Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | 1ª SECÇÃO | ||
| Relator: | ALEXANDRE REIS | ||
| Descritores: | BALDIOS DIREITO REAL COMPARTES ASSEMBLEIA DE COMPARTES | ||
| Data do Acordão: | 10/24/2019 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Referência de Publicação: | CADERNOS DE DIREITO PRIVADO N.º 72 | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | NEGADAS AS REVISTAS DAS AA E CONCEDER A REVISTA DO R | ||
| Área Temática: | DIREITO CIVIL – PARTE GERAL / LEIS, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO / VIGÊNCIA, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DAS LEIS – DIREITO DAS COISAS / POSSE / DIREITO DE PROPRIEDADE / PROPRIEDADE EM GERAL. | ||
| Doutrina: | - Jaime Gralheiro, Comentário À Nova Lei dos Baldios, (Lei nº 68-93 de 4 de Set.), Almedina 2002, p. 10 a 12 e ss.; - Maria Raquel Rei, Do carácter não usucapível do direito de baldio, RDC II (2017), 4, p. 819-836; - Orlando de Carvalho, Sobre a Noite e a Vida, Centelha, 1985, p. 44. | ||
| Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 3.º, 9.º, 1252.º, N.º 2 E 1305.º. LEI DOS BALDIOS, APROVADO PELA LEI N.º 68/93, DE 04 DE SETEMBRO: - ARTIGO 1.º, N.ºS 3 E 5. | ||
| Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - DE 12-10-2017, PROCESSO N.º 235/07.5TBRSD.C1.S1. | ||
| Sumário : | I – Na história dos baldios ecoa o congénito conflito entre o direito de utilização de terrenos não apropriados – consoante os costumes vigentes em cada uma das respectivas comunidades locais – cuja origem remonta, seguramente, a período anterior à nacionalidade, e o direito do Estado, que, desde há muito, o tenta enquadrar e delimitar. Ou, numa diferente perspectiva, a colisão entre duas formas de exploração da terra: pelo lado dos baldios, a tradicional utilização e fruição comunal da terra, sem racionamen – sequer, pela comunidade dos fruidores -, inconciliável, por isso, com a ideia de domínio/propriedade, isto é, com um pretenso animus de exercício correspondente ao direito de propriedade; por outro lado, a exploração da terra através da sua racionamen por um qualquer sujeito de direito (privado ou público), acomodada ao modelo do direito civil geral, na linha do sistema geral dos direitos reais de tradição romanista, que veio a tornar-se predominante, mas cuja lógica os baldios desafiam abertamente. II – Considerada a génese da realidade socioeconómica dos baldios, que o Estado tem procurado “domesticar”, enquadrando-o no âmbito do sistema romanístico, não deixa de ser sustentável que o essencial do regime específico próprio de cada baldio assenta nas respectivas regras consuetudinárias, pelo menos, ate onde o comando do art. 3.º do CC o permite, principalmente quanto a utilização dos baldios pelos compartes. III – O direito de baldio é um direito real que, embora esteja previsto em legislação avulsa (não no CC), não deixa de respeitar, como os demais direitos com essa natureza, o princípio da tipicidade e que tem um regime jurídico muito especifico, particularmente quanto ao respectivo conteúdo: (i) não abarca o gozo, de modo pleno e exclusivo, do direito de disposição do bem (área de terreno) sobre que incide, nem em vida nem por morte; (ii) caracteriza-se por proporcionar a cada elemento de um conjunto de pessoas (uma “comunidade local”), de acordo com as deliberações das assembleias de compartes e os usos e costumes (arts. 1.º e 5.º da Lei 68/93 ao caso aplicável), a posse correspondente (apenas) às faculdades de uso e fruição das utilidades propiciadas pelo baldio; (iii) o baldio, estando “fora do comércio jurídico”, é insusceptível de apropriação privada, quer pelos compartes individualmente considerados, quer pela estrutura da sua administração. IV – Logo, são aqui despiciendas as características da posse (civilista) apta a usucapir: o que releva para que se tenha por adquirida a constituição do direito de baldio sobre determinada área de terreno é que se possa asseverar que este, em geral, foi o logradouro comum historicamente usado, fruído e gerido pelo conjunto (fluído) dos habitantes de uma determinada comunidade local. V – Decorre da natureza do direito de baldio que a qualidade de “comparte” não se herda, nem se transmite, antes radica na condição de morador que tem direito ao uso e fruição do baldio, segundo os usos e costumes aceites pela generalidade das pessoas. VI – Tal como a profunda evolução sofrida pela realidade socioeconómica dos baldios terá levado a consagrar na lei actualmente vigente (75/2017, de 17-08) a possibilidade de a assembleia de compartes atribuir a qualidade de titular do baldio (comparte) até a um cidadão não residente no local, sem a explicitação de qualquer exigência quanto à natureza e ao grau da sua ligação ao correspondente logradouro comum, também perante o teor do art. 1.º, n.º 3 da Lei 68/93 na redacção anterior à que lhe foi conferida pela Lei 72/2014, de 02-09) e o contexto dinâmico em que se inseriu, não se vislumbram, à luz do disposto no art. 9.º do CC, argumentos sólidos para considerar que a ratio prosseguida pelo legislador seria a de negar a qualidade de “comparte” do logradouro comum de uma “comunidade local”, a quem, ainda que não permanentemente, se dispôs a integrar essa comunidade e, assim, a contribuir, em maior ou menor medida, para a atenuação da desertificação das serras e do espaço rural no interior do país, a não ser que se evidencie que tal qualidade afronta os usos e costumes. | ||
| Decisão Texto Integral: | Revista nº 850/13.8TBLSA.C1.S2
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
A AA, ..., intentou (em 07/11/2013) esta acção contra BB, pedindo a condenação da R a: - reconhecer que o terreno que identifica onde estão instaladas as torres com aerogeradores nºs 8, 9 e 10 do “...” é baldio dos moradores da Freguesia ...; - ver declarada a sua extinção, por inexistência de objecto e ilegalidade na sua constituição, porque inexistem moradores no lugar ... e apenas existem 3 moradores no lugar de ... e inexistem terrenos baldios que sejam administrados e geridos apenas pelos moradores destas duas localidades; - a pagar-lhe (a R ou se esta for declarada extinta os que integrem os seus órgãos sociais) a diferença entre o valor proveniente da venda de árvores existentes dentro dos limites dos terrenos em questão que o ... (a Autoridade Florestal Nacional) reteve, e que lhe era devido, e que por causa deste litígio esse departamento do Estado cativou, caso esse montante não lhe seja devolvido integralmente, acrescido dos juros de mora. Para tanto alegou, em síntese, que, por posse histórica, toda a área de território cujos limites indica (com excepção dos prédios particulares existentes no seu interior) se instituiu como terreno baldio da comunidade local formada pelos moradores dos lugares da freguesia ..., que assim o adquiriu comunitariamente.
A R contestou e deduziu reconvenção, pedindo a condenação da A a: - reconhecer que o terreno com os limites que identifica onde se encontram instaladas as torres com aerogeradores nºs 8, 9 e 10 do “...” e nºs 1 a 13 do “...I” é baldio dos moradores dos lugares de ... e ...; - ver declarada a nulidade de todos os contratos por ela celebrados, que tenham por objeto esse baldio; - entregar à R/reconvinte todas as quantias que indevidamente recebeu de todas e quaisquer entidades, em especial, do ... e da CC. Alegou, em resumo, que a posse de toda a área de terreno com os limites e composição que refere sempre foi feita, desde tempos imemoriais, pelos moradores dos lugares de ... e ..., de forma continuada, sem interrupção ou oposição, na convicção de exercício em conjunto e de forma comunitária do direito de propriedade.
Por despacho de 22-05-2015 (transitado em julgado), foi admitido o pedido reconvencional e, como decorrência do valor de € 20.000 que lhe fora atribuído, foi fixado o valor da acção em € 60.000. E foi admitida a intervenção principal provocada da Freguesia ..., da “DD SA” (sucessora da “CC”) e da “EE SA”, vindo estas a associar-se à A.
Foi proferida sentença condenando (apenas): 1) a R a reconhecer que o segmento do terreno identificado onde estão instaladas as torres com os aerogeradores nºs 8, 9 e 10 do “...” é baldio dos moradores da Freguesia ...; 2.1) a A a reconhecer que o terreno com os limites identificados onde se encontram instaladas as torres com aerogeradores nºs 1 a 10 e 13 do “...I” é baldio dos moradores dos lugares de ... e ...; 2.2) a A a ver declarada a nulidade parcial do contrato que em 29-12-2006 celebrou com a (agora) “EDP Renováveis Portugal, SA” para a exploração respeitante às aludidas torres nºs 1 a 10 e 13 do “...I”; 2.3) a A a entregar à R todas as quantias que recebeu, após a data da constituição desta (3-3-2012), da Autoridade Florestal Nacional/... e da (agora) “DDSA”, que tenham provindo, de qualquer forma, da utilização do baldio referido em 2.1), sendo a liquidação do respectivo montante relegada para ulterior execução de sentença.
A Relação confirmou a sentença, apenas tendo clarificado que o valor do montante a liquidar pela A se circunscreve ao que se fixou ser o valor do pedido reconvencional formulado (€ 20.000).
A A (Assembleia ...) interpôs revista ao abrigo do art. 672º, nº 1, als. a) a c), do CPC, justificando a respectiva admissibilidade excepcional com a alegação de que «a questão dos requisitos legais necessários para a atribuição do estatuto jurídico de comparte de um terreno baldio a um cidadão é questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica e social, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito» e que o julgado no acórdão recorrido sobre os requisitos para a constituição como baldio de uma comunidade local está em contradição com o decidido no acórdão (fundamento) do STJ de 12-10-2017 (p. 235/07.5TBRSD.C1.S1). A recorrente suscitou nas conclusões com que delimitou o objecto do seu pretendido recurso as questões de saber se: 1) a decisão recorrida sobre a impugnação da matéria de facto não afirma uma efectiva convicção autónoma, as presunções judiciais que nela se invocam padecem de ilogicidade, enferma de contradições e não permite perceber o caminho nela percorrido para superação da “cacofonia probatória” nela expressa; 2) não se demonstraram os requisitos para a constituição como baldio de uma comunidade local, por banda da R; 3) Os cidadãos que compõem a R, com excepção do que é natural da freguesia ... e dos dois que lá moram efectivamente, não são compartes, no conceito de “morador” ínsito no art. 1º/3 da Lei 68/93 de 4/9.
Também a interveniente EE SA interpôs revista, pedindo a sua admissão excepcional ao abrigo do consignado na alínea c) do nº 1 do artigo 672º do CPC, referenciando, para preencher o requisito previsto nessa norma, a contradição de julgados entre o acórdão do STJ de 12-10-2017 – que a A igualmente invocara como fundamento – e o recorrido «sobre a mesma questão fundamental de direito e que se prende com os pressupostos do direito ao domínio/propriedade de uma comunidade local na posse e gestão de um terreno baldio, por forma a que o mesmo se possa considerar constituído como baldio dessa aludida comunidade local». Relativamente à aludida questão suscitada pela recorrente nas conclusões com que delimitou o objecto do seu recurso, a mesma alegou que «sobre os requisitos para a constituição como baldio de uma comunidade local», nestes autos, diversa e contrariamente ao que se mostra decidido naqueloutros, «julgou-se por provado e procedente o pedido formulado pela Ré, de reconhecimento da constituição como baldio seu, do terreno id. no artigo 8º-B) da PI, não obstante se terem declarado como “não provado” os factos alegados pela Ré nos artigos 4º (posse exclusiva) e 13º (animus possidendi/intenção e vontade de possuir/elemento espiritual) do seu articulado de Contestação».
A R (Assembleia de ... e ...) interpôs recurso de revista subordinado por não se conformar com o decidido quanto à limitação do capital da indemnização a liquidar ao valor do pedido reconvencional formulado (€ 20.000).
O recurso de revista interposto pela A foi excepcionalmente admitido pela competente Formação deste Supremo por ter reconhecido, sem necessidade de apreciar a contradição também invocada (tanto pela A como pela interveniente EE), o relevo jurídico e social da questão de saber «se as regras da hermenêutica, face a uma nova realidade, consentem a “actualização” do conceito de morador local (comparte) que o legislador teve em vista, desde logo, no art. 1º, quer do DL 39/76, de 19/1, quer da Lei 68/93, de 4/9, de modo a poder abarcar naquele quem, de algum modo, está a recuperar esse território, a dinamizar e a recomeçar a trabalhar as terras (…), mesmo não sendo um autóctone nem, naturalmente, o “morador” tradicional, designadamente, o arcaico agricultor que complementava a sua subsistência com o aproveitamento do baldio». * Importa apreciar e decidir as enunciadas questões, perante os factos julgados provados e não provados, arrolados na decisão da Relação sobre tal matéria, para a qual se remete.
1. A impugnação da matéria de facto. Como, num parêntesis, se registou no acórdão da Formação prevista no art. 672º/3 do CPC, a A espraiou-se no seu recurso em longos reparos à reapreciação pela Relação da matéria de facto (cfr. conclusões 1 a 6), aludindo, designadamente, a que o Tribunal se limitou a “copiar/colar” o que havia sido decidido pela 1ª instância, à actuação ilógica de presunções judiciais e a uma “cacofonia probatória”. É certo que a impugnação delineada pela recorrente, no essencial, sempre estaria arredada da cognoscibilidade deste Tribunal de revista, na medida em que alicerçada na premissa de que os Srs. Desembargadores, na formação da sua convicção sobre a prova produzida, mas dentro da margem da livre apreciação desta, teriam trilhado um percurso idêntico ao que sustentou a decisão de 1ª instância. E no demais também o estaria porque a sua alusão a vícios como ao de “ilogicidade” de presunções judiciais e ao de “contradições imanentes” assenta, bem vistas as coisas, no seu inconformismo por no acórdão recorrido se ter considerado inverosímil a versão que a mesma trouxe aos autos. Contudo, o que aqui mais releva é que a recorrente optou por apenas pedir a admissibilidade excepcional da revista, renunciando à sua interposição nos termos gerais, que, realmente, lhe estava facultada caso pretendesse que este Supremo conhecesse a arguição da violação da lei processual eventualmente praticada pela Relação na reponderação da decisão sobre a matéria de facto. Se, realmente, pretendesse submeter à apreciação deste Supremo essa violação, estaríamos perante uma questão que, por si só, arredaria a intervenção do aludido mecanismo excepcional para a admissão da revista, uma vez que, obviamente, não se verificaria o obstáculo à admissibilidade desta nos termos ditos “normais” consistente na dupla conformidade das decisões de ambas as instâncias. Por isso, a manifestação de vontade de interpor recurso apenas ao abrigo do mecanismo excepcional previsto no art. 671º/1 do CPC – que, como no preceito consta, só cabe «do acórdão da Relação referido no n.º 3 do artigo anterior» (“dupla conforme”) – é incompatível com a vontade de submeter à apreciação deste Tribunal a putativa violação pela Relação da lei processual sobre a matéria de facto (cf. art. 632º/3 do CPC). Não se conhece, pois, do recurso, nessa parte.
2. Os requisitos para a constituição do baldio. A A e a interveniente EE SA suscitaram a questão da não demonstração, por banda da R, dos requisitos para a constituição do baldio de uma comunidade local, uma vez que não se provou que a mesma, como alegara, tivesse posse exclusiva e animus possidendi em relação ao questionado terreno (cf. arts. 4º e 13º da contestação). É verdade que se incluem no rol das não provadas as alegações de que o prédio rústico inscrito sob o art. 6490º sempre tivesse sido possuído e gerido apenas e só pelos moradores dos lugares de ... e ... (art. 4º da contestação), bem como que os moradores desses lugares agissem [pelo modo descrito nos itens 38º a 43º dos factos assentes] na convicção que tal baldio lhes pertence, em conjunto e de forma comunitária, para apoio à sua actividade agrícola (art. 13º da contestação). Vejamos. O enfrentamento desta questão, tal como vem configurada, impõe um breve intróito sobre a realidade socioeconómica dos baldios e o modo como o Estado, sucessivamente, a procurou assimilar, enquadrando-a na sua superestrutura jurídica. Desde que os seres humanos deixaram de ser simples recolectores, o domínio sobre a terra, com os demais meios de produção necessários à agricultura, tornou-se, e assim se manteve durante muitos séculos, o hegemónico instrumento de poder de controlo dos seus detentores sobre os demais ([1]). Daí a “necessidade” da apropriação da terra e da consequente garantia da transmissão do poder que a mesma assegura aos sucessores dos seus detentores. Todavia, o baldio constitui uma curiosa realidade socioeconómica que resistiu, com todas as sucessivas vicissitudes por que passou, à apetência pela apropriação da terra, apesar de o domínio/propriedade sobre a mesma não poder deixar de se considerar inseparável da evolução da vida dos seres humanos em sociedade. Como se sabe, abundam as especulações quanto à génese da intervenção do direito nessa realidade ([2]) – necessariamente, pré-existente –, ou seja e afinal, sobre os usos e costumes locais imperantes em tal matéria, a que o nosso actual ordenamento jurídico também atende, mas apenas «quando a lei o determine» (art. 3º do CC). É o que sucede com a menção que vem sendo feita aos «usos e costumes locais» na legislação posterior a 1974 aplicável aos baldios ([3]), integrantes do subsector «meios de produção comunitários, possuídos e geridos por comunidades locais», referido no art. 82º/4/b) da Constituição. O que para aqui importa é que na história dos baldios ecoa o congénito conflito entre o direito de utilização de terrenos não apropriados – consoante os costumes vigentes em cada uma das respectivas comunidades locais – cuja origem remonta, seguramente, a período anterior à nacionalidade, e o direito do Estado, que, desde há muito, o tenta enquadrar e delimitar. Ou, numa diferente perspectiva, a colisão entre duas formas de exploração da terra: pelo lado dos baldios, a tradicional utilização e fruição comunal da terra, sem apropriação – sequer, pela comunidade dos fruidores –, inconciliável, por isso, com a ideia de domínio/propriedade, i.é, com um pretenso animus de exercício correspondente ao direito de propriedade; por outro lado, a exploração da terra através da sua apropriação por um qualquer sujeito de direito (privado ou público), acomodada ao modelo do direito civil geral, na linha do sistema geral dos direitos reais de tradição romanista, que veio a tomar-se predominante, mas cuja lógica os baldios desafiam abertamente. Entre nós, os baldios já quase perderam esse conflito ([4]). Primeiro, porque, ao longo dos séculos, os baldios sempre foram objecto de enormes abusos motivados pela ganância apropriativa, mormente, de indivíduos mais poderosos ([5]), mas também de outros mais afoitos. Depois, porque o regime substituído em 1974, ideologicamente alérgico a esse tipo de fruição comunal e a estruturas que não enquadrava nem controlava através da sua organização “corporativa”, invocou o tendencial subaproveitamento dos baldios e os problemas postos com a sua administração e a sua compatibilização com as formas comuns de administração de bens e os modelos de organização política, nomeadamente autárquica ([6]) para lhe mover um intenso combate, ocupando uma boa parte dos baldios, principalmente com floresta, e deixando aos povos das serras quase apenas as suas cumeeiras, em geral, improdutivas e inúteis até ao surgimento da energia EE ([7]). É verdade que, logo em 1976, nos Preâmbulos dos DL´s 39/76 e 40/76 (de 19/01), legislador proclamou: «A entrega dos terrenos baldios às comunidades que deles foram desapossadas pelo Estado fascista corresponde a uma reivindicação antiga e constante dos povos e vem concretizar uma intenção repetidas vezes anunciada pelos vários Governos que se têm sucedido depois de 25 de Abril de 1974». «Para além da acção do Estado desenvolvida nas últimas décadas, viram ainda as comunidades os seus baldios serem indevidamente apropriados por particulares, sempre em resultado da corrupção de um regime que, no compadrio e no favor político, jogou o próprio património dos povos. Torna-se pois imperioso, como acto elementar de justiça, adoptar as medidas que permitam a devolução aos legítimos utentes dos baldios, dos bens e direitos de que assim foram espoliados». Porém, era tarde demais. Os próprios potenciais usuários dos baldios, a partir de meados do século passado, haviam começado a desistir da subsistência miserável que ancestralmente lhes estava reservada para tentar uma vida menos ruim, abandonando as encostas das serras onde aqueles estavam plantados. Essa tendência acentuou-se a partir da década de sessenta: os aldeões feitos mancebos e levados a guerrear para outros mundos, depois de regressarem, fugiam dessa “fatalidade”, com que já não se conformavam, mesmo sabendo que iam para os “esgotos de França” ([8]). Em grande medida, o interior do país ficou deserto, ou quase, com as consequências que todos conhecemos. É verdade que, nalgumas zonas, por variadas razões, têm sido ensaiadas, espontaneamente, novas formas de ocupação do território. De tudo disto este processo nos dá uma imagem expressiva. Serve o já exposto – não tão breve como seria desejável – para podermos agora afinar o conceito de direito de baldio. Como pertinentemente observa Maria Raquel Rei ([9]), «independentemente das proclamações associadas aos últimos regimes jurídicos dos baldios, a mera existência de um regime legal dos baldios é uma tentativa de domesticar o fenómeno, de o enquadrar no âmbito do nosso sistema romanístico». Ainda assim, considerada a génese da realidade socioeconómica que o Estado visa “domesticar”, não deixa de ser sustentável que o essencial do regime específico próprio de cada baldio assenta nas respectivas regras consuetudinárias, pelo menos, até onde o comando do citado art. 3º do CC o permite, designadamente quanto à utilização dos baldios pelos compartes, ficando supletivamente reservado para os normativos legais o enquadramento de aspectos como os atinentes a eleições e mandatos para os órgãos de gestão, o destino dos proveitos ou dos bens em caso de extinção dos baldios. O que vale por dizer que o direito de baldio é um direito real com um regime jurídico muito específico, particularmente, para o que aqui importa, quanto ao respectivo conteúdo: (i) não abarca o gozo, de modo pleno e exclusivo, do direito de disposição do bem (área de terreno) sobre que incide, nem em vida nem por morte; (ii) caracteriza-se por proporcionar a cada elemento de um conjunto de pessoas (uma “comunidade local”), de acordo com as deliberações das assembleias de compartes e os usos e costumes (arts. 1º e 5º da Lei 68/93), a posse correspondente (apenas) às faculdades de uso e fruição das utilidades propiciadas pelo baldio; (iii) o baldio, estando “fora do comércio jurídico”, é insusceptível de apropriação privada, quer pelos compartes individualmente considerados, quer pela estrutura da sua administração. Não se trata, pois, «de um direito de propriedade, mas de um direito a se, com características reais, mas que não se atêm aos moldes romanistas habituais de aproveitamento exclusivo e voluntarista que marca a generalidade dos direitos reais» ([10]), e que, embora esteja previsto em legislação avulsa (não no Código Civil), não deixa de respeitar, como os demais direitos com essa natureza, o princípio da tipicidade, porquanto esta «pode resultar de qualquer lei – como, de resto, sucede relativamente a outros direitos reais além do direito de baldio (por exemplo, o direito real de habitação periódica)» ([11]). Logo, são aqui despiciendos os argumentos e óbices esgrimidos neste processo conexionados com as características de uma posse (civilista) apta a usucapir. O que releva para que se tenha por adquirida a constituição do direito de baldio sobre determinada área de terreno é que se possa asseverar que este, em geral, foi o logradouro comum historicamente usado, fruído e gerido apenas pelos habitantes de uma determinada comunidade local ([12]). «Com tal expressão pretendeu-se dar conteúdo jurídico ao conjunto de pessoas que, historicamente, andavam no uso e posse dos baldios e os consideravam como seus, por os terem recebido daqueles que antes deles foram naquele local e que lhes deram semelhante utilização, sendo sua obrigação transmitir tal direito de “todos” aqueles que depois deles viessem. Esse conjunto (fluído) de pessoas constituía os “povos” ou “lugares” que, de acordo com a tradição, tinham adstritos à sua economia rural os terrenos incultos, donde retiravam as pastagens, os estrumes, lenhas e outras utilidades …» (Jaime Gralheiro, em cit. “Comentário”, pp. 10 e 11). Por isso, a “fluidez” acautelada por esse Ilustre Comentador quanto à composição da “comunidade local” que, historicamente, usou, fruiu e geriu o seu logradouro comum também distingue, determinantemente, o direito real de baldio de outros com idêntica natureza, maxime, o de propriedade, cujo conteúdo essencial reside no gozo, pelo respectivo titular, de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição da coisa que lhe pertence (cf. art. 1305º do CC). A exclusividade inerente ao direito de propriedade não é imediatamente transponível, nos seus exactos termos, para o direito de baldio: para a constituição deste basta que se possa garantir, perante a realidade fáctica assente, que apenas uma “comunidade local”, fluida e espontaneamente formada por um ou mais povoados, historicamente, teve o uso de tal “logradouro comum”. Ora, do que se apurou retira-se que, desde tempos imemoriais, apenas os moradores dos lugares de ... e ... possuíram e geriram a utilização comunitária da área de terreno em questão, com excepção dos terrenos pertencentes a particulares existentes no seu interior, ali levando a apascentar os seus gados, roçando os matos, recolhendo as lenhas e torga, fazendo carvão, colocando colmeias de abelhas e recolhendo o mel e a cera, nele plantando carvalhos, castanheiros e oliveiras e deles recolhendo os respectivos frutos, tendo em vista assegurar a subsistência dos mesmos, sendo que essa sua actuação sempre foi feita à vista de toda a gente, de forma continuada e sem interrupção ou oposição de quem quer que fosse. Portanto, constam da factualidade assente todos requisitos que expendemos para podermos concluir pela constituição do direito de baldio da comunidade local formada pelos moradores dos lugares de ... e .... E no que ao invocado animus possidendi concerne, ainda que se admitisse que a sua aferição devesse ser feita em conformidade com os critérios que subjazem à posse (civilista), sempre valeria a presunção – não adversada por qualquer dos factos realmente provados – de que os aludidos actos materiais foram historicamente praticados pelos moradores (compartes) com a convicção de que exerciam o direito de baldio (cf. art. 1252º/2 do CC).
3. O conceito de comparte. Defende a A/recorrente que os cidadãos que compõem a R, com excepção do que é natural da freguesia ... e dos dois que lá moram efectivamente, não são compartes, no conceito de “morador” ínsito no art. 1º/3 da Lei 68/93 de 4/9. Relembra-se que, neste processo, nem sequer constituiu o cerne da controvérsia a existência do direito de baldio sobre o terreno em disputa, sendo pacífica a caracterização deste como baldio, pois apenas se discutiu a respectiva titularidade, ou seja, quais as concretas povoações locais que, desde tempos antigos, os vinham aproveitando, em posse comunitária, para a extracção das respectivas utilidades naturais ou trabalhadas. A recorrente, para alcançar a declaração de que a constituição da R viola a lei e os costumes locais e obter, dessa sorte, o fracasso dos pedidos que esta formulou, pretende que o conceito de morador, ínsito no disposto no art. 1º/3 da Lei 68/93, de 4/9, seja densificado de modo a ser referenciado ao local onde o cidadão tem o seu centro de vida, o local onde tem a sua existência organizada e que, como tal, lhe serve de base de vida, de modo a excluir quem, não sendo natural do lugar onde se situe o terreno baldio, ali apenas tenha casa destinada a períodos de vilegiatura, sem aí desenvolver actividades relacionadas com a necessidade de usar, fruir e gerir o terreno baldio, de que, por isso, não é comparte. É certo que, para além do que acima se expôs, também se apurou que o ..., um dos lugares que formaram a aludida “comunidade local”, está deserto, sem moradores, há já cerca de 20/30 anos e que no outro, ..., vivem hoje, como residentes, apenas 3 moradores – dois dos quais naturais de outro Concelho que não o de ... – e outras pessoas, que residindo em variados locais de Portugal – não na Freguesia ... –, foram, ao longo do tempo, adquirindo aos herdeiros dos anteriores moradores daquele local as casas e os terrenos que lhes pertenciam ([13]). Porém, todas as contingências reflectidas nesse enunciado não derrogam a inelutável constatação de que se mostra constituído o direito de baldio da comunidade local formada pelos moradores dos lugares de ... e ..., sem que dos autos se retire que, entretanto, teria sido extinto. Além disso, o reconhecimento desse direito não depende da maior ou menor dimensão da “fluida” comunidade local que é dele titular e o certo é que nos lugares de ... e ... continua a existir um “universo de compartes”, qualquer que seja o conteúdo que se ofereça a este conceito, uma vez que, de qualquer maneira, aquela comunidade sempre contempla, pelo menos, três moradores permanentes. Por outro lado, todas as alusões recursivas concernentes à naturalidade ou origem dos moradores são inócuas: decorre como consequência natural da natureza do direito de baldio acima expendida que «a qualidade de “comparte” não se herda, nem se transmite por qualquer forma de direito», antes «radica em condições ligadas à pessoa», i. é, à condição de morador que tem direito ao uso e fruição do baldio, segundo os usos e costumes «aceites pela generalidade das pessoas» ([14]). Ora, em boa verdade, nem a própria recorrente questiona a qualidade de “compartes” dos referidos três moradores permanentes. De todo o modo, a A também não teria logrado demonstrar que, segundo os usos e costumes, os mesmos não teriam direito ao uso e fruição do baldio, em conformidade com o disposto no art. 1º/3 da Lei 68/93 [na redacção vigente à data da constituição da R (anterior à que lhe foi conferida pela Lei 72/2014, de 2/09)] e que, por isso, não teriam tal qualidade. Mas, a A também não teria feito tal demonstração em relação aos demais moradores que, no local, têm apenas uma habitação secundária, não podendo deixar de se ponderar esse ónus, uma vez que que o dito preceito, ao invés do que sucedia com o precedente art. 4º do DL 39/76, deixou de exigir o exercício pelos moradores de uma actividade no local para serem tidos por “compartes”, bastando-se a lei com referência a moradores que têm direito ao uso e fruição do baldio, segundo os usos e costumes ([15]). E é quanto bastaria para julgar insubsistente o arrazoado recursivo. Ainda assim, sempre aditaremos umas breves notas. Como anteriormente dissemos, a realidade histórica consistente no aproveitamento, ao longo de séculos, pelas comunidades locais dos terrenos baldios para complementar a subsistência dos seus membros – colhida essencialmente duma agricultura rudimentar, com a obtenção das utilidades por aqueles propiciadas, mediante a apicultura e, sobretudo, a pastorícia e a extração de frutos e materiais, como lenhas, madeiras e matos para “acamar” os animais e estrumar as terras – alterou-se profundamente nas últimas décadas, com a desertificação das serras e do espaço rural, com o desaparecimento generalizado da agricultura rudimentar tradicionalmente complementada com a exploração dos baldios e o decorrente abandono destes e dos espaços florestais. Entretanto, como já se observou no acórdão da Formação prevista no art. 672º do CPC, desde há algum tempo, vimos assistindo ao fenómeno de um certo “regresso às origens” disseminado por alguns pontos do país – como da factualidade assente resulta ser o caso –, que tem movido pessoas oriundas dos meios urbanos e suburbanos a alterar radicalmente o seu modo de vida e a fixar-se permanentemente nesses locais e outros a procurar aí apenas refúgios de férias e fins-de-semana – como tem sucedido com profissionais liberais, quadros dos serviços ou elementos da pequena e média burguesia –, todos, atraídos pelo bucolismo e pela qualidade de vida de que lá podem usufruir. Concomitantemente, a exploração da energia EE, que alterou a fisionomia das serras e passou a propiciar consideráveis receitas, a par da obtida pelo corte de árvores, não alterou significativamente o estado de abandono de tais espaços mas fez emergir uma nova fonte de cobiça, como é a que, imediatamente, desencadeou este litígio. A profunda evolução sofrida pela realidade socioeconómica dos baldios terá levado o legislador a consagrar na lei actualmente vigente a possibilidade de a assembleia de compartes atribuir a qualidade de titular do baldio (comparte) até a um cidadão não residente no local, deixando ao critério da assembleia a definição dos requisitos para tanto impostos, pois não explicita qualquer exigência quanto à natureza e ao grau da sua ligação ao correspondente logradouro comum. Porém, mesmo perante o teor do mencionado art. 1º/3 da Lei 68/93 ([16]) e o contexto dinâmico em que se inseriu, não vislumbramos, à luz do disposto no art. 9º do CC, argumentos sólidos para considerar que a ratio prosseguida pelo legislador seria a de negar a qualidade de “comparte” do logradouro comum de uma “comunidade local”, a quem, ainda que não permanentemente, se dispôs a integrar essa comunidade e, assim, a contribuir, em maior ou menor medida, para a atenuação da desertificação das serras e do espaço rural no interior do país, a não ser que se evidencie, claramente, que tal qualidade afronta os usos e costumes. Seja como for, a recorrente não é titular de qualquer direito substancial conexo com a sua pretensão recursiva. Ainda que, porventura, se verificasse alguma irregularidade na constituição da R, daí apenas redundaria que os compartes do (constituído) baldio dos lugares ... e ... não se teriam organizado na respectiva assembleia e que, por essa razão, a administração do baldio não se poderia considerar como tendo-lhes sido “devolvida” pela Junta de Freguesia. E não que este Órgão autárquico e, muito menos, a ora A fossem titulares de um putativo direito relativo a ou provindo do logradouro comum da comunidade local dos moradores naqueles lugares. Na verdade, a administração dos baldios compete, precariamente, às juntas de freguesia até que as comunidades locais se organizem para o exercício dos actos de representação, gestão e fiscalização relativos aos correspondentes baldios, «através de uma assembleia de compartes, um conselho directivo e uma comissão de fiscalização», e até que, uma vez, «constituída a respectiva assembleia de compartes, esta tome a iniciativa de promover que a devolução de facto se efective» (cf. arts. 3º e 6º do DL 39/76 e 11º e 34º da Lei n.º 68/93).
Assim, improcedem os recursos interpostos pela A e pela interveniente.
4. O recurso subordinado. A R (Assembleia de ... e ...) interpôs revista subordinada por não se conformar com o decidido quanto à limitação do capital da indemnização a liquidar ao valor indicado para a reconvenção que deduziu (€ 20.000). Realmente, a Relação interpretou a indicação que a reconvinte oferecera para a reconvenção como constitutiva dum limite do quantum nela peticionado que, por isso, não poderia ser ultrapassado. Salvo o devido respeito, a recorrente tem razão. Vejamos. A R formulou um pedido reconvencional genérico, como lhe consentiam os arts. 556º do CPC e 569º do CC, indicando o aludido valor processual (€ 20.000) e, como decorrência da sua admissão, foi fixado à causa o valor de € 60.000. Ora, essa sua indicação não delimita uma pretensão cuja utilidade económica só se definirá na sequência da liquidação deduzida depois de proferida a condenação genérica e em cujo âmbito o valor inicialmente aceite será corrigido logo que o processo forneça os elementos necessários (arts. 299º/4 e 358º do CPC). Tal indicação apenas se repercutiu na decorrente atribuição do valor à causa, atendendo-se a este apenas «para determinar a competência do tribunal, a forma do processo de execução comum e a relação da causa com a alçada do tribunal» (art. 296º/2 do CPC), não relevando agora este aspecto, face ao valor fixado à causa e ao disposto no art. 633º/5 do CPC.
Por conseguinte, procede o recurso subordinado.
* Síntese conclusiva: 1. Na história dos baldios ecoa o congénito conflito entre o direito de utilização de terrenos não apropriados – consoante os costumes vigentes em cada uma das respectivas comunidades locais – cuja origem remonta, seguramente, a período anterior à nacionalidade, e o direito do Estado, que, desde há muito, o tenta enquadrar e delimitar. Ou, numa diferente perspectiva, a colisão entre duas formas de exploração da terra: pelo lado dos baldios, a tradicional utilização e fruição comunal da terra, sem apropriação – sequer, pela comunidade dos fruidores –, inconciliável, por isso, com a ideia de domínio/propriedade, i.é, com um pretenso animus de exercício correspondente ao direito de propriedade; por outro lado, a exploração da terra através da sua apropriação por um qualquer sujeito de direito (privado ou público), acomodada ao modelo do direito civil geral, na linha do sistema geral dos direitos reais de tradição romanista, que veio a tomar-se predominante, mas cuja lógica os baldios desafiam abertamente. 2. Considerada a génese da realidade socioeconómica dos baldios, que o Estado tem procurado “domesticar”, enquadrando-o no âmbito do sistema romanístico, não deixa de ser sustentável que o essencial do regime específico próprio de cada baldio assenta nas respectivas regras consuetudinárias, pelo menos, até onde o comando do art. 3º do CC o permite, principalmente quanto à utilização dos baldios pelos compartes. 3. O direito de baldio é um direito real que, embora esteja previsto em legislação avulsa (não no Código Civil), não deixa de respeitar, como os demais direitos com essa natureza, o princípio da tipicidade e que tem um regime jurídico muito específico, particularmente quanto ao respectivo conteúdo: (i) não abarca o gozo, de modo pleno e exclusivo, do direito de disposição do bem (área de terreno) sobre que incide, nem em vida nem por morte; (ii) caracteriza-se por proporcionar a cada elemento de um conjunto de pessoas (uma “comunidade local”), de acordo com as deliberações das assembleias de compartes e os usos e costumes (arts. 1º e 5º da Lei 68/93 ao caso aplicável), a posse correspondente (apenas) às faculdades de uso e fruição das utilidades propiciadas pelo baldio; (iii) o baldio, estando “fora do comércio jurídico”, é insusceptível de apropriação privada, quer pelos compartes individualmente considerados, quer pela estrutura da sua administração. 4. Logo, são aqui despiciendas as características da posse (civilista) apta a usucapir: o que releva para que se tenha por adquirida a constituição do direito de baldio sobre determinada área de terreno é que se possa asseverar que este, em geral, foi o logradouro comum historicamente usado, fruído e gerido pelo conjunto (fluído) dos habitantes de uma determinada comunidade local. 5. Decorre da natureza do direito de baldio que a qualidade de “comparte” não se herda, nem se transmite, antes radica na condição de morador que tem direito ao uso e fruição do baldio, segundo os usos e costumes aceites pela generalidade das pessoas. 6. Tal como a profunda evolução sofrida pela realidade socioeconómica dos baldios terá levado a consagrar na lei actualmente vigente (75/2017, de 17/8) a possibilidade de a assembleia de compartes atribuir a qualidade de titular do baldio (comparte) até a um cidadão não residente no local, sem a explicitação de qualquer exigência quanto à natureza e ao grau da sua ligação ao correspondente logradouro comum, também perante o teor do art. 1º/3 da Lei 68/93 (na redacção anterior à que lhe foi conferida pela Lei 72/2014, de 2/09) e o contexto dinâmico em que se inseriu, não se vislumbram, à luz do disposto no art. 9º do CC, argumentos sólidos para considerar que a ratio prosseguida pelo legislador seria a de negar a qualidade de “comparte” do logradouro comum de uma “comunidade local”, a quem, ainda que não permanentemente, se dispôs a integrar essa comunidade e, assim, a contribuir, em maior ou menor medida, para a atenuação da desertificação das serras e do espaço rural no interior do país, a não ser que se evidencie que tal qualidade afronta os usos e costumes.
* Decisão: Pelo exposto, acorda-se em negar as revistas interpostas pela A e pela interveniente EE SA e conceder a revista interposta pela R e, por consequência, confirmar a decisão recorrida, excepto quanto ao segmento do respectivo dispositivo em que se clarifica que o direito indemnizatório reconhecido à Reconvinte tem de se conformar com o valor de € 20.000, o qual se considera de nenhum efeito.
Custas apenas pela interveniente EE Espigão, uma vez que a A delas está isenta (art. 4º/1, al. x), do RCP).
Lisboa, 24/10/2019
Alexandre Reis (Relator)
Lima Gonçalves
Fátima Gomes
_______________________________________________________ [1] A hegemonia nesse poder foi assumida, entretanto, pelos detentores das máquinas e demais meios de produção industrial, que a perdem, muito aceleradamente, para o domínio nada “etéreo” dos algoritmos e dos meios de informação em geral, com as correspondentes tecnologias. [2] Todos os alvitres que se têm formulado nesse conspecto são para aqui completamente irrelevantes. Aliás, como bem lembra o Desembargador José Fonte Ramos, no seu interessante artigo “Algumas notas sobre os baldios” (publicado em “Estudos em Comemoração dos 100 Anos do Tribunal da Relação de Coimbra”, Almedina, 2018), citando Rogério E. Soares (em “Sobre os baldios”, Revista de Direito de Estudos Sociais, ano XIV, 1967, p. 295), «“a origem dos baldios perde-se na noite dos tempos” e será mera tentação doutrinal reconduzir a génese da figura a quadros jurídicos precisos/determinados correspondentes a exigências particulares duma dada situação histórica; todavia, uma das experiências jurídicas que pode ter servido de base a um regime como o dos baldios é a das populações numa fase pré-agrária, em que o interesse fundamental é o de garantir aos habitantes dum lugar a fruição promíscua de certas terras, onde possam apascentar os gados ou colher lenhas ou frutos silvestres.» Também Jaime Gralheiro [em “Comentário À Nova Lei dos Baldios” (Lei nº 68-93 de 4 de Set.), Almedina 2002, pp. 12 e s], depois de aludir à querela sobre a proveniência (linguística) do termo “baldio”, disse interessar, realmente, que o mesmo nunca foi «utilizado nas nossas Ordenações que reservaram para tal realidade as expressões: “brejos”, “pegos”, “montadigos de termino”, “montadigos de vicino”, “matos maninhos” ou “matos bravios” e “logradouro ou logramento do povo” (Vide Ordenações Manuelinas; §§ 8 e 9 (Livros IV, LXVII, das Sesmarias) e Ordenações Filipinas § 414, Título 15)» e que «a expressão “baldio” referida a terreno inculto na posse comunitária dos povos, aparece pela primeira vez, no séc. XVII, na Écloga IV do poeta Rodrigues Lobo (António Losa, in Filologia ao Serviço do Direito, Sciencia Iurídica, ano II, pág. 424).» [3] Sucessivamente, DL´s 39/76 e 40/76, ambos de 19/01, Lei 68/93, de 4/9 (alterada pela Lei 72/2014, de 2/9) e, por último, a Lei 75/2017, de 17/8, actualmente vigente. [4] Com base em algumas fontes, o Desembargador Fonte Ramos, no seu cit. artigo, pôde «concluir que foram enormes as áreas baldias transformadas em propriedade particular, admitindo-se que em 1880 a área “inculta não aproveitada” abrangeria 3.000.000 a 3.500.000 hectares, ou seja, cerca de 1/3 do território continental, sendo que em 1937 a Junta de Colonização Interna (JCI) já nos dá conta da existência de pouco mais de 500.000 hectares de terrenos baldios (cerca de 4/5 concernente a baldios reconhecidos pela JCI, sendo a área restante de baldios submetidos ao regime florestal) – cf., nomeadamente, Reconhecimento dos Baldios do Continente, 1939 – em particular, o vol. II, parte I, pág. 7 – e a Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 13º, págs. 545 e seguinte, e nota 1». [5] Disso mesmo nos dá conta o Desembargador Fonte Ramos, no seu cit. artigo, aludindo, nomeadamente, aos Alvarás régios de 6/12/1603 e 23/7/1766 com que os próprios Monarcas tentaram refrear os abusos dos poderosos, atalhando à repartição dos baldios pelas «pessoas que costumão andar na governança», «praticando estas injustas, e lesivas alienações debaixo de pretextos na apparencia uteis, e na realidade nocivos ao progresso, e augmento da lavoura, à creação dos gados, à subsistência dos Povos». [6] Era, naturalmente, muito menos problemático a administração dos baldios ser feita pelas juntas de freguesia, ou seja, pelo Governo, através dos regedores dele dependente. [7] Os povos reagiram por todo o lado à ocupação, com maior ou menor denodo. O Mestre Aquilino Ribeiro romanceia sublimemente uma dessas lutas em “Quando os lobos uivam”, de que reproduzimos uns pequeníssimos trechos: «Chegado pois Outubro, despejaram-se os povos para as portelas da serra, quando uma voz correu: Deixassem-se ficar em casa; o Governo ia tomar conta da serra e expulsá-los. Acabou-se; nunca mais teriam o direito de lá cortar um chamiço ou levar uma ovelha parida a encher o fole (…) Vinham portanto os cães do Governo escorraçá-los da serra! Então o dia de juízo estava a amanhecer! O Governo para o aldeão é sinónimo de Estado e de tudo o que dá leis, uma quadrilha de olho vivo.» No mesmo Romance é retratada a subsequente repressão e a decorrente intervenção do sistema judicial, no caso, através dum julgamento picaresco feito por um dos seus mal-afamados tribunais plenários, assim glosados: «A língua tem as suas leprosarias. Reparou o senhor engenheiro que plenário rima com uma série de palavras significando coisas no geral retrógradas embora com o seu pitoresco? Por exemplo, calvário, rosário, bestiário, fundibulário, trintário antifonário, inclusive prostibulário? Dir-se-ia um bairro da Idade Média, achacado de má nota (…) o legislador encontrou o termo que convinha ao odioso tribunal. Melhor só um tricorne de inquisidor.» [8] Em 1971, o Professor Orlando de Carvalho, na veste de Poeta, “celebrou” assim essa saga: «(…) Triste tropel de heróicos maltrapilhos / férteis de fome e filhos / Meu país dos baldios e da esperança / adiada adiada / nos esgotos de França / como terra queimada (…)» (“Sobre a Noite e a Vida”, Centelha, 1985, p. 44). [9] In “Do carácter não usucapível do direito de baldio” (Anotação a uma escritura de justificação), RDC II (2017), 4, p. 819-836. [10] Autora e “Anotação” antecedentemente citadas. [11] Idem. [12] Ou, como se disse no acórdão deste Tribunal invocado pelas recorrentes (proferido em 12-10-2017 no p. 235/07.5TBRSD.C1.S1), que os moradores de um determinado local, ininterrupta e exclusivamente, levaram a cabo «actos materiais de aproveitamento do baldio desde tempos imemoriais». [13] Aliás, da leitura da fundamentação do acórdão recorrido extrai-se que o próprio presidente do Conselho Directivo da R, em depoimento de parte, terá informado ser técnico da administração tributária, residir na … e ter residência secundária em … há 23 anos. [14] V. Jaime Gralheiro, em cit. “Comentário”, pp. 11 e 12. [15] Neste sentido, o mesmo Comentador, loc. cit.. [16] Como dissemos, na redacção vigente à data da constituição da R (anterior à que lhe foi conferida pela Lei 72/2014, de 2/09). |