosse o caso de inexistirem elementos que permitissem fixar a indemnização, deveria o Tribunal proceder em conformidade com o disposto no art. 82º nº. 1 C.P.C.
Com o douto suprimento de Vossas Excelências, aguarda JUSTIÇA.
3.2. Respondeu o arguido, que concluiu:
1.ª O recorrente não cumpre o ónus a que se encontra adstrito em função das alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 412º do CPP, pelo que o seu recurso deve ser rejeitado (corpo do citado preceito).
2.ª As questões que o recorrente coloca no seu recurso não são aquelas que integram o objecto da decisão recorrida quando absolveu o arguido ora respondente pelos crimes de burla agravada, pois ele ataca apenas a verificação dos elementos subjectivos do tipo de crime em apreço, o de burla, quando o que o aresto recorrido decidiu foi a não verificação do elemento objectivo do erro ou engano astuciosamente engendrado.
3.ª Na verdade, quanto à questão do primeiro crime de burla, o decorrente do contrato-promessa entre o arguido e o assistente, a absolvição do arguido não decorreu da circunstância de o aresto ter dado como não verificados os elementos subjectivos do crime de burla, mas antes pelo facto de considerar que faltavam os elementos atinentes ao elemento objectivo do erro ou engano engendrado de modo astucioso e o recorrente aquilo que considera o que os factos provados integram «intenção, que civilisticamente tem o nome de reserva mental, e penalmente se chama dolo» (conclusão 2., ou seja os elementos subjectivos do tipo de crime em causa.
4.ª O recorrente esquece que o aresto recorrido, ante os factos dados como provados, afastou a verificação do elemento objectivo em causa, por ter entendida estar-se, no caso, perante vicissitudes de uma negociação entre sócios atinentes a um contrato-promessa, em que, a ter-se verificado reserva mental de incumprimento tal geraria mera responsabilidade civil, não gerando qualquer efeito penal.
5.ª Quanto ao segundo crime de burla, o atinente à obtenção de um cheque e seu destino, o recorrente olvida e não impugna o critério do aresto recorrido quando nele se concluiu que (i) «o sacador sabia - como qualquer homem médio o não ignoraria - que só o pagamento o exoneraria da responsabilidade penal', pelo que «não chega a haver astúcia, nem sequer erros (ii) e que, o facto de o arguido haver recebido do ofendido o dito cheque e o não haver contabilizado a favor da sociedade a quem pertencia, antes o havendo endossado a favor de sua filha, «não logra obter elementos típicos característicos do crime de burla antes se limita a dar como provado que o ora arguido está em débito com a sociedade no que tange a tal quantia».
6.ª Em matéria de pedido cível (i) o recorrente não aduz razões de Direito que fundamentem as duas afirmações genéricas, vagas e conclusivas que constam, sob forma opinativa das conclusões 8ª a 10ª da sua motivação (ii) e ademais, não havendo condenação penal, falta a causa de pedir que fundamente o pedido, senda que o artigo 71º do CPP apenas permite condenação em indemnização civil derivada de «crime».
7.ª O aresto recorrido fez uma correcta determinação, interpretação e aplicação das normas jurídicas pertinentes, não se verificando a violação do preceito legal citado pelo recorrente, o artigo 217º do Código Penal.
Nestes termos, deve ser mantido o acórdão recorrido.
3.3. Respondeu igualmente o Exmo. Magistrado do Ministério Público junto da Relação do Porto, pronunciando-se pelo improvimento do recurso.

IV
Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Ministério Público, no visto a que alude o art. 416º do CPP, e sem prejuízo das alegações orais, antecipou o seu parecer de improcedência pelos fundamentos constantes das respostas do Ministério Público junto da Relação do Porto e do arguido.
No que se refere à questão prévia aflorada pelo arguido, pronunciou-se negativamente, por ser a referência ao art. 217º do C. Penal suficientemente identificadora do objecto da divergência do arguido sobre a "norma jurídica violada".
Procedeu-se a audiência. No seu decurso o Ministério Público não manteve a posição anteriormente assumida, pois que a Relação se ocupou da equiparação da «mera reserva mental» à fraude penal em termos que merecem concordância em geral, mas todos os elementos do caso concreto impõem, no entanto, um solução diferente, uma vez que foram patentemente violados os princípios da boa fé. A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que o contrato de promessa pode ser um instrumento de burla, não bastando o simples erro, uma vez que é necessária a astúcia. A mera não cessão de quotas sufragaria a tese do arguido, o que não é o caso, provado que foi que, gizado um propósito de não cumprimento, com astúcia, para que o assistente sofresse logo prejuízo patrimonial , logo traduzido na disposição dos suprimentos, pagamento das dívidas, com a astuciosa da elaboração do cheque de garantia, tudo criou uma séria expectativa de contratar que levou o assistente a dispor de direitos que criaram os prejuízos patrimoniais.
Concluiu o Ministério Público que deve ser julgado procedente o recurso quanto ao primeiro crime de burla e não quanto ao segundo, que não foi objecto de impugnação.
O Assistente manteve a posição assumida em sede de motivação e referiu que não impugnou a absolvição pelo segundo crime de burla, por entender não ter quanto a ele legitimidade.
A defesa remeteu para a posição assumida em sede de resposta à motivação de recurso
Cumpre, pois, conhecer e decidir.
V
E conhecendo.
4.1. No presente recurso são colocadas duas questões:
- saber se ocorreu o artifício fraudulento que leve a que se conclua pela verificação do crime de burla, ou se trata de mera reserva mental só civilmente relevante;
- saber se, nesse caso, devem os arguidos ser condenados no pedido de indemnização formulado pelo assistente.
Deste enunciado resulta que o assistente, no texto e nas conclusões da motivação, deixou cair a absolvição decretada pela decisão recorrida, quanto ao segundo crime de burla: o atinente à obtenção de um cheque e seu destino, que assim não será objecto da apreciação deste Supremo Tribunal de Justiça .
4.2.1. No que se refere à 1.ª questão, sustenta, como se viu, o assistente que surgiram desentendimentos entre ele e o Arguido, únicos sócios de uma Tinturaria, ""T.E., Lda.", acordaram na sua saída e celebraram, em 8.11.91, um contrato promessa de cessão de quotas pelo qual assumiu obrigações que cumpriu, em proveito da sociedade, no montante de 190.000.000$00; cedeu ao Arguido os seus suprimentos, no montante de 158.233.000$00; e renunciou à gerência; e o arguido obrigou-se a responder por todos os compromissos que o Assistente assumira em proveito da sociedade; convencionando-se que o preço de cessão de quotas, seria de 410.000.000$00, pagáveis em prestações a partir de Fevereiro de 1992, devendo ser emitido pelo Arguido um cheque desse montante, que ficaria em poder do advogado do Assistente, para garantia do pagamento daquele preço, que seria substituído por tantos cheques quantas as prestações a pagar. Cheque esse que acabou por ficar na posse do advogado do Arguido, que o inutilizou como garantia, apondo-lhe a data do próprio dia da celebração do contrato 8.11.91, quando se destinava a ser utilizado nunca antes de 10.2.1992, e foi sendo recusada pelo Arguido sucessivamente a sua entrega ao advogado do Assistente para este poder valer os seus direitos.
Depois de tomar conta, em exclusivo, da gerência, o Arguido passou a explorar a sociedade locupletando-se com cerca de 90% das suas receitas; provocou a venda judicial do edifício da sociedade, no valor de cerca de 120.000.000$00, através de uma execução, para o que não pagou o respectivo montante de 534.000$00, adquirindo-o através de uma sua filha, na venda judicial, por 10.000.000$00; não cumpriu a obrigação de pagar as responsabilidades do Assistente para com a sociedade, o que determinou que a quota deste fosse penhorada para satisfação de uma dessas responsabilidades, na sequência do que provocou a amortização dessa quota; acabou por conduzir a sociedade à falência; e constituiu em nome de sua mulher e de um cunhado uma outra sociedade ""T-T.A.T., Lda.", que acabou por comprar, por acção sua, as máquinas da falida, e que continua a funcionar nas instalações, ora do Arguido, embora, aparentemente, em nome da filha.
Assim, o Arguido procedeu, desde o início, com o propósito de nada pagar ao Assistente, nem de cumprir qualquer das obrigações que assumiu por ele, causando-lhe um prejuízo do montante de 758.233.000$00 (conclusão 1.ª).
Essa intenção (nome de reserva mental) chama-se penalmente dolo, foi conseguida através de negociações que culminaram com a celebração de um contrato promessa de cessão de quotas, acompanhada da emissão de um cheque, que, destinado a permitir que o Assistente fosse proporcionando um meio expedito para, em caso de incumprimento do Arguido, fazer valer os seus direitos, mas que, na sequência da intenção inicial do Arguido, nunca chegou a ter o destino convencionado - a entrega ao advogado do Assistente (conclusão 2.ª).
Tal procedimento complexo, constitui o manifesto artifício fraudulento que permitiu ao Arguido vigarizar o Assistente, sendo irrisório justificar que assim não é com o fundamento de que o Assistente contratou livremente (art. 405º C.C.), sem ser enganado por aquele, já que a reserva mental com que ele agiu não integra o artifício fraudulento indispensável à verificação da burla (conclusão 3.ª).
Quando não está em causa a sua liberdade de actuação, mas o logro em que caiu, através de contratação ardilosa que o Arguido com ele celebrou, a que não faltou a miragem do cheque que nunca chegou ao seu destino (conclusão 4.ª), nem se confunde a intenção fraudulenta com o artifício que permitiu que a mesma se concretizasse (conclusão 5.ª).
4.2.2. Sobre essa questão decidiu-se no acórdão recorrido.
«Questão mais delicada, suscitada pelo recorrente, é a de saber se a matéria dada como provada nos números 2.3 a 2.17 é insuficiente para integrar os elementos típicos característicos do crime de burla, o que implica erro de Direito (alínea a) do n.º 2 do artigo 410º do CPP), por violação dos artigos 313º do Código Penal de 1982 e 217º do Código Penal que lhe sucedeu. (conclusões 3 e 5 a 10).
Na motivação do recurso afirma-se que:
«Nos números 2.3 a 2.8 dá-se conta das obrigações que haviam sido assumidas pelo ora arguido, as quais integravam (i) a promessa de outorga numa cessão de quotas para aquisição de quotas (ii) o pagamento de um preço como contrapartida dessa cessão de quotas (iii) a emissão de um cheque como garantia de tal pagamento.
No número 2.12 alude-se ao incumprimento da obrigação de outorga da escritura, que se diz imputável ao arguido por uma razão: este «nunca de ter disponibilizado para o efeito».
No número 2.13 diz-se que o arguido não entregou nem permitiu que fosse entregue ao promitente cedente o cheque de garantia que havia sido combinado.
No número 2.14, instrumentalmente, alude-se a que o ora arguido permitiu que fosse penhorada a quota do seu sócio, o JLPF.
Nos números 2.15 e 2.16 aponta-se qual teria sido o objectivo do arguido, o qual, segundo foi dado como provado, visaria assenhorear-se da sociedade comercial "T.E., Lda.".
E, finalmente, no número 2.17, situa-se temporalmente essa intenção de incumprimento, dando-se como provado que o ora arguido nunca tivera «a intenção de pagar ao JLPF a sua quota ou de assumir outros compromissos então declarados», o que «levou este a afastar-se da empresa pela forma descrita só porque o convenceu da autenticidade das negociações e do contrato celebrado, com o que lhe causou um prejuízo correspondente ao preço não pago da respectiva quota, ao montante dos suprimentos que transferiu para o arguido e às dívidas comerciais da sociedade por ele pagas à União de Bancos Portugueses e ao Banco Comercial Português, num total de 758 233 000$00».
Será esta matéria de facto insuficiente para integrar os requisitos típicos do crime de burla, tal como vem tipificado na lei penal?
Sobre o crime de burla, o art. 313º, n.º 1, do Código Penal de 1982, dispõe o seguinte: «Quem, com a intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo através de erro ou engano sobre factos, que astuciosamente provocou, determinar outrem à pratica de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízos patrimoniais, será punido com prisão até 3 anos.»
De forma idêntica dispõe o art. 217º, n.º 1, do Código Penal revisto em 1995: «Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.»
O recorrente refere - e bem - que "a burla exige a verificação de um (i) um objectivo de enriquecimento ilegítimo (iii) como contrapartida de um dano do sujeito passivo (iii) dano esse alcançado por uma conduta deste (iv) conduta essa que lhe é determinada por causa de um processo enganatório astuciosamente engendrado pelo sujeito activo, que assim manipula, por esta forma, o espírito da sua vítima", acrescentando que "a acção típica da burla exige pois um processo enganatório astucioso", citando, a propósito e como fazendo eco da síntese do crime em apreço, o sumário do Acórdão desta Relação de 03.05.2000, que diz: «Para a verificação do crime de burla, há que considerar, num primeiro momento, a verificação de uma conduta astuciosa que induza directamente ou mantenha em erro ou engano o lesado; e, num segundo momento, deverá verificar-se um enriquecimento ilegítimo de que resulte prejuízo patrimonial do sujeito passivo ou de terceiro, como efeito daquela conduta.» (Publicado in C. J., XXV, T. 3.º, 223)
Analisando os actos objectivos dados como provados no acórdão recorrido, somos levados a concluir que "são apenas meros incumprimentos de obrigações livremente pactuadas entre o arguido e o seu sócio", partilhando de igual entendimento o Exmo. Magistrado do M.º P.º na sua douta resposta, que o Exmo. PGA acompanhou.
Na verdade, "os actos objectivos dados como provados no acórdão condenatório ao significarem incumprimento de um contrato-promessa de cessão de quota são insuficientes para caracterizar a acção típica característica do crime de burla, revestindo apenas os elementos atinentes à responsabilidade civil contratual (artigo 798º do CCv), mormente por violação do contrato-promessa que ligava o arguido ao seu sócio."
O incumprimento do contrato prometido por parte do arguido/recorrente resultou, de nunca se ter disponibilizado para a realização da escritura definitiva de cessão de quotas apesar de ter acordado, inclusive na transacção homologada judicialmente em 8/6/92, a outorgá-la no prazo de 30 dias a partir dessa data (cf. facto 2.12), sendo certo que não entregou nem permitiu que fosse entregue ao JLPF ou ao seu advogado, o mencionado cheque no valor de 410.000.000300 ou qualquer outro cheque ou montante para pagamento da quota que nos termos atrás descritos prometera comprar (cf. facto 2.13) e foi dado como provado que tinha sido desde o início propósito do arguido nunca ter intenção de pagar ao JLPF a sua quota ou de assumir outros compromissos então declarados (facto 2.17).
Houve, pois, uma intenção originária de incumprimento, que integra plenamente a situação da reserva mental prevista no artigo 244º do CCv (que, no seu n.º 1, diz o seguinte: «Há reserva mental, sempre que é emitida uma declaração contrária à vontade real com o intuito de enganar o declaratário») e este requisito civilístico da reserva mental de incumprimento da obrigação prometida não pode ser equiparado ao requisito penal do erro engendrado astuciosamente.
O Assistente contra-alega que "a intenção originária (note-se) de não cumprir, no plano civilístico, chama-se reserva mental, mas, no caso vertente, em que a situação é apreciada penalmente, tem o nome de intenção fraudulenta ou dolo, elemento subjectivo integrador do crime de burla" e que "o contrato-promessa celebrado com o Assistente, foi o meio astucioso que o Arguido adoptou para concretizar o plano de se locupletar à custa do Assistente (veja-se a propósito de um caso análogo, em que o artifício fraudulento consiste na obtenção de um empréstimo, o Ac. S.T.J., de 19-5-94, in Col. Ac.s S.T.J., II, II, pág. 216)" e argumenta ainda que "a celebração de um contrato que o contraente tem a intenção preconcebida de não cumprir, é uma das formas que pode revestir o artifício fraudulento a que se refere o art. 217º C.P.P; além do citado Ac. S.T.J., de 19-5-94, o Comentário Conimbricence ao Código Penal, vol. II, pág. 305 ("A assunção de uma obrigação contratual comporta, de forma concludente, o significado adicional de que o indivíduo se encontra na disposição de cumprir, pelo que faltando esta última, se depara com um crime de burla").
No caso em apreço, porém, não perfilhamos tal entendimento, equiparando a reserva mental ao artifício fraudulento, face ao circunstancialismo e aos termos do prometido e acordado entre o arguido e o assistente, visto que, além de sócios desde Junho de 1989, o que acordaram ocorreu «...na sequência de negociações prévias para o efeito, com respeito pelos interesses nomeadamente patrimoniais de cada um dos sócios que respectivamente procuraram acautelar,...» (cf. factos 2.3 a 2.8).
Tal acordo insere-se, assim, no quadro da autonomia da vontade das partes, nos termos do artigo 405º do CCV [na motivação observa-se que «O contrato de cessão de quotas consubstancia-se em uma das espécies do género transmissão entre vivos de quotas, particularizada pela envolvência de um acto de vontade do respectivo titular», assim se expressou o Acórdão da Relação de Lisboa de 13.05.99 (proferido no processo n.º 2657/99 e sumariado no BMJ 487/351)], não se vislumbrando ter havido erro ou engano sobre factos astuciosamente provocado pelo arguido, isto é, artifício fraudulento para a obtenção desse acordo, não preenchendo tal requisito do crime de burla, a mera reserva mental, sob pena de "violação do artigo 29º da Constituição, por assim, se projectar o âmbito material de incidência do crime de burla para além dos limites consentidos pelo princípio constitucional da legalidade incriminatória."
Como refere o ilustre advogado do recorrente, transcrevendo o que ensinou como docente universitário (cf. José António Barreiros, CRIMES CONTRA O PATRIMÓNIO, Universidade Lusíada, 1996, pág. 161) e que se tem por legalmente correcto, «...a mera reserva mental, quer porque se limita ao mero processo enganatório, quer porque não exige o efectivo erro ou engano da vítima, está demasiado aquém do que é necessário dar como existente para uma situação de astúcia: exigindo a burla um erro ou engano astuciosamente gerado pelo agente na sua vítima, a reserva mental seria apenas e simplesmente o erro ou engano sem o elemento instrumental da astúcia».
Ora, no caso vertente, entendemos que não houve este elemento, ou seja, o artifício fraudulento, que não pode ser uma intenção do foro íntimo do arguido, para viciar a formação da vontade do seu co-sócio, tendo havido apenas reserva mental, susceptível de gerar responsabilidade civil por incumprimento do contrato-promessa (art. 798º e segs. do CCV), ou pré-contratual (art. 227º do, CCV, mas não responsabilidade criminal, e por isso, a matéria de facto provada - não havendo outra a apurar e sendo possível decidir (art. 426º, n.º 1, do CPP) - é, na verdade, insuficiente para dar como verificada a prática do crime de burla imputado ao arguido/recorrente, e, por conseguinte, este deverá ser absolvido da prática de tal ilícito, procedendo, nesta parte, o recurso.»
4.2.3. Dispõe o art. 217º burla do texto actual do Código Penal (que não se afasta nos elementos essenciais do art. 313º do texto de 1982) que:
«1. Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial, é punido com pena de prisão ate 3 anos ou com pena de multa.
2. A tentativa e punível.
3. O procedimento criminal depende de queixa.
4. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 206º e na alínea a) do artigo 207º.»
São, assim, elementos do crime de burla:
intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo;
por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou;
determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outrem, prejuízo patrimonial (Acs. do STJ de 8.2.01, proc n.º 2745/01-5 e de 18.1.91, Acs STJ IX, 1, 218, do mesmo Relator e Ac. de 18-10-2001, 2362/01-5, também subscrito pelo Relator do presente).
O crime de burla apresenta-se como a forma evoluída de captação do alheio em que o agente se serve do erro e do engano para que incauteladamente a vítima se deixe espoliar (Ac. de 19-12-1991, BMJ 412-234).
«Com os seus variadíssimos processos, a fraude é bem o atestado do poder de inventiva e perspicácia do homo sapiens. Tem espécies e subespécies, padrões clássicos e expedientes de acaso. Há a fraude reconhecível a olho nu como infracção penal e a parva calliditas, que se abriga à sombra de uma proclamada naturalis licentia decipiendi. Há a fraude corriqueira dos clientes habituais da prisão e a fraude subtil daquela gente que sabe tangenciar a lei penal e constitui a legião dos "criminosos astutos e afortunados" de que nos conta FERRIANI» (Nelson Hungria, Comentários ao Código Penal, VII, pág. 168).
Os elementos que preenchem e informam a tipicidade do crime de burla são o uso de erro ou engano sobre os factos, astuciosamente provocados para determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou a terceiro, prejuízo patrimonial, com intenção de obter para o agente ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo (Ac. de 11-10-2001, proc. n.º 1295/01-5, Acs STJ ano IX t 3 pág. 192).
Vejamos, agora, o elemento questionado no presente processo: o erro ou o engano.
Na 1.ª Comissão Revisora do C. Penal referiu «ao lado do erro coloca-se o engano. Mas também não basta qualquer erro; é necessário que ele tenha sido provocado ou aproveitado astuciosamente» (BMJ 287-41)
«A mera mentira verbal pode, pois, dada a redacção deste artigo, ser meio do induzimento em erro ou do engano, excepto se a mentira for tal que a mais elementar prudência aconselha a que não seja acreditada (salvo se se provar que a vítima, por completa ignorância, ou outro motivo relevante do agente - uma deficiência passageira do raciocínio ou da atenção, resultante, por exemplo, de abalo moral recente - não estava em condições de se precaver)» (Simas Santos e Leal-Henriques, C. Penal Anotado, II, págs 837-89)
No Comentário Conimbricense (A. Almeida Costa, II, pá. 301) referem-se a propósito deste elemento três modalidades: «quando o agente provoca o erro de outrem, descrevendo-lhe, por palavras ou declarações expressas (sob a forma oral ou escrita), uma falsa representação da realidade. A segunda observa-se na hipótese de o erro ser ocasionado, não expressis verbis, mas através de actos concludentes, i.e., de condutas que não consubstanciam, em si mesmas, qualquer declaração, mas, a um critério objectivo - a saber, de acordo com as regras da experiência e os parâmetros ético-sociais vigentes no sector da actividade -, mostram-se adequados a criar uma falsa convicção sobre certo facto passado, presente ou futuro. Em terceiro lugar, refere-se a burla por omissão: ao contrário do que sucede nas situações anteriores, o agente não provoca, agora, o engano do sujeito passivo, limitando-se a aproveitar o estado de erro em que ele já se encontra»
Também sobre este elemento se tem pronunciado de forma pacífica este Supremo Tribunal de Justiça em diversos arestos, cuja doutrina se mantém inteiramente válida.
Ao lado do erro como meio de execução da burla coloca-se também o engano. É necessário que o erro ou engano tenham sido provocados astuciosamente pelo agente da infracção; isto é, usando de um meio engenhoso para se enganar ou induzir em erro. Trata-se de uma exigência que acresce a um dolo que já de per si é específico, pois que se exige a intenção de enriquecimento ilegítimo (Ac. do STJ de 02-07-1992, proc. n.º 42779).
(1) O burlado nas hipóteses de erro, como de engano, só age contra o seu património ou de terceiros por que tem um falso conhecimento da realidade Simplesmente esse seu falso convencimento nasce, no caso do mero engano, da mentira que lhe é dada a conhecer pelo burlão. (2) A vítima, ao ser induzida em erro toma uma coisa pela outra, pertencendo ao agente a iniciativa de causar o erro. Na manutenção do erro a vítima desconhece a realidade, o agente perante o erro já existente, causa a sua persistência, prolongando-o, ao impedir, com a sua conduta astuciosa ou omissiva do dever de informar, que a vítima se liberte dele. (3) O segundo momento do crime de burla é a prática de actos que causem prejuízos patrimoniais. (4) Tem de existir uma relação entre os meios empregues e o erro e o engano, e entre estes e os actos que vão directamente defraudar o património de terceiros ou do burlado. Mas se o engano é mantido ou produzido e se lhe segue o enriquecimento ilegítimo no sentido civil em prejuízo da vítima, não há lugar a indagações sobre a idoneidade do meio empregue, considerado abstractamente. Da mesma forma não importa apurar se esse meio era suficiente para enganar ou fazer cair em erro o homem médio suposto pela ordem jurídica, uma vez que uma eventual culpa da vítima não pode constituir uma desculpa para o agente (Ac. de 19-12-1991, BMJ 412-234).
(2) A astúcia posta pelo burlão tanto pode consistir na invocação de um facto falso, como na falsa qualidade, como na falsificação da escrita, ou outra qualquer. Interessa, apenas, que os factos invocados dêem a uma falsidade a aparência de verdade, ou, como diz a lei alemã, o burlão refira factos falsos ou altere ou dissimule factos verdadeiros. (3) O burlão, actuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro. É indispensável, assim, que os actos além de astuciosos, sejam aptos a enganar, não se limitando o burlão a mentir, mentindo com engenho e habilidade, revelando uma maior intensidade no dolo e uma maior susceptibilidade dos outros serem convencidos. (4) Longe de envolver, de forma inevitável, a adopção de processos rebuscados ou engenhosos, a sagacidade do agente comporta uma regra de "economia de esforço", limitando-se o burlão ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima. (5) A idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente afere-se tomando em consideração as características do concreto burlado (Ac. de 18-10-2001, 2362/01-5, também subscrito pelo Relator do presente).
Finalmente, (4) por erro deve entender-se a falsa (ou a nenhuma) representação da realidade concreta, a funcionar como vício influenciador do consentimento ou da aquiescência da vítima. (5) O engano a que o art. 217º, n.º 1, do CP, faz referência, continua a equivaler à mera mentira (a uma mentira pré-ordenada). (6) Para a comprovação do crime de burla ganha vulto a imprescindibilidade de uma factualização expressa e inequívoca das práticas integradoras da indução em erro ou da força do engano, pois que só a partir da concretização dessas práticas e dos seus cambiantes envolventes, é lícito e possível exprimir um juízo válido e seguro acerca da vulnerabilidade do sujeito passivo da infracção e, consequentemente, da eficácia frutuosa da relação entre os actos configuradores da astúcia delineada e do erro ou engano engendrados e a cedência do lesado na adopção de atitudes a ele ou a outrem prejudiciais. (7) - Por outras palavras, é necessário que facticialmente se objective a componente subjectiva de que unicamente a insídia do agente foi determinante do comportamento da vítima. (8) Assim, constando ainda da matéria da facto provada, que na posse do indicado vale de correio o arguido dirigiu-se a uma agência de um banco onde o entregou para depósito numa sua conta bancária, tendo-lhe sido creditada a correspondente quantia, esta factualidade não autoriza o enquadramento jurídico-criminal da correspondente actuação no âmbito previsivo do crime de burla. (9) Com efeito, se a indução em erro ou engano está naturalmente afastada quanto à beneficiária titular do vale do correio (e é ela a autêntica e directa lesada deste processo), também por inverificado se tem de ter aquele requisito no concernente à entidade bancária (ou melhor, ao funcionário desta), que aceitou o vale adulterado pelo arguido e o depositou na conta deste, ausente qualquer dado indicativo ou inculcador de que o procedimento houvesse sido determinado por qualquer actuação enganadora desenvolvida pelo dito arguido e conducente àquela aceitação e àquele depósito. (10) E uma eventual passividade ou falta de cuidado da entidade bancária (ou do funcionário seu), na confirmação da autenticidade da assinatura aposta no vale não é sinónimo de aquiescência motivada por acção daquele tipo. (Ac. de 11-10-2001, proc. n.º 1295/01-5, Acs STJ ano IX t. 3 pág. 192 Cons. Oliveira Guimarães).
(1) O crime de burla desenha-se como a forma evoluída de captação do alheio em que o agente se serve do erro e do engano para que incauteladamente a vítima se deixe espoliar, e é integrado pelos seguintes elementos: (-) intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo; (-) por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou; (-) determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outrem, prejuízo patrimonial. (2) É usada astúcia quando os factos invocados dão a uma falsidade a aparência de verdade, ou o burlão refira factos falsos ou altere ou dissimule factos verdadeiros, e actuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro. (3) Esses actos além de astuciosos devem ser aptos a enganar, não sendo, no entanto, inevitável que se trate de processos rebuscados ou engenhosos, podendo o burlão, numa "economia de esforço", limitar-se ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima concreta. (Ac. de 12-12-2002, proc. n.º 3722/02-5, com o mesmo Relator)
Mas, como se viu, a contestação deste elemento de engano, surge na decisão recorrida a partir da consideração de que se trata de mera reserva mental que não releva no domínio penal, mas tão só no universo civilista.
A doutrina tem-se ocupado desta questão, da questão da distinção entre a fraude civil e a fraude penal.
T. S. Vives Anton (Compendio de Derecho Penal, Parte Especial, 497-8) sobre o título engano e dolo "in contrahendo", refere-se assim, à linha divisória entre a fraude, constitutiva da burla, e o simples ilícito civil.
«Na doutrina civil o "dolo in contrahendo" determinante da nulidade do contrato (dolo grave ou causante) configura-se em termos praticamente idênticos ao engano constitutivo da burla (vid. Díez Picazo), inclusive quanto à eficácia causal para produzir e provocar o acto dispositivo.
Em consequência, a linha divisória entre a burla e o ilícito civil, determinante da nulidade do contrato, radicará na existência ou inexistência de prejuízo obtido ou tentado - (vid. Sentença de 6.2.89, Ar. 1.479 - que afirma que o dolo "in contrahendo" é facilmente criminalizável desde que concorram os demais elementos estruturais do crime de burla).
Deve destacar-se que, na prática, em geral a conduta será classificada como burla, ou tida por civilmente ilícita em função da via processual eleita pelo prejudicado, como chega a insinuar a sentença antes citada.» (na tradução do relator).
Também Júlio Fabbrini Mirabete (Manual de Direito Penal II, 19.ª Edição, pá. 297-8) lembra que foram sugeridos vários critérios para se fazer a distinção entre a fraude civil e a fraude penal.
«Afirma-se que existe esta (fraude penal) apenas quando: há propósito ab initio do agente de não prestar o equivalente económico; há um dano social e não puramente individual; há a violação do mínimo ético; há um perigo social, mediato ou indirecto; há uma violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, tem como única sanção adequada a pena; há fraude capaz de iludir o diligente pai de família; há evidente perversidade e impostura; há uma mise-en-scène para iludir; há uma impossibilidade de se reparar o dano; há o intuito de um lucro ilícito e não do lucro do negócio etc. Afirma Hungria que, "tirante a hipótese de ardil grosseiro, a que a vítima se tenha rendido por indesculpável inadvertência ou omissão de sua habitual prudência, o inadimplemento preordenado ou preconcebido é talvez o menos incerto dos sinais. orientadores na fixação de uma linha divisória nesse terreno contestado da fraude". Na verdade; não há diferença de natureza, antológica, entre a fraude civil e a penal; Não há fraude penal e fraude civil, a fraude é uma só. Pretendida distinção sobre o assunto é supérflua, arbitrária e fonte de danosíssimas confusões (JTACrSP58/210; RT423/401). O que importa verificar, pois, é se, em determinado facto, se configuram todos os requisitos do estelionato, caso em que o fato é sempre punível, sejam quais forem as relações, a modalidade e a contingência do mesmo (RT 543/347-348).
E acrescenta este Autor: «tem-se entendida que há fraude penal quando o escopo do agente é o lucro ilícito e não o do negócio (RT423/344) Isso, porque a fraude penal pode manifestar-se na simples operação civil, não passando esta, na realidade, de engodo fraudulento que envolve e espolia a vítima (RT329/121), Mas é comum nas transacções civis ou comerciais certa malícia entre as partes, que procuram, por meio da ocultação de defeitos ou inconveniências da coisa, ou de uma depreciação, justa ou não, efectuar operação mais vantajosa. Mesmo em tais hipóteses, o que, se tem é o dolo civil, que poderá dar lugar à anulação do negócio, por vício de consentimento, com as consequentes perdas e danos (arts. 147, II, e 1.103 do CC), não, porém, do dolo configurador do estelionato (RT 547/34g). Não há crime na ausência de fraude, e o mero descumprimento do contrato, mesmo doloso, é mero ilícito civil (JTACrSP 49/173, 50/79, 51/405, RT 423/394, RTJ 93/978) (...).
Configura-se o crime: (...) no obtenção de financiamento com garantia fiduciária inexistente; na compra a crédito com nome falso (JTACrSP 59/261, 62/171); na inadimplência contratual preconcebida (JTACRSP 44/166) etc.»
Não se pode, pois, esquecer nesta problemática, uma particularidade do crime de burla: um processo executivo que comporta a intervenção de um ser autónomo e livre (na verdade é o próprio sujeito passivo que pratica os actos de diminuição patrimonial), sendo certo que compete a cada pessoa cuidar dos seus interesses. A assunção social da obrigação de salvaguardar bens alheios não pode deixar, pois, de ter um carácter subsidiário e residual; nos negócios, em que estão presentes mecanismos de livre concorrência, o conhecimento de uns e o erro ou ignorância de outros, determina o sucesso, apresentando-se o erro como um dos elementos do normal funcionamento da economia de mercado, sem que se chegue a integrar um ilícito criminal.
Importa, assim, procurar delimitar o âmbito de protecção da norma, do ilícito subjacente ao crime de burla, como o faz Mirabete. Almeida Costa (Comentário Conimbricense, II, pág. 300) refere que no plano criminal se exige que «a consumação do delito dependa, não de um qualquer domínio-do-erro (ainda que efectivo) mas de um domínio-do erro jurídico-penalmente relevante», tendo em consideração uma restrição adicional do desvalor de acção subjacente à burla, cuja definição remete para o princípio da boa fé (em sentido objectivo): «uma exigência de consideração pelos interesses legítimos da outra parte, nele radica o decisivo critério da lealdade que deve acompanhar as relações das pessoas no comércio jurídico e, portanto, o limite da relevância do domínio-do-erro no quadro da burla».
Ora é este desvalor da acção que permite responder à dificuldade enunciada pelo Exmo. magistrado do Ministério Público da Relação do Porto, a propósito da criminalização da vida colectiva. Como se disse acima, há um dano social e não puramente individual; há a violação do mínimo ético; há um perigo social, mediato ou indirecto; há uma violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, tem como única sanção adequada a pena.
Como refere Nelson Hungria (op. cit., pág. 178), «ilícito penal é a violação da ordem jurídica, contra a qual, pela sua intensidade ou gravidade, a única sanção adequada é a pena, e ilícito civil é a violação da ordem jurídica, para cuja debelação bastam as sanções atenuadas da indemnização, da execução forçada ou in natura, da restituição ao satu quo ante, da anulação do acto, etc.»
Essa imposição decorrente da boa fé só pode fazer-se em função das circunstâncias do caso, incluindo a configuração material da conduta do agente, e sugere Nelson Hungria que, sendo vã a tentativa de uma casuística rigorosa, a tarefa dessa distinção não pode deixar de ser confiada ao juiz, na sua própria função específica de jus condictum dicere, o oportuno ajustamento da fórmula aos ocorrentes (op. cit., pág. 179).
Este Supremo Tribunal de Justiça têm-se efectivamente pronunciado, em diversos arestos, sobre situações de charneira na distinção que se vem fazendo, adoptando os critérios que se enunciaram, como se pode ver pela síntese seguinte:
«Não são dolosos, quer para efeitos penais quer para efeitos civilísticos, as sugestões ou artifícios usuais, considerados legítimos segundo as concepções dominantes do comércio jurídico, nem a dissimulação do erro, quando nenhum dever de elucidar o declarante resulte da lei, de estipulação negocial ou daquelas concepções.» (Ac. de 13-01-1993, BMJ 423-214, Relator Cons. Ferreira Vidigal).

«(1) No crime de burla é necessário que o elemento «agir astuciosamente» se junte limitativamente ao dolo específico, de tal forma que, mesmo havendo a intenção de enriquecimento ilegítimo, o modo pelo qual se realiza essa intenção se revele engenhoso, enganoso, criando a aparência de realidades que não existem, ou falseando directamente a realidade. (2) O arguido, que obteve um empréstimo com a alegação de que o mesmo se destinava à compra de um armazém, que, depois, daria de hipoteca ao credor, livre de quaisquer ónus ou encargos, fazendo-se a prova de que o credor não lhe concederia tal empréstimo se soubesse que, afinal, ele já tinha, não apenas comprado o armazém, como até arrendado, comete um crime de burla. (Ac. do STJ de 19.5.1994, Acs STJ II, 2, 216, Relator: Cons. Sousa Guedes).

«Cometem crime de burla aqueles que celebram contratos promessa de compra e venda de andares, recebendo os respectivos sinais, enganando os ofendidos sobre as realidades condicionantes desses contratos, visando aproveitar a aparência de uma organização empresarial, para sacarem dos ofendidos prestações contra a criação de uma mera expectativa de venda, que nunca pretendiam concretizar, até por falta de licenças de habitabilidade ou por existência de ónus sobre os prédios.» (Ac. de 28-03-1996, proc 48951, Relator: Cons. Sá Nogueira).

«Comete o crime de burla aquele que representando que por um seu terreno iria passar uma estrada que o inutilizaria, depois de publicar um anúncio num jornal de grande tiragem a anunciá-lo como óptimo para construção de vivenda, junto de zona de praia, vem a vendê-lo ao ofendido, porque disso ficou convencido.» (Ac de 05-06-1996, Acs STJ pág. 191, Relator: Cons. Augusto Alves)

«Cometem o crime de burla agravada os arguidos que vendem um veículo automóvel ao ofendido, pelo preço de 2.387.000$00, fazendo-o crer que o mesmo é novo e fabricado em 92, quando na verdade o mesmo era usado, acidentado e do ano de 89.» (Ac. de 14-11-1996, proc n.º 593/96, Relator: Cons. Bessa Pacheco).

«Cometem o crime de burla qualificada, os arguidos que, tendo conhecimento de que a casa tinha infiltrações de água, procederam à pintura de diversos compartimentos, substituíram alcatifas, não reparando, no entanto, as anomalias que causavam as infiltrações. Deste modo, procuraram ocultar as anomalias, dissimulando que vendiam uma casa em perfeito estado, provocando astuciosamente um engano no comprador.» (Ac de 04-12-1996, proc. n.º 333/96, Relator: Cons. Augusto Alves).

«(4) Comete o crime de burla aquele que representando que por um seu terreno iria passar uma estrada que o inutilizaria, depois de publicar um anúncio num jornal de grande tiragem a anunciá-lo como óptimo para construção de vivenda, junto de zona de praia, vem a vendê-lo ao ofendido, porque disso ficou convencido. (5) Isto, apesar de o arguido ter sido absolvido do pedido de anulação da compra e venda em anterior acção cível proposta.» (Ac de 05-06-1997, 48871, Augusto Alves).

«Comete o crime de burla agravada, p. p. pelos arts. 313º e 314º, al. c), do C. Penal de 82 (hoje p. p. pelos arts. 217º e 218º, al. a), do C. Penal de 95), o arguido que celebra com os ofendidos um contrato promessa de compra e venda de uma fracção, numa base ilegítima (não ter poderes para o acto, "falta de procuração"), determinando, com a sua conduta, que aqueles lhe entregassem 1.500.000$00 a título de sinal e princípio de pagamento, afectando-o em seu proveito próprio.» (Ac. de 07-05-1998, proc n.º 1230/97, Relator: Cons. Oliveira Guimarães).

«(2) Integram o conceito de artifício fraudulento do tipo legal do crime de burla, além de outros, os chamados actos concludentes: condutas que não consubstanciam em si qualquer declaração mas que, em virtude de um critério objectivo, de acordo com as regras da experiência e os parâmetros sociais vigentes num sector de actividade, se mostram adequadas a criar uma falsa convicção sobre determinado facto passado, presente ou futuro. (3) Assim, pratica um crime de burla, a arguida que se apresenta como compradora de um veículo automóvel e, para pagamento do preço do mesmo, entrega dois cheques referentes a uma conta bancária que sabia estar cancelada, deste modo agindo por forma a convencer o vendedor que tal conta existia e que, nas datas respectivas, possuiria fundos suficientes para o pagamento em causa, assim o levando a entregar-lhe o referido veículo, com o que lhe veio a causar prejuízos e conseguiu um enriquecimento que sabia ser ilegítimo» (Ac. de 10-05-2000, proc. n.º 838).

(1) Como se colhe da leitura do artigo 217º do CP, são elementos do tipo do crime de burla, a intenção pelo agente de enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou e a prática consequente de actos pela vítima, que a si, ou a outrem, causem prejuízo patrimonial. (2) A astúcia posta pelo burlão tanto pode consistir na invocação de um facto falso, como na falsa qualidade, como na falsificação da escrita, ou outra qualquer. Interessa, apenas, que os factos invocados dêem a uma falsidade a aparência de verdade, ou, como diz a lei alemã, o burlão refira factos falsos ou altere ou dissimule factos verdadeiros. (3) O burlão, actuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro. É indispensável, assim, que os actos além de astuciosos, sejam aptos a enganar, não se limitando o burlão a mentir, mentindo com engenho e habilidade, revelando uma maior intensidade no dolo e uma maior susceptibilidade dos outros serem convencidos. (4) Longe de envolver, de forma inevitável, a adopção de processos rebuscados ou engenhosos, a sagacidade do agente comporta uma regra de "economia de esforço", limitando-se o burlão ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima. (5) A idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente afere-se tomando em consideração as características do concreto burlado. (6) Haverá no entanto que sublinhar, que no mundo dos negócios no contexto da economia de mercado, assente nos mecanismos da livre concorrência, o sucesso emerge muitas vezes do superior conhecimento do sujeito acerca das características do concreto sector e, assim, em termos comparativos, do erro ou ignorância dos seus competidores, pelo que não será qualquer domínio-do-erro que importa consumação do delito, mas a sua instrumentalização em termos de atingir o cerne do princípio da boa fé objectiva, o que pode ser julgado em função das circunstâncias de cada caso, "aí compreendida a configuração material da conduta do agente" e a intolerabilidade concreta da eventual leviandade, passividade, ou mesmo, ingenuidade, patenteada pelo lesado. (7) Tendo os arguidos, depois de uma deliberação social em que foi acordado um aumento de capital, feito chegar aos assistentes, também eles sócios, um impresso em que estes deveriam declarar renunciar ao seu direito de preferência na subscrição desse aumento - alegando tratar-se de uma exigência do notário para lavrar a escritura do correspondente acto - e tendo aqueles assinado, os primeiros, quando logo subscreveram o capital deixado livre pela renúncia, não preencheram com tal conduta a previsão típica do crime de burla. (8) Com efeito, quem lida com deliberações sociais, mormente como no caso, relativas a sociedades comerciais, sabe - tem de saber - que o mundo dos negócios não é, rigorosamente, domínio privilegiado para actuações inocentes, mormente quando se trata, como tratou, de conceder uma declaração escrita de renúncia de direitos, pelo que mandava o mais elementar dever de diligência e bom senso que, antes da assinatura da falada declaração de renúncia, consultassem um técnico de direito ou mesmo o notário, questionando a valia e possíveis efeitos da invocada exigência, pelo que dificilmente se concebe que o domínio-do-erro, por banda dos arguidos, tivesse assumido conformação jurídico-penalmente relevante. (9) Por outro lado, devendo o exigido prejuízo patrimonial do burlado ou de terceiro corresponder, ao enriquecimento ilegítimo, do lado activo, nada indica que a renúncia do direito de preferência por banda dos assistentes e correlativo ingresso na esfera dos restantes sócios tivesse em si mesmo um valor patrimonial (era antes previsível que a sociedade viria a ter prejuízos), para além do que, para obtenção das respectivas acções, os adquirentes tiveram de desembolsar o correspondente capital. (Ac de 18-10-2001, proc. n.º 2362/01-5, Relator: Cons. Pereira Madeira).

(4) No caso dos autos, o erro da vítima foi ocasionado "não expressis verbis mas através de actos concludentes, i. e., de condutas que não consubstanciam, em si mesmas, qualquer declaração, mas, a um critério objectivo - a saber, de acordo com as regras da experiência e os parâmetros ético-sociais vigentes no sector da actividade - , se mostram adequadas a criar uma falsa convicção sobre certo facto passado, presente ou futuro". (5) A experiência comum e os padrões ético-sociais vigentes - as excepções só confirmam a regra - são de molde a interiorizar, pelos destinatários, que aqueles que agem em nome do Tribunal, numa concreta venda extra-judicial o fazem de boa fé, informando exacta e lealmente de todas as circunstâncias implicadas. (6) O recorrente agiu com dolo ao fabricar, perante a firma ofendida, através de factos concludentes, a aparência de um negócio regular de transmissão do direito ao trespasse e arrendamento, pela quantia e restantes condições acordadas.» (Ac de 22-05-2002, Acs STJ X, 2, 206, Relator: Cons. Dinis Alves).
Retenhamos, no caso presente, que não se trata de mera reserva mental quanto ao eventual não cumprimento de um contrato-promessa, como parece entender a decisão recorrida, mas sim de uma decisão pré-concebida de não cumprir o contrato, uma vez que não houve nunca vontade de realizar o negócio correspondente, como o reconhece a decisão recorrida. Esse contrato civil não foi mais do que elemento do engano astuciosamente elaborado pelo arguido, que necessitava dele para cumprir o plano meticulosamente laborado e executado. Está assim demonstrada uma patente má fé por parte do arguido, de absoluta deslealdade e desrespeito pelos legítimos interesses do assistente, a justificar uma reacção social traduzida numa pena criminal, toda a vez que estão presentes todos os outros elementos do tipo legal da burla.
O que vale por dizer que estão presentes no caso, todos os indícios que se referiram e que permitem destrinçar as situações de fraude civil e fraude penal, optando por esta.
Com efeito, enquanto o assistente assinou o contrato-promessa e cumpriu todas as suas cláusulas, o arguido não só não as cumpriu, como nuca teve a intenção de as cumprir.
Como resulta da matéria de facto provada, desde o início das negociações sempre foi o único propósito do arguido passar a administrar a sociedade como se esta lhe pertencesse de facto, única e exclusivamente e, em seu único e exclusivo proveito (ponto 2.16 da matéria de facto), nunca tendo tido a intenção de pagar ao JLPF a sua quota ou de assumir os outros compromissos então declarados. E levou o assistente a afastar-se da empresa pela forma descrita só porque o convenceu da autenticidade das negociações e do contrato celebrado, com o que lhe causou um prejuízo correspondente ao preço não pago da respectiva quota, ao montante dos suprimentos que transferiu para o arguido e às dívidas da sociedade por ele pagas à União de Bancos Portugueses e ao Banco Comercial Português, num total de 758.233.000$00 (ponto 2.17 da matéria de facto).
E não se diga, em contrário como fez o acórdão recorrido, que não se pode equiparar «a reserva mental ao artifício fraudulento, face ao circunstancialismo e aos termos do prometido e acordado entre o arguido e o assistente, visto que, além de sócios desde Junho de 1989, o que acordaram ocorreu "...na sequência de negociações prévias para o efeito, com respeito pelos interesses nomeadamente patrimoniais de cada um dos sócios que respectivamente procuraram acautelar,..." (cf. factos 2.3 a 2.8). Tal acordo insere-se, assim, no quadro da autonomia da vontade das partes, nos termos do artigo 405º do CCv.»
É que o facto provado de que se socorre esse aresto: «2.3. Foi decidida a saída do assistente da sociedade que tinha com o arguido «na sequência de negociações prévias para o efeito, com respeito pelos interesses nomeadamente patrimoniais de cada um dos sócios que respectivamente procuraram acautelar, e na sequência das quais, foi acordado e realizado o que a seguir se descreve», só se refere ao conteúdo dos pontos da matéria de facto: 2.4 (Assembleia Geral), 2.5. (transferência dos suprimentos do assistente, no montante de 158.233.000$00, para a conta de suprimentos do arguido), ao ponto 2.6 (contrato-promessa) e ao ponto 2.7 (assunção pelo arguido da responsabilidade civil pelos vários títulos relativos à sociedade e subscritos pelo assistente).
Isto é, assistente e arguido acordaram quanto à forma como se devia processar a saída do assistente da sociedade, entendendo que tal respeitava «os interesses nomeadamente patrimoniais de cada um dos sócios que respectivamente procuraram acautelar, e na sequência das quais, foi acordado e realizado o que a seguir se descreve». Ora, o assistente aceitou esse acordo, exactamente por entender que ele salvaguardava os interesses das duas partes e só o aceitou porque o arguido o convenceu de que iria ser cumprido, enquanto que o arguido só o subscreveu porque não tencionava cumpri-lo
O engano astucioso do arguido consistiu precisamente em elaborar-se um acordo aceitável para ambos e convencer o assistente que o iria cumprir, bem sabendo de que de outra forma o assistente o não subscreveria.
Procede, pois, a pretensão do assistente quanto à condenação do arguido pelo falado crime de burla, nos termos referidos.
4.3. A segunda questão suscitada prende-se com a indemnização devida pelo prejuízo sofrido pelo assistente com a prática de tal crime.
Sustenta o assistente que condenado o arguido por tal crime, deverá ser condenado na respectiva indemnização (conclusão 7.ª), pois lesou o assistente em 758.235.000000, valor superior ao pedido (conclusão 8.ª), não tendo o Tribunal elementos para discordar do valor de 410.000.000$00 que arguido e assistente atribuíram à quota deste, pelo que nessa quantia deverá ser condenado o Arguido, acrescida de juros legais (conclusão 9.ª).
A inexistirem elementos que permitissem fixar a indemnização, deveria o Tribunal remeter para liquidação de sentença - art. 82º n.º 1 do CPP (conclusão 10.ª).
Quanto a essa questão, entendeu a Relação:
- que, não tendo dado como praticado o crime de burla por incumprimento do contrato-promessa, falece fundamento legal para a condenação no pagamento de indemnização à luz do acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 7/99, de 17.6.99 (DR IS-A de 3.8.99 - se em processo penal for deduzido pedido de indemnização cível tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no art. 377º, n.º 1 do CPP, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização cível se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual);
- que não consta dos factos provados que o dano causado ao demandante tivesse sido de 410.000.000$00, que corresponde ao preço estipulado no contrato-promessa de cessão de quotas.
Como se viu, o tratamento dado à primeira questão colocada no presente recurso leva à condenação do arguido pelo falado crime de burla, pelo que fica afastada a primeira razão invocada pela Relação do Porto para afastar a condenação na pedida indemnização pelos danos causados por tal crime.
No que se refere ao valor do dano sofrido, é certo que não há uma facto específico que o quantifique assim enquanto tal, mas o conjunto do factos permite estabelecer, como o fez a 1.ª Instância, o seu valor em 410.000.000$00, que coincide com o valor atribuído pelo assistente e arguido à posição social daquele, sem que isso signifique uma mera colagem a esse valor.
Com efeito, esse valor foi atribuído, numa complexa consideração de factores ou elementos como o valor dos suprimentos do assistente que passaram para a conta do arguido, a assunção por parte do arguido de responsabilidade civil do assistente em relação a vários títulos da Sociedade e que não chegou a efectivar-se, o pagamento das dívidas da sociedade à UBP e ao BCP pelo assistente, a obtenção por este da adjudicação da respectiva quota na sociedade em processo de inventário.
Ora, o assistente cumpriu todas as obrigações decorrente do contrato-promessa de cessão de quotas, e acabou por ficar sem essas quotas, no valor de 410.000.000$00, mercê da conduta penalmente sancionável do arguido.
Não merece, assim, censura, quer a condenação no pagamento da indemnização, quer a quantificação dela feita pela 1.ª Instância.

V
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:
- restaurar a decisão da primeira instância, quanto à condenação do arguido HFA pela prática de 1 crime de burla dos arts. 313º e 314º, al. c) do Cód. Penal de 1982, na pena de prisão de 3 anos; 1 crime de abuso de confiança, na forma continuada dos arts. 300º, n.º 1 e 2, al. a) e 30º, n.º 2, do Cód. Penal de 1982, na pena de prisão de 2 anos; 1 crime de insolvência dolosa p. e p. art. 325º, n.ºs 1, als. a), b) e c) e 2 do Cód. Penal de 1982, na pena de prisão de 1 ano e 6 meses, corrigida com a aplicação dos perdões concedidos pelas Leis n.º 15/94, de 11 de Maio, e n.º 29/99, de 12 de Maio, e, de acordo com o disposto no art. 8º, n.º 1, al. d), da referida Lei 15/94, de 1 ano da pena de prisão em que o arguido HFA foi condenado e, de 1 ano - art. 1º, n.º 1, da citada Lei 29/99;
- não manter a pena de prisão de 1 ano e 6 meses pelo crime de burla dos arts. 313º e 314º al. c) do Cód. Penal de 1982, revogada pela decisão recorrida e, nessa parte, não impugnada;
- reformular o cúmulo jurídico, efectuado na 1.ª instância que se traduziu na pena de prisão única de 5 anos e 6 meses, uma vez que não se mantém a condenação por aquele crime e, usando do critério predominante neste Supremo Tribunal de Justiça e que se revela mais benevolente no caso, fixar a pena única em 4 anos e 2 meses de prisão, sobre ela incidindo os perdões já referidos, com respeito pelas condições dos arts. 11º da Lei n.º 15/94 e 4º e 5º da Lei n.º 29/99.
- restaurar a condenação do demandado HFA a pagar ao demandante JLPF a quantia de 410.000.000$00, acrescida de juros de mora, às taxas legais, desde a notificação até efectivo e integral pagamento;
- revogar a decisão recorrida, salvo quanto à absolvição pelo crime de burla do recorrido, agora não impugnada.
Custas pelo recorrido, com a taxa de justiça de 10 Ucs.
Custas do pedido cível na 2.ª Instância e neste Supremo Tribunal de Justiça pelo demandado.

Lisboa, 20 de Março de 2003
Simas Santos
Abranches Martins
Oliveira Guimarães
Carmona da Mota