Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | LEAL HENRIQUES | ||
Descritores: | HOMICÍDIO QUALIFICADO CRIME DE RESULTADO COMISSÃO POR OMISSÃO ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA | ||
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Nº do Documento: | SJ200307090016773 | ||
Data do Acordão: | 07/09/2003 | ||
Votação: | MAIORIA COM 1 VOT VENC | ||
Tribunal Recurso: | T REL ALCOBAÇA | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 13/02 | ||
Data: | 03/20/2003 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REC PENAL. | ||
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Sumário : | |||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA 1. No Tribunal do Círculo Judicial de Alcobaça foi julgado o arguido A, devidamente id. nos autos, tendo sido condenado como autor material de um crime de homicídio qualificado, por comissão omissiva, p. e p. pelos art.ºs 10º, n.ºs 1 e 2, 131º e 132º, n.ºs 1 e 2, al. a), todos do C.P., na pena de 15 anos de prisão e absolvido da prática do crime de ocultação de cadáver, p. e p. pelo art.º 254º, n.º 1, al. a), do mesmo texto legal. Inconformado, recorre o arguido, apresentando motivação onde conclui: - «O n° 2 do art.° 10° do C. Penal faz depender a verificação da comissão, da existência de um dever jurídico que pessoalmente obrigue o agente a evitar o resultado que constitua crime. - Esse dever tem de decorrer directamente da lei e não de quaisquer princípios da moral ou de direito natural. - A douta decisão "a quo" considerou terem sido violados os deveres constantes do art.° 1874° e da alínea b) do n.º 1 do art.° 2009° do Código Civil. - Todavia, tais disposições não obrigam um filho a prestar alimentos a um ascendente sob a forma de refeições, mas antes sob a forma de prestações pecuniárias mensais, conforme o disposto no art.° 2005° CC. - Uma vez que a previsão do n.º 2 do art.° 10° do CP só se aplica quando existe um "dever jurídico que pessoalmente" obrigue o agente a evitar o resultado e, no caso dos autos, tal se verifica, não é aplicável ao caso sub judice o disposto no art.° 10° do C. Penal. - Também não existe um nexo de causalidade entre o facto ocorrido - morte - e a omissão do arguido. - O n.º1 do art.° 10° do C. Penal consagra claramente a doutrina da causalidade adequada para resolver a imputação objectiva do resultado ao agente e a equiparação da omissão à acção. - Para que se possa estabelecer um nexo de causalidade entre um resultado e uma acção, ou omissão, é necessário que, em abstracto, a acção ou omissão seja idónea para causar o resultado, ou seja, que o resultado seja uma consequência normal típica da acção, o que não se verifica no caso dos autos. - A douta decisão recorrida coloca a relação entre a omissão e o resultado no campo apenas das probabilidades. - Não está demonstrado que o arguido soubesse e pudesse entender que a sua omissão conduziria necessariamente à morte da mãe, uma vez que se admite, na própria decisão recorrida, que esse resultado poderia não ter ocorrido. - Não pode ser aplicado ao caso dos autos o disposto no n.º 1 do art.° 10° do C. Penal, não sendo punível, por omissão, a conduta do arguido. - É de difícil compatibilização a qualificação do homicídio com base apenas no parentesco, com a criminalização da omissão com base na mesma relação de parentesco, podendo, assim, existir uma relação de consumpção. - A pena aplicada é manifestamente excessiva. - O n° 3 do art.° 10° do C. Penal, admite a atenuação especial da pena, no caso dos crimes praticados por omissão, o que deveria ter sido aplicado ao caso vertente, uma vez que a culpa do arguido se encontra claramente diminuída. - Como tal, deveria ter sido a pena especialmente atenuada, nos limites do art.° 73° do C.P., como permite o n.º3 do art.° 10° do Código Penal. - A douta decisão recorrida violou o disposto nos artigos 10º, 132° e 73°, todos do Código Penal. - Aos factos provados deveria ter sido aplicado o disposto nos artigos 137°, 138° ou 200° do Código Penal.» Respondeu o M.º P.º na comarca, o qual, por sua vez, concluiu: - «Os factos considerados provados pelo Colectivo de Juízes e constantes do douto acórdão recorrido integram o crime de homicídio qualificado, por omissão, p. e p. pelos artigos 10° n° 1 e 2, 131° e 132° n° 1 e 2 a) do C. Penal. - O dever jurídico que impende sobre um filho de prestar alimentos a ascendente não se consubstancia apenas na forma de prestações pecuniárias. - Com efeito, o artigo 2005°, n.°s 1 e 2 do C. Civil é bem claro ao consagrar excepções à regra da prestação pecuniária, a saber: "a existência de acordo ou disposição legal em contrário" ou "a ocorrência de motivos que justifiquem medidas de excepção" ou a situação prevista no n° 2 do mencionado artigo. - O nexo de causalidade encontra-se bem explicito no artigo 27º dos factos provados que refere: " A ausência de alimentos e de prestação de cuidados de saúde, durante o período que esteve acamada, foram a causa da morte de B por inanição". - Esta factualidade retrata com toda a clareza que a morte de B foi causada, directa e necessariamente, pela ausência da prestação de cuidados alimentares. - A pena aplicada foi correctamente doseada de forma justa, adequada e proporcional, tendo em conta os contornos do dolo e da ilicitude, a personalidade do arguido e a gravidade dos factos.». Neste Supremo Tribunal de Justiça, o M.º P.º foi de parecer que os autos deviam prosseguir para julgamento. Colhidos os vistos realizou-se a audiência oral e, discutida a causa, é momento de proferir decisão. 2. Deu o tribunal "a quo" como provados os seguintes factos: - «O arguido vivia com a sua mãe B, na casa desta, sita no Bairro do Calvário, n.º ...., em Peniche, o que acontecia desde 1995 ; - O arguido era a única pessoa da família que vivia com a sua mãe B; - Tendo esta nascido em 18 de Março de 1915; - No dia 12 de Abril de 1998, a B foi encontrada cadáver no interior da sua residência; - O cadáver encontrava-se em cima da cama do quarto que utilizava para dormir, em decúbito dorsal, com 4 (quatro) cobertores a tapá-lo e um outro a servir de lençol; - No chão, junto à cama, encontravam-se algumas garrafas de leite UCAL vazias, com vestígios de leite seco e restos de pão duro; - Bem como uma bacia de plástico com muitas larvas mortas; - O corpo encontrava-se em adiantado estado de decomposição, com cheiro nauseabundo, notando-se a ausência dos olhos e língua; - No hábito externo existiam pequenos orifícios disseminados pelo corpo provocados pela saída de larvas de insectos; - Os órgãos internos encontravam-se bastante putrefactos, estando os pulmões muito ressequidos; - Enquanto o estômago e intestinos encontravam-se completamente vazios; - O corpo não apresentava qualquer lesão externa susceptível de indiciar a acção de terceiros; - A morte da B ocorreu aproximadamente 15 dias antes do cadáver ter sido encontrado; - Tendo-se a causa da morte ficado a dever a inanição. - Antes do cadáver ser descoberto, a B encontrava-se acamada desde há aproximadamente dois meses, sendo pessoa que sofria de poliartroses; - Durante o mês anterior à data determinada para a morte o arguido apenas forneceu à sua mãe garrafas de leite com chocolate e algumas sandes; - Durante os meses de Fevereiro e Março de 1998, período durante o qual a B esteve acamada, o arguido não prestou qualquer cuidado de saúde à sua mãe, com excepção da alimentação mencionada; - Designadamente, levando-a ao Hospital Distrital de Peniche ou ao Centro de Saúde desta cidade; - Com efeito, a última consulta no Centro de Saúde data de 04 de Dezembro de 1996, conforme documento junto aos autos a fls. 144; - Sendo que o último atendimento no Hospital Distrital de Peniche data de 27 de Novembro de 1997, conforme documento junto aos autos a fls. 164; - No período compreendido entre 12 de Fevereiro de 1998 e 12 de Abril de 1998, a falecida B nunca foi transportada pelos Bombeiros Voluntários de Peniche; - O arguido encontra-se reformado, por invalidez, da indústria hoteleira, tendo como rendimento a sua pensão de reforma no montante mensal de, aproximadamente, 222,00 Euros; - Enquanto a sua mãe se encontrava acamada, e confrontado com o não aparecimento da mesma à janela ou na rua, o arguido recusou a entrada na habitação, onde ambos viviam, de vizinhos, referindo que a mãe se encontrava bem, e que não necessitava de qualquer apoio, o que satisfazia a curiosidade daqueles; - Sendo que os demais familiares da B não se interessavam com o estado da mesma, nomeadamente os seus outros dois filhos, vivendo ambos em Peniche; - Nos dias 21/01/98, 16/02/98 e 17/03/98, o arguido procedeu ao levantamento da pensão de sobrevivência de sua mãe, no montante de esc.: 50.010.00, que a mesma recebia mensalmente da Segurança Social; - Fê-lo a rogo da mesma, por não saber assinar, mediante a apresentação do bilhete de identidade da sua mãe, e do próprio; - A ausência de alimentos e de prestação de cuidados de saúde, durante o tempo em que esteve acamada, foram a causa da morte da B por inanição. - O arguido deixou de alimentar a sua mãe B durante aproximadamente 12 dias, encontrando-se esta acamada e incapacitada de se movimentar e de, por si só, prover à sua alimentação; - Durante tal período, o arguido ausentou-se da casa onde ambos viviam, tendo permanecido com uma cidadã de nacionalidade brasileira, que conheceu num bar, em casa de um conhecido, de quem se encontrava enamorado; - Afirmou encontrar-se iludido com a mesma, pois não se relacionava sexualmente com uma mulher há muito tempo; - Durante tal período, e apesar de conhecer o estado da sua mãe, nunca se deslocou a casa, apesar de ter permanecido na localidade de Peniche; - Tendo regressado à casa onde vivia com a sua mãe na madrugada do próprio dia 12 de Abril de 1998, deitando-se de imediato; - Sabia o arguido que, ao não fornecer alimentação à sua mãe durante tal período, tal poder-lhe-ia causar a morte, aceitando e conformando-se com esta; - O arguido agiu de forma voluntária e consciente, tendo previsto a morte da sua mãe como resultado da ausência da prestação de cuidados alimentares, nos termos expostos, aceitando e conformando-se com tal resultado; - Agiu o arguido sem constrangimento, e com a sua vontade livre e esclarecida, apesar de saber que o seu comportamento era legalmente proibido; - O arguido e a sua mãe davam-se aparentemente bem, sendo que esta nunca se queixava daquele; - O arguido é casado, encontrando-se separado de facto da sua mulher há mais de 7 anos, que o abandonou; - Tem dois filhos com as idades de 24 e 17 anos, vivendo o mais novo com a mãe, e sofrendo o mais velho do Síndroma de Down (Mongolismo); - Tem como habilitações literárias o 2°ano do ciclo preparatório, tendo nascido no dia 04/05/55; - Aos 29 anos de idade sofreu um acidente de viação, do qual resultaram extensas queimaduras; - Em 1994 sofreu tuberculose pulmonar, tendo estado internado num sanatório durante nove meses; - O arguido possui uma personalidade dotada de manifesta frieza e distanciamento afectivo, desconfiança e auto-desculpabilização; - Revela, ainda, a sua personalidade ou maneira de ser imaturidade, rigidez e centração no próprio, revelando displicência e indiferenciação; - No meio social onde se insere é considerado como uma pessoa de trato fácil. - Do CRC do arguido consta o seguinte: - por acórdão de 04/10/96 - PCTC n.º 35/95.3 do Tribunal de Círculo de Caldas da Rainha -, foi condenado pela prática do crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. no art.º 25°, alín. a), do DL n.º 15/93, de 20/01, na pena de 15 meses de prisão, a qual ficou suspensa na sua execução pelo período de 3 anos.». O mesmo tribunal deu como não provados os seguintes factos: - «que a morte da B tenha ocorrido no período compreendido entre 3 semanas e um mês da data em que o cadáver foi encontrado; - que a pensão de reforma do arguido seja no montante mensal de esc.: 31.000.00; - que o arguido tivesse conhecimento que a sua mãe falecera e que, tendo tal conhecimento, tenha ocultado tal facto, recusando a entrada na habitação de vizinhos e familiares; - que a ocultação de tal facto tivesse por objectivo proceder ao levantamento da pensão de sobrevivência da sua mãe; - que o arguido se preparasse para proceder ao levantamento da pensão de sobrevivência da sua mãe respeitante ao mês de Abril; - que o arguido tenha agido com intenção de dissimular a morte da mãe, de forma a atingir as datas de vencimento dos vales de correio; - que o arguido tenha querido provocara morte da sua mãe, utilizando a forma de não lhe fornecer alimentação de modo a atingir tal desiderato; - que o arguido tenha agido movido pelo propósito de fazer sua a pensão de sua mãe; - que o arguido tenha planeado a sua conduta com perfeito discernimento de todas as consequências, designadamente a morte de sua mãe, executando-a, sem qualquer hesitação, ao longo de pelo menos 10 dias; - que o arguido tenha atrasado o anúncio da morte de sua mãe, desrespeitando os sentimentos sociais inerentes ao culto da morte; - relativamente ao aduzido no art.º 18° da acusação, não se considerou atenta a sua natureza perfeitamente conclusiva, enquanto que o mencionado no art.º 19° é pura matéria de direito, não tendo sido igualmente considerado.». De acordo com as conclusões da motivação - e são elas que delimitam o objecto do recurso, como é jurisprudência constante deste Supremo Tribunal de Justiça - equacionou o arguido recorrente as seguintes questões: 1ª - Sendo que o n.º 2 do art.º 10º do CP faz depender a comissão de um resultado por omissão da existência de um dever jurídico que pessoalmente obrigue o agente a evitar esse resultado, não se perfila, no caso concreto, esse dever, uma vez que em lado algum a lei (nomeadamente os art.ºs 1874º, e 2009º, n.º 1, al. b), do Cód. Civil) obriga os filhos a prestar alimentos a um ascendente sob a forma de refeições; 2ª - Exigindo o n.º 1 do mesmo art.º 10º do CP que nos crimes de resultado o facto abranja não só a acção adequada a produzi-lo como a comissão da acção adequada a evitá-lo, não está demonstrado nos autos que o arguido soubesse e pudesse entender que a sua omissão conduziria necessariamente à morte da mãe, uma vez que se admite, na própria decisão recorrida, que esse resultado poderia não ter ocorrido; 3ª - É de difícil compatibilização a qualificação do homicídio com base apenas no parentesco com a criminalização da omissão com base na mesma relação de parentesco; 4ª - A pena aplicada é manifestamente excessiva, justificando-se, no caso, o uso da faculdade de atenuação especial da pena nos moldes dos art.ºs 73º e 10º, n.º 3 do CP; 5ª - Ou então integrou a conduta do arguido em qualquer dos tipos dos art.ºs 137º (homicídio negligente), 138º (exposição ou abandono) ou 200º (omissão de auxílio), todos do CP. Vejamos. A 1ª e 2ª questões têm a ver com a comissão de crimes por omissão. Na arquitectura do crime (comportamento humano, ilícito, típico e culposo), a conduta, enquanto negação de valores ou interesses de uma dada comunidade, pode exprimir-me de uma forma positiva - o fazer -, ou de uma forma negativa - o não fazer. Dito de outra forma, com a acção «viola-se a norma jurídica fazendo o que a lei proíbe», com a omissão «viola-se a norma jurídica, não fazendo o que a lei manda.». A omissão, sendo a abstenção de actuar, pode ser simples ou própria (a que se exprime por um «comportamento negativo voluntário ou imprudente, ainda que não conduza a um resultado material») ou comissiva ou imprópria (se materializada numa «abstenção que produz um resultado material proibido - v.g. a morte provocada pela não alimentação de um filho de tenra idade»). SIMAS SANTOS e LEAL-HENRIQUES, Noções Elementares de Direito Penal, 46. A lei penal refere que, quando o tipo compreende o chamado evento ou resultado (como por exemplo acontece com a morte no homicídio), o facto abrange não só a acção como também a omissão adequadas à sua produção. É o que estatui o art.º 10º, n.º 1, do CP. Ou seja, o que promana do preceito citado é, por um lado, a equiparação da omissão à acção, e, por outro, que a ligação da conduta ao resultado tem que ser vista em termos de causalidade adequada, de harmonia com a qual a causa de determinado resultado é a que for adequada ou idónea para o produzir, segundo as máximas da experiência e a normalidade do acontecer. Só assim não será, isto é, a equiparação não terá lugar, se outro for o sentido da lei. Sintetizando e concluindo, podemos afirmar que se um comportamento omissivo provocar um certo resultado típico é de considerá-lo, para efeitos penais, como se tivesse sido produzido por acção (ou seja, se não fosse a omissão o resultado não se teria produzido). Esta regra, porém, não é absoluta, já que comporta restrições. Uma delas já foi antes apontada e que se consubstancia na ideia de que a equiparação não se verificará se for outra a intenção da lei. Assim acontecerá, por exemplo, nos casos de crimes de execução vinculada ou em que o legislador relaciona a censurabilidade da acção com essa forma vinculada de execução, como acontece com a coacção, com a generalidade dos crimes sexuais ou com a burla, em que há que verificar, autonomamente, se, no caso concreto, a omissão corresponde ou é equiparável à acção. No crime de homicídio, porém, tal restrição não se põe já que o tipo correspondente se limita a incluir a exigência de um resultado (a morte) sem lhe associar qualquer forma vinculada de execução. A outra restrição consagrada na lei está inscrita no n.º 2 do referenciado art.º 10º, ao pressupor que a omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar o resultado decorrente da sua omissão. Trata-se de uma restrição de reconhecido melindre, já que o legislador não nos fornece pistas seguras que nos elucidem sobre qual a fonte desse dever jurídico (lei, contrato, situação concreta criada), nem quando se pode afirmar que, existindo esse dever, o omitente está pessoalmente obrigado a evitar o resultado proibido. O Prof. Figueiredo Dias lança alguma luz sobre a questão ao ponderar: «A doutrina tradicional era, como se sabe, no sentido de que tal ocorreria quando a posição de garante derivasse da lei, de um contrato ou de uma situação de ingerência, é dizer, de perigo para bens jurídicos criados, ainda que não culposamente, pelo próprio omitente. Esta doutrina fortemente restritiva encontra-se de algum modo em crise e à qual não é estranha, decerto, uma muito mais afinada sensibilidade que hoje se possui para os valores e experiências de solidarismo e da comunidade de vida. Mas não deixa de ser certo também que um alargamento desmesurado das fontes donde deriva ou onde se ancora a posição de garante poria em sério risco as exigências de segurança das pessoas e de determinabilidade dos tipos incriminadores, que constitucionalmente se ligam ao princípio da legalidade em direito penal.». Pressupostos da Punição, 55. Ou seja: o ponto de equilíbrio a encontrar não pode ir buscar-se nem nos limites do restritivo nem nos da ampla abertura. Por isso o ilustre Mestre proclama: «Uma coisa me parece certa: a lei, o contrato, a ingerência, não devem constituir fontes do dever de garantia, mas só planos em que aquele se deve reflectir, por homenagem às exigências que acabo de referir ... Vê-se, assim, que decisiva é uma relação prática de proximidade - digamos existencial - entre o omitente e determinados deveres jurídicos que ele tem o dever pessoal de proteger ou entre o omitente e determinadas fontes de perigo por cujo controlo é pessoalmente responsável. Que com isto se alarga o catálogo das situações em que o dever de garantia se afirma, é indiscutível; sem que todavia se possam dizer postas irremediavelmente em causa as exigências decorrentes do Estado de Direito ...». ibidem. Dito isto, que inegavelmente responde de forma cabal à situação em análise, não se mostra possível furtar o recorrente à responsabilidade penal tal como ela vem definida no acórdão posto em crise. Na verdade, provado que ficou que o arguido vivia desde 1995 com sua mãe, a vítima, já com a provecta idade de 80 anos e acamada; que durante os meses de Fevereiro e Março de 1998 apenas lhe forneceu, por vezes, garrafas de leite com chocolate e algumas sandes; e que durante aproximadamente 12 dias não lhe deu a tomar sequer qualquer tipo de alimento, nem providenciou para que alguém o fizesse, ausentando-se de casa para se entregar aos favores de uma companheira de ocasião, bem sabendo que a vítima não tinha possibilidade de prover, pelos seus próprios meios, à sua substância, aceitando e conformando-se com a ideia de que com tal abstenção lhe poderia causar a morte, é manifesto que praticou um homicídio por omissão. A relação de proximidade existencial em que se encontrava com a vítima - de que nos fala Figueiredo Dias -, colocando-a na sua própria e exclusiva dependência, criou no arguido o dever jurídico de protegê-la e assisti-la nas suas necessidades, alimentando-a e prestando-lhe os cuidados de saúde de que a mesma carecia, tornando-se, assim, pessoalmente responsável pela sua vida, sabendo, como sabia, das suas carências e que mais ninguém tinha com ela uma relação de proximidade susceptível de gerar esse mesmo dever de protecção e assistência. E não há dúvida também de que a conduta omissiva do arguido foi causa adequada da morte da vítima, pois que é da experiência comum, e o relatório da autópsia o demonstra, que uma pessoa doente, incapaz e com aquela idade (mais de 80 anos), perecerá fatalmente se não for alimentada durante 12 dias consecutivos, depois de passar um longo período de tempo com uma alimentação insuficiente, como foi o caso. Nem se diga que o facto de a vítima possuir mais dois filhos vivendo na mesma localidade neutralizava ou enfraquecia a posição de garante do arguido, uma vez que entre estes e a mãe não existia qualquer relação de proximidade capaz de gerar o dever jurídico de assistência. Improcedem, assim, pois, as questões 1ª e 2ª postas pelo recorrente. No que tange à 3ª questão (compatibilização da qualificação do homicídio e da produção do evento com base na mesma relação de parentesco) é de admitir que o arguido possa ter alguma razão. É certo que quanto a esse ponto a decisão impugnada, ao referir-se à técnica dos exemplos-padrão que inspirou o legislador na construção do tipo inscrito no art.º 132º do CP, não mostra que a mesma foi utilizada secamente na fundamentação que conduziu ao enquadramento dos factos em tal preceito, porquanto, o que aí se regista é que apenas se tomou como indício concretizador da cláusula geral (especial censurabilidade ou preversidade do agente) o parentesco próximo entre autor e vítima. Na verdade, aí se escreve concretamente o seguinte: Produzindo os exemplos-padrão «um efeito de indício ... as consequências de tal indiciação são as seguintes: desencadeado o denominado efeito-padrão, ou constituída a citada presunção ilidível, através do preenchimento do tipo fundamental do art.º 131º e de, pelo menos, uma das circunstâncias elencadas no n.º 2 do art.º 132º, só circunstâncias extraordinárias ou, então, um conjunto raro de circunstâncias especiais pode anular o efeito do indício, desde que atribuam ao facto uma imagem global insusceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente.» Portanto, o parentesco só terá entrado como circunstância qualificativa para ultrapassar o tipo de homicídio simples, atendendo a que, no caso concreto, se mostrou revelador de especial censurabilidade e perversidade do agente. Ora, não é de todo sufragável que esta consideração colida com o facto de o arguido ser responsabilizado por uma conduta omissiva, já que é legítimo admitir que a punição não acode pelo facto de o recorrente ser filho da vítima, mas tão só pela relação de proximidade que existia entre ambos e que o obrigava a ter um comportamento que evitasse o resultado danoso - a morte daquela. Porém, como se encara esta análise com algumas mas sérias reservas, dá-se prevalência à regra do "in dubio pro reo" e confere-se provimento a esta questão, pelo que o arguido será apenas responsabilizado pela prática de um crime de homicídio simples, p.e p. pelo art.º 131º do C. Penal. E entramos já na 4ª questão (justificação para a atenuação especial da pena). Resolvido o problema do enquadramento legal da conduta do recorrente, temos que ao ilícito cometido corresponde uma pena de 8 a 16 anos de prisão. O acórdão sob censura deu relevo a que: - «a ilicitude presente na conduta do arguido é elevada, atenta a gravidade dos factos praticados, nomeadamente o grau de omissão do dever de assistência desrespeitado (no âmbito do dever que lhe era imposto), o que faz elevar as exigências de culpa; - o grau de sofrimento causado pelo arguido, atenta a causa de morte da sua mãe, é igualmente de relevar e censurar, o que faz elevar idênticas exigências; - a motivação subjacente à conduta de comissão por omissão do arguido é igualmente de censurar, quase repugnante, atento o facto de ter deixado de alimentar a sua mãe em virtude de andar na companhia de uma mulher, de forma a satisfazer os seus instintos sexuais, e por quem se afirmou iludido, o que não pode deixar de fazer aumentar as mesmas exigências, ainda que tenhamos considerado tal comportamento como não enquadrável no conceito de motivo fútil na prática do acto; - o dolo presente na conduta do arguido, atenta a sua natureza de eventual, denota menores exigências de culpa, atenta a sua menor intensidade; - por outro lado, toda a situação pessoal do arguido demonstra estarmos perante uma pessoa necessariamente marcada pela vida, atento o facto de ter sido abandonado pela mulher, de ter extensas queimaduras no corpo atento um acidente de viação que sofreu, e de ter sofrido, inclusive, tuberculose, que o obrigou a internamento por um período de 9 meses, o que denota fragilidade pessoal, conducente a menores exigências preventivas; - a personalidade evidenciada pelo arguido conduz, pelo contrário, ao aumentar das exigências preventivas, atentas as características de frieza e distanciamento afectivo, desconfiança, auto-desculpabilização, imaturidade e egoísmo, reveladoras de uma atitude displicente e indiferente; - por outro lado, a conduta do arguido surge ainda de forma mais incompreensível atento o facto do mesmo dar-se aparentemente bem com a sua mãe, nunca esta se queixando do mesmo, pelo que seria de esperar uma atitude de cuidado, carinho e protecção perante a fragilidade por aquela vivenciada, e não atitude contrária, o que não pode deixar de fazer aumentar as exigências da culpa e da prevenção; - por fim, o facto de tal atitude omissiva respeitar a uma pessoa dependente, não só devido à sua condição de doente, como ainda devido à sua elevada idade - 83 anos -, o que indicia uma personalidade desrespeitadora perante aqueles por quem devemos ter um acrescido respeito (traduzido numa maior vulnerabilidade, mas também numa experiência de vida que incute consideração e afectividade), mesmo fora, e para além, de eventuais laços familiares, o que faz elevar as mesmas exigências preventivas.». Corrigido o enquadramento legal da conduta do arguido, há que lhe adequar a respectiva pena concreta. Assim, tendo presentes a culpa do agente, a ilicitude dos factos e as demais circunstâncias concorrentes, crê-se ajustada uma censura situada nos 10 anos de prisão, não se justificando minimamente, e por tudo quanto dito ficou, a atenuação especial da pena. Daí que a questão não proceda. Finalmente temos a 5ª questão (enquadramento diferente da conduta do arguido). Face às conclusões a que se chegou na análise das 1ª, 2ª e 3ª questões está prejudicada a apreciação específica deste problema. 3. De harmonia com o exposto, acordam na Secção Criminal deste Supremo Tribunal de Justiça em conceder parcial provimento ao recurso, condenando-se o arguido A, pela prática de um crime de homicídio voluntário consumado, p. e p. pelo art.º 131º do CP, na pena de 10 anos de prisão. Lisboa, 9 de Julho de 2003 Leal Henriques Borges de Pinho Pires Salpico Henriques Gaspar (vencido, nos termos do voto que junto). __________ (1) - SIMAS SANTOS e LEAL-HENRIQUES, Noções Elementares de Direito Penal, 46. (2) - Pressupostos da Punição, 55. (3) - ibidem. DECLARAÇÃO DE VOTO 1. Reconhecendo, embora, o elaborado trabalhado construtivo, tanto da decisão da primeira instância, como do acórdão, e as dúvidas que o caso concreto, como se fora um verdadeiro caso de escola, imperiosamente suscita, não acompanho a solução a que chegou a posição que fez vencimento . Pelos motivos que a seguir, em síntese, enuncio . 2. A situação da vida sobre que as decisões trabalharam, revela, é certo, uma realidade socialmente dramática, e dir-se-ia mesmo incogitável no espaço civilizacional do princípio deste século, e é, por isso, fortemente impressiva pelo sentimento e emoção que necessariamente determina (e o texto da decisão de 1ª instância não escapa, em um ou outro ponto , a este registo) . Mas, não obstante, tem de acolher-se , de outra parte, no rigor analítico dos instrumentos metodológicos e nas categorias dogmáticas, em uma das mais problemáticas questões da teoria da acção e do direito penal do facto . Tem a ver com a rigorosa definição da posição que garante, como categoria dogmática, nos crimes omissão imprópria ou de comissão por omissão . A equiparação do faccere ao omittere nos termos do artigo 10º , nº1, do Código Penal , expande, com efeito, de tal modo as margens da punibilidade, que sem a existência de uma rigorosa delimitação da relevância da omissão , rectius, da comissão do resultado por omissão , criar-se-ia uma situação insuportavelmente lata, que escaparia ao domínio do princípio da tipicidade penal e da legalidade, com refracções negativas no âmbito constitucional do direito penal. Na verdade , o «carácter onto-antropológico que o faccere transporta» e «um potencial, um transporte de energia e uma realização que se cristalizam em alterações ao real verdadeiro e que determinam o valor ou desvalor» próprios do faccere , «ganham uma densidade que o omittere não pode beneficiar» ; o omittere jurídico-penalmente relevante é , diferentemente, «um real construído cuja relevância resulta da transferência do espaço axiológico tendo em conta a proibição dos resultados» (cfr,. JOSÉ DE FARIA COSTA , "Omissão (reflexões em Redor da Omissão Imprópria)" , no Boletim da Faculdade de Direito, Vol. LXXII , Coimbra, 1996 , pág. 391-402) . 3. A menor densidade da omissão significa que a comissão por omissão , como modelo de equiparação à acção , traduz-se sempre numa tipicidade diminuída - com a consequente fragilização do princípio da tipicidade . O reequilíbrio na densificação da garantia da tipicidade na equiparação da acção à omissão centra-se na construção referencial da categoria típica, que a lei expressamente refere como pressuposto e fundamento da equiparação : a equiparação só existe e o resultado só é punível , «quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado» , como se expressa o nº2 do artigo 10º do Código Penal . É a categoria dogmática de garante. Esta categoria pertence, assim, à tipicidade, e è , por isso, parte integrante da complexidade do tipo de crime comissivo por omissão . O tipo omissivo , ao contrário da comissão por acção, é , assim, complexo, impondo a interpretação , metodologicamente antes da subsunção , quanto à verificação , existência e rigorosa caracterização da posição de garante . Trabalho de interpretação que, pelas imposições de certeza ao nível da definição dos elementos do tipo , e consequentemente do respeito pelo princípio da tipicidade e da legalidade, se revela dos mais árduos, tanto nas formulações da doutrina, como nos desenvolvimentos vividos da jurisprudência . A produção do resultado típico nos casos e comissão por omissão só é, pois , punível, quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue e evitar o resultado. Este dever jurídico, como elemento integrante da tipicidade, determina o círculo dos garantes susceptíveis de aparecer como autores do facto . O dever jurídico que integra e determina a posição de garante tem, pois, de ser interpretado e integrado como outro qualquer elemento da tipicidade , não bastando, por isso, uma qualquer relação formal-situacional decorrente da lei , de contrato ou de uma situação de ingerência (para aludir aos tradicionais planos referencias a doutrina) . Tais fontes genéricas, como é de hoje pacificamente aceite, não podem, apenas por si mesmas, ser fonte de um elemento do tipo legal : não podem ex abrupto criar, por si, o dever jurídico de garante e gerar um elemento do tipo. A indeterminação e a insegurança que daí decorreria, constituiria uma violação do princípio da tipicidade . 4. A posição de garante, mesmo dentro dos referidos planos onde se pode reflectir e que refractam o dever jurídico-pessoal tipicamente complexo , e partindo desses planos, tem de ser construída no domínio de uma responsabilização primitiva , no sentido de primeira, e analisada e integrada ainda pelas circunstâncias do caso e pela particular configuração da situação típica. A posição de garante , que se explica e se funda no cumprimento de uma certa expectativa juridicamente vinculada, encontra-se, e só se pode encontrar, no espaço das situações que, partindo dos referidos planos, traduza uma contextualização das relações comunicacionais como uma espécie de monopólio de facto, da esfera do domínio positivo do omitente ; este tem de poder intervir em termos reais no nexo de causação/evitação do resultado desvalioso (cfr., FARIA COSTA, loc. cit.). Mas para intervir em termos reais, o agente tem de possuir pessoalmente as necessárias capacidades e qualidades. Se a acção exigida ao garante se traduzir numa prestação de auxílio primário, imperioso segundo as circunstâncias do caso, p. ex., de alimentação, alojamento, higiene, assistência, ser necessário , também , que exista efectiva capacidade individual de acção , pessoal, intelectual e de facto , adequada e necessária à posição de garante . A capacidade individual de acção - fazer o exigido de forma conveniente - pertence, pois, ainda e também ao tipo, e deve ser interpretada segundo as exigências de certeza inerentes ao respeito pelo princípio da tipicidade . Nesta definição e integração típica , para ser susceptível de integrar a posição jurídica de garante, este tem de conhecer a situação típica, tem de possuir as forças próprias necessárias (força, conhecimento, capacidade intelectual e capacidade de realização das tarefas materiais exigidas) , tem se representar a acção exigida como fim possível da sua vontade, e como elemento de natureza pessoal-objectiva têm de ocorrer pressupostos externos de proximidade especial e presença física, ou, dito de outro modo, monopólio de facto da situação (cfr., H-H JESCHECK, "Tratado de Derecho Penal" , Parte General, vol. II , págs. 850 e segs.). Na densificação da causa jurídica específica tem de estar, por outro lado, uma relação de dependência, no sentido de estreita relação vital, total e exclusiva, baseada num vínculo jurídico com refracção nos aludidos planos da lei, do contrato ou de ingerência . Os deveres morais não podem constituir fundamento da posição de garante e da consequente responsabilidade jurídico-penal. No domínio muito específico das relações intrafamiliares, a doutrina aceita a construção da posição típica de garante imediatamente na relação entre pais e filhos dependentes (não autónomos no sentido imediatamente físico), e entre cônjuges pelo plano da especificidade da relação conjugal e da comunhão de direitos e deveres (cfr., os exemplos citados por ENRIQUE GIMBERNAT ORDEIG, "Causalidad, omissión e imprudencia" , in Anuário de Derecho Penal y Ciencias Penales, Tomo XLVII, Fasc. III, Setembro-Dezembro de 1994, desig. pág. 60) . Mas não já, em termos imediatos ou restritos, nas relações entre filhos e pais ou avós (cfr., v.g., SCHONKE/SCHRODER, Strafgesetzbuch, Kommentar, 21. Auf., § 13, Bem. 18-19, pág. 162-163). 5. Voltando ao caso sub júdice, não encontro nos factos provados ancoragem bastante para poder integrar, em relação ao arguido, a posição de garante com a densidade necessária à definição de um elemento típico . Na decisão recorrida e na opinião que fez vencimento, a posição de garante foi deduzida e construída (pois a posição de garante na comissão por omissão é um «real construído») muito a partir do dever de prestar alimentos aos ascendentes, que é um dever jurídico com o sentido e a dimensão que lhe assinala o artigo 2009º , nº1 , alínea b), do Código Civil (embora com modo de prestação legalmente fixado - artigo 2005, do mesmo diploma), e da proximidade física do arguido em relação à mãe («vivia com a mãe desde 1995, e era a única pessoa de família que vivia com a mãe»). Estes dados , um jurídico e outro de facto, não são, porém , no juízo que faço, suficientes para satisfazer a extrema necessidade de certeza e de garantia de (pré) identificação dos elementos do tipo, como pressuposto do respeito pelo princípio da legalidade , no sentido exigente (e constitucional) da legalidade dos crimes e das penas. Há, na verdade, alguns elementos que faltam (não foram ou não puderam ter sido averiguados) para caracterizar a posição , relevante e tipicamente integrada , de garante . Para o modo como a posição maioritária está construída, não está, com efeito , provado se o arguido possuía as condições pessoais que seriam adequadas (conhecimentos , possibilidades, capacidades intelectuais e de saber fazer) em ordem à evitação do resultado . Provando-se que o arguido , antes da ausência , apenas forneceu à mãe «garrafas de leite com chocolate e algumas sandes» , não se demonstra que este possuísse as qualidades e as capacidades pessoais minimamente exigidas para prestar os cuidados de alimentação, tratamento e higiene adequados a evitar o resultado (o concreto resultado, pois apenas esse é relevante na qualificação aceite) , ou seja, no caso, a morte . No domínio dos factos , e bem ao contrário, perante as fragilidades pessoais do arguido (e que são tão intensas pelo que se deduz dos factos provados relativos ao seu passado e às características da sua personalidade), bem poderá até, em dedução que as regras da experiência impõem , afirmar-se que não possuiria as necessárias capacidades pessoais, mesmo estando fisicamente presente e prestando o que sabia, para evitar, a maior ou menor prazo, o resultado que está em causa . Acresce um outro factor, que não foi minimamente tomado em consideração, e que é inteiramente relevante quando se parte, como fonte, do dever jurídico ancilar que as decisões aceitam : o dever jurídico também incumbia aos outros dois filhos que, vivendo na mesma cidade , «não se interessavam com o estado da mãe». E no nível basilar da fonte primeira do dever, que as decisões aceitaram como relevante factor metodológico da construção decisional na perspectiva , dir-se-ia minimalista, de integração típica da posição de garante, não se vêm assinaláveis diferenças entre o arguido, apesar da suposta presença física, e os restantes filhos que deveriam saber que o arguido não possuía as adequadas condições pessoais para satisfazer as expectativas comunicacionais próprias do monopólio de facto da situação. 6. O arguido não pode, assim, a meu ver, ser autor do crime de homicídio por comissão por omissão, por não estar suficientemente caracterizada a posição, que faz parte do tipo, de garante . Na situação concreta, tal como está provada, não se revelam, com a necessária segurança e certeza próprias da tipicidade, todos os elementos da posição de garante em relação à evitação da morte, mas apenas, e bem diverso, embora de muito relevante dimensão axiológica, uma atitude - essa sim, bem evidenciada - de aceitação e potenciação de uma séria situação de perigo . A ausência, altamente censurável , do arguido - numa palavra, o abandono da mãe - saindo de casa e não regressando durante doze dias , sem providenciar pelo auxílio , social, médico, familiar ou mesmo de solidariedade vicinal que a sua mãe necessitava e que o arguido não estaria em condições de prestar, traduz e integra um comportamento activo, a caber, sem dificuldade típica , em todos os seus elementos , na previsão do artigo 138º , nºs 1 , alínea b) , 2 e 3 , alínea b) , do Código Penal . Seria, assim, nesta qualificação que considero integrada a conduta do arguido , e nos seus limites definiria a medida da pena a aplicar . |