Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
042851
Nº Convencional: JSTJ00016382
Relator: FERREIRA VIDIGAL
Descritores: FURTO
INTRODUÇÃO EM CASA ALHEIA
CRIME AUTÓNOMO
PENA RELATIVAMENTE INDETERMINADA
TOXICOMANIA
PUNIÇÃO
Nº do Documento: SJ199207010428513
Data do Acordão: 07/01/1992
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N419 ANO1992 PAG389
Tribunal Recurso: T J BRAGA
Processo no Tribunal Recurso: 7677/91
Data: 12/02/1991
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: DIR CRIM - TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: CPP87 ARTIGO 410 N2 ARTIGO 433.
DL 430/83 DE 1983/12/13.
CP82 ARTIGO 48 N1 ARTIGO 72 ARTIGO 77 ARTIGO 78 ARTIGO 83 ARTIGO 84 ARTIGO 86 N1 N3 ARTIGO 87 ARTIGO 88 ARTIGO 176.
CPC67 ARTIGO 370 N1 G.
Sumário : I - Os crimes de furto e de introdução em casa alheia são autónomos por violarem interesses juridicamente protegidos diferentes; quando a introdução em casa alheia é um antecedente necessário do furto, não consumindo a punição deste a daquele, a verdade é que o primeiro é apenas um meio para que o segundo se possa consumar.
II - Se um delinquente que abuse de estupefacientes praticar um crime a que se devesse aplicar concretamente prisão, será punido com uma pena relativamente indeterminada sempre que o crime tenha sido praticado para obter estupefacientes.
III - Pressuposto da aplicação do artigo 86 do Código Penal é uma toxicodependência por parte do agente, que está ainda a ser tratada, estando os crimes relacionados com a sua psicose.
IV - A execução da pena do artigo 86 deverá ser orientada no sentido de eliminar a toxicodependência do agente.
V - As normas penais visam vários fins entre os quais os de prevenção. Punir é prevenir os que se propõem delinquir, com o mal das sanções penais e a degradação social que elas acarretam, mas é também lançar uma cortina na defesa dos cidadãos e da sociedade contra os males dos crimes.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção de Jurisdição Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:
No Circulo Judicial de Braga e pelo respectivo Tribunal Colectivo, foi julgado A, nascido em 2 de Julho de 1959, com os demais sinais dos autos, mediante acusação do Ministério Público que lhe atribuia a autoria de um crime previsto e punido pelos artigos 296 e 297, ns. 1 e 2, alínea c), do Código Penal - diploma ao qual se devem ter como referidos todos os preceitos legais que vierem a ser citados, sem indicação de origem -; de outro da previsão do artigo 176 ns. 1 e 2 e, finalmente, de um terceiro contemplado no artigo 36, n. 1, alínea a), do Decreto-Lei n. 430/83, de 13/12, tudo em conjugação com o artigo 84.
No final, na procedência da acusação, o arguido, que foi havido como reincidente quanto aos dois primeiros ilícitos, foi condenado em 16 meses de prisão pelo furto, em outros 16 meses de prisão pela introdução em casa alheia e em 40 dias de prisão pelo consumo de estupefacientes.
Em cúmulo jurídico destas penas, obteve-se a pena única de 20 meses de prisão suspensa na sua execução pelo prazo de 3 anos, com a condição de o arguido se sujeitar por mais um ano e meio ao tratamento de desintoxicação do consumo de heroína a que está a ser submetido, sob a superintendência da Associação "Le Patriarche", e de não viver em Braga, se não em dias especiais.
Discordando desta decisão na área limitada das medidas das penas - parcelares e única - bem como da suspensão decretada, recorre o Ministério Público, por seu douto Agente, defendendo a agravação da punição do arguido e sujeição deste a uma pena indeterminada nos termos dos artigos 83 e 84 ou 86 e 88.
Em contramotivação, o arguido pronunciou-se pela manutenção do julgado.
Foram colhidos os vistos dos Exmos. Conselheiros Adjuntos.
Procedeu-se à audiência a que se reporta do artigo
435 do Código de Processo Penal. Cumpre decidir.
I
Em via de recurso, o Supremo Tribunal de Justiça apenas reexamina a matéria de direito, podendo, no entanto, conhecer de facto nos casos enunciados no artigo 410 n. 2 do Código de Processo Penal, como resulta do artigo 433 desta mesma lei processual.
Importa assim rememorar os factos dados como provados pela instância, com vista a determinar se os mesmos justificam a decisão (acórdão) proferida ou se são pertinentes as criticas que a esta faz o recorrente ou, mesmo, se ocorre algum dos vícios que consentem uma intromissão deste Tribunal em aspectos fácticos.
Vem dado como provado o seguinte :
1) No dia 3 de Fevereiro de 1991, pelas 20 horas, já de noite, momento que o arguido procurou para mais facilmente agir e assegurar não ser descoberto, após prévia decisão, introduziu-se na casa de habitação de B, id. a fls. 3, contra a vontade e sem autorização deste, subindo a uma escada das traseiras, partindo o vidro de uma porta das traseiras, causando um dano de 1030 escudos, por onde entrou.
2) No interior, da gaveta de uma mesa de cabeceira de um dos quartos, retirou e meteu ao bolso os objectos em ouro e prata referidos e examinados a fls. 82 e 83, no valor global de 99400 escudos, além de 500 escudos em dinheiro pertencentes ao ofendido, fazendo-o contra a vontade deste, bem sabendo não lhe pertencerem.
3) O arguido pretendia trazer consigo tais objectos para os vender ou empenhar a fim de conseguir para comprar heroína de que era dependente.
4) Alertados pelo barulho, vizinhos do ofendido chamaram a P.S.P. que deteve o arguido ainda dentro em sua posse que, recuperados, foram entregues a este.
5) Na revista efectuada, verificou-se que o arguido detinha no bolso um pó acastanhado com o peso de
343 mg, que, examinado laboratorialmente, se verificou ser heroína, produto integrado na tabela anexa ao Decreto-Lei 430/83, de 13 de Dezembro, bem conhecendo aquele as características do produto e ser proibido ter detenção, bem como o seu consumo, a cujo fim ele destinava o produto.
6) Como consta do seu certificado do Registo Criminal e das certidões de acórdãos contra ele proferidos, verifica-se que o arguido nos cinco anos que precederam os factos dos autos, cometeu mais quatro crimes dolosos por que veio a ser condenado em penas de prisão que cumpriu, não tendo tais condenações sido suficientes para o afastar do crime, revelando postura refractária aos valores penalmente protegidos por ele infringidos, nessa altura.
7) Após várias tentativas falhadas de desintoxicação pelo método psicológico e farmacológico, o arguido recaiu no consumo de heroína de que é dependente desde antes de 1984, situação que se verificava à data dos factos.
8) Nessa altura estava em crise de abstinência por pensar que se lhe acabava a heroína, sendo certo que, então, já estava numa fase em que sentia dores, muita ansiedade e suores, sendo, por isso, impelido a praticar actos que lhe proporcionassem dinheiro para comprar mais heroína.
9) Os tratamentos farmacológicos que exprimentou não deram resultado, por se traduzirem na ministração de uma droga por outra, actualmente o arguido está entregue à Associação Patriarche onde, com a ajuda, carinho e compreensão de ex-toxicodependentes, encontrou um novo caminho, passando já os primeiros
4 meses mais críticos e desenvolvendo já trabalho social fora da organização em manifestação de confiança nele e de auto-confiança, encontrou novamente gosto pela vida, tem vontade férrea de se livrar da toxicodependência e de dedicar parte da sua vida a levar a mensagem a outros para combate ao consumo de droga, podendo afirmar-se que, provalmente, sem droga o arguido não cometeria factos como o dos autos pois tem uma personalidade que, em tais circunstâncias, repudia esses actos, confessou os factos provados, encontrando-se muito arrependido e até envergonhado perante si e perante a família, bem como perante a sociedade, é de média condição social, frequentou até já a universidade, não tem profissão, vivendo da ajuda dos pais e da Associação Patriarche, onde se encontra após pedido dramático por ele formulado para se curar da dependência da heroína.
Não se pensa que o arguido mantenha actualmente tendência para a prática de crimes contra o património ou outros.
O Tribunal formulou a sua convicção com base nas declarações do arguido que descreveu em pormenor os factos, elucidou todo o seu drama e toda a sua força de viver e de se libertar do terrivel vício que o dominou, mostrando um quadro bem delineado e firme do trajecto e projecto de vida que pretende levar doravante, conforme com os padrões de vida em sociedade, respeitador das regras de conduta por esta impostas; as testemunhas ouvidas - o ofendido declarou em audiência que prescendia do prejuízo no vidro, solidário com o esforço de vida do arguido; os guardas ouvidos e o vizinho que deu alarme àqueles deposeram por forma a evidenciar que o arguido deixou um rasto bem visivel da sua actuação, não se comportando como o ladrão vulgar que preparou tudo para não ser descoberto; agindo sim à noite, mas a uma hora em que a maior parte da gente se encontra em casa baseou-se também o Tribunal, quanto aos antecedentes criminais, para além das declarações do ofendido, uma certidão de acórdãos juntos aos autos e um certificado do registo criminal; também se consideraram as informações de fls. 113, 114, 115, 116 a 118, carta de fls. 109 (confirmativa) das declarações do arguido da vontade de se tratar).
II
Não foi posta em causa a qualificação jurídica dos factos pelas disposições penais a que foram subsumidos, apenas se contestando, como já ficou referido, o seu sancionamento.
Também não vem atacada e, por isso mesmo, é de aceitar, por transitado em julgado, o segmento do acórdão em que se teve o arguido como reincidente.
Ora, surpreende, desde logo, que crimes de tão diversa gravidade, como o são os de furto e o do artigo 176, em relação ao qual não ocorre qualquer particular e especial circunstância agravativa, sejam punidos com a mesma pena que se fez corresponder ao furto, cuja sanção é muito mais grave e que é um delito que o certificado do registo criminal do arguido dá como mais repetido que o outro.
Tal surpresa é tanto maior quanto é certo que, como tem sido repetido e uniformemente decidido por este Supremo, embora tais delitos se afirmem autonomamente, por violarem interesses jurídicos distintos, quando a introdução em casa alheia é um antecedente necessário do furto, não consumindo a punição deste a daquele, a verdade é que o primeiro é apenas um meio para que o segundo se possa consumar.
Também atendendo à reincidência do arguido - que é uma plurireincidência - e a que aquele no espaço que medeia entre 6 de Junho de 1989 e 2 de Dezembro de 1991 - data do julgamento do presente processo, sofreu 5 condenações por furto e 2 por introdução em casa alheia, além de outras condenações por burla, falsificações e consumo de estupefacientes, tendo cometido os crimes de agora quando estava em liberdade de condicional, fica por explicar não só a benignidade das penas como a idêntica punição, que se mencionou, no quadro dos artigos 72 e 77, pese muito embora a sua toxicodependência a qual, no entanto, não suscitou qualquer dúvida quanto a uma possível inimputabilidade e tanto que nem sequer foi ele submetido a adequado exame psiquiátrico.
Toda a dialética produzida no acórdão recorrida no sentido de uma culpa diminuída assenta em meras ilações retiradas do "plerumque accidit" e nos pareceres de alguns peritos, considerados abstractamente, sem toda a ponderação que podia ter sido feita em concreto quanto à personalidade do arguido através do relatório social a que se referem os artigos 1, alínea g) e 370 do Código de Processo Civil.
Sobrevalorizou-se a personalidade do arguido e o seu inegável drama mas não se tomou na devida consideração a necessidade de defesa dos seus concidadãos e da sociedade que ele vem lesando e sobressaltando desde há vários anos.
Acreditou-se mesmo numa possível reinserção social do agente através da assistência que lhe está a ser prestada pelo "Le Patriarche" e teve-se como confirmativa das declarações dele quanto à sua vontade de se tratar a documentação de fls. 113,
114, 115, 116, e 118, que se reporta aos anos de 1988 e 1989, e a tratamentos e internamentos a que foi submetido com vista à sua desintoxicação e que falharam.
III
O Ministério Público defende também a aplicação de uma pena indeterminada ou por aplicação dos artigos
83 e 84 ou dos artigos 86 e 87.
Tem-se como manifesto que os preceitos a encarar serão os dois últimos, uma vez que é seu pressuposto a toxicodependência, como estando na génese da predisposição criminógena do agente, e o arguido
é dependente de heroína.
Com efeito:
Estatui o artigo 86 no seu n. 1 que "se um alcoólico habitual ou com tendência para abusar de bebidas alcoólicas praticar um crime a que deva aplicar-se concretamente prisão, será punido com uma pena relativamente indeterminada, sempre que o crime tenha sido praticado em estado de embriaguez ou esteja relacionado com o alcoolismo ou a tendência do agente.
Depois, o artigo 87 esclarece que "a execusão da pena prevista no artigo anterior deverá ser orientado no sentido de eliminar o alcoolismo do agente ou combater a sua tendência para abusar de bebidas alcoólicas".
Por fim, o artigo 88 alarga aos delinquentes que abusem de estupefacientes a disciplina daqueles dois preceitos.
Sendo assim, tem-se como apodictico que o arguido preenche todos os requisitos para ser sujeito a uma pena indeterminada. O próprio Colectivo que o julgou reconhece que a causa dos crimes que ele pratica não é uma acentuada inclinação sua para actos ilícitos mas a sua dependência da heroína.
Afirmar, como se faz o mesmo Colectivo, que o arguido, na altura, não revela acentuada inclinação para o crime é afirmação de pouco relevo não só porque não se está a aplicar o artigo 83 mas porque, tal como se exprime, o Tribunal está a admitir uma tal inclinação, ainda que não acentua.
Pressuposto da aplicação do artigo 86 é uma toxicodependência por parte do agente, que está ainda a ser tratada, e que os crimes estão relacionados com a sua psicose.
Acentue-se ainda que, apesar da declaração peremptória que se faz na matéria de facto, de que, ao fim de 4 meses de ser assistido no "Le Patriarche", o arguido, "...encontrou novamente o gosto pela vida, tem vontade férea de se livrar da toxicodependência, ect..." o Colectivo acaba por formular um juízo de dúvida quanto à tendência daquele para a prática de crimes contra o património.
Aliás, é muito ousada a convicção que se exterioriza sobre a quase recuperação do arguido ao fim de
4 meses de sujeição ao novo método de tratamento da toxicodependência, quando a experiência da vida nos revela como é difícil ultrapassá-la e como são frequentes as recídivas, mesmo nos casos mais esperançosos de erradicação do vício.
Não são 4 mese de submissão a uma terapia, cuja eficácia não é aceite por todos, que permite ter como excluido um vício que vem desde há 8 anos e para erradicação do qual têm falhado todas as tentativas de cura já ensaiadas.
IV
As normas penais visam vários fins entre os quais os de prevenção. Punir é prevenir os que se propõem delinquir com o mal das sanções penais e a degradação social que elas acarretam mas é também lançar uma cortina de defesa dos cidadãos e a sociedade contra os males dos crimes.
No caso "sub-judice", nem as penas se mostram bem doseadas nem a suspensão logra fundamento, quando se pensa que desta são pressupostos a personalidade do agente, as suas condições de vida, a sua conduta anterior e as circunstâncias do facto punível e que, face a tais circunstâncias, é lícito formular o juízo positivo de que a simples ameaça da pena irá afastar o delinquente da criminalidade e satisfazer as necessidades de reprovação e prevenção do crime - artigo 48 n. 1."
A pena indeterminada, que, repete-se, deve ser orientada no sentido de eliminar a tendência do agente para o consumo de estupefacientes, é a medida que se impõe face aos factos e ao Direito.
No quadro do artigo 72, por todos os motivos expostos, as penas parcelares passam a ser as seguintes:
1) 3 anos de prisão pelo crime de furto;
2) 20 meses de prisão pela introdução em casa alheia;
A pena correspondente ao crime de consumo de estupefacientes, que não foi contestada, mantém-se.
Efectuado o cúmulo jurídico destas penas, com ponderação dos parâmetros traçados no artigo 78, obtem-se a pena única de 4 anos e 6 meses de prisão.
Em função desta última pena, fixa-se em 2 anos e 6 meses de prisão como seu mínimo, e em 6 anos e 6 meses, como seu máximo, a pena indeterminada - artigo 86 n. 3 que o arguido terá de cumprir e que, como é de lei artigo 87 deverá ser executado e orientado no sentido de eliminar a sua tendência para toxicodependência.
Conclusão
Julga-se procedente o recurso e altera-se a decisão recorrida.
Não é devida tributação.
Lisboa, 1 de Julho de 1992.
Ferreira Vidigal,
Rosa Ferreira Dias,
Pinto Bastos,
Noel Pinto.