Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2816/20.2T8BRG.G2.S2
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: AUTORIDADE DO CASO JULGADO
REQUISITOS
IDENTIDADE SUBJETIVA
EXTENSÃO DO CASO JULGADO
FALSIDADE
DOCUMENTO
QUESTÃO PREJUDICIAL
RECURSO DE REVISÃO
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
PRINCÍPIO DA ADESÃO
EXCEÇÃO PERENTÓRIA
PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
CASOS JULGADOS CONTRADITÓRIOS
LIMITES DO CASO JULGADO
FUNDAMENTOS
Data do Acordão: 07/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário : I - A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em ação anterior, que se insere, quanto ao seu objeto, no objeto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, num segundo processo, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade prevista no art. 581.º do CPC.
II - Tem força de autoridade de caso julgado a decisão proferida num processo extraordinário de revisão que não reconheceu a falsidade de um documento, que foi invocada no segundo processo como pressuposto de um direito de indemnização cível, em virtude de o objeto da primeira ação integrar parcialmente o objeto da segunda, constituindo assim questão prejudicial na segunda ação e um pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta seria proferida.

III - O STJ tem entendido que o âmbito objetivo da autoridade do caso julgado se estende à apreciação das questões preliminares que constituam antecedente lógico necessário da parte dispositiva da decisão.

IV - A ação de responsabilidade civil fundada na prática de um crime instaurada em separado do processo penal, ao abrigo do art. 72.º do CPP, corre independentemente do processo penal e é exclusivamente regulada pelas leis civis (substantiva e adjetiva).

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – Relatório

1. O Sporting Clube de Braga, associação desportiva de utilidade pública, pessoa coletiva, n.º ...91, com sede no Parque Norte, Monte Crasto (Estádio Municipal de Braga), Braga, intentou a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra AA, divorciado, contribuinte fiscal n.º ...86, residente na ..., pedindo a condenação deste a pagar-lhe:

- A quantia de € 506.197,00 – quinhentos de seis mil cento e noventa e sete euros – ou outra que se vier a liquidar no âmbito do processo executivo que corre termos sob o n.º 283/08.8..., do Juízo do Trabalho de ..., J..., do Tribunal Judicial da Comarca de..., acrescida de juros;

- A quantia de € 29.041,44 – vinte e nove mil e quarenta e um euros e quarenta e quatro cêntimos- ou outra que se vier a liquidar, relativa aos encargos com garantia bancária, acrescida de juros, à taxa legal, contados desde a data da citação e até integral pagamento;

- A quantia a liquidar, de valor não inferior a € 123.000,00 (cento e vinte e três mil euros) relativa a encargos com honorários dos mandatários na ação laboral e subsequente processo de revisão, acrescida de juros, à taxa legal, contados desde a data da citação e até integral pagamento.

Alegou, para tanto, em síntese, que:

- Por contrato de trabalho celebrado no dia 28 de novembro de 1983, admitiu ao seu serviço o réu para exercer funções de ... da concessão da sala de Bingo, tendo este, mais tarde, exercido, ainda, funções de responsável pela contabilidade comercial daquela sala, de delegado do diretor da respetiva concessão e diretor de sala, competindo-lhe a direção e fiscalização de todos os setores em funcionamento dessa sala explorada pelo autor;

- O autor decidiu encerrar o estabelecimento de bingo e abandonar a respetiva exploração, no ano de 2008, tendo procedido ao despedimento coletivamente dos seus 17 trabalhadores;

- O réu instaurou contra o autor uma ação especial de impugnação emergente de despedimento coletivo que correu termos no Juízo do Trabalho, J..., do Tribunal Judicial da Comarca de ..., sob o n.º 283/08.8...;

- No âmbito daquela ação, o autor foi condenado a pagar ao réu a quantia global de € 648.232,00, referente a indemnização por despedimento, retribuições intercalares, diferenças salariais, proporcionais de férias, de subsídios de férias e de natal e retribuição referente ao mês de agosto de 2008;

- A quantia de € 648.232,00 foi calculada com base na apresentação pelo réu de um recibo de vencimento referente a fevereiro de 2006, documento falsificado por este, com a indicação de valores – v.g vencimento base, vencimento líquido, valor/hora, subsídio de alimentação – que determinaram a condenação do autor a pagar-lhe uma quantia superior à devida no âmbito daquela ação laboral;

- Na sequência da falsificação do referido recibo apresentado pelo réu na ação laboral e dos cálculos aí efetuados a partir dos elementos contidos nesse documento para determinar a quantia que lhe era devida decorrente do despedimento coletivo considerado ilícito, o autor sofreu danos no valor de:

- € 506.197,00 (diferença entre os valores fixados no âmbito da ação laboral a título indemnização por despedimento ilícito, salários intercalares, diferenças salariais, proporcionais de férias, subsídios de férias e natais, retribuição do mês de agosto de 2008 com base nos valores indicados no documento alegadamente falsificado e aqueles que seriam devidos assentes na retribuição base e diuturnidades reais), acrescido de juros, montante correspondente à quantia exequenda do processo executivo n.º 283/08.8..., em que o réu requereu a execução da decisão final proferida no processo laboral de impugnação de despedimento coletivo;

- € 29.041,44 referentes aos encargos da garantia bancária emitida pela Caixa Económica Montepio Geral em 10.10.2016, a favor do Tribunal Judicial da Comarca de ... oferecida pelo autor no incidente de prestação de caução 283/08.8... para obter a suspensão da execução;

- € 100,000,00, acrescidos de IVA, relativos aos encargos que o autor teve de suportar com a sua defesa no âmbito da ação laboral, designadamente no recurso de revisão aí interposto com a invocação da falsidade do recibo referente a fevereiro de 2006.

Foi proferida decisão que julgou incompetente em razão da matéria o Juízo Central Cível de ... para conhecer e decidir a presente ação, considerando que a competência para o conhecimento da mesma pertence à jurisdição laboral.

Interposto recurso desta decisão, o mesmo obteve provimento, tendo sido revogada a mencionada decisão e ordenado o prosseguimento dos autos.

2. Em sede de despacho saneador foi proferida decisão que considerou verificada a autoridade do caso julgado constituído pela decisão proferida no recurso de revisão no processo interposto pelo ora autor contra o aqui réu AA, que correu termos sob o n.º 283/08.8..., do Juízo do Trabalho de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de ..., que apreciou e decidiu a questão da falsidade do recibo referente ao mês de fevereiros de 2006, ato que integra a causa de pedir da presente ação, no qual o ora autor assentou os pedidos formulados, julgando-se consequentemente a presente ação improcedente e determinando-se a absolvição do réu dos pedidos.

3. O autor Sporting Clube de Braga apresentou recurso de revista per saltum, o qual não foi admitido neste Supremo Tribunal de Justiça, por despacho datado de 14-02-2022, por falta do pressuposto previsto no artigo 678.º, n.º 1, al. c), do CPC.

4. Os autos desceram ao Tribunal da Relação de Guimarães, onde por acórdão, datado de 07-04-2022, foi julgado improcedente o recurso, confirmando-se a sentença.

5. Novamente inconformado, o Autor interpôs recurso de revista excecional, formulando as seguintes conclusões:

«1.ª — O presente recurso vem interposto do douto acórdão que confirmou o despacho saneador sentença que julgara a acção proposta pelo ora Recorrente improcedente e absolveu o Réu do pedido.

2.ª — Está em causa nos presentes autos o direito do Autor a ser indemnizado pelos danos que lhe foram provocados pelo Réu por ter apresentado, numa acção de impugnação de despedimento que intentou contra aquele, um recibo falso de onde constava um valor de vencimento-base muito superior ao real, o que levou à condenação do Autor, na dita acção laboral, no pagamento de valores muito superiores aos que seriam devidos.

3.ª — Como resulta do enquadramento feito no capítulo I das alegações, desde que foi realizada uma perícia no recurso de revisão da sentença laboral, não existem dúvidas de que o aqui Réu apresentou, de facto, perante uma autoridade judicial, um documento falso, mas o certo é que o Autor tem vindo a ser confrontado com decisões formais e de denegação de justiça que não lhe reconhecem o seu direito, de que a decisão ora recorrida se afigura ser mais um exemplo.

4.ª — A Relação julgou improcedente a acção, confirmando a decisão da Primeira Instância, com fundamento na autoridade do caso julgado formado em resultado da decisão de indeferimento do recurso de revisão interposto na acção laboral que antecedeu a presente, pelo facto de naquele recurso não se ter julgado provado que era falso o recibo de vencimento apresentado pelo Réu com base no qual foi calculada a indemnização arbitrada a seu favor.

5.ª — Em primeiro lugar, e segundo autorizada doutrina, diferentemente do que acontece com a excepção do caso julgado, a autoridade de caso julgado não é de conhecimento oficioso. Ora, o Réu não invoca em momento algum da contestação a autoridade do caso julgado formado na acção laboral, pelo que não competia ao Tribunal a quo dela conhecer oficiosamente. Ao fazê-lo, conheceu de questão que não lhe era lícito conhecer, o que é causa de nulidade da decisão recorrida (artigo 615.º, n.º 1, al. d), in fine).

6.ª — Em segundo lugar, e mesmo que se entenda que o Tribunal a quo podia conhecer oficiosamente da questão da autoridade do caso julgado, a decisão recorrida não atentou no facto de a questão da falsidade do documento em causa não integrar a parte decisória da sentença proferida na acção laboral, e ter nela natureza meramente incidental.

7.ª — Com efeito, o recurso extraordinário de revisão foi interposto apenas e tão-só por a questão da falsidade do recibo não ter sido suscitada (por desconhecimento do Autor) na acção laboral. Ora, essa questão tomaria na acção laboral a natureza de um incidente de falsidade documental (arts. 446.º e segs. do C.P.C.).

8.ª — É pacífico que o caso julgado que se forma sobre questões incidentais é meramente formal, limitado nos seus efeitos ao processo no qual a decisão foi proferida (art. 91.º, n.º 2, do C.P.C.).

9.ª — A decisão proferida sobre a questão da falsidade só teria força de caso julgado fora do processo se alguma das partes tivesse requerido o julgamento com essa amplitude, o que não aconteceu.

10.ª — O facto de, por força das vicissitudes do processo em causa, a decisão sobre a questão da falsidade ter sido proferida no âmbito de um recurso de revisão não é, obviamente, apto a transformá-la naquilo que ela nunca foi, ou seja, não é capaz de a transmutar em decisão final da acção laboral nem sequer de a fazer incluir na fundamentação da mesma.

11.ª — Seria inconcebível, na verdade, que a decisão da questão da falsidade não tivesse força de caso julgado material se fosse proferida no momento processual “normal”, em sede de incidente de falsidade, e, porque só pôde ser suscitada em recurso de revisão, essa mesma decisão passasse a valer dentro e fora do processo como se de uma decisão sobre o mérito do litígio se tratasse!

12.ª — A decisão proferida sobre a questão incidental da falsidade do documento, sendo de improcedência deste por se julgar não provada essa falsidade, não integra a sentença final proferida na acção laboral nem sequer a sua fundamentação e não fica, por isso, abrangida pelo caso julgado material que sobre esta se formou naquela acção.

13.ª — Consequentemente, não é possível assentar a decisão recorrida na pretensa necessidade de respeitar a autoridade do (inexistente) caso julgado material formado sobre a decisão proferida no recurso de revisão relativamente à questão da falsidade documental.

14.ª — Por outro lado, e ainda que se pudesse ultrapassar o obstáculo decorrente da natureza meramente incidental do julgamento efectuado sobre a falsidade do recibo na acção laboral, sempre se teria de ter em conta que a decisão proferida sobre essa matéria no recurso de revisão somente teria contendido, na acção laboral, com a prova do facto nela alegado relativo ao montante do salário recebido pelo Réu em Fevereiro de 2006.

15.ª — Ora, é geralmente reconhecido que o efeito positivo do caso julgado não se estende aos fundamentos de facto da sentença.

16.ª — Acresce que, mesmo que se pudesse entender que o caso julgado pode em alguma situação abranger também os fundamentos de facto de uma decisão, não se vê como é que ele se poderá estender à factualidade não provada, como pretende o tribunal a quo ao extrair consequências, no plano da autoridade do caso julgado, de não se ter provado a falsidade do recibo no recurso de revisão.

17.ª — Ainda por outra via, deve ter-se em conta que a autoridade do caso julgado “consiste na vinculação de uma decisão posterior a uma decisão já transitada em razão de uma relação de prejudicialidade ou de concurso entre os respectivos objectos processuais” (RUI PINTO, “Exceção e autoridade do caso julgado, algumas notas provisórias”, cit., p. 25).

18.ª — Ora, se considerarmos aquilo que efectivamente foi a decisão proferida na acção laboral (pontos 6, 7 e 8 dos factos dados como provados na acção), verifica-se que não existe qualquer relação de prejudicialidade ou de concurso com o objecto da presente acção, em que se procura exercer o direito ao ressarcimento dos danos que causou ao Autor a conduta ilícita do Réu traduzida na utilização de um documento falsificado como meio de prova naquela outra acção.

19.ª — Acresce que a solução a que chegou o acórdão recorrido, para além de não ter suporte na lei processual, se afigura desconforme com o modo como a ordem jurídica concebe a relação entre a acção cível e a acção penal — tenha-se em vista que a presente acção, tendo natureza cível, foi proposta no âmbito de um processo penal, e que apenas dele se encontra autonomizada porque, à altura em que foi proposta, o inquérito criminal estava sem andamento há mais de um ano, tendo o Autor lançado mão da faculdade prevista no art. 72.º do Código de Processo Penal.

20.ª — A lei não prevê nenhuma eficácia preclusiva da decisão proferida na acção cível ou na acção laboral sobre o processo penal. E também não prevê nenhum valor extraprocessual dos factos apurados em processo civil que permita transportá-los para sede penal em termos de impedir aqui a livre investigação desses factos ou de outros que possam ter relevância para o processo penal.

21.ª — É no processo penal, atenta a sua específica natureza e finalidades, que deve ser apurada a verdade dos factos que possam relevar para efeitos do apuramento da eventual prática de um crime, e essa actividade não pode estar limitada pelo julgamento que haja sido feito em sede civil, para mais nos limitados termos em que a questão (incidental) da falsidade do documento foi apreciada no processo laboral.

22.ª — Foi para os estritos fins da acção laboral, e com os limites próprios de uma decisão incidental (art. 91.º, n.º 2, do C.P.C., que expressamente afasta a produção de um efeito de caso julgado material, fora do processo), que ali não se considerou falso o recibo apresentado pelo arguido. Ora, em face de uma pronúncia judicial limitada como a que se referiu, nenhuma razão haverá para o Juiz, no processo penal ou na acção cível proposta ao abrigo do art. 72.º do Código de Processo Penal, se julgar vinculado pela autoridade do caso julgado produzido na acção laboral relativamente à questão da falsidade do recibo e, com esse fundamento, se abster de julgar a mesma.

23.ª — O Tribunal de Primeira Instância, na sentença confirmada pela Relação, invocou também a autoridade do caso julgado relativamente àquilo que designou como “os pressupostos em que se fundamentou a decisão proferido naquele recurso de revisão, designadamente, aqueles que determinaram a conclusão contida no ponto 3.2.2, acima transcrita sob o n.º 16, de que “nem se verifica o nexo de causalidade legalmente exigido entre aquele alegado vício de falsidade e o teor da decisão (sentença) em crise””.

24.ª — A Relação, no acórdão recorrido, não aborda essa questão, porventura por a considerar prejudicada pela decisão proferida relativamente a considerar-se vinculada pelo decidido quanto à não falsidade do recibo de vencimento. Confiando o Recorrente em que o presente recurso merecerá provimento, afigura-se oportuno assinalar que também esta outra questão levantada pela Primeira Instância, também relacionada com a suposta relevância do decidido no recurso de revisão interposto na acção laboral, não impede que a presente acção prossiga.

25.ª — Na verdade, as considerações feitas na decisão da Primeira Instância sobre a pretensa falta de ligação causal entre a falsidade do recibo e a condenação do aqui Autor na acção laboral não tiveram em conta: (i) os factos dados como assentes no recurso de revisão, que atestam que a condenação do Autor foi feita com base no recibo de vencimento de Fevereiro de 2006; (ii) os próprios termos, meramente dubitativos, em que nessa sentença se suscitou a questão do que levou à consideração na sentença da acção laboral do vencimento base do trabalhador: se o valor de € 6.069 foi tido em conta no cálculo das indemnizações por constar do recibo e este não ter sido impugnado ou se foi por ter sido alegado pelo trabalhador sem oposição do Autor; (iii) o facto de o Juiz que julgou o recurso de revisão, que é o mesmo que proferiu a sentença na acção laboral, não ter indeferido liminarmente o recurso com o argumento de que não estaria em causa a falsidade de documento que pudesse ter determinado a decisão a rever, nos termos do artigo 696.º, al. b), do C.P.C.; (iv) os factos que devem considerar-se assentes nos autos, por confissão ou acordo das partes, alegados nos artigos º 7.º, 61.º, 62.º e 114.º da petição inicial, de onde resulta que o valor do vencimento-base invocado pelo Réu, como sendo de € 6.069,00, não foi impugnado pelo Autor porque constava do recibo que o mesmo juntou aos autos, e que foi com base nesse recibo que o Tribunal procedeu ao cálculo das indemnizações que atribuiu ao trabalhador.

26.ª — O douto acórdão recorrido violou, por errada interpretação e aplicação, as normas dos artigos 91.º, n.º 2, 574.º, n.º 2, e 607.º, n.º 4, (as quais deveriam ter sido aplicadas com o sentido de o Julgador na presente acção não estar vinculado pela pretensa autoridade de caso julgado resultante da decisão proferida no recurso de revisão interposto na acção laboral), todas do C.P.C.»

6. O réu apresentou contra-alegações, nas quais pugnou pela manutenção do decidido, formulando, para o que aqui releva, as seguintes conclusões:

«I .(…)

b) Da questão da autoridade do caso julgado

i. Quanto à falsidade do documento

XIII. É errado afirmar-se que o Recorrido tenha invocado a exceção de caso julgado na sua contestação: o Recorrido invocou, na sua contestação, o “caso julgado” que, por sua vez, tem uma dupla vertente: a exceção de caso julgado e a autoridade de caso julgado.

XIV. Se o Recorrente fez uma interpretação restritiva do que foi invocado pelo Recorrido, foi a interpretação que fez. E se escolheu pronunciar-se, em sede de resposta às exceções, sobre a exceção de caso julgado e não sobre a autoridade de caso julgado, foi a escolha que fez. Não pode é agora vir alegar que não existiu direito ao contraditório, porque efetivamente existiu!

XV. A exceção de caso julgado e a autoridade do caso julgado são efeitos de uma mesma realidade jurídica: a força do caso julgado, ditada por razões de certeza ou segurança jurídica e de prestígio dos tribunais; a instabilidade jurídica seria verdadeiramente intolerável se não pudesse sequer confiar-se nos direitos que uma sentença reconheceu.

XVI. Está em causa, em ambos os casos, a força e autoridade da decisão anteriormente proferida, transitada em julgado: a mera alteração do nomen iuris da excepção de «caso julgado» para «excepção dilatória inominada de autoridade de caso julgado» em nada beliscou as possibilidades de defesa e de contraditório da Autora".

XVII. Ainda que assim não fosse, neste caso concreto o douto Tribunal a quo não teria de ouvir as partes antes de declarar a autoridade de caso julgado, uma vez que a mesma é uma realidade conhecida para as partes e que essa mesma declaração não se poderia – como não se mostra - mostrar inesperada para as partes.

XVIII. A audição complementar das partes apenas se impõe quando um diferente tratamento jurídico seja efetuado em termos inesperados e inovatórios e quando "não fosse exigível que a parte interessada o houvesse perspetivado durante o processo, tomando oportunamente posição sobre ele".

XIX. “Assim, invocada a excepção de caso julgado, o tribunal não estava impedido de, sendo caso disso, decidir pela verificação da autoridade do caso julgado, figura que entronca na mesma razão de ser da que foi invocada e que não pode considerar-se estranha em relação a esta, representando uma solução perfeitamente plausível (ante a possibilidade de não se demonstrarem todos os requisitos da excepção) e que, por isso, não pode ter-se por inesperada para as autoras. Entende-se, por conseguinte, que essa pronúncia não pode qualificar-se como uma decisão-surpresa, não tendo sido violado o contraditório.”

XX. Por outro lado, constando do ponto 9 da matéria de facto dada como provada que “Após o trânsito em julgado do aludido acórdão, o aqui autor interpôs um recurso extraordinário de revisão (…), que correu termos no Juízo o Trabalho de..., J..., do Tribunal da Comarca de ..., sob o n.º 282/08.8..., por apenso à ação que ali correu termos sob o n.º 283/08.8..., com fundamento na falsidade da cópia do recibo relativo à sua remuneração no mês de fevereiro de 2006” o Tribunal a quo não pode ignorar que a questão da alegada falsidade do recibo de vencimento foi levantada por apenso ao processo principal, em sede de recurso extraordinário de revisão.

XXI. Não pode o Recorrente querer “o melhor de dois mundos”: se no âmbito do processo de trabalho achou legítimo intentar um recurso extraordinário de revisão com base na alegada falsidade do recibo, não pode, agora, e porque a decisão não lhe foi favorável, vir alegar que a mesma foi intentada de forma incidental e que não se pode confundir com o processo principal: o recurso tem como origem o processo principal e é parte integrante dele.

XXII. Refere, ainda, o Recorrente que o Tribunal da Relação invoca a causa prejudicial entre o recurso de revisão da ação laboral anterior e os presentes autos, mas que, a seu ver, inexiste qualquer causa prejudicial.

XXIII. A verdade é que tanto a ação laboral como os presentes autos – e, na verdade, todas as outras ações pendentes entre Recorrente e Recorrido - procedem do mesmo facto jurídico: o contrato de trabalho outrora existente entre as partes, pelo que existe, por isso, uma manifesta causa prejudicial - artigo 272.º do CPC.

ii. Quanto ao nexo de causalidade entre a falsidade e a condenação

XXIV. Os factos 7.º, 61.º, 62.º e 114.º da petição inicial constam dos factos 3.º a 6.º da matéria de facto dada como provada na douta sentença recorrida.

XXV. A alegação, em sede de recurso, de uma violação que fixa a força da prova por confissão não faz qualquer sentido, devendo ter-se tratado de um lapso».

7. O recurso não foi admitido pela Relatora no Tribunal da Relação.

8. O Autor reclamou para o Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do artigo 643.º do CPC. A Relatora, no Supremo Tribunal de Justiça, proferiu despacho a deferir parcialmente a reclamação e a remeter o processo à Formação prevista no artigo 671.º, n.º 3, do CPC.

9. O Autor reclamou para a Conferência, pugnando para que o recurso de revista fosse admitido como recurso de revista geral, por falta de dupla conformidade.

10. Por acórdão proferido em Conferência, o Supremo Tribunal de Justiça, indeferiu a reclamação e confirmou o despacho da Relatora a remeter o processo â Formação.

11. Na Formação, por acórdão datado de 22-02-2023, foi admitido o recurso de revista excecional, por se considerar estar «(…)em causa o prestígio dos tribunais e a certeza e segurança jurídica das decisões judiciai»s.

12. Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, as questões a decidir são as seguintes:

I - Nulidade por excesso de pronúncia da sentença, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d) in fine, do CPC

II – Autoridade de caso julgado da decisão proferida no recurso extraordinário de revisão (proc. n.º 283/08.8...)

Cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação

A – Os factos

Foram os seguintes os factos dados como provados:

1. Em 12.09.2008, o aqui réu intentou contra o Sporting Clube de Braga uma ação especial de impugnação emergente de despedimento coletivo, que correu termos no Juízo do Trabalho, J..., do Tribunal da Comarca de ..., sob o n.º 283/08.8...

2. Nessa ação laboral, o ora réu invocou a ilicitude do despedimento e alegou que detinha diversos créditos sobre o autor decorrentes de uma diminuição unilateral e ilícita da sua retribuição mensal, de trabalho suplementar alegadamente prestado em feriados e dias de descanso não gozados, de indemnização por violação do direito a férias não remunerado, e da cessação do contrato de trabalho.

3. Relativamente à alegada diminuição de retribuição, o ora réu alegou na ação que exercera as funções correspondentes à categoria de ... de Sala de Bingo, a partir do ano de 1991, e que, a partir de janeiro de 2005, passara a auferir a retribuição mensal ilíquida de € 6.069,00, acrescida da quantia de € 122,50 a título de diuturnidades e do montante de € 178,25 referente ao subsídio de alimentação, para o que juntou aos autos, como documento n.º 3, um documento que seria uma cópia do recibo relativo à sua remuneração no mês de fevereiro de 2006, e no qual constava efetivamente, como “vencimento” (base), o valor de € 6.069,00.

4. Na contestação que apresentou naquela ação, o aqui autor em momento algum pôs em causa as remunerações base mensais que o réu afirmou que auferira ao longo dos anos, desde 1996, nem o valor do vencimento base de fevereiro de 2006 que este indicara e que foi considerado no cálculo dos montantes de outros créditos, como os das indemnizações pela “redução salarial” e pelo despedimento.

5. Desse modo, o valor do vencimento base foi desde logo dado como assente no despacho saneador, tendo o despedimento sido nesse mesmo despacho declarado ilícito, por incumprimento das formalidades legais, prosseguindo o processo para conhecimento dos demais pedidos formulados.

6. Em 11 de março de 2015, foi proferida sentença que, julgando parcialmente procedente a ação, condenou o ora autor Sporting Clube de Braga no pagamento ao réu de diversos montantes, quer a título de “indemnização por despedimento ilícito”, “de retribuições intercalares”, “de reembolso das diferenças salariais”, quer os correspondentes a créditos devidos pela cessação do contrato de trabalho, como proporcionais de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal, pelos 8 meses de trabalho prestado em 2008, além de € 6.069,00 devidos a título de retribuição pelo trabalho prestado no mês de agosto de 2008, ainda em falta.

7. O pedido formulado pelo réu na ação laboral, no que respeita ao alegado trabalho suplementar não remunerado, foi julgado improcedente por o Tribunal não ter dado como provado que o aí autor tivesse trabalhado nos feriados mencionados, nos dois dias de descanso semanal e nos períodos de férias a que tinha direito, e ainda menos por ordem, a pedido e no interesse do Sporting Clube de Braga.

8. Após interposição de recurso pelo aqui autor, os montantes em que o mesmo foi condenado a pagar ao réu, por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que julgou parcialmente procedente a apelação, foram os seguintes:

- Indemnização por despedimento: € 185.745,00;

- Retribuições intercalares: € 346.724,00;

- Diferenças salariais: € 97.556,00;

- Proporcionais de férias: € 4.046,00;

- Proporcionais de subsídio de férias: € 4.046,00;

- Proporcionais de subsídio de Natal: € 4.046,00;

- Retribuição agosto 2008: € 6.069,00;

- Total líquido: € 648.232,00.

9. Após o trânsito em julgado do aludido acórdão, o aqui autor interpôs um recurso extraordinário de revisão, ao abrigo da al. b) do art. 696º CPC, que correu termos no Juízo do Trabalho de ..., J..., do Tribunal da Comarca de ..., sob o n.º 282/08.8... por apenso à ação que ali correu termos sob o n.º 283/08.8..., com fundamento na falsidade da cópia do recibo relativo à sua remuneração no mês de fevereiro de 2006.

10. Nesse recurso extraordinário, o aqui autor, alegou que quando, em outubro de 2008, foi citado para a ação, tendo de a contestar no prazo legal, não pôde consultar os documentos contabilísticos, em suporte físico ou digital, respeitantes à Sala de Bingo, nem, aliás, sentiu necessidade de o fazer, uma vez que a sua defesa se centrou na impugnação dos factos - respeitantes às invocadas redução unilateral do salário, falta de pagamento de trabalho suplementar e ilicitude de despedimento - que o ali autor alegou para fundamentar os seus crédito sobre o Sporting Clube de Braga e correspondentes pedidos.

11. E que, de resto, nem sequer cogitou que o vencimento base do aí recorrido, em fevereiro de 2006, não fosse o que constava do recibo que o mesmo juntou.

12. Nas alegações, o autor referiu as descobertas que havia entretanto feito, com base nas folhas de processamento “enegrecidas” que se encontravam nos dossiers, na análise dos dados existentes nas duas versões do programa de software “Primavera”, que encontrara no computador do réu, e nas diferenças que entre elas se podiam verificar, quanto aos Mapas e recibos, relativamente aos meses em que havia repetição de lançamentos, e ainda através da comparação entre os valores líquidos constantes dos recibos que existiam na versão 5 do Programa (nomeadamente do ano de 2005) e os extratos da sua conta bancária nesse ano.

13. Também salientou as incongruências dos recibos encontrados na base de dados, relativos aos dois primeiros meses de 2006, quer quanto ao montante aí inserido no cabeçalho como sendo o vencimento base do réu (€ 2.705,00), quer quanto ao valor do vencimento/hora deles constante, para além da diferença de valores entre o recibo de fevereiro de 2006 que aí se encontrava e o que fora junto pelo mesmo réu na ação laboral, como documento n.º 3.

14. Por decisão datada de 16 de abril de 2019, o Juízo do Trabalho de ... negou provimento ao recurso extraordinário, entendendo não ter ficado demonstrada a falsidade do recibo apresentado pelo réu, considerando, ter havido uma “total ausência de prova documental ou testemunhal” que comprovasse a factualidade alegada, e, quanto à perícia aí realizada, afirmou não a ter valorizado, escudando-se na afirmação dos peritos de que as cópias de segurança das bases de dados do programa Primavera onde eram processados os salários haviam sido facultadas pelo autor, e de que não fora possível aceder ao computador original do réu, para afirmar que estaríamos perante uma “incerteza” tal que impediria o Tribunal de fundamentar a sua convicção no relatório pericial.

15. Nessa decisão, ficaram demonstrados os seguintes factos:

- “h) A junção deste recibo – cópia do recibo referente ao mês de fevereiro de 2006 - foi feito na sequência dos factos alegados pelo autor nos artigos 30º e 31º da petição inicial, ou seja, que a partir de janeiro de 2005, o autor passou a “auferir a retribuição mensal ilíquida de € 6.069 (seis mil e sessenta e nove euros), acrescida da quantia de € 122,50 (…), a título de diuturnidades e do montante de € 178,25 (…), referente ao subsídio de alimentação – cfr. doc. N.º 3 que se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido.”.

i) O Recorrente não impugnou o documento em causa por não ter motivos para duvidar da sua genuinidade.

j) E, assim, os referidos factos foram dados por assentes pelo Tribunal, que os incluiu na alínea h) dos Factos Provados, sendo que todos os pedidos formulados pelo autor com base nesse valor (que seria, na tese do autor, o da sua retribuição, em fevereiro de 2006 – antes de uma alegada redução unilateral por parte do réu – e à data do despedimento – face à ilicitude da dita redução) foram julgados procedentes.”

16. Nessa decisão, foi consignado que:

“3.2.2. Ora, cremos que a factualidade dada por assente não é suficiente para se concluir que estão preenchidos todos os requisitos exigidos pela alínea b) do artigo 696º, do Código de Processo Civil, desde logo porque não está demonstrada a falsidade de documento, de ato judicial, ou de qualquer outro meio de prova em que se tivesse fundado a sentença a rever.

Com efeito, como já antes referimos, não resultaram provados os factos alegados pelo recorrente que fundamentavam as suas alegações, nomeadamente a de que o recorrido tivesse falsificado os dados constantes do seu recibo de vencimento referente ao mês de fevereiro de 2006.

De todo o modo, não se pode concluir, como faz o recorrente, que aquele documento foi determinante para a decisão em crise, tendo servido como meio probatório fundamental. Na verdade, é preciso recordar que os factos referentes à retribuição auferida pelo recorrido na vigência do seu contrato de trabalho foram logo dados por assentes aquando da prolação do despacho saneador – que, aliás, apreciou a ilicitude do despedimento - sendo certo que, nessa decisão apenas se diz que os factos assentes resultaram da confissão ou dos documentos juntos. Mas, é por demais evidente, que, se o recorrente não os impugnou, como admite, temos de concluir que os confessou. Por isso, em última instância, é tão legítimo concluir que o tribunal decidiu com base naquele documento, como fundando-se na confissão daquele facto, estivesse ele ou não documentado. Aliás, na altura, o réu nem sequer reclamou, quer dos factos assentes, quer da base instrutória, o que poderia ter feito.

Em suma, perante a factualidade assente, não se mostram preenchidos todos os pressupostos exigidos na alínea b) do artigo 696º, do C.P.C. Nem o documento referido é falso, nem se verifica o nexo de causalidade legalmente exigido entre aquele alegado vício de falsidade e o teor da decisão (sentença) em crise.”

17. O autor interpôs recurso da decisão que julgou improcedente o recurso de revisão.

18. Em 19.11.2019, o Tribunal da Relação de Guimarães proferiu acórdão que negou provimento ao recurso interposto, confirmando na íntegra a decisão recorrida.

19. O autor interpôs recurso da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães.

20. Em 08 de julho de 2020, o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento à revista, confirmando o acórdão recorrido.

21. O autor recorreu para o Tribunal Constitucional, o qual proferiu decisão sumária n.º 249/2021, datada de 06.04.2021, pela qual não tomou conhecimento do recurso interposto.

22. De tal decisão sumária, o autor reclamou para a conferência do Tribunal Constitucional, a qual decidiu indeferir a reclamação apresentada por decisão datada de 08 de junho de 2021.

B – O Direito

I - Da nulidade por excesso de pronúncia da sentença, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d) in fine, do CPC

1. Invoca o recorrente que o acórdão recorrido padece de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), in fine, do CPC, porquanto conheceu da autoridade do caso julgado sem que tal exceção, que não é de conhecimento oficioso, tivesse sido invocada na contestação pelo réu.

No caso, o acórdão da Relação reconheceu que a sentença padecia de nulidade por excesso de pronúncia, por violação do princípio do contraditório e, no exercício dos seus poderes de substituição, considerando já cumprido o contraditório nas alegações de apelação que se reportavam à autoridade do caso julgado, conheceu do objeto do recurso, nos seguintes termos:

«A sentença recorrida padece pois de nulidade por excesso de pronúncia, podendo este Tribunal supri-la ao abrigo do disposto no art. 665º, nº 1 do C. P. Civil.

No caso, o Recorrente, no seu recurso, já se pronunciou sobre a autoridade do caso julgado e o Réu, ao serem-lhe notificadas as alegações do recurso interposto pelo Autor, teve igual oportunidade, estando cumprido o contraditório relativamente a tal matéria, pelo que, atualmente, não há qualquer necessidade de fazer cumprir o preceituado nos arts. 3º, nº 3 ou no 665º, nº 3, ambos do C. P. Civil, estando, pois, o presente processo pronto para se conhecer do objeto da apelação, o que se irá fazer de seguida».

Na verdade, conforme se tem entendido na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, a violação do princípio do contraditório determina a existência de uma nulidade da decisão por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, e não uma nulidade processual, cfr., entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 09-02-2021, Revista n.º 119458/16.3YIPRT.P1.S1; de 13-04-2021, Revista n.º 2019/18.6T8FNC.L1.S1.

O tribunal recorrido atuou, e bem, de acordo com o princípio da substituição, nos termos do artigo 665.º do CPC, conhecendo do objeto do recurso e suprindo a nulidade da sentença.

O recorrente teve oportunidade, ao deparar-se com a sentença da 1.ª instância, que baseou a sua decisão na autoridade do caso julgado, de exercer convenientemente o contraditório quanto a esta exceção, o que efetivamente fez na alegação do recurso de apelação, pelo que o acórdão recorrido não padece de qualquer nulidade por excesso de pronúncia. O Tribunal da Relação na sua decisão teve em conta os argumentos invocados nas alegações de recurso e seria um ato inútil mandar baixar o processo ao tribunal de 1.ª instância para o autor aí exercer o contraditório e ser proferida nova decisão de 1.º grau.

Tendo a nulidade da sentença do tribunal de 1.ª instância, por excesso de pronúncia (em virtude de ter conhecido de questão não incluída na contestação do réu) sido suprida pelo Tribunal da Relação, que, após contraditório, conheceu da questão da autoridade do caso julgado, ficou ultrapassada a circunstância de na contestação não ter sido invocada a autoridade do caso julgado, mas apenas a exceção de caso julgado.

Improcede assim a conclusão 5.ª da alegação de recurso do autor.

II – Da autoridade de caso julgado da decisão proferida no processo extraordinário de revisão quanto à falsidade de documento (recibo de vencimento do ora réu)

2. Nos presentes autos está em causa um pedido de indemnização cível deduzido pelo Sporting Clube de Braga contra o réu, que exerceu funções de ... para o autor desde 1983 e foi abrangido por um processo de despedimento coletivo que veio a ser declarado ilícito pelo tribunal do trabalho.

Alega o autor que, no processo laboral de impugnação do despedimento, o réu apresentou um recibo de vencimento falso onde constava um valor de salário base muito superior ao real, assim incrementando o valor dos salários intercalares e outras indemnizações que o autor foi condenado a pagar ao agora réu (sobre a condenação no processo laboral e o valor das indemnizações, cfr. factos provados n.º 6 e 8).

O autor, Sporting Clube de Braga, não impugnou, no processo laboral, o recibo de vencimento, nem pôs em causa o seu valor, alegando não ter consultado os documentos contabilísticos por estar concentrado a preparar a sua defesa no processo de impugnação do despedimento (factos provados n.ºs 4, 10 e 11). Contudo, veio mais tarde a ter conhecimento da falsidade do recibo de fevereiro de 2006 e interpôs um recurso extraordinário de revisão, com base na alínea b) do artigo 696.º do CPC (facto provado n.º 9), ao qual foi negado provimento pela sentença datada de 16 de abril de 2019, que, desvalorizando o relatório pericial apresentado pelo Sporting Clube de Braga, entendeu não ter ficado demonstrada a falsidade do recibo apresentado pelo agora réu no processo laboral, considerando, ter havido uma “total ausência de prova documental ou testemunhal” que comprovasse a falsidade do documento (facto provado n.º 14).

No presente processo, o acórdão agora recorrido decidiu que a decisão, transitada em julgado, proferida no processo de revisão, que declarou não ser falso o documento, tem a força de autoridade de caso julgado e impõe-se nesta ação, e, em consequência, negou a pretensão aqui deduzida pelo autor, com o fundamento segundo o qual, «(…) no recurso de revisão acima mencionado apreciou-se e decidiu-se a questão da falsidade de um recibo de vencimento, questão essa que constitui causa de pedir nesta ação.

Tal como se refere na decisão recorrida “tendo aquele recurso de revisão concluído pela não verificação da falsidade do recibo em causa, tal questão não poderá voltar a ser apreciada e decidida, sob pena de ser violada a autoridade do caso julgado.”

O conteúdo daquela decisão e seus fundamentos projetam-se necessariamente neste processo, impedindo que neste se volte a discutir a falsidade do referido documento, pressuposto do pedido indemnizatório aqui formulado».

3. O recorrente imputa erros de direito ao acórdão recorrido, com base, em síntese, nos seguintes motivos, interligados numa argumentação em cadeia, segundo a qual se o primeiro argumento não for procedente, subsidiariamente, procederá o segundo: 1) À luz do artigo 91.º, n.º 2, do CPC, a questão da falsidade de documento decidida no recurso de revisão seria uma questão meramente incidental e como tal apenas poderia constituir caso julgado formal, mas sem autoridade de caso julgado fora do processo respetivo; 2) O processo de impugnação de documento regulado nos artigos 446.º e seguintes do CPC constitui um processo incidental em relação ao processo principal (o processo laboral), devendo o processo extraordinário de revisão em que se suscita a questão da falsidade do documento ser equiparado a um processo incidental de impugnação de documento inserido no processo laboral; 3) O dispositivo da decisão transitada em julgado no processo de revisão nada refere quanto à falsidade documento e o caso julgado não se estende aos factos provados e não provados, nem aos fundamentos da decisão; 4) Não se verifica qualquer relação de prejudicialidade entre a ação laboral e a ação de revisão (conclusões 17.º e 18.º); 5) O presente processo cível foi autonomizado, ao abrigo do artigo 72.º do CPP, de um inquérito criminal contra o agora réu por crimes de falsificação do documento e de burla, pelo que não pode a decisão proferida no processo de revisão ter força de caso julgado em relação ao processo crime e ao pedido de indemnização cível, dada a estreita ligação da ação civil à ação penal (conclusões 19.º a 22.º).

Vejamos:

4. Os incidentes são procedimentos anómalos, que exorbitam da tramitação normal do processo e têm, por isso, caráter eventual, visando a resolução de determinadas questões que, embora sempre de algum modo relacionadas com o objeto do processo, não fazem parte do encadeamento lógico necessário à resolução do pleito tal como ele é inicialmente desenhado pelas partes (cfr. Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, Almedina, Coimbra, 2018, p. 203)

São questões incidentais, para o efeito do n.º 2 do artigo 91.º do CPC, aquelas em que o juiz, para reconhecer um direito, tem de declarar existente outro direito, bem como os casos em que o juiz, para julgar procedente a pretensão dos demandantes, tem de se convencer da inexistência ou ineficácia de factos impeditivos, modificativos ou extintivos. A decisão incidental apenas produz efeitos no processo, a não ser que alguma das partes requeira a sua apreciação com maior amplitude, caso em que produzirá caso julgado material.

O caso julgado formal, nos termos do artigo 620.º, n.º 1, do CPC, restringe-se às sentenças e aos despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual e têm força obrigatória dentro do processo.

Nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-03-2019, Revista n.º 6659/08.3TBCSC.L1.S1, o artigo 91.º, n.º 2, do CPC veda (…) o efeito de caso julgado material autónomo das decisões sobre questões incidentais ou meios de defesa (…).

A questão da falsidade de documento, quando alegada e decidida como incidente do processo em que o documento foi invocado, é, em regra, tratada como uma questão incidental dos autos, que antecede a decisão e o seu trânsito, podendo ficar suspensa a ação principal, quando necessário (artigo 449.º, n.º 3, do CPC).

Ora, no caso sub judice não foi intentado um incidente de impugnação de documento, para que o juiz pudesse tomar a decisão no processo laboral. Nesta sede, percebe-se que a decisão a proferir naquele incidente produza apenas força de caso julgado no próprio processo, porque estritamente funcionalizada a permitir a prova de pressupostos de um direito invocado no processo principal.

Todavia, o que aqui esteve em causa não foi um mero incidente de falsidade de documento.

O recorrente intentou um processo judicial que correu por apenso ao processo laboral – “recurso extraordinário de revisão” – em momento posterior ao do trânsito em julgado da decisão proferida no processo laboral, onde devia ter sido deduzido o incidente de impugnação de documento. Este distinto contexto processual faz toda a diferença na análise da questão de saber se produz ou não autoridade de caso julgado a decisão proferida no recurso de revisão quanto à falsidade do documento. É que a questão da falsidade do documento não assumiu uma natureza meramente incidental, mas constituiu antes a questão principal e única do processo extraordinário de revisão, que não tem qualquer natureza incidental.

Acresce que a apreciação da falsidade de documento, para além de não ser incidental, não é meramente adjetiva ou processual, pois influi diretamente no mérito da decisão do processo laboral. Assim, também por este motivo, não pode ser considerada como um mero caso julgado formal.

É certo que se verifica dependência do processo de revisão, que corre por apenso, em relação ao processo laboral, mas esta interligação ocorre num duplo sentido: 1) se o recurso de revisão tivesse sido julgado procedente e o documento considerado falso, tal determinaria a abertura da fase rescisória do recurso de revisão com vista a nova apreciação das questões indemnizatórias discutidas no processo laboral; 2) já a improcedência do recurso de revisão tem por consequência que a decisão nele proferida, quanto à ausência de prova da falsidade do documento, determina que continue em vigor na ordem jurídica, nos seus precisos termos, a decisão condenatória, transitada em julgado, proferida no processo laboral, que não pode ser posta em causa por razões de segurança jurídica e por estar protegida pelo caso julgado material.

É esta a solução que decorre da natureza e objetivo do recurso extraordinário de revisão, processo que, permitindo a revogação de decisão transitada em julgado na hipótese de procedência, está estritamente ligado à proteção da segurança jurídica do caso julgado quando for improcedente.

Como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13-12-2017 (processo 2178/04.5...), «I - O recurso extraordinário de revisão previsto no art. 696.º do CPC, ao contrário do recurso ordinário – que se destina a evitar o trânsito em julgado de uma decisão –, visa uma decisão judicial (revidenda) já coberta pela autoridade do caso julgado – e a sua substituição por outra que venha a ser proferida, sem a verificação da anomalia que sustentou a impugnação – , pelo que, só é aparentemente admissível nas situações taxativamente indicadas e de tal modo graves que as exigências da justiça e da verdade sejam susceptíveis de ser clamorosamente abaladas, no conflito com a necessidade de segurança ou de certeza, se estas, com a inerente intangibilidade do caso julgado, prevalecessem. II - Assim, estamos face a um recurso ou mecanismo processual que não pode deixar de ser encarado como um “remédio” de aplicação extraordinária a uma comprovada ofensa ao primado da justiça, que, de tão gritante, consinta a cedência da certeza e da segurança conferidas pelo princípio do caso julgado».

Por força desta natureza específica e excecionalíssima do processo extraordinário de revisão, não pode deixar de ter a sua improcedência consequências na estabilidade da decisão judicial nele impugnada, reforçando a força de caso julgado da mesma. Este objetivo só é atingido se a decisão de improcedência proferida no processo de revisão tiver autoridade de caso julgado fora do respetivo processo, impedindo que a mesma questão volte a ser re-discutida noutro processo.

Improcedem assim as conclusões 6.ª a 13.ª da alegação de recurso do recorrente.

5. Defende ainda o recorrente que a decisão proferida no processo de revisão não tem autoridade de caso julgado para o presente processo, pois não é possível a extensão do caso julgado aos factos provados e não provados, nem aos fundamentos da decisão (conclusões 14.ª a 16.ª).

Com efeito, é entendimento dominante neste Supremo Tribunal de Justiça que o caso julgado apenas abarca o dispositivo da sentença, não sendo admissível a extensão do caso julgado à matéria de facto provada e não provada, nem aos fundamentos da decisão, que apenas podem ser utilizados para aferir do sentido e alcance do dispositivo que constitui caso julgado, mas, em si, não estão abrangidos pela força de caso julgado.

Neste sentido, de que a matéria de facto provada numa ação não tem valor de caso julgado se orientaram, entre outros, vários Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça: Acórdãos de 14-01-2021, Revista n.º 3935/18.0T8LRA.C1.S1, de 13-04-2021, Revista n.º 2395/11.1TBFAF.G2.S1, de 11-11-2021, Revista n.º 1360/20.2T8PNF.P1.S1).

6. Todavia, no presente caso, diferentemente do alegado pelo recorrente, foi respeitado este princípio.

Os factos considerados provados e não provados no processo de revisão e que foram considerados nos presentes autos apenas foram utilizados para enquadrar e interpretar o sentido do dispositivo do recurso de revisão.

A falsidade do documento, que não se considerou provada no recurso de revisão, foi o único objeto do processo de revisão, pelo que não pode deixar de se entender que o dispositivo que nega provimento ao processo de revisão se reporta a este dado factual, necessariamente protegido pela autoridade do caso julgado.

A falsidade do documento, na economia da sentença aqui transcrita na matéria de facto (Facto provado n.º 16), não é um mero facto não provado, pois o tribunal aprecia a prova e conclui expressamente que o documento não é falso, conforme decorre do seguinte excerto: «Em suma, perante a factualidade assente, não se mostram preenchidos todos os pressupostos exigidos na alínea b) do artigo 696º, do C.P.C. Nem o documento referido é falso, nem se verifica o nexo de causalidade legalmente exigido entre aquele alegado vício de falsidade e o teor da decisão (sentença) em crise».

Aplica-se, nesta sede, a orientação, segundo a qual, Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que o âmbito objetivo da autoridade do caso julgado se estende à apreciação das questões preliminares que constituam antecedente lógico necessário da parte dispositiva da decisão, cfr. entre outros os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 07-02-2019, Revista n.º 3263/14.0TBSTB.E1.S1); de 12-01-2021, Revista n.º 2030/11.8TBFLG-C.P1.S1; de 02-12-2020, Revista n.º 3077/15.0T8PBL.C1-A.S1; de 26-11-2020, Revista n.º 7597/15.9T8LRS.L1.S1.

Improcedem, portanto, as conclusões 14.ª a 16.ª da alegação de recurso.

6. Por último, impõe-se aferir da natureza jurídica do recurso de revisão (artigo 696.º e ss. do CPC), a fim de perceber qual a natureza da decisão que foi proferida naqueles autos e se lhe pode ou não ser conferida autoridade de caso julgado para o presente processo.

Perfilam-se diversas conceções doutrinárias sobre a natureza jurídica do recurso de revisão, que ora é concebido como uma ação, ora como um recurso, ou ainda como um tertium genus, que assumiria uma natureza mista de recurso e de ação.

Como afirma Amâncio Ferreira (in Manual de Recursos em Processo Civil, Almedina, 9.ª edição, pp. 342 e ss), que de forma simples e clara explica esta temática:

«Para os seguidores da primeira doutrina, a revisão apresenta-se como uma autêntica acção autónoma, que se inicia com um requerimento, com as características de uma verdadeira petição inicial, visando a inutilização de uma decisão transitada. Corresponderia à acção de anulação de caso julgado referida no art. 148.º do CPC de 1876.

Para os seguidores da segunda doutrina, a revisão configura-se como um verdadeiro recurso, alicerçado num requerimento de interposição sem outro fim que não seja o da impugnação da decisão transitada, por erros de julgamento que, uma vez constatados, determinariam a substituição da decisão em causa por outra deles liberta.

Para os seguidores da terceira doutrina, a revisão seria um misto de recurso e de acção, ou seja, um meio que partilha da estrutura de ambas as duas figuras processuais, por envolver um duplo julgamento: um primeiro com as características de recurso e o segundo com a contextura duma acção.

A questão é duvidosa e depende do conceito de que se parta acerca do que é um recurso e do que é uma acção autónoma.

Olhando ao nosso sistema legal, parece-nos, na esteira de Alberto dos Reis, de seguir a terceira doutrina.

Explicitemos melhor, nas pisadas deste Mestre.

Inicia-se o processo de revisão com um requerimento de interposição de recurso (art. 773.º), a que se segue o despacho de indeferimento ou de admissão do recurso (art. 774.º, n.ºs 1 e 2). Se o recurso for admitido, proceder-se-á à sua instrução, ou seguir-se-á a tramitação própria do processo sumário, para depois o tribunal se pronunciar sobre o provimento ou não provimento do recurso, consoante proceda ou não o motivo invocado (art. 775.º).

É a denominada fase rescidente que se apresenta com o aspecto de um recurso e à qual se aplicam as disposições gerais sobre os recursos, como as dos arts. 680.º, 682.º, 683.º, 684.º e 684.º-B, n.º 1.

Dado provimento ao recurso ou decidido que este deve ter seguimento, surge a fase rescisória. Então, o processo de revisão passa a revestir o aspecto de uma acção declarativa, com as fases da instrução, discussão e julgamento próprias de qualquer causa.

(…)

Se o tribunal decidir que o fundamento improcede, a sentença ou o acórdão, cuja revisão se pediu, ficam de pé e o recurso termina por não haver motivo para se fazer a revisão e, consequentemente, não ocorre um novo exame e um novo julgamento da causa. O caso julgado subsiste, não se proferindo um juízo rescidente».

7. Regressando ao caso, verifica-se que a causa de pedir da presente ação cível é idêntica à causa de pedir do processo de revisão – a falsidade do documento – o que tem como consequência, que, por razões de coerência e de unidade da ordem jurídica, a decisão proferida no processo de revisão tem força de caso julgado, em termos de prejudicialidade, na ação de responsabilidade civil.

No recurso de revisão o fundamento único foi a invocação da falsidade do recibo de vencimento do autor referente ao trabalhador aqui réu; na presente ação pretende-se apurar se o referido documento – o mesmo recibo de vencimento – é falso, como pressuposto do pedido indemnizatório dos presentes autos.

Assim, a causa de pedir em ambas as ações é idêntica. Ora, tendo-se decidido no processo de revisão pela improcedência do pedido da falsidade do documento fundamento, tal decisão constitui caso julgado no presente processo, em que se pede também a falsidade do citado documento enquanto pressuposto do dever de indemnizar.

A propósito da autoridade do caso julgado, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.11.2020, Revista n.º 214/17.4T8MNC.G1.S1, afirma que “Quanto à alegada ofensa da autoridade do caso julgado formado na segunda acção anterior invocada importa ter presente que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem admitindo – em linha com a doutrina tradicional – que a autoridade do caso julgado dispensa a verificação da tríplice identidade requerida para a procedência da exceção dilatória, sem dispensar, porém, a identidade subjectiva. Significando que tal dispensa se reporta apenas à identidade objectiva, a qual é substituída pela exigência de que exista uma relação de prejudicialidade entre o objecto da segunda acção e o objecto da primeira.”. Neste sentido se pronunciaram também os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 26-11-2020, Revista n.º 7597/15.9T8LRS.L1.S1, de 24-10-2019, Revista n.º 6906/11.4YYLSB-A.L1.S2, de 13-09-2018, Revista n.º 687/17.5T8PNF.S1, de 28-03-2019, Revista n.º 6659/08.3TBCSC.L1.S1, e de 30-04-2020, Revista n.º 257/17.8T8MNC.G1.S1, seguindo em termos doutrinários, as posições assumidas por Rui Pinto (“Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, Revista Julgar Online, novembro 2018, pp. 28 e ss..), Lebre de Freitas (“Um Polvo Chamado Autoridade de Caso Julgado”, pp. 700 e ss. e “A Extensão Subjetiva da Eficácia do Caso Julgado”, pp. 613), Miguel Teixeira de Sousa (Estudos sobre o novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, págs. 581 e ss..) e Ferreira de Almeida (Direito Processual Civil, Vol. II, 2.ª edição, 2020, Almedina, pp. 719 e ss).

Está assente na jurisprudência deste Supremo Tribunal que a autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em ação anterior, que se insere, quanto ao seu objeto, no objeto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, num segundo processo, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade prevista no artigo 581º do Código de Processo Civil.

Relativamente à autoridade do caso julgado exige-se, pois, que o caso decidido anteriormente seja prejudicial relativamente ao caso que vai ser julgado e bem assim que se mostre incluído, ainda que parcialmente, no objeto do processo que vai ser decidido.

Conforme bem se explica no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22-02-2018, Revista n.º 3747/13.8T2SNT.L1.S1, «(…) a autoridade do caso julgado implica o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação posterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa e abrange, para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado». – destaque nosso

No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11-10-2022, Revista n.º 2291/21.4T8FAR-A.S1, com relevo para o que aqui importa, afirma-se que «(…) Como tem sido reiterado pela jurisprudência deste Supremo Tribunal, a exceção dilatória de caso julgado (efeito negativo) pressupõe a identidade de sujeitos, de causas de pedir e de pedidos entre os processos em confronto - cfr., entre outros, os acórdãos de 22-02-2018 (Proc. n.º 18091/15.8T8LSB.L1.S1), de 18-02-2021 (Proc. n.º 3159/18.7T8STR.E1.S1) e de 23-02-2021 (Proc. n.º 2445/12.4TBPDL.L1.S1).

Por seu turno, “a autoridade de caso julgado formado por decisão proferida em processo anterior, cujo objecto se insere no objecto da segunda, obsta que a relação ou situação jurídica material definida pela primeira decisão possa ser contrariada pela segunda, com definição diversa da mesma relação ou situação, não se exigindo, neste caso, a coexistência da tríplice identidade mencionado no artigo 581º do Código de Processo Civil” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13-09-2018 (Proc. n.º 687/17.5T8PNF.S1).

Nas palavras de Lebre de Freitas e de Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, Almedina, 4.ª edição, Reimpressão, pp. 599-590), o efeito positivo do caso julgado conferido pela figura da autoridade “assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida (…) ou o fundamento da primeira decisão, excecionalmente abrangido pelo caso julgado (…) é também questão prejudicial na segunda ação”. – destaque nosso

Neste aresto, tal como no já citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11-11-2021, Revista n.º 1360/20.2T8PNF.P1.S1, afirmou-se a necessidade excecional de lançar mão dos fundamentos de facto para fixar o sentido da decisão, que vai ser considerada prejudicial em relação a outro processo e à qual vai ser atribuída a autoridade do caso julgado.

7. No caso, tendo já a decisão proferida no recurso de revisão, datada de 16-04-2019, negado provimento ao recurso, por entender não ter ficado demonstrada a falsidade do recibo apresentado pelo réu, o que foi confirmado pelo Tribunal da Relação e pelo Supremo Tribunal de Justiça – factos provados n.ºs 14, 18 e 20 – esta decisão impõe-se enquanto autoridade do caso julgado sobre os presentes autos, por se tratar de questão prejudicial já decidida e que influi na presente ação, na medida em que aqui se discute um direito de indemnização que tem como pressuposto a falsidade de documento já decidida, em sentido negativo, naquele recurso de revisão.

O recurso de revisão define-se por ser, como vimos, um misto entre recurso e ação, e apesar de ter ficado na fase rescidente, não tendo havido lugar à abertura da fase rescisória, a verdade é que naquele recurso de revisão foi decidido que o recibo de vencimento, que serve de causa de pedir aos presentes autos, não constitui um documento falso.

Assim, uma nova discussão sobre a falsidade desse documento noutro processo está vedada pela autoridade do caso julgado, impondo-se a decisão proferida no recurso extraordinário de revisão sobre o litígio dos presentes autos.

Verifica-se entre os dois processos uma relação de prejudicialidade, a que não se opõe a circunstância de à data da proposição da ação de responsabilidade civil, que o recorrente decidiu separar da ação penal ao abrigo do artigo 72.º do CPP, estar pendente contra o agora réu processo crime por falsificação de documento e por burla qualificada. O argumento, alegado pelo recorrente, de que a decisão proferida na ação cível ou laboral não tem eficácia preclusiva sobre o processo penal, onde vigora o princípio da liberdade de investigação, não tem por consequência que a ação cível, separada do processo penal, não possa ser afetada pela autoridade de caso julgado de uma decisão proferida no processo laboral, como qualquer outra ação cível, uma vez que perde a natureza penal a partir do momento em que é autonomizada do processo crime e sujeita-se às mesmas regras de todas as ações cíveis. Neste sentido, afirma Cristina Dá Mesquita (in «Prova na ação de responsabilidade civil fundada na prática de crime e factos provados na fundamentação da sentença penal», Revista Julgar On line, janeiro de 2018, p. 1, disponível para consulta in http://julgar.pt/prova-na-acao-de-responsabilidade-civil-fundada-na-pratica-de-crime-e-factos-provados-nafundamentacao-da-sentenca penal/) que «O direito processual penal não compreende qualquer norma que legitime específicos efeitos das sentenças penais nos julgamentos civis supervenientes, nem prevê condicionantes da marcha das ações de responsabilidade civil fundada na prática de um crime instaurada em separado do processo penal, a qual corre independentemente do processo penal e é exclusivamente regulada pelas leis civis (substantiva e adjetiva)».(…) «(…) o ordenamento tem subjacente a suscetibilidade de pendência simultânea de dois processos independentes fundados em factos constitutivos similares, um sobre a responsabilidade criminal e outro relativo à responsabilidade civil. Hipóteses em que a tramitação da ação civil é exclusivamente regulada pela lei processual civil, em sintonia com a sua independência. (Ibidem, p. 7) (…) «A decisão do tribunal penal sobre o crime não configura uma questão prejudicial da responsabilidade civil fundada na prática de um crime pois a resolução daquela não «constitui pressuposto necessário da decisão de mérito» do tribunal civil». (Ibidem, p. 8).

Improcedem assim todas as conclusões de recurso da alegação do recorrente Sporting Clube de Braga.

8. Anexa-se sumário elaborado nos termos do n.º 7 do artigo 663.º do CPC:

I – A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em ação anterior, que se insere, quanto ao seu objeto, no objeto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, num segundo processo, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade prevista no artigo 581º do Código de Processo Civil.

II – Tem força de autoridade de caso julgado a decisão proferida num processo extraordinário de revisão que não reconheceu a falsidade de um documento, que foi invocada no segundo processo como pressuposto de um direito de indemnização cível, em virtude de o objeto da primeira ação integrar parcialmente o objeto da segunda, constituindo assim questão prejudicial na segunda ação e um pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta seria proferida.

III - O Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que o âmbito objetivo da autoridade do caso julgado se estende à apreciação das questões preliminares que constituam antecedente lógico necessário da parte dispositiva da decisão.

IV – A ação de responsabilidade civil fundada na prática de um crime instaurada em separado do processo penal, ao abrigo do artigo 72.º do CPP, corre independentemente do processo penal e é exclusivamente regulada pelas leis civis (substantiva e adjetiva).

III – Decisão

Pelo exposto, decide-se na 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.


Lisboa, 4 de julho de 2023

Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Pedro de Lima Gonçalves (1.º Adjunto)

Maria João Vaz Tomé (2.º Adjunto)