Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
212/13.7TBMCD.G1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: DOCUMENTO ESCRITO
ASSINATURA
IMPUGNAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
QUESTÃO NOVA
CONHECIMENTO OFICIOSO
Data do Acordão: 03/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISTA
Decisão: NEGADO O RECURSO DE REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVAS / MODO DE CONTRARIAR A PROVA LEGAL PLENA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1985, 2.ª edição, p. 514;
- José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume III, Coimbra, Coimbra Editora, p. 271;.
- Lebre de Freitas, Ana Prata (coord.), Código Civil Anotado, volume I, Coimbra, Almedina, 2017, p. 463;
- Manuel de Andrade, Noções elementares de processo civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1979, p. 384;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, p. 258-259.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 347.º, N.º 2.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 635.º, N.º 4 E 639.º, N.º 1.
Sumário :

1. A aplicabilidade do n.º 2 do art. 347.º do CC depende de um único requisito alternativo: ou a parte contra quem o documento é apresentado impugna a veracidade da letra ou da assinatura ou, não sendo a letra ou a assinatura imputadas a ela, a parte contra quem o documento é apresentado declara que não sabe se são verdadeiras.

2. Sendo a veracidade da assinatura aposta em certos contratos impugnada pelas autoras, cabe aos réus, em conformidade como o disposto no n.º 2 do artigo 347.º do CC, o ónus da prova da veracidade da assinatura.

3. Quando existe uma questão de conhecimento oficioso pelo tribunal, é irrelevante que ela seja suscitada ex novo por uma das partes.

  

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

Recorrentes: AA e Herança aberta e indivisa por óbito de BB

Recorridos: CC e DD

AA instaurou a acção declarativa contra CC e DD, formulando os seguintes pedidos:

"1)- Declarar e reconhecer que a A. AA é a única herdeira legítima do remanescente da Herança aberta e indivisa por óbito de sua irmã, BB;

2)- Declarar a anulabilidade dos contratos de seguro de vida e aplicações financeiras identificados nos arts.º 15.º a 17.º desta P.I.;

3)- A título subsidiário, declarar a nulidade dos contratos de seguro de vida e aplicações financeiras identificados nos arts.º 15.º a 17.º desta P.I., sendo nula a doação, por constituir disposição com efeitos mortis causa, sem constar de disposição testamentária válida e na forma prescrita por lei;

4)- Condenar os RR. a reconhecerem os pedidos formulados em 1) a 3) para todos os efeitos e consequências legais;

5)- Condenar os RR., a entregarem e restituírem à Herança aberta e indivisa por óbito de BB, a quantia de 821.585,76 € (…), acrescida de juros vencidos e vincendos até à sua efectiva entrega e restituição.".

Alegou a autora, em síntese, que os contratos de seguro de vida não foram subscritos pela sua irmã BB, falecida a 24 de Novembro de 2009, de quem é herdeira. Para além disso, a indicação do réu CC como beneficiário em tais contratos não corresponde à vontade desta, havendo, nessa parte, uma divergência entre a vontade declarada e a vontade real. Os réus CC e DD apoderaram-se dos valores aí aplicados e frutos dos gerados, devendo, portanto, restituí-los ao "acervo e património da sua Herança, aberta e indivisa, com o seu óbito".

Os réus contestaram afirmando, em suma, que os contratos foram subscritos pela falecida BB, que os celebrou conscientemente e neles expressou a sua efectiva vontade.

Foi proferida sentença em que se decidiu:

"Pelo exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente e prejudicado o conhecimento da excepção de caducidade e, em consequência

Declaro que a autora AA é a única herdeira legítima do remanescente da Herança aberta e indivisa por óbito de sua irmã, BB; e condeno o réu CC a entregar ou restituir à Herança aberta e indivisa por óbito de BB, a quantia de € 821 585, 76 (oitocentos e vinte e um mil quinhentos e oitenta e cinco euros e setenta e seis cêntimos), acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, a contar da citação e até à sua efectiva entrega e restituição.

Absolvo os réus do demais peticionado; e a autora e os réus do pedidos de condenação como litigantes de má fé”.

Inconformado com esta decisão, o réu CC interpôs dela recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães, pugnando pela sua alteração e pela sua absolvição da totalidade do pedido.

As autoras contra-alegaram, sustentando a improcedência do recurso e requerendo também "a ampliação do âmbito do recurso, nos termos do art.º 636.º,n.º 1 e 2 do C.P.C.”.

O teor da decisão do Acórdão o Tribunal da Relação de Guimarães de 10 de Julho de 2018 foi o seguinte:

“a) revoga-se a decisão recorrida no segmento em que condenou "o réu CC a entregar ou restituir à Herança aberta e indivisa por óbito de BB, a quantia de € 821 585, 76 (oitocentos e vinte e um mil quinhentos e oitenta e cinco euros e setenta e seis cêntimos), acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, a contar da citação e até à sua efectiva entrega e restituição";

b) absolve-se os réus dos pedidos formulados na petição inicial sob 2 a 5;

c) mantém-se no mais a sentença recorrida”.

Tendo sido notificadas do Douto Acórdão e não se conformando com o mesmo, vêm agora as Autoras interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos dos artigos 627.º, 629.º, n.º 1 e 671.º do CPC.

Nas suas alegações, pugnam pelo provimento da revista, concluindo assim:
I. Tendo presente a inexistência de “dupla conforme”, o fundamento específico do presente recurso assenta na discordância do acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães que revogou a sentença da Primeira Instância – no segmento em que condenou “o réu CC a entregar ou restituir à herança aberta e indivisa por óbito de BB, a quantia de €821 585,76 (…), acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, a contar da citação e até à sua efetiva entrega e restituição” e absolveu os réus dos pedidos formulados na petição inicial sob 2 a 5, mantendo no mais a sentença recorrida –, pelas razões a seguir enunciadas.
II. Contrariamente ao que se refere no douto acórdão recorrido, inexiste no direito probatório material regra segundo a qual é a quem alega determinado facto que cumpre fazer a sua prova.
III. Na verdade, contrariamente ao que se refere no acórdão recorrido, o que resulta do disposto no artigo 342º do CC, não é tanto que compete a quem apresenta os factos no processo, a sua prova, mas tão somente que quem invoca um direito, deve provar  os seus factos constitutivos, enquanto que a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do mesmo direito cabe àquele contra quem o direito é invocado.
IV. Assim sendo, da circunstância de ter sido a Autora trazer ao processo, na p. i., os factos que integram a defesa por excepção dos RR. – baseada na nulidade e anulabilidade dos contratos de seguro – não decorre, nem que tais factos passaram a integrar os fundamentos da acção, nem que recai sobre a Autora o ónus da respectiva prova.
V. Na acção, a Autora alegou como factos constitutivos do seu direito a circunstância de todos os valores e aplicações financeiras existentes nos Bancos e Seguradoras, nomeadamente na FF, serem propriedade exclusiva de BB, e que, não obstante o R. marido ser co-titular de uma das contas, nunca depositou qualquer importância sua ou a expensas do seu património e rendimentos, nas contas de BB, nomeadamente na conta bancária nº ..., da FF, com os saldos da qual foram constituídos os seguros e aplicações financeiras de BB.
VI. Na sequência dessa alegação, a Autora pediu a final que os RR. fossem condenados a ”… entregarem e restituírem à Herança aberta e indivisa por óbito de BB, a quantia de 821.585,76”.
VII. O mais referido na p. i., designadamente a propósito dos contratos de seguro e das cláusulas beneficiárias neles inscritas em benefício do R. marido, constituiu defesa por antecipação das excepções que os RR. iriam invocar na sua contestação, como sejam as referidas cláusulas dos contratos de seguro.
VIII. Ou seja, a Autora, antecipando os factos extintivos do seu direito – contratos de seguro e cláusulas beneficiárias nelas inscritas – impugnou tais contratos, arguindo os factos dos quais deveria resultar a sua anulabilidade ou nulidade.
IX. Visto isso, a questão da falsidade das assinaturas da irmã da Autora, ao invés de constituir um fundamento do direito da Autora, constitui apenas facto impeditivo do direito (cláusula beneficiária do contrato de seguro) que os RR. contrapuseram ao direito da Autora.
X. Constituindo, assim, essa alegada falsificação da assinatura da falecida irmã da Autora, facto impeditivo da excepção levantada pelos RR. (cláusula beneficiária do R. marido nos contratos de seguro), é à Autora que cumpre fazer a prova de tal facto.
XI. Porém, com a questão da repartição do ónus da prova entre os contendores, não se confunde a questão do ónus da prova da falsidade da letra e da assinatura de um documento particular, sobre a qual igualmente se debruça o acórdão recorrido.
XII. Na verdade, enquanto que no primeiro caso estamos perante a questão da repartição do ónus da prova dos factos que constituem os fundamentos da acção ou da defesa, neste particular já estamos perante a questão da repartição do ónus da prova relativa à falsidade de um meio de prova, in casu, de um documento particular.
XIII. A primeira questão é versada pelo legislador no artigo 342º do CC, enquanto que da seguinte questão trata o artigo 374º do mesmo CC.
XIV. Esta norma, contrariamente ao referido no acórdão recorrido, não regula apenas a questão da repartição do ónus da prova da autenticidade do documento particular assinado por uma das partes, mas de qualquer documento particular, seja ele ou não assinado, e seja ou não essa assinatura de uma das partes.
XV. Assim se vê que, contrariamente ao referido no acórdão recorrido, o artigo 374º nº 2 do CC regula quer as situações em que o documento particular é atribuído à parte que o não apresenta, quer aqueles casos em que lhe é atribuído.
XVI. Visto isso, e tendo presente que o documento em questão foi apresentado contra a Autora, por dar forma a um facto extintivo do seu direito, dúvidas não podem restar de que, tendo a mesma Autora impugnado as respectivas letra e assinatura, era à parte beneficiada com a sua apresentação, os RR., que cumpria fazer prova da respectiva autenticidade.
XVII. Assim sendo, bem andou a sentença, quando concluiu que, estando impugnada pela Autora, a assinatura de sua irmã, alegadamente inscrita nos contratos que contêm uma cláusula beneficiária em benefício do R. marido, cumpria a este último convencer o tribunal de que tais assinaturas eram verdadeiras,
XVIII. o que não conseguiu fazer.
XIX. A nulidade é um vício do negócio jurídico, de que o tribunal poderá sempre conhecer oficiosamente, nos termos do disposto no artigo 286º do CC.
XX. Segundo o que se dispõe no artigo 74º do DL n.º 298/92, de 31 de Dezembro, que criou o ”REGIME GERAL DAS INSTITUIÇÕES DE CRÉDITO E SOCIEDADES FINANCEIRAS”, no exercício da sua actividade, os funcionários bancários ”… devem proceder, tanto nas relações com os clientes como nas relações com outras instituições, com diligência, neutralidade, lealdade e discrição e respeito consciencioso dos interesses que lhes estão confiados.”.
XXI. No nosso ordenamento jurídico, são nulos todos os negócios jurídicos contrários à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes.
XXII. O nosso ordenamento jurídico, relativamente às doações e testamentos, encerra um conjunto de verdadeiras proibições, que impedem determinadas pessoas de beneficiarem de uns ou de outros, devido à sua relação com o doador ou testador, bem como devido à sua especial intervenção na formalização de tais negócios jurídicos.
XXIII. É o que resulta do que se dispõe nos artigos 2192º a 2198º e 953º, todos do CC, em que se comina com a respectiva nulidade, qualquer doação ou testamento feito em benefício de pessoas relativamente às quais, o doador ou testador estará, na maioria dos casos, numa situação de vulnerabilidade e dependência psicológica.
XXIV. No caso do artigo 2198º, o que está em causa é a posição especialmente privilegiada em que se encontram determinados profissionais para poderem adulterar o conteúdo do testamento ou da doação, em seu próprio benefício.
XXV. O dever de neutralidade a que estão vinculados os funcionários de todas as instituições bancárias, incluindo a FF, traduz a obrigação de em circunstância alguma, no exercício das suas profissões, poderem colocar em equação os seus interesses pessoais, quando zelam pelo património dos clientes bancários.
XXVI. Já o dever de lealdade, implica para todos os trabalhadores bancários, o dever de pautarem sempre a sua conduta para com os clientes, por elevados padrões de honestidade, rectidão, honra e decência.
XXVII. Na ordem jurídica, são imensos os exemplos de situações em que aqueles deveres de neutralidade, honestidade, rectidão, honra e decência, assumem tal importância, que a sua violação conduz o legislador a soluções completamente radicais, como sucede naqueles casos a que se referem os artigos 2192º a 2198º do CC.
XXVIII. Os bons costumes, assim como a boa-fé, encerram um mínimo de valores éticos e morais, absolutamente vitais para a sociedade.
XXIX. Por isso, quando o objecto de qualquer negócio jurídico, consubstancia a prática de quaisquer actos imorais, que atentem contra tais valores éticos e morais, a Lei invalida-os de forma completamente radical, tornando-os nulos.
XXX. Mas estes casos também revelam situações em que a rectidão de carácter, a honestidade, a honradez, a neutralidade e a lealdade dos beneficiários sempre os excluiria dos benefícios descritos.
XXXI. É inquestionável, que para uma sociedade como a nossa, em que os valores da honestidade, da rectidão de carácter, da lealdade e da isenção, constituem valores axiológicos, pelos quais todos os cidadãos devem pautar a sua vida, não é conforme aos bons costumes uma conduta como aquela que o R. marido protagonizou.
XXXII. Tirando partido da confiança que a irmã da Autora em si fazia, como profissional bancário, o R. marido, que era a pessoa que geria o património financeiro da Autora, indicando-lhe o que a cada momento devia fazer com as avultadas quantias que tinha em depósito no banco onde o mesmo R. trabalhava, não agiu de acordo com as regras da sua profissão, nem com os mais importantes valores da vida em sociedade, quando, mandou os seus colegas preparar três contratos de seguro, para serem assinados pela Autora, neles fazendo-se constar que o próprio seria único beneficiário dos mesmos , caso a mesma irmã da Autora falecesse durante a vigência de tais contratos, o que era altamente provável.
XXXIII. Não foi honesto, porque um funcionário bancário honesto, jamais aconselhará um cliente a investir num seguro de vida de que ele próprio, depois, se fará único beneficiário.
XXXIV. Um funcionário bancário honesto e isento, nunca mistura os seus interesses com os dos seus clientes, mormente quando sabe que os seus conselhos são habitualmente seguidos pelo cliente, e este é uma pessoa idosa e gravemente doente.
XXXV. Se fosse verdadeiramente espontânea e livre, a vontade da irmã da Autora em instituir o R. marido como beneficiário de quase todo o seu dinheiro, e o R. marido pautasse o exercício da sua profissão por elevados valores de honestidade, probidade e isenção, ter-se-ia afastado da elaboração e subscrição dos contratos de seguro, deixando que a própria comunicasse sem quaisquer constrangimentos a um seu colega, a vontade de o instituir beneficiário único de cerca de 800.000,00 euros.
XXXVI. A forma como o R. marido se tornou beneficiário dos contratos de seguro de vida celebrados pela Autora, ao ser ele próprio a instruir quem redigiu as propostas de seguro, para o incluírem como beneficiário dos mesmos, revela um comportamento profissional completamente desonesto, interesseiro e parcial, completamente aviltante  dos elevados padrões morais que são apanágio da profissão de funcionário bancário
XXXVII. Tendo presente que a conduta do R. marido descrita na sentença, se distanciou de forma assaz significativa de valores éticos importantes, que têm um elevado peso na vida em sociedade,  podemos concluir que as cláusulas beneficiárias que o próprio inscreveu nos contratos de seguro de vida identificados nos autos, violam tais valores éticos, e fazem com que as mesmas sejam ofensivas das regras da sua profissão e dos bons costumes.
XXXVIII. Ao tirar partido da situação de especial fragilidade da irmã da Autora, que era uma senhora idosa e gravemente doente, que com facilidade seguia os seus conselhos em matéria de investimentos, solicitando aos seus colegas de trabalho que o inscrevam como beneficiário de determinados seguros de vida, em que são investidas avultadas quantias, duvidas não podem existir de que estamos perante contratos que consubstanciam importantes ofensas aos bons costumes, enquanto importantes referências éticas e morais da vida em sociedade.
XXXIX. Por tais razões, à luz do disposto no artigo 280º nº 2 do CC, tais cláusulas beneficiárias são nulas, nulidade essa que se invoca com todas as consequências legais, e que o tribunal, pode e deve declarar.
XL. O acórdão recorrido, ao revogar a sentença, e não declarar a nulidade da cláusula dos contratos de seguro identificados nos autos, que instituíram o R. marido como único beneficiário de avultadas quantias, de valor superior a 800.000,00, entre outros, violou o disposto nos artigos 342º, 374º, e 280º nº 2 do CC.

CC vem também apresentar contra-alegações, pugnando, essencialmente pela confirmação do Acórdão recorrido.

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), as questões a decidir, in casu, são as de saber:
1.ª) sendo a veracidade da assinatura aposta nos contratos impugnada pelas autoras, cabia aos réus o ónus da prova da veracidade da assinatura; e
2.ª) se os referidos contratos são nulos com fundamento no artigo 280.º, n.º 2, do CC.
A última é uma questão de conhecimento oficioso (cfr. artigo 286.º do CC), que é, nesta sede, expressamente enunciada por ter sido alegada pelas recorrentes.
Como é óbvio, isto não prejudica as outras questões (não enunciadas) de que o Tribunal tenha também, eventualmente, o dever de conhecer (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC).
Diga-se ainda que, como é de conhecimento oficioso, é irrelevante que a questão tenha sido alegada ex novo pelas recorrentes, improcedendo as reservas apresentadas pelo recorrido quanto a uma (falta de) alegação oportuna.

                                                           *

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

Estão provados os seguintes factos:

1.º - BB faleceu no dia ... de 2009, no estado de viúva.

2.º - E não deixou descendentes, nem ascendentes, vivos.

3.º - AA é irmã única de BB.

4.º - A autora AA requereu Inventário por óbito de sua Irmã, que se encontra pendente no Tribunal de ..., sob o n.º 309/11.8TBMCD.

5.º - No âmbito do qual foi nomeado Cabeça-de-casal o réu CC, como Testamenteiro, nomeado no Testamento supra referido.

6.º - Nele, a Autora AA reclamou os activos financeiros, aplicações, dinheiros e seguros financeiros, que integram o remanescente da Herança de BB.

7.º - O réu CC negou a sua existência e não os relacionou.

8.º - Na sequência de informações bancárias solicitadas pela Autora AA, através do Tribunal, a FF, juntou aos referidos autos, documentos comprovativos da existência dos valores monetários e seguros financeiros de BB.

9.º - Documentos que foram enviados e notificados à Mandatária Judicial da Autora e foram recebidos no dia 28 de Maio de 2012.

10.º - Nomeadamente, a aplicação ou produto financeiro, seguro de vida, da EE Seguros e da FF, denominada JJ 4% (A 45), datado de 21 de Junho de 2007, onde figura como Tomadora do Seguro, BB, no montante de quinhentos mil euros (€ 500 000,00), cobrados na conta com o NIB ..., Agência de ....

11.º - Bem como a aplicação financeira, seguro de vida, da EE Seguros e da FF, denominada JJ 11,45% (C10), datada de 13 de Setembro de 2007, onde figura como Tomadora do Seguro, BB, no montante de duzentos e oito mil euros (€ 208 000,00), cobrados na conta com o NIB ..., Agência de ....

12.º - E a aplicação financeira, seguro de vida, da EE Seguros e da FF, denominada JJ ..., datada de 16 de Setembro de 2008, onde figura como Tomadora do Seguro, BB, no montante de cinquenta mil euros (€ 50 000,00), cobrados na conta com o NIB ..., Agência de .....

13.º - Os valores e aplicações financeiras referidos em 10.º, 11.º e 12.º eram propriedade exclusiva de BB, constituídos com valores e dinheiros seus.

14.º - O réu CC nunca depositou qualquer importância sua ou a expensas do seu património e rendimentos nas contas de BB, nomeadamente na conta bancária n.º ..., da FF, com os saldos da qual foram constituídos os seguros e aplicações financeiras de BB.

15.º - Eliminado.

16.º - Eliminado.

17.º - A BB não foi dada, antes de os subscrever, qualquer explicação acerca das condições particulares e/ou gerais dos produtos financeiros com os valores de € 208 000,00 e de € 50 000,00.

18.º - Na data das aplicações identificadas em 10.º, 11.º e 12.º, o réu CC era funcionário bancário, na FF, Agência de ....

19.º - BB autorizou o réu CC a movimentar algumas da suas contas.

20.º e 21.º - BB esteve internada desde o dia 3/02/2006 a 3/03/2006, de 8/07/2006 a 17/07/2006, de 10/11/2008 a 17/11/2008, de 13/01/2009 a 26/01/2009, de 26/02/2009 a 6/03/2009, de 4/06/2009 a 18/06/2009, de 19/07/2009 a 22/07/2009, de 8/08/2009 a 11/08/2009 e de 17/11/2009 a 24/11/2009.

22.º - No dia 22 de Dezembro de 2009, o réu CC procedeu ao levantamento e resgate dos valores relativos às aplicações identificadas em 10.º, 11.º e 12.º, no montante de € 821 585, 76 (oitocentos e vinte e um mil quinhentos e oitenta e cinco euros e setenta e seis cêntimos).

23.º - Eliminado.

24.º - foi-lhe dada resposta conjuntamente com o facto 17.

25.º - A co-titularidade das contas de BB com o Réu marido era da vontade desta, do seu conhecimento e consciência.

26.º - BB outorgou testamento em 07-05-2007, dizendo o seguinte:

"Lega a GG (…) a casa de habitação com respectivo cabanal anexo, sita (…);

Lega à dita GG, e aos irmãos desta, CC, e HH, o recheio da casa atrás referida;

a) Lega a o prédio urbano (…) sito (…), da seguinte forma:

Lega aos seus afilhados ---, casado, e ---, solteiro (…) o rés-do-chão do prédio identificado na alínea a).

Lega a II (…) o primeiro andar lado direito do prédio identificado na alínea a) (…);

Lega a LL e MM (…) o primeiro andar lado esquerdo do prédio identificado na alínea a) (…);

Lega a NN (…) e CC o segundo andar do prédio identificado na alínea a) (…);

Lega a (…) as águas furtadas do prédio identificado na alínea a);

Lega a GG, CC, e HH o logradouro do prédio da alínea a) (…);

Lega a --- (…) o veículo automóvel ligeiro marca "Peugeot" (…);

Lega o jazigo da família (…) aos referidos irmãos GG, CC, e HH (…);

Lega a --- (…) a quantia de cinquenta mil euros, da conta n.º ..., na agência da FF em ...;

Lega a --- (…) a quantia de cinquenta mil euros da conta n.º ..., na agência da FF em ...;

Lega a CC (…) o saldo total existente na conta n.º ..., na agência da FF em ...;

Lega a --- (…) o saldo existente na conta n.º... na agência da FF em ...;

Ficam ainda os legatários com encargo de mandarem celebrar, cada um, um trintário de missas pela família ....

Na eventualidade de os legatários NN e CC, não poderem vir aceitar ou repudiarem os legados, designo-os substitutos, mútua e reciprocamente um do outro.

Também, na eventualidade, da legatária II não puder aceitar os legados ou os vier a repudiar, designo, como substitutos os seus ascendentes, em primeiro lugar a sua mãe, e no caso de esta não puder ou quiser aceitar, o seu pai.

Nomeio como testamenteiro o legatário CC (…)".

27.º - BB celebrou contratos de aplicação ou produto financeiro, seguro de vida, da EE Seguros e da FF, denominado JJ 4% (A45) datado de 21 de Junho de 2007, onde ela figura como Tomadora de Seguro, no montante de € 500 000,00.

28.º - BB procedeu à aplicação financeira e contrato de seguro de vida da EE Seguros e da FF, denominado JJ, 11,45% (10) datado de 13 de Setembro de 2007, onde figura como tomadora de Seguro BB , no montante de € 208 000,00.

29.º - Celebrou também seguro de vida na EE Seguros e da FF denominado JJ , datado de 16 de Setembro de 2008, onde figura como tomadora do seguro BB , no montante de € 50 000,00.

30.º - A ali tomadora de seguro, livre, consciente, deliberadamente e por ser a verdadeira vontade expressa da dita BB, indicou nos referidos contratos, como beneficiário dos seguros, o réu CC.

31.º - Todas as aplicações financeiras/seguros de vida foram subscritos por BB, livre e conscientemente.

32.º - Nas aplicações de € 500 000,00 e de € 208 000,00 BB apôs a sua assinatura depois dos dizeres: "3. Declaro que tomei conhecimento do conteúdo da informação fornecida nas informações pré-contratuais; 4- Declaro que me foram facultadas todas as informações de que necessitava para a compreensão do contrato que estou a subscrever; 5- Declaro que fiquei esclarecido quanto à natureza do produto que estou a subscrever; 7- Declaro ainda que recebi as Condições Gerais do produto (...)".

33.º - BB percebeu que subscreveu aplicações financeiras, tendo manifestado essa vontade à FF, indicando os valores que pretendia investir e o réu CC como a pessoa que, à sua morte, iria beneficiar do valor de cada um desses investimentos.

O DIREITO

Trata-se de saber, em primeiro lugar, se cabia aos réus o ónus da prova da veracidade da assinatura aposta nos contratos referidos nos autos.

Quanto ao ónus da prova da veracidade / falsidade da assinatura divergiram as respostas do Tribunal de 1.ª instância e do Tribunal recorrido.

Discorrendo à luz do disposto no artigo 374.º, n.º 2, do CC, entendeu o primeiro Tribunal, que "[a] lei faz incidir sobre a parte a quem o documento aproveita, aquela que dele pode retirar vantagem e, por conseguinte, a quem interessa a sua apresentação, o encargo de diligenciar pela obtenção da prova destinada a demonstrar que a assinatura atribuída à contraparte é verdadeira e, consequentemente, a vincula ao cumprimento da obrigação ou das obrigações dele emergentes. E se não lograr alcançar tal prova, se não cumprir o ónus probatório que legalmente lhe está cometido de demonstrar que a assinatura pertence à parte a quem é atribuída - que a assinatura foi feita pelo seu punho -, a pretensão fundada na subscrição do documento pela parte contrária não triunfará.

Ora, no presente caso, os réus não lograram fazer prova de que a assinatura fosse verdadeira (…).

Ora, não provada, como vimos, a veracidade da assinatura constante dos ditos documentos, estes carecem de força probatória das declarações que deles constam (…)”.

Em contrapartida, o Tribunal recorrido, advertindo para que “a assinatura dos documentos em questão não é 'atribuída à contraparte'”, conclui: “[n]ão se imputando aos réus a autoria das assinaturas em causa, fica desde logo afastada a aplicação do n.º 2 do artigo 374.º do Código Civil”.

E acrescenta: “[E]ste 374.º enuncia os caminhos a seguir face à conduta que for adoptada pela parte a quem é atribuída a autoria de um documento particular. Mas tem que estar em causa uma assinatura de uma das partes; tem que ser a assinatura da 'pessoa contra quem a respectiva autoria se imputa'.

Sendo assim, não se pode concluir que este preceito impõe aos réus CC e DD o ónus da prova da autenticidade da assinatura atribuída a BB.

“(…) radicando os pedidos das autoras, entre outros factos, na alegação de que "as assinaturas deles constantes não (…) saíram do seu punho [do punho de BB]", é a elas que, à luz do princípio enunciado no artigo 342.º n.º 1 do Código Civil, cabe o ónus da prova da falsidade das assinaturas.

Essa prova não foi feita. Não existe qualquer documento ou depoimento que, com o mínimo de rigor e certeza necessários, permita afirmar que as assinaturas não são de BB”.

Foi neste raciocínio que o tribunal recorrido estribou a sua decisão de alteração da matéria de facto e, designadamente, de dar como provados os factos 31.º e 32.º:

31.º - Todas as aplicações financeiras/seguros de vida foram subscritos por BB, livre e conscientemente.

32.º - Nas aplicações de € 500 000,00 e de € 208 000,00 BB apôs a sua assinatura depois dos dizeres: "3. Declaro que tomei conhecimento do conteúdo da informação fornecida nas informações pré-contratuais; 4- Declaro que me foram facultadas todas as informações de que necessitava para a compreensão do contrato que estou a subscrever; 5- Declaro que fiquei esclarecido quanto à natureza do produto que estou a subscrever; 7- Declaro ainda que recebi as Condições Gerais do produto (...)”.

Não há dúvida de que os contratos de seguro juntos aos autos são documentos particulares (cfr. artigo 363.º, n.ºs 2 e 3, a contrario, do CC).

Os documentos particulares – determina o artigo 376.º do CC – cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos 373.º e s. do CC fazem prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e da prova da falsidade dos documentos.

Sucede que, neste caso, as autoras / recorrentes arguiram a falsidade da assinatura de BB, vindo sustentar que é aos réus que cabe provar a veracidade da assinatura.

Havendo no capítulo respeitante às provas regulado no Código Civil disposições especiais sobre a prova documental e, em particular sobre os documentos particulares, é nelas, antes de mais, que se deve procurar a solução. Só se não for possível encontrar aí a norma aplicável é que será adequado procurar noutras disposições.

A verdade é que logo se encontra a norma do artigo 374.º do CC, sobre autoria da letra e da assinatura, onde se diz:

1. A letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado, ou quando esta declare não saber se lhe pertencem, apesar de lhe serem atribuídas, ou quando sejam havidas legal ou judicialmente como verdadeiras.

2. Se a parte contra quem o documento é apresentado impugnar a veracidade da letra ou da assinatura, ou declarar que não sabe se são verdadeiras, não lhe sendo elas imputadas, incumbe à parte que apresentar o documento a prova da sua veracidade”.

Exorbitando o caso em apreço da hipótese prevista no n.º 1, uma vez que a assinatura é impugnada, resta verificar se cabe na hipótese prevista no n.º 2.

Interpretando o disposto no n.º 2 do art. 374.º do CC, o Tribunal recorrido afirma que, ao contrário do que se diz na sentença do tribunal de 1.ª instância, “a assinatura dos documentos em questão não é ‘atribuída à contraparte’; as assinaturas em causa são atribuídas a BB, não ao réu CC e/ou à ré DD. Não se imputando aos réus a autoria das assinaturas em causa, fica desde logo afastada a aplicação do n.º 2 do artigo 374.º do Código Civil.

O Tribunal a quo parece, assim, ter considerado que a aplicabilidade da norma dependia de a autoria das assinaturas ser imputada aos réus e que, consequentemente, ela não se aplicava ao caso. Mas, com o devido respeito, não fez a interpretação mais correcta da norma.

Na realidade, a aplicabilidade do n.º 2 do art. 347.º do CC depende de um único requisito (alternativo): a parte contra quem o documento é apresentado impugnar a veracidade da letra ou da assinatura ou, não sendo a letra ou a assinatura imputadas a ela, a parte contra quem o documento é apresentado declarar que não sabe se são verdadeiras.

Para que não restem dúvidas quanto a isto, veja-se o que afirmam, com relevância reforçada para o caso em apreço, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora: “[s]endo a letra e a assinatura do documento imputadas, não á parte (pessoalmente) mas a terceira pessoa (seu antecessor na relação jurídica em causa, competirá a quem apresenta o documento o ónus de provar a sua autenticidade, no caso de a parte contrária declarar que não sabe se o documento é ou não autêntico[1].

E veja-se ainda Lebre de Freitas, em anotação à norma do artigo 374.º do CC: “se a parte contrária [a parte confrontada com a apresentação do documento] negar que a assinatura do documento é da pessoa (ela própria ou terceiro] a quem é imputada (…), a prova da autoria constituirá ónus do apresentante (n.º 2)[2].

Ora, requisito (único) de aplicabilidade da norma verifica-se in casu: a parte contra quem o documento foi apresentado (as autoras) impugnou a veracidade da assinatura.  Verificado que está o requisito de aplicabilidade da norma, o ónus da prova da veracidade da assinatura recaía sobre a parte que apresentou o documento (os réus).

É verdade que o Tribunal recorrido afastou a aplicação da norma e considerou que “à luz do princípio enunciado no artigo 342.º, n.º 1, do CC”, o ónus da prova da falsidade das assinaturas cabia às autoras.

Esse raciocínio não foi, todavia, determinante para a decisão sobre a matéria de facto, designadamente para decisão de dar como demonstrados os factos 31.º e 32.º [antes factos não provados e) e g)], nem, consequentemente, se repercute na decisão final.

Como pode ler-se, imediatamente adiante, no Douto Acórdão: “[n]o entanto, independentemente dessa questão, atentos os depoimentos de --, -- e --, deve ter-se por assente que as assinaturas que estão nos documentos das folhas 42 e 43 são de BB”.

Ora, como diz José Alberto dos Reis, “[o] problema do ónus da prova, traduz-se (…) n[uma] averiguação: como se reparte, entre os litigantes o encargo de fornecer a prova? E ainda: qual das partes há-de suportar as consequências da falta ou insuficiência de provas? A primeira pergunta exprime o primeiro momento do problema; a segunda corresponde ao segundo. Por outras palavras: o interesse da questão de saber sobre qual das partes pesa o ónus da prova está exactamente na consequência que daí deriva para o sentido da decisão a proferir, para o conteúdo positivo da regra de julgamento, Apurado que o ónus da prova incumbia ao autor, o juiz, no caso de falta ou insuficiência de provas, terá de desatender a pretensão do autor; apurado que o ónus da prova pertencia ao réu, o juiz, perante a incerteza dos factos, terá de desatender a pretensão do réu[3].

Significa isto, por outras palavras, que o problema do ónus da prova, quanto ao seu segundo momento, se põe apenas quando haja falta ou insuficiência de prova.

Sucede que, como se viu, o Tribunal deu como demonstrada a veracidade da assinatura, independentemente da prova dos réus, com base na prova testemunhal produzida.

Não se pode, pois, dizer que o Tribunal tivesse considerado que existia  insuficiência de prova e que tivesse decidido por essa razão desatender a pretensão das autoras, retirando as consequências da regra de distribuição do ónus da prova que aplicou (o artigo 342.º do CC).

Ou, por outras palavras, embora tivesse feito uma leitura incorrecta da norma do artigo 374.º, n.º 2, do CPC e, ao afastar esta norma, não tivesse admitido que o ónus da prova da veracidade da assinatura cabia, de facto, aos réus, o Tribunal deu como provado que a assinatura era genuína, por outros meios de prova, designadamente a testemunhal.

No que toca à prova testemunhal, a respectiva valoração está sujeita à livre apreciação do julgador, como resulta do artigo 396º do CC.

Segundo o princípio da livre apreciação das provas, “o que torna provado um facto é a íntima convicção do juiz, gerada em face do material probatório trazido ao processo (bem como da conduta processual das partes) e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens; não a pura e simples observância de certas formas legalmente prescritas. O que decide é a verdade material e não a verdade formal”[4].

A convicção atingida através destes meios de prova pelo Tribunal não é, justificadamente, objecto de sindicância, a não ser quando ocorra a violação de normas legais no que a estas provas respeita, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, do CPC e, em particular no caso de recurso de revista, do artigo 674.º, n.º 3, do CPC.

O Supremo Tribunal de Justiça não pode nem deve, assim, intervir neste conspecto.

Aborde-se agora a 2:º questão – a questão de saber se os contratos são nulos com  fundamento no artigo 280.º, n.º 2, do CC.

Para fundamentar a sua pretensão, alegam, essencialmente, as autoras que, enquanto funcionário bancário, CC estava sujeito, entre outros, aos deveres de neutralidade e de lealdade, impostos pelo artigo 74.º do DL n.º 298/92, de 31 de Dezembro (que criou o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras) e que, ao preparar os contratos em causa nos autos para serem assinados pela autora, em que figura como único beneficiário, violou as regras da sua profissão e, consequentemente, os valores éticos e morais que informam o ordenamento jurídico.

Segundo as autoras, o réu CC teria “teria partido da confiança” que BB em si depositava, “sendo esta uma pessoa idosa e gravemente doente” – em suma: teria “tirado partido da situação de especial fragilidade” de BB –, nisto se configurando a ofensa à ordem jurídica.

Recorde-se, então, o teor do artigo 280.º, n.º 2, do CC: “[é] nulo o negócio contrário à ordem pública ou ofensivo dos bens costumes”.

Comentando-a, dizem, por exemplo, Pires de Lima e Antunes Varela que “o negócio ofensivo dos bens costumes é, essencialmente, o que tem por objecto actos imorais, podendo estes ser imorais em si mesmos ou repugnar à consciência moral apenas pelo nexo que se cria entre eles e a protecção da outra parte (dádiva feita a um juiz para que profira uma sentença justa ou a um funcionário para que defira uma pretensão legal)”[5].

Limitado como está o Supremo Tribunal de Justiça pelos factos dados como provados, é neles que deverá incidir a nossa atenção.

Com relevância para esta questão, destacam-se, da factualidade provada, os seguintes os factos:

18.º - Na data das aplicações identificadas em 10.º, 11.º e 12.º, o réu CC era funcionário bancário, na FF, Agência de ...

19.º - BB autorizou o réu CC a movimentar algumas da suas contas.

20.º e 21.º - BB esteve internada desde o dia 3/02/2006 a 3/03/2006, de 8/07/2006 a 17/07/2006, de 10/11/2008 a 17/11/2008, de 13/01/2009 a 26/01/2009, de 26/02/2009 a 6/03/2009, de 4/06/2009 a 18/06/2009, de 19/07/2009 a 22/07/2009, de 8/08/2009 a 11/08/2009 e de 17/11/2009 a 24/11/2009.

25.º - A co-titularidade das contas de BB com o Réu marido era da vontade desta, do seu conhecimento e consciência.

30.º - A ali tomadora de seguro, livre, consciente, deliberadamente e por ser a verdadeira vontade expressa da dita BB, indicou nos referidos contratos, como beneficiário dos seguros, o réu CC.

31.º - Todas as aplicações financeiras/seguros de vida foram subscritos por BB, livre e conscientemente.

33.º - BB percebeu que subscreveu aplicações financeiras, tendo manifestado essa vontade à FF, indicando os valores que pretendia investir e o réu CC como a pessoa que, à sua morte, iria beneficiar do valor de cada um desses investimentos.

O que se retira destes factos?

Destes factos retira-se que, apesar de ter estado internada em algumas datas, BB era uma pessoa com capacidade de entender e de querer, não estando a sua vontade afectada.

Não há que nos factos provados permita suspeitar que, ao subscrever as aplicações financeiras, BB não exerceu a sua vontade de uma forma livre e independente e, seguramente, ou autoriza a dar como demonstrado que o réu CC agiu, indevidamente, em seu proveito.

O facto de, ao subscrever os contratos, BB ter seguido as sugestões que lhe foram dadas por ... não é estranho ou incompreensível, considerando a relação de confiança que entre eles existia e a profissão deste último.

Limitado como está pelos factos dados como provados, não existe fundamento para o Supremo Tribunal de Justiça dar razão às autoras / recorrentes relativamente à sua pretensão de que o contrato é nulo por contrariedade à lei ou ofensivo dos bons costumes.

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III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão do Acórdão recorrido.

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Custas pelas recorrentes.

                                                           *

          LISBOA, 19 de Março de 2019

                                                            

Catarina Serra (Relatora)

Fonseca Ramos

Ana Paula Boularot

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[1] Cfr. Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1985 (2.ª edição), p. 514 (nota 2).
[2] Cfr. Lebre de Freitas, in: Ana Prata (coord.), Código Civil Anotado, volume I, Coimbra, Almedina, 2017, p. 463 (sublinhados do autor).
[3] Cfr. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume III, Coimbra, Coimbra Editora, p. 271 (sublinhados nossos).

[4] Cfr. Manuel de Andrade, Noções elementares de processo civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1979, p. 384 (sublinhados nossos).
[5] Cfr. Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I (Artigos 1.º a 761.º), Coimbra, Coimbra Editora, 1987, pp. 258-259 (sublinhados dos autores).