Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4435/19.7T8BRG.G1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: ROSA TCHING
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
DIVORCIO SEM CONSENTIMENTO
LEI APLICÁVEL
REGULAMENTO (CE) 2201/2003
INTERPRETAÇÃO DA LEI
PRINCÍPIO DA INTERPRETAÇÃO CONFORME O DIREITO EUROPEU
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA
RESIDÊNCIA HABITUAL
NACIONALIDADE
NULIDADE DE ACÓRDÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 10/07/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - A competência internacional dos tribunais portugueses traduz-se na competência dos tribunais da ordem jurídica portuguesa para conhecer de situações que, apesar de possuírem, na perspetiva do ordenamento jurídico português, uma relação com uma ou mais ordens jurídicas estrangeiras, apresentam também uma conexão relevante com a ordem jurídica portuguesa.

II - Cabe aos tribunais portugueses aferir da sua própria competência internacional, de acordo com as regras de competência internacional vigentes entre nós, importando, para tanto e tal como decorre do estabelecido no art. 8.º, n.º 4, da CRP e no art. 59.º do CPC, analisar, em primeiro lugar, se tendo o caso dos autos elementos de conexão com diversas ordens jurídicas, existe algum regulamento europeu ou instrumento internacional que atribua aos tribunais portugueses competência para julgar a presente ação de divórcio e, em caso negativo, se se verifica alguns dos elementos de conexão referidos nos arts. 62.º e 63.º do CPC.

III - As normas do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27-11-2003, relativas à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, aplicáveis aos litígios emergentes de situações transnacionais, são o direito comum da competência internacional dos Estados-Membros dentro do âmbito de matérias por ele abrangidas, isto é, regras de competência internacional direta, que devem ser respeitadas pelos tribunais dos Estados Membros da União Europeia e que os levam a declinar a sua competência quando não se considerem competentes de harmonia com as tais regras, não sendo, porém, de exigir que a internacionalidade da relação ocorra apenas entre Estados Membros da União Europeia, podendo também ocorrer entre um Estado-Membro e um Estado terceiro, desde que, pelo menos, um dos elementos de estraneidade previstos nas als. a) e b) do n.º 1 do art. 3.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, apresente uma conexão significativa com um dos Estados-Membros.

IV - Segundo este art. 3.º são sete os critérios gerais que definem a competência internacional de um Estado-Membro em questões relativas ao divórcio, separação ou anulação do casamento:

i) a residência habitual dos cônjuges, ou

ii). a última residência habitual dos cônjuges na medida em que um deles ainda aí resida, ou

iii). a residência habitual do requerido, ou

iv). a residência habitual de qualquer dos cônjuges, em caso de pedido conjunto, ou 

v). a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos, no ano imediatamente anterior à data do pedido, ou

vi). a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido, pelo menos, nos seis meses imediatamente anteriores à data do pedido, quer seja nacional do Estado - Membro em questão quer, no caso do Reino Unido e da Irlanda, aí tenha o seu «domicílio».

vii). o da nacionalidade de ambos os cônjuges ou, no caso do Reino Unido e da Irlanda, do «domicílio» comum.

V - Tratam-se de critérios alternativos, no sentido de que inexiste entre eles uma hierarquização e de que são de aplicação concorrente, tendo, por isso, o cônjuge ou os cônjuges requerentes do pedido de divórcio, de separação ou anulação do casamento, o direito de optar por qualquer um deles.

VI - Assim, apesar dos cônjuges terem a sua residência habitual na Suíça, tendo o autor e ré nacionalidade portuguesa e tendo o autor instaurado ação de divórcio em Portugal, o tribunal deste Estado Membro da União Europeia, tem, à luz do disposto do art. 3.º, n.º 1, al. b), do Regulamento (CE) 2201/2003 de 27-11, competência internacional para julgar esta ação, sendo irrelevante para efeitos de determinação desta competência, quer a circunstância do autor poder ter também nacionalidade suíça, quer a circunstância do casal ter uma filha menor, residente na Suíça.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL




***


I. Relatório


1. AA, português, casado, NIF 2….5, residente, quando em Portugal, na Rua …, nº …, …, …, instaurou contra BB, portuguesa, residente em …, …, Zurich, Suíça, ação especial de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, pedindo que se decrete o divórcio do casamento que celebrou com a ré.

Alegou, para tanto e em síntese, que contraíram, entre si, casamento civil no dia 19 de março de 2016, no Consulado Geral de Portugal em Zurich, Suíça, segundo o regime da separação de bens.

Desse casamento nasceu, em … .06.2016, a filha do casal.

Em 28.07.2018, apesar das discussões frequentes, autor e ré contraíram casamento católico no Santuário …, em … .

Não existiu mais comunhão de vida entre o autor e a ré desde o início do mês de junho de 2019, data em que o autor saiu de casa de morada de família.


2. A ré contestou, excecionando a incompetência internacional do Tribunal de Família e Menores de Braga, com o fundamento de que vivem há mais de sete anos em Zurique, na Suíça, primeiro como namorados e depois de março de 2016 como casados, local onde nasceu a filha menor do casal. Impugnou ainda a factualidade alegada.


3. O autor respondeu, sustentando a competência do tribunal português para julgar a presente ação, quer nos termos da Convenção de Haia sobre Reconhecimento de Divórcio e Separação de Pessoas e da qual Portugal e Suíça são Estados parte, quer porque o autor tem também domicílio em Portugal.


4. Foi proferido despacho saneador-sentença que julgou procedente a invocada incompetência absoluta do Juízo de Família e Menores de Braga, em razão das regras de competência internacional e, em consequência, absolveu a ré da instância.


5. Não se conformando com esta decisão, dela apelou o autor para o Tribunal da Relação de Guimarães.

6. Neste Tribunal, foi proferido despacho convidando as partes a pronunciarem-se, querendo, sobre a aplicação do disposto no artigo 3º, nº 1 alínea b) do Regulamento(CE) n.º 2201/2003, de 27 de novembro, o que as mesmas fizeram.


7. Em 03.05.2020, o Tribunal da Relação de Guimarães proferiu acórdão que julgou a apelação procedente e, em consequência, revogou o despacho saneador-sentença recorrido, declarando o Tribunal de Família e Menores de Braga internacionalmente competente para conhecer da ação e determinando o prosseguimento dos autos.


8. Inconformada com o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, a ré dele interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«1. Com o presente recurso, a Apelada/Recorrente manifesta desde já a sua não conformação com o douto acórdão proferido e que declarou o tribunal a quo, ou seja, o Juízo de Família e Menores de Braga internacionalmente competente para decidir a acção de divórcio sem consentimento, instaurada pelo aqui Apelante/Recorrido contra a Apelada/Recorrente;

2. Conforme teve oportunidade de expor quando notificada para exercer o seu direito ao contraditório, nos termos do artigo 3º do Código de Processo Civil, a aqui Apelada/Recorrente não admite a aplicação aos presentes autos do REGULAMENTO (CE) N.º 2201/2003, DE 27 DE NOVEMBRO;

3. Também como já referiu, a Apelada/Recorrente reitera que a Suíça ou Confederação Helvética, Estado onde ambos os cônjuges residem há mais de sete anos e se encontram estavelmente estabelecidos, não é, nem nunca foi, Estado-membro da União Europeia e o Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de Novembro é um instrumento jurídico relativo à competência, ao reconhecimento em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, destinado a regular esta matéria entre os países membros da União Europeia (excepto Dinamarca);

4. O referido Regulamento visa garantir a aplicação uniforme do direito nele regulamentado nas relações jurídicas entre os Estados-membros da União e não é aplicável – contrariamente ao entendimento vertido no douto acórdão - aos conflitos de competência internacional em matéria matrimonial, entre os Estados-membros da UE e os Estados não membros;

5. Logo, nunca será aplicável à relação em discussão nos presentes autos onde o conflito de competência internacional envolve a Suíça e Portugal;

6. Assim toda e qualquer referência ao referido REGULAMENTO (CE) N.º 2201/2003, DE 27 DE NOVEMBRO, feita pela aqui Apelada/Recorrente nestas alegações, tem unicamente como objetivo, contraditar o douto entendimento vertido no acórdão ora em crise e que defende a aplicação do referido Regulamento ao caso em apreço.

7. A douta decisão é nula, nos termos do Artigo 615, nº 1, d), primeira parte, pois na resposta às alegações que apresentou, a Apelada/Recorrente invocou o incumprimento por parte do Apelante/Recorrido do incumprimento do ónus de alegar e formular conclusões, no recurso de Apelação que apresentou, ou seja, invocou, o incumprimento por parte do Apelante/Recorrido do disposto no artigo 639º, nº 2 do Código de Processo Civil, o que implicava o não conhecimento do recurso interposto;

8. Mas o douto acórdão proferido pelo Tribunal a quo não fez qualquer apreciação sobre esta alegação e o facto de o douto Tribunal a quo não se pronunciar sobre esta questão, a qual deveria ter apreciado, implica a nulidade da decisão, nos termos do disposto no artigo 615, nº 1, d), do Código de Processo Civil;

9. Também na resposta que apresentou, a Apelada/Recorrente defendeu a rejeição liminar do recurso de Apelação apresentado pelo Apelante/Recorrido com fundamento na falta dos requisitos formais e materiais ao que o mesmo deve obedecer pois tanto nas motivações de recurso que apresentou, como nas conclusões com as quais terminou o recurso de Apelação interposto, o Apelante/Recorrido, não fez qualquer apreciação à decisão proferida pelo Juízo de Família e Menores de Braga;

10. Mas, mais uma vez, o douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães não aprecia esta questão suscitada e omite a mesma por completo. Esta omissão – também mais uma vez – implica a nulidade da decisão proferida, nulidade, essa, que fica desde já invocada para todos os efeitos legais;

11. A douta decisão é ainda nula nos termos do artigo 615, nº 1, b) pois perante a leitura deste “Sumário” perguntámos desde já o seguinte: Quanto ao Ponto nº 2: Se um dos critérios para aferir da competência dos tribunais dos Estados membros para decidir das questões relativas ao divórcio “é nacionalidade de ambos os cônjuges”, que neste caso é parcialmente coincidente sendo a Apelada/Recorrente portuguesa e o Apelado/Recorrido português e suíço, porquê optar pelo critério da nacionalidade em vez do critério da residência ou domicílio? A douta decisão em causa não explica esta opção;

12. É que, admitindo a aplicação do referido Regulamento, o que não se concede, pelos motivos já expostos, então porquê optar apenas pelo critério da nacionalidade ?

13. Se aliás, na tese defendida na douta sentença ora em crise – que mais uma vez não se concede - o presente Regulamento terá aplicação em situações de conflito com outro qualquer ordenamento jurídico que não o ordenamento jurídico de um Estado Membro da União Europeia, porquê optar pelo critério da nacionalidade ? Qual a razão da não opção pelo critério da residência dos cônjuges ? Ficamos sem saber a resposta a esta pergunta. E a douta decisão ora em crise não explica qual o motivo que a leva a optar pelo critério da nacionalidade e não pelo critério da residência pelo que, a decisão ora em crise por não fundamentar a escolha que faz nos termos supra citados é nula;

14. A douta decisão ora em crise aditou os seguintes factos: “ 5. Autor e Ré são ambos portugueses”. Sendo que, é com base neste facto que o douto Tribunal a quo altera a decisão proferida em Primeira Instância e ordena o prosseguimento dos Autos. Sucede que, esta modificação da matéria de facto assenta em pressupostos errados pois como é do conhecimento do referido Tribunal a quo, o Apelante/Recorrido, AA não tem apenas nacionalidade portuguesa mas antes tem dupla nacionalidade, portuguesa e suíça;

15.Veja-se quanto ao exposto o que diz a douta decisão em análise: “ Tudo posto, mostrando-se que ambos os cônjuges têm nacionalidade portuguesa (mesmo que também tenham outras; o facto de o Autor também ter nacionalidade Suíça não contende com o facto de gozar dos direitos e deveres inerentes à nacionalidade portuguesa em Portugal) (…).” Ora, se a dupla nacionalidade do “Autor” AA era do conhecimento do douto Tribunal a quo também este facto deveria ter ficado a constar dos “ Factos Provados”, da seguinte forma: Autor e Ré são ambos portugueses e o Autor tem também nacionalidade suíça;

16. Ao decidir modificar a matéria de facto provada em Primeira Instância, no entanto, sem o fazer na plenitude da totalidade dos factos provados e conhecidos, neste caso, ao omitir, a dupla nacionalidade de AA, e ao não dar como provado que este tem nacionalidade suíça apesar de mencionar tal facto na sua decisão, o douto Tribunal a quo violou o disposto no nº1, do artigo 662º do Código de Processo Civil;

17. De volta ao referido Ponto nº 3 e 4 do “SUMÁRIO” da decisão ora em crise, entendemos que a interpretação que justifica a aplicação do referido Regulamento com o entendimento supra exposto viola a letra e espírito do próprio Regulamento mas o entendimento aqui vertido não tem acolhimento no referido Regulamento, o qual remete única e exclusivamente a sua aplicação aos Estados contratantes, sendo que, no mesmo Regulamento nunca é utilizada a expressão “conexão com outras ordens jurídicas” tal qual como consta da decisão ora em análise, ou sequer alguma vez é utilizada a expressão “conflitos em que existam elementos de conexão com jurisdições de Estados não membros da União Europeia”.

18. Com efeito foram apenas 17 (dezassete) os países da União Europeia a adoptarem regras comuns para determinar a lei aplicável aos casos de divórcios transnacionais e são estes: a Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Eslovénia, Espanha, Estónia, França, Grécia, Hungria, Itália, Letónia, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Portugal e Roménia. Em caso de conflito, os tribunais destes 17 (dezassete) países aplicarão a legislação do seguinte país: país de residência dos cônjuges;

19. Com o devido respeito, entendemos que a douta decisão ora em crise ao decidir pela competência do Tribunal de Família e Menores de Braga para decidir este divórcio, apenas com base no critério da nacionalidade e bem sabendo que, nenhum dos cônjuges ou, sequer a filha menor de ambos de apenas 4 (quatro) anos de idade, não têm qualquer ligação a Portugal há mais de 7 (sete) anos onde não têm sequer residência (aliás como ficou provado de Primeira Instância) a não ser o formalismo da nacionalidade;

20. Ao decidir como decidiu o douto Tribunal a quo fê-lo – como o devido respeito – de uma forma simplista ao aplicar as normas do referido regulamento e sem ter em conta os circunstancialismos de facto que envolvem a vida deste casal e da sua filha menor completamente enraizada na Suíça e sem qualquer ligação a Portugal;

21. Assim sendo e não obstante defendermos a não aplicação do Regulamento CE 2201/2003 de 27 de Novembro a interpretação que lhe é conferida pela douta decisão em apreço é violadora do mesmo;

22. Foi o douto Tribunal da Relação de Guimarães que adiantou a hipótese de aplicação do referido regulamento aos autos em causa pois a aplicação deste regulamento não foi suscitada pelas partes, mas antes e oficiosamente foi trazida à discussão pelo próprio Tribunal a quo e acabou por ser este critério da nacionalidade (portuguesa) dos cônjuges que determinou o Juízo de Família e Menores de Braga internacionalmente para conhecer da acção e divórcio e que em consequência determinou o prosseguimento dos autos. Fê-lo, no entanto e com o devido respeito com base em pressupostos errados;

23. Da leitura do excerto da decisão que aqui se transcreve fica a parecer que, a residência na Suíça é algo residual na vida deste casal pois naquele excerto refere-se a nacionalidade portuguesa de ambos os cônjuges e a celebração do casamento em Portugal. Sucede que, ao contrário daquilo que resulta da leitura do excerto transcrito, é a relação daquele casal com Portugal que é residual. Reitera-se não existir qualquer relação do casal em causa com Portugal a não ser o critério formal e residual da nacionalidade;

24. Conforme já sobejamente alegado, não existe nos autos qualquer elemento de conexão entre o ordenamento jurídico português e qualquer outro Estado contratante; Reitera-se: a Suíça não é um estado contratante do REGULAMENTO (CE) Nº 2201/2003 DE 27 DE NOVEMBRO;

25. Assim, é a lex fori que deverá determinar qual o estado competente para decidir esta ação de divórcio. Logo, é ao disposto nos artigos 59º, 62º, 63º e 72º do Código De Processo Civil, aliás como bem fez o Juízo de Família e Menores de Braga, que devemos recorrer para determinar qual o tribunal competente para decidir esta ação e, ao não o fazer, a decisão em causa viola as mencionadas normas;

26. Não existindo nos autos qualquer elemento de conexão entre o ordenamento jurídico português e qualquer outro Estado contratante é às norma citadas que devemos recorrer para aferir da competência internacional do Tribunal apto a decidir esta causa;

27. Com efeito, é a interpretação das normas citadas, e do ordenamento jurídico português que melhor concretizam este critério de proximidade e ao ignorar tais normas em benefício do Regulamento (CE) Nº 2201/2003 de 27 de Novembro, a douta sentença ora em crise violou as mesmas;

28. Dispõe o artigo 59º do Código de Processo Civil que: “os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º (…).”;

29. Por sua vez, o artigo 62º do Código de Processo Civil sob a epígrafe “Fatores de atribuição da competência internacional”, determina que: os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando: a) Quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa; b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram; c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português (…) ”;

30. Pelo exposto constatamos facilmente que o tribunal de família e menores de Braga não é o tribunal competente para julgar a presente ação de divórcio, pois não se verifica nenhum dos elementos de conexão do mencionado artigo 62º do Código de Processo Civil;

31. A alínea a) do artigo 62º do Código de Processo Civil: “Quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa” ora, em matéria de divórcio e separação determina o artigo 72º do Código de Processo Civil que “é competente o tribunal do domicílio ou da residência do Autor”;

32. Nos termos do disposto no artigo 82º, nº1 do Código Civil (“ A pessoa tem domicílio no lugar da sua residência habitual (…)”), o Apelante/Recorrido tem domicílio em Zurique, residindo naquele local há vários anos (pelo menos há sete), e não mantendo qualquer residência em Portugal, pelo que não se verifica o elemento de conexão constante da alínea a) do artigo 62º do Código de Processo Civil;

33. Quanto à alínea b) do artigo 62º do Código de Processo Civil “Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram.”, também este elemento de conexão não se verifica. Conforme configurado pelo Autor nos artigos 5º a 16º da sua petição inicial, os factos integrantes da causa de pedir ou seja, a rutura definitiva da vida comum, ocorreram em Zurique, reitera-se, local onde o casal habita desde pelo menos 2012. A falta da verificação deste elemento de conexão determina, de igual forma, a incompetência dos tribunais portugueses para julgarem esta ação de divórcio;

34. Por último, também não se verifica o elemento de conexão constante da alínea c) do referido artigo 62º do Código de Processo Civil porquanto sendo o casal em apreço, residente em Zurique, sempre poderão instaurar a ação de divórcio nos tribunais do local onde residem: em Zurique

35. Não podemos esquecer que deste divórcio decorrerá necessariamente a regulação das responsabilidades parentais da menor CC, a qual – conforme já referido - não tem qualquer ligação a Portugal;

36. Ao decidir aplicar o REGULAMENTO (CE) Nº 2201/2003 de 27 de NOVEMBRO ao autos em apreço e em consequência determinar a competência internacional o Juízo de Família e Menores de Braga para decidir este processo de divórcio;

37. A decisão ora em crise ignorou completamente o superior interessa da menor CC a qual, não tem qualquer ligação ao ordenamento jurídico português;

38. Só os tribunais suíços poderão tomar uma decisão mais justa pois pertencem à ordem jurídica onde aquela família se formou, se uniu através do casamento e onde continua a residir;

39. Mais são os tribunais suíços que dada a sua proximidade possuem melhores condições para decidir sobre a vida futura da menor CC que ali nasceu, frequenta a escola e sendo o único local onde tem raízes, aliás como os seus pais que – também conforme alegado – raramente se deslocam a Portugal;

40. Não pode, pelo exposto o critério formalista da nacionalidade, sobrepor-se ao critério da proximidade e da justiça da decisão, que apenas ocorrerá com a declaração da incompetência do Juízo de Família e Menores de Braga para decidir este divórcio».

Termos em que requer seja revogado o acórdão recorrido, mantendo-se o despacho saneador- sentença que julgou internacionalmente incompetente o Juízo de Família e Menores de Braga para decidir a presente ação, absolvendo-se a ré da instância.


9. O autor respondeu, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.

10. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.



***



II. Delimitação do objeto do recurso


Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[1].


Assim sendo e porque a recorrente, através do requerimento datado de 15.06.2020 e com refª 176971, requereu fossem consideradas não escritas as nulidades por ela invocadas nas alegações de recurso, com fundamento no art. 615º, nº1, al. d), do CPC, tendo a Senhora Desembargadora relatora, no despacho de admissão do recurso de revista, proferido em 07.07.2020, dado sem efeito a arguição destas nulidades, as únicas questões a decidir consistem em saber se:

1ª- o acórdão recorrido enferma da nulidade prevista no art. 615º, nº1, al b), do C.P. Civil;

2ª- se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para julgar a presente ação de divórcio.


***



III. Fundamentação


3.1. Fundamentação de facto


Factos provados:

1. O Autor e a Ré residem contraíram casamento civil no dia 19 de março de 2016 no Consulado Geral de Portugal em Zurique, Suíça segundo o regime da separação de bens;

2. CC é filha dos Autor e Ré e nasceu no dia … de junho de 2016, em Zurique, na Suíça;

3. O Autor e a Ré residem na Suíça, onde o Autor exerce a atividade profissional de motorista de … e a Ré de empregada de …;

4. A CC reside com a Ré.

5 - Autor e Ré são ambos portugueses ( aditado pelo Tribunal da Relação).



***



3.2. Fundamentação de direito

3.2.1. Nulidade do acórdão

Sustenta a recorrente que o acórdão recorrido enferma da nulidade prevista no art. 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC, por falta de fundamentação, quer porque não explica as razões de direito que levaram o Tribunal da Relação a optar pelo critério da “ nacionalidade de ambos os cônjuges” em vez do critério da «residência dos cônjuges», quer porque, não obstante referir que o autor tem também nacionalidade suíça, não deu como provado esse facto.


Segundo a referida al. b), é nula a sentença «quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão».

Trata-se de um vício, que corresponde à omissão de cumprimento do dever contido no art. 205º, nº 1 da CRP que impende sobre o juiz de indicar as razões de facto e de direito que sustentam a sua decisão.

E, tal como é jurisprudência pacífica[2], traduz-se na falta absoluta de motivação, quando haja total omissão dos fundamentos de facto ou de direito em que assenta a decisão, e não na motivação deficiente, medíocre ou errada.

Assim, ocorre falta de fundamentação de direito quando não se revela qualquer enquadramento jurídico ainda que implícito, de forma a deixar, no mínimo, ininteligível os fundamentos da decisão.

E ocorre falta de fundamentação de facto, quando o juiz omite totalmente a especificação de todos os factos que julgue provados.

Neste último sentido, escrevem Antunes Varela e outros[3] que, “Para que haja falta de fundamentação, como causa de nulidade da sentença, torna-se necessário que o juiz não concretize os factos que considerou provados e coloca na base da decisão”.

Ora, basta ler o acórdão recorrido para facilmente se constar que, no que respeita à fundamentação de direito, nele se escreveu, para além do mais, que, malgrado o art. 3º, nº1, do Regulamento (CE) 2201/2003, de 27 de novembro estabelecer «três critérios gerais fundamentais que definem a competência internacional de um Estado-Membro para de uma ação de Divórcio poder conhecer, sendo um o da residência habitual, o outro o da nacionalidade de ambos os cônjuges e, finalmente, o terceiro, o do domicílio comum», «Não foi fixada ordem de precedência entre estes critérios de competência em matéria matrimonial, sendo de aplicação alternativa», pelo que «verificando-se um deles (o da Nacionalidade de ambos os cônjuges) e apontando ele para Portugal, ter-se-á, forçosamente, que julgar o tribunal português onde a ação foi interposta como o competente (internacionalmente) para a julgar ».

E se é certo ter o acórdão recorrido feito referência ao «facto do Autor ter nacionalidade Suíça», seguro é também ter o mesmo considerado que isso «não contende com o facto de gozar dos direitos e deveres inerentes à nacionalidade portuguesa em Portugal (…) , não relevando  nesta sede , em que apenas está em causa o divórcio (…)».

Vale tudo isto por dizer que, segundo o Tribunal da Relação, a circunstância de o autor ter dupla nacionalidade – portuguesa e suíça – é totalmente irrelevante para efeitos de aferição da competência internacional dos tribunais portugueses para dirimir o presente pleito, à luz do disposto no art. 3º, nº1 do Regulamento (CE) 2201/2003, de 27 de novembro.

Daí tornar-se manifesto não ocorrer a denunciada falta de motivação, carecendo de fundamento legal a invocada nulidade e improcedendo, neste segmento, o recurso interposto pela ré.


*


3.2.2. Competência internacional dos tribunais portugueses para julgar a presente ação de divórcio.


Como nos dá conta o Acórdão do STJ, de 08.04.2010 (processo nº 4632/07.8TBBCL.G1.S1)[4], «a competência internacional dos tribunais portugueses traduz-se na competência dos tribunais da ordem jurídica portuguesa para conhecer de situações que, apesar de possuírem, na perspetiva do ordenamento jurídico português, uma relação com uma ou mais ordens jurídicas estrangeiras, apresentam também uma conexão relevante com a ordem jurídica portuguesa ».

Cabe, assim, aos tribunais portugueses aferir da sua própria competência internacional, de acordo com as regras de competência internacional vigentes entre nós.

Para esse efeito e tal como decorre do estabelecido no art. 8º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa e no art. 59º do C.P. Civil, importa analisar, em primeiro lugar, se tendo o caso dos autos elementos de conexão com diversas ordens jurídicas, existe algum regulamento europeu ou instrumento internacional que atribua aos tribunais portugueses competência para julgar a presente ação de divórcio e, em caso negativo, se se verifica alguns dos elementos de conexão referidos nos arts. 62º e 63º do CPC.

No caso dos autos, estamos no âmbito de uma ação de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, proposta pelo autor no Tribunal de Família e Menores de Braga.

E se é certo haver unanimidade de entendimentos de ambas as instâncias quanto ao facto de o presente pleito configurar uma situação transnacional, na medida em que autor e ré, casados entre si, têm nacionalidade portuguesa, mas residem na Suíça, a verdade é que a divergência registada entre as instâncias, no que respeita aos critérios a seguir na determinação do tribunal internacionalmente competente para julgar a presente ação, conduziu a soluções diametralmente opostas.

O Tribunal de 1ª Instância, sem indagar da existência de qualquer regulamento europeu ou outro instrumento internacional sobre a matéria, aferiu a competência internacional dos tribunais portugueses apenas e tão só em função dos critérios estabelecidos no art. 62º, do CPC. E, concluindo não se verificar nenhum dos elementos de conexão referidos nas alíneas a), b) e c) deste mesmo artigo, uma vez que «o A. tem domicílio e residência habitual em Zurique», que não consta da petição inicial «qualquer alegação de que os factos que servem de causa de pedir ao divórcio tenham ocorrido em Portugal» e que «sendo A e R residentes, há muito, em Zurique (cidade onde, aliás, contraíram matrimónio) sempre poderão instaurar a acção de divórcio nos tribunais do país onde residem habitualmente», julgou procedente a invocada exceção de incompetência internacional do Tribunal de Família e Menores de Braga para julgar a presente ação.

Diferente caminho seguiu o Tribunal da Relação, que, atento o disposto no citado art. 59º, começou por equacionar a aplicação ao caso dos autos do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27-11 (relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental) e defendendo que, para a aplicação deste regulamento, basta que «o litígio apresente um ou mais elementos de conexão com outras ordens jurídicas», concluiu que, à luz do estabelecido no art. 3º , nº1, al. a) deste mesmo regulamento, «os tribunais portugueses são competentes para decretar o divórcio  do casamento celebrado entre duas pessoas de nacionalidade portuguesa, mesmo que não se verifique qualquer outro critério de conexão com qualquer Estado contratante», em consequência do que julgou improcedente a exceção de incompetência internacional do Tribunal de Família e Menores de Braga para julgar a presente ação, invocada pela ré, ora recorrente.


Contra este entendimento reage a recorrente, sustentando que o Regulamento (CE) n.º 2201/2003 não se aplica ao caso dos autos e, mesmo a admitir-se a sua aplicação, inexiste fundamento para o Tribunal da Relação privilegiar o critério da nacionalidade de ambos os cônjuges em detrimento do critério da residência ou domicílio, tanto mais que o autor tem dupla nacionalidade – portuguesa e suíça.

Argumenta ainda ter o tribunal recorrido ignorado, por completo, o superior interesse da filha menor do casal, pois residindo esta com os pais na Suíça, são os tribunais suíços que estão em melhores condições para regular as responsabilidades parentais.


Que dizer ?


Desde logo que, ainda que se tenha por certo que as normas do Regulamento (CE) nº 2201/2003, de 27-11, relativas à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental[5], só são aplicáveis aos litígios emergentes de situações transnacionais, ou seja, de situações que apresentem pontos de contacto relevantes com mais de um Estado soberano[6], impõe-se, efetivamente, tomar posição sobre a questão de saber se, para a sua aplicação, é de exigir que a internacionalidade da relação ocorra apenas entre Estados Membros da União Europeia ou se pode também ocorrer entre um Estado-Membro e um Estado terceiro.

E a este respeito, diremos que, apesar das normas atributivas de competência internacional em matéria de ações matrimoniais consagradas no Regulamento (CE) nº 2201/2003 (Regulamento Bruxelas II bis), não abordarem expressamente esta questão, os seus antecedentes históricos, ou seja, o Relatório Explicativo da Convenção de Bruxelas II[7] e o Regulamento (CE) nº 1347/2000 (Regulamento Bruxelas II) e que, conforme resulta do considerando nº 3 do Regulamento (CE) nº 2201/2003, são elementos a ter em conta na interpretação deste mesmo regulamento, depõem no sentido de que aquelas normas são «regras de competência internacional direta», isto é, são regras que devem ser respeitadas pelos tribunais dos Estados Membros previamente à decisão sobre uma questão em matéria matrimonial e que os levam a declinar a sua competência quando não se considerem competentes de harmonia com as regras do regulamento[8]

Dito de outro modo e nas palavras de Nuno Ascensão da Silva[9], tais regras «são o direito comum da competência internacional dos Estados-Membros dentro do âmbito de matérias por ele abrangidas», sublinhando, porém, que «a internacionalidade da relação não terá de se traduzir necessariamente na ligação a um Estado-membro».

No mesmo sentido, afirma João Gomes de Almeida[10], que é, em princípio, irrelevante que os elementos de estraneidade – a residência habitual e a nacionalidade - previstos, respetivamente, nas alíneas a) e b) do nº1 do art. 3º, do Regulamento (CE) nº 2201/2003, «apontem para um Estado-Membro ou para um Estado terceiro», salientando que «As normas atributivas de competência internacional assentam em determinados elementos de conexão que o TJ considerou revelarem um vínculo suficientemente forte entre a situação transnacional e um dos Estados-Membros», pelo que «para se aplicarem as normas atributivas de competência internacional consagradas no Regulamento Bruxelas II bis, é necessário não só que o litígio seja emergente de uma situação transnacional mas também  que, pelo menos, um dos elementos de estraneidade apresente uma conexão significativa com um dos Estados-Membros».

Trata-se de conclusão extraída com base no Acórdão do TJUE, de 28.11.2007 (processo C-68/07) [1], que apesar de não versar sobre situação idêntica ao caso dos autos, contém referências muito relevantes sobre os critérios de atribuição de competência para as ações de divórcio contidos no art. 3.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27-11) e que não podem deixar de ser levadas em conta por forma a assegurar uma interpretação conforme do direito da União Europeia.

Com efeito, neste acórdão, afirmou o TJUE, no considerando nº 18, que «(…) segundo a redacção clara do artigo 7.°, n.° 1, do Regulamento n.° 2201/2003, só quando nenhum tribunal de um Estado-Membro for competente nos termos dos artigos 3.°, 4.° e 5.° do referido regulamento é que a competência será, em cada Estado-Membro, regulada pelo direito nacional. (…) e, no considerando nº  26, que «  (…) como resulta do quarto e oitavo considerandos do Regulamento n.° 1347/2000, cujo enunciado relativo à competência para conhecer das questões respeitantes ao divórcio foi em substância retomado no Regulamento n.° 2201/2003, este visa instituir regras de conflito uniformes em matéria de divórcio a fim de garantir uma livre circulação das pessoas tão ampla quanto possível. Consequentemente, o Regulamento n.° 2201/2003 aplica-se também aos nacionais de Estados terceiros que apresentem um vínculo suficientemente forte com o território de um dos Estados-Membros, nos termos dos critérios de competência previstos no referido regulamento, critérios que, segundo o décimo segundo considerando do Regulamento n.° 1347/2000, se baseiam no princípio de que deve existir um vínculo efectivo entre o interessado e o Estado-Membro que exerce a competência.».

Vale tudo isto por dizer, tal como decidiu o Tribunal da Relação, que, por força do disposto no art. 8º, nº4 do CRP, o Regulamento n.° 2201/2003, de 27 de novembro, tem aplicação direta ao caso dos autos, pelo que a competência dos tribunais portugueses para julgar a presente ação de divórcio tem de ser aferida em função das conexões internacionais constantes do seu art. 3º, nº1, que nos termos do art. 59º do CPC, prevalecem sobre as elementos de conexão referidos nos arts. 62º e 63º, deste mesmo código.

Assente, este ponto, vejamos, então, qual o critério a seguir na presente situação, posto que, em matéria matrimonial, o citado art. 3º enumera sete critérios de competência internacional, estabelecendo que:

  

« 1. São competentes para decidir das questões relativas ao divórcio, separação ou anulação de casamento, os tribunais do Estado-Membro:

a) Em cujo território se situe:

- a residência habitual dos cônjuges, ou

- a última residência habitual dos cônjuges, na medida em que um deles ainda aí resida, ou

- a residência habitual do requerido, ou

- em caso de pedido conjunto, a residência habitual de qualquer dos cônjuges, ou

- a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos, no ano imediatamente anterior à data do pedido, ou

- a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido, pelo menos, nos seis meses imediatamente anteriores à data do pedido, quer seja nacional do Estado - Membro em questão quer, no caso do Reino Unido e da Irlanda, aí tenha o seu «domicilio»;


b) Da nacionalidade de ambos os cônjuges, ou, no caso do Reino Unido e da Irlanda, do «domicílio» comum.

2. Para efeitos do presente regulamento, o termo “domicílio” é entendido na acepção que lhe é dada pelos sistemas jurídicos do Reino Unido e da Irlanda».


Da análise deste artigo decorre serem dois os elementos de estraneidade mais relevantes para efeitos de definição da competência internacional de um Estado-Membro para poder conhecer de uma ação de divórcio: a residência habitual e a nacionalidade.

E retira-se ainda, como refere João Gomes de Almeida[12], que nenhum dos sete critérios atributivos de competência internacional prevalece sobre os restantes, não havendo, portanto, uma hierarquização dos critérios. Todos os critérios são colocados a um nível paritário e a paridade entre eles permite qualificá-los como critérios alternativos, no sentido em que são de aplicação concorrente, isto é, um mesmo divórcio transnacional pode preencher dois ou mais dos critérios de competência internacional previstos no citado art. 3º , podendo, assim, os tribunais de dois ou mais Estados-Membros ser internacionalmente competentes para julgar o litígio[13].   

No dizer deste mesmo autor, trata-se de solução que, muito embora não seja isenta de críticas, na medida em que possibilita o forum shopping [14], foi adotada «uma vez que, precisamente em consequência das crises conjugais, a situação costuma alterar-se imediatamente» e daí a visar-se a «construção de uma solução flexível que não sacrificasse em demasia a certeza jurídica».

De sublinhar que todas estas afirmações encontram respaldo na jurisprudência do TJUE, designadamente no Acórdão de 16.07.2009 (processo C-168-08)[15] , que declarou:

« (…) Quando ambos os cônjuges têm a nacionalidade de dois mesmos Estados-Membros, o artigo 3.°, n.° 1, alínea b), do Regulamento n.° 2201/2003 opõe-se a que a competência dos tribunais de um desses Estados-Membros seja afastada pelo facto de o demandante não apresentar outros elementos de conexão com esse Estado. Pelo contrário, os tribunais dos Estados‑Membros da nacionalidade dos cônjuges são competentes ao abrigo dessa disposição, podendo estes últimos escolher o tribunal do Estado-Membro em que pretendem instaurar o processo».

E afirmou, para além do mais, que: « 40. Além disso, não se verifica que o Regulamento n.° 2201/2003 estabeleça, pelo menos em princípio, uma distinção consoante uma pessoa tenha apenas uma ou, se for o caso, várias nacionalidades. (…)  47. (…), cumpre salientar que, como resulta do seu primeiro considerando, o Regulamento n.° 2201/2003 contribui para criar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça em que será garantida a livre circulação das pessoas. Para este fim, nos seus capítulos II e III, esse regulamento estabelece designadamente as regras que regulam a competência assim como o reconhecimento e a execução de decisões em matéria de dissolução do vínculo matrimonial. 48. Neste contexto, o artigo 3.°, n.° 1, alíneas a) e b), do Regulamento n.° 2201/2003 prevê vários critérios de competência, entre os quais não existe uma hierarquia. Todos os critérios objectivos enunciados no artigo 3.°, n.° 1, são alternativos. Tendo em conta o objectivo desse regulamento que visa garantir a segurança jurídica, o seu artigo 6.° dispõe, no essencial, que as competências definidas nos artigos 3.° a 5.° do mesmo regulamento têm um carácter exclusivo. 49. Daqui resulta que o sistema de repartição de competências instituído pelo Regulamento n.° 2201/2003 em matéria de dissolução do vínculo matrimonial não visa excluir a pluralidade de foros competentes. Pelo contrário, prevê-se expressamente a existência paralela de vários foros competentes hierarquicamente equiparados. 50. A este título, enquanto os critérios enumerados no artigo 3.°, n.° 1, alínea a), do referido regulamento se baseiam sob diversos aspectos na residência habitual dos cônjuges, o critério enunciado no mesmo número, alínea b), é o da «nacionalidade de ambos os cônjuges ou, no caso do Reino Unido e da Irlanda, do ‘domicílio’ comum». Assim, salvo no caso destes dois últimos Estados-Membros, os tribunais dos outros Estados-Membros da nacionalidade dos cônjuges são competentes para conhecer de acções em matéria de dissolução do vínculo matrimonial. (…) 57. Por último, há que admitir que o Regulamento n.° 2201/2003, na medida em que apenas regulamenta a competência judicial, mas não contém normas de conflitos de leis, é certamente susceptível (…) de incitar os cônjuges a intentar rapidamente o processo junto de um dos tribunais competentes, a fim de assegurar para si as vantagens do regime substantivo do divórcio aplicável segundo o direito internacional privado desse foro. Todavia (…), tal circunstância não pode, por si só, ter a consequência de se poder considerar abusiva a instauração de um processo num tribunal competente ao abrigo do artigo 3.°, n.° 1, alínea b), do mesmo regulamento. Com efeito, como resulta designadamente dos n.ºs 49 a 52 do presente acórdão, a instauração de um processo em tribunais de um Estado-Membro da nacionalidade dos dois cônjuges, mesmo na falta de qualquer outro elemento de conexão com esse Estado-Membro, não é contrária aos objectivos prosseguidos pela referida disposição.».

Resulta, pois, com bastante clareza destes considerandos que não existe nenhuma hierarquia e, consequentemente, nenhuma ordem de precedência entre os critérios atributivos de competência internacional em matéria matrimonial previstos no art. 3º, nº1, als. a) e b) do Regulamento nº 2201/2003 e que o TJUE estabeleceu o princípio de tratamento paritário das nacionalidades, entendendo que qualquer uma das nacionalidades dos cônjuges preenche o elemento de conexão atributivo de competência previsto na alínea b) do nº1 do art. 3º do Regulamento n.° 2201/2003, de 27 de novembro desde que seja comum aos dois cônjuges.

E porque assim é, fácil é concluir, no caso dos presentes autos, que, mesmo admitindo que o autor, para além da nacionalidade portuguesa, possa também ter nacionalidade suíça, esta última nacionalidade é totalmente irrelevante para efeitos de fundar a atribuição de competência internacional em matéria de divórcio, visto não se tratar de uma nacionalidade comum dos cônjuges, pelo que a prova da nacionalidade suíça do autor não tem qualquer interesse para a decisão do presente pleito.

E o mesmo vale dizer quanto à circunstância da filha menor do casal residir com os pais na Suíça, na medida em que a mesma não se integra nenhum dos critérios atributivos da competência internacional estabelecidos no art. 3º, nº1 de Regulamento nº 2201/2003, não relevando, por isso, para determinar o tribunal competente para decidir sobre o pedido de divórcio.

É que, também a este propósito o TJUE, no Despacho de 03-10-2019 (processo nº C-759/18), declarou que :

«1) O artigo 3.º n.º 1, do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.º 1347/2000, deve ser interpretado no sentido de que, tratando-se de um pedido de divórcio, quando o requerente apresenta o pedido num tribunal do Estado-Membro da nacionalidade comum dos cônjuges, ao passo que a residência habitual destes se situa noutro Estado-Membro, esse tribunal dispõe de competência para decidir sobre esse pedido, nos termos da alínea b) desta disposição. Uma vez que não se exige o acordo do requerido, não é necessário examinar a questão de saber se a não dedução, pelo requerido, de uma exceção de incompetência constitui um acordo tácito sobre a competência do tribunal onde foi apresentado o pedido.

2) O artigo 3.º, n.º 1, e o artigo 17.º do Regulamento n.º 2201/2003 devem ser interpretados no sentido de que, numa situação como a que está em causa no processo principal, a circunstância de o casal de cujo casamento é pedida a dissolução ter um filho menor não é pertinente para determinar o tribunal competente para decidir sobre o pedido de divórcio. Uma vez que o tribunal do Estado-Membro da nacionalidade comum dos cônjuges, chamado a pronunciar-se pelo requerente, é competente para se pronunciar sobre este pedido por força do artigo 3., n.º 1, alínea b), deste regulamento, esse tribunal não pode, mesmo na falta de acordo das partes nesta matéria, invocar uma exceção de incompetência internacional.

3) (…)»[16]

Por tudo isto, porque este Regulamento, segundo a interpretação conforme da jurisprudência do TJUE, estabeleceu o princípio de tratamento paritário de todos estes critérios atributivos de competência internacional e concedeu ao cônjuge requerente do pedido de divórcio o direito de optar por qualquer um deles e porque o autor instaurou a presente ação de divórcio num tribunal de um Estado Membro da União Europeia – Portugal - , tendo autor e ré nacionalidade portuguesa, dúvidas não restam quanto à verificação do critério da nacionalidade de ambos os cônjuges a que alude a al. b), do nº1, do artigo 3.º, do Regulamento (CE) 2201/2003 de 27 de Novembro.

Daí nenhuma censura merecer o acórdão recorrido ao decidir que o tribunal português onde a ação de divórcio foi interposta é internacionalmente competente para a julgar improcedendo, desta forma, todas as conclusões formuladas pela recorrente.


***


IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em julgar improcedente a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas da revista a cargo da recorrente.


***


Supremo Tribunal de Justiça, 7 de outubro de 2020


Nos termos do art. 15º-A do Decreto-Lei nº 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei nº 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade da Exmª Senhora Conselheira Catarina Serra e do Exmº Senhor Conselheiro Bernardo Domingos, que compõem este Coletivo.

Maria Rosa Oliveira Tching (Relatora)

Catarina Serra           

José Manuel Bernardo Domingos

____________

[1] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respetivamente.
[2] Neste sentido, vide, entre muitos outros, Acórdãos do STJ, de 10.5.1973, in, BMJ, n.º 228º, pág. 259 e de 15.3.1974, in, BMJ, n.º 235, pág. 152. 
[3] In, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed. revista e atualizada, pág. 688. 
[4] Acessível in www.dgsi/stj.pt
[5] Regulamento Bruxelas II bis, entrado em vigor em 1 de agosto de 2004 e aplicável a partir de 1 de março de 2005, revogando o Regulamento (CE) nº 1347/2000, de 29 de maio.
[6] Neste sentido, cfr. Acórdão do TJ, de 1 de março, de 2005, processo nº C-281/02 ; Maria Helena Brito, “ O Regulamento (CE) 2201/2003, do Conselho, de 27 de Novembro de 2003)”, in Estudos em Memória do Professor Doutor António Marques dos Santos, Volume I, 2005, Almedina, págs. 305-356 e Luís de Lima Pinheiro, “O reconhecimento de decisões estrangeiras em matéria matrimonial e de responsabilidade paternal: regulamento (CE) nº 2201/2003, do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 66, Volume 2 (Set. 2006), págs. 517-546; acessível in https://portal.oa.pt/publicacoes/revista/ano-2006/ano-66-vol-ii-set-2006/doutrina/luis-de-lima-pinheiro-o-reconhecimento-de-decisoes-estrangeiras-em-materia-matrimonial-e-de-responsabilidade-paternal/.
[7] Elaborado pela Profª Drª Alegría Borrás.
[8] Cfr. considerando nº 16 do Relatório Explicativo da Convenção de Bruxelas II, considerando nº 4 do Regulamento Bruxelas II e art. 17º do Regulamento (CE) 2201/2003, de 27 de novembro.
[9] Neste sentido, Nuno Ascensão Silva, “O Regulamento Bruxelas II bis [Regulamento (CE) 2201/2003, do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.º 1347/2000]”, p. 24, acessível in http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/familia/Direito Internacional Familia Tomo I.pdf).
[10] In “ O Divórcio em Direito Internacional Privado”, 2017, pág. 69. [11] http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=70753&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=4493450
[11] http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=70753&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=4493450
[12] In “ O Divórcio em Direito Internacional Privado”, 2017, págs. 95 a 97.
[13] No mesmo sentido, “Guia Prático para a aplicação do Regulamento Bruxelas II-A”, Comissão Europeia, Rede Judiciária Europeia em matéria civil e comercial, União Europeia, 2014, disponível in e-justice.europa.eu (fazer download) ou https://op.europa.eu/pt/publication-detail/-/publication/f7d39509-3f10-4ae2-b993-53ac6b9f93ed/language-pt.
[14] Pois, em face da opção concedida ao cônjuge requerente do divórcio, é natural que este escolha de entre as jurisdições internacionalmente competentes aquela que ele considera que é a mais favorável à sua pretensão e, deste modo, «a admissão do forum shopping consubstancia também uma concretização de uma política de favorecimento do divórcio (favor divortii). O cônjuge requerente não escolhe uma jurisdição porque esta é a que tem a conexão mais estreita com o litígio ou é a mas apropriada tendo em conta os interesses de todas as partes. Escolhe-a porque é aquela que ele considera que tutelará melhor a sua pretensão. A escolha de entre as jurisdições internacionalmente competentes será, por isso e em regra, feita exclusivamente tendo em conta os interesses do cônjuge requerente».
[15] Disponível in
http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=72471&pageIndex=0&doclang=pt&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=4498954
[16] Disponível in:
http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=219211&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=4497011.
A situação subjacente ao pedido de reenvio consistia num divórcio entre um casal de nacionalidade romena, casado na Roménia, com um filho nascido nesse país, que foi residir para Itália, tendo ulteriormente um tribunal italiano declarado a separação de facto do casal e atribuído a guarda à mão, sendo que o cônjuge marido intentou uma acção de divórcio na Roménia, perguntando este tribunal se tem competência por entender poder ter que aplicar medidas relacionadas com o poder paternal (ainda que não pedidas) e por entender que o Regulamento quis dar prevalência ao critério de residência sobre o da nacionalidade. Da fundamentação do acórdão destacamos com maior interesse os seguintes pontos: «27. O referido artigo 3.º, n.º 1, enumera, nas suas alíneas a) e b), vários critérios de competência entre os quais não existe hierarquia, pelo que todos os critérios enunciados nesta disposição são alternativos (Acórdão de 16 de julho de 2009, Hadadi, C‑168/08, EU:C:2009:474, n.º 48). 28. O Tribunal de Justiça também declarou que o sistema de repartição de competências instituído pelo Regulamento n.º 2201/2003 em matéria de dissolução do vínculo matrimonial não visa excluir a pluralidade de foros competentes. Pelo contrário, prevê-se expressamente a existência paralela de vários foros competentes hierarquicamente equiparados (Acórdão de 16 de julho de 2009, Hadadi, C‑168/08, EU:C:2009:474, n.º 49). 29. Daqui decorre que um tribunal do Estado‑Membro da nacionalidade comum das partes em causa, no caso em apreço, um tribunal romeno, dispõe de competência com fundamento no artigo 3.º, n.º 1, alínea b), do Regulamento n.º 2201/2003 para decidir sobre um pedido de divórcio apresentado pelo requerente.»