Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
048134
Nº Convencional: JSTJ00027993
Relator: VAZ DOS SANTOS
Descritores: ARGUIDO
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
ADMISSIBILIDADE
DIREITOS FUNDAMENTAIS
PROCESSO PENAL
GARANTIAS DE DEFESA DO ARGUIDO
Nº do Documento: SJ199507050481343
Data do Acordão: 07/05/1995
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N449 ANO1995 PAG206
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: JORNADAS DE DIR CRIM - O NOVO CPP - ALMEDINA 1989 PAG260.
Área Temática: DIR PROC PENAL - RECURSOS. DIR CONST - DIR FUND. DIR PROC CIV.
DIR CRIM - TEORIA GERAL / CRIM C/PATRIMÓNIO.
Legislação Nacional: CPP87 ARTIGO 86 N1 ARTIGO 89 ARTIGO 120 N2 D ARTIGO 123 ARTIGO 165 N1 ARTIGO 340 N1 ARTIGO 404 ARTIGO 410 N2 ARTIGO 412 N2 A.
CONST89 ARTIGO 32 N1.
CPC67 ARTIGO 523 N2.
CP82 ARTIGO 72 ARTIGO 296 ARTIGO 297 N1 N2 D.
CPP29.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1992/10/07 IN BMJ N420 PAG366.
Sumário : I - O arguido pode juntar documentos com a contestação, ainda que já o pudesse ter feito durante o inquérito.
II - Isto, porque no processo penal vigoram os princípios de que devem ser asseguradas ao arguido todas as garantias de defesa, porque ele tem basicamente uma estrutura acusatória, dominada pelo primado da investigação e porque apenas depois da notificação da acusação ele ficou em condições de organizar a sua defesa.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. Na 1. Vara Criminal do Porto, foi recebida a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido A, com os sinais dos autos, como autor de um crime de furto qualificado previsto e punido pelos artigos 296 e 297, n. 2, alínea d) do Código Penal (diploma a que pertencerão os demais preceitos a citar sem menção de origem).
Oportunamente o arguido contestou tendo juntado 3 documentos.
Por despacho da folha 1180, o Meritíssimo Juiz não admitiu a junção de tais documentos por a considerar extemporânea já que entende, fundando-se no disposto no artigo 165, n. 1, do Código de Processo Penal (C.P.P.), que deviam ser juntos na fase do inquérito.
Tendo-se procedido a julgamento, o arguido foi condenado como autor daquele crime na pena de 16 meses de prisão, declarada suspensa na sua execução pelo período de 2 anos, e ainda em taxa de justiça e custas.
Inconformado, o arguido interpôs recursos daquele despacho e do acórdão condenatório, tendo o primeiro sido admitido para subir com o que viesse a ser interposto da decisão final, tendo formulado nas respectivas motivações as seguintes conclusões:

Recurso do despacho de fls. 1180.
1. O arguido não é obrigado a juntar documentos que interessem à sua defesa na fase do inquérito;
2. Vem a requerer a instrução só para poder juntar aos autos os documentos que interessem à sua defesa;
3. Com ou sem instrução, o arguido não está impedido de organizar toda a sua defesa na contestação e de juntar, com ela, todos os elementos que tiver por bem para prova dos factos alegados, em especial os que tenham por fim excluir ou atenuar a sua culpa.
4. Ao decidir o contrário e ao não admitir os documentos juntos com a contestação, o douto despacho recorrido violou os princípios legais e processuais que ficam citados, em especial os decorrentes das disposições legais e constitucionais atrás referidas.
Termos em que, a manter-se o douto despacho recorrido, deve revogar-se o mesmo, ordenando-se a sua substituição por outro em que se admitam os documentos juntos com a contestação.
Recurso do acórdão condenatório:
1. Vem dado como provado que o arguido é um toxicodependente e que praticou o crime por que foi julgado numa altura em que sofria por falta de heroína e com o propósito de arranjar dinheiro para a compra desse produto.
2. Achava-se, pois, o arguido limitado na sua vontade e condicionado na sua liberdade de querer e de agir por um quadro clínico típico da toxicodependência que conduz à destruição da personalidade física e moral do doente.
3. Deve, pois, considerar-se mitigado o dolo com que o arguido agiu ou fortemente condicionantes da livre disposição dos seus actos as suas referidas condições pessoais de toxicodependente.
4. Por outro lado, são modestas as consequências sócio-económicas do furto e danos praticados pelo arguido.
5. Estas circunstâncias não foram, ao que se nos afigura, devidamente ponderadas no douto acórdão recorrido, e deviam tê-lo sido, ex vi do disposto no artigo 72, ns. 1 e 2, alíneas a), b) e d) do Código Penal.
6. E em razão das quais e das demais que foram dadas como provadas, a pena aplicada deverá ser reduzida para não mais de 4 meses de prisão, mantendo-se a sua suspensão.
7. Não o tendo feito, o douto acórdão recorrido violou as referidas disposições legais, termos em que deve dar-se provimento ao recurso em conformidade com as conclusões que antecedem.
O Ministério Público respondeu a ambos os recursos.
Quanto ao 1. pronunciou-se pela sua rejeição, porque, versando matéria de direito não foram indicadas nas conclusões as normas jurídicas violadas (artigos 412, n. 2, alínea a) e 420, n. 1 do Código de Processo Penal); quanto ao segundo, entende dever confirmar-se o acórdão recorrido.
Neste Supremo, o Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público no visto que teve dos autos pronunciou-se pelo seu prosseguimento para julgamento.
Colhidos os vistos, teve lugar a audiência, a que se procedeu com o devido formalismo.
Cumpre decidir.

2. São os seguintes os factos dados como provados no acórdão recorrido, que temos por definitivamente fixados por não ocorrer qualquer dos vícios enunciados no n. 2 do artigo 410 do Código de Processo Penal (C.P.P.):
a) No dia 11 de Maio de 1994, pelas 17 horas e 30 minutos, na rua Matias de Albuquerque, no Porto, o arguido subiu até à janela do 1. andar da casa de residência de B, partiu o respectivo vidro, causando estragos com o valor de 7500 escudos; pela abertura assim originada, entrou nessa casa, de onde tirou, com intenção de apropriação, sabendo que não lhe pertenciam e que actuava contra a vontade do dono, 1 aliança valendo 35000 escudos e a importância de 2500 escudos.
b) O arguido agiu livre e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
c) O arguido confessou espontaneamente os factos; está profundamente arrependido; foi bem comportado até há acerca de 4 anos; fez a 4. classe e, pelos 14-15 anos, começou a trabalhar num armazém de fiação e tecelagem, emprego que abandonou 2 ou 3 (?) depois, para se dedicar exclusivamente à profissão de futebolista; desde fins de 1991 é toxicodependente de heroína, tendo iniciado vários tratamentos com vista a superar essa dependência, nomeadamente na Remar, em Montemor-o-Novo, no Patriarche, em Chartres - França, no Hospital Magalhães Lemos, no Porto e na Casa da Saúde Portuense, nesta cidade, tratamentos esses que sempre abandonou antes do fim.
Praticou os factos numa altura em que sofria pela falta de heroína e com o propósito de arranjar dinheiro para comprar tal produto; não tendo consumido heroína desde que se encontra preso, pensa que se encontra recuperado da toxicodependência; tem 1 filho da mulher com quem pretende vir a casar; não tem quaisquer rendimentos; nasceu em 19 de Julho de 1969; foi condenado, em pena de multa por condução sem carta, em 22 de Novembro de 1991.
E deu como não provado que:
o arguido tivesse tirado da casa da alínea a) mais dinheiro do que o ali mencionado.

3. Comecemos por apreciar o recurso de despacho de folha 1180.
a) Contrariamente ao que pretende o Magistrado do Ministério Público na 1. instância, que é a rejeição do recurso com base em que, versando matéria de direito, não se indicam nas conclusões as normas jurídicas violadas, com inobservância, portanto, do artigo 412, n. 2, alínea a) do Código de Processo Penal, entendemos não ser caso de rejeição.
É que o recorrente, ao longo da motivação, indica várias normas jurídicas que teriam sido violadas, e, nas conclusões, afirma expressamente que o despacho recorrido "violou os princípios legais e processuais que ficam citados, em especial os decorrentes das disposições legais e constitucionais atrás referidas".
Afigura-se-nos que esta forma de concluir cumpre, no mínimo, a prescrição legal que impõe deverem as conclusões indicar as normas jurídicas violadas. Só uma visão demasiado formalista e exigente poderia conduzir, in casu, à rejeição do recurso.
b) Com a contestação, o arguido juntou 3 documentos conducentes a provar factos alegados nessa peça processual.
O despacho recorrido não admitiu, por extemporâneas, a junção de tais documentos, por entender que se reportam a factos ocorridos antes do encerramento do inquérito, no decurso do qual, portanto, deviam ser juntos, conforme o preceituado no n. 1 do artigo 165 do Código de Processo Penal.
Dispõe este normativo: "O documento deve ser junto no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, deve sê-lo até ao encerramento da audiência".
Contrariamente ao que se passava no domínio do Código de Processo Penal de 1929, em que os documentos podiam ser juntos até dez dias antes da audiência de julgamento nos processos de querela e até três dias antes nas outras formas de processos (artigo 404), estabeleceu-se agora a regra de que, em princípio, os documentos têm de ser juntos no decurso do inquérito ou da instrução. Não sendo tal possível, poderão ser juntos até ao encerramento da audiência.
O legislador terá querido estabelecer, a esse respeito, uma certa disciplina processual, por forma a habilitar a entidade que dirige o inquérito ou preside à instrução com todos os elementos de prova para decidir sobre o destino do processo. Daí, a regra prescrita quanto à oportunidade de junção dos documentos.
Não se pode, porém, olvidar, neste domínio, o princípio constitucional de que o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa (artigo 32, n. 1 da Constituição da República Portuguesa), e que tal processo, basicamente de estrutura acusatória, é integrado pelo princípio da investigação, em que o tribunal pode ordenar, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa (artigo 340, n. 1 do Código de Processo Penal).
O inquérito tem cariz secreto (artigo 86, n. 1 do Código de Processo Penal); antes da acusação, o arguido só tem acesso ao mesmo nos apertados limites definidos no artigo 89 desse Código.
Apenas com a acusação, o arguido passará a saber rigorosamente dos factos que o acusam e qual o crime que lhe é imputado. Portanto, só a partir daí ficará habilitado plenamente a organizar a sua defesa, alegando os factos que tiver por convenientes, que, obviamente, procurará demonstrar com os meios de prova que tiver ao seu alcance, nomeadamente documentos, sendo indiferente que já anteriormente os possuísse ou que só supervenientemente tivesse acesso aos mesmos. Em qualquer dos casos, poder-se-à dizer que só então surgiu a oportunidade processual para a sua junção.
Seguramente não foi intenção do legislador, ao prescrever que o documento deve ser junto no decurso do inquérito, forçar o arguido a organizar antecipadamente a sua defesa e a juntar nessa fase toda a documentação que possuir, ainda que se lhe revele desnecessária, mas cuja junção ele, à cautela, vem requerer para evitar eventual preclusão.
Se não fosse permitido ao arguido a junção de documentos oferecidos com a sua contestação para prova de facto neles articulados bem se poderia dizer que afinal o processo criminal não asseguraria todas as garantias de defesa.
Aliás, face ao princípio da investigação ou verdade material que inspira o processo penal, o juiz, no caso da apresentação tardia e injustificada do documento, sempre o deverá admitir se o considerar de interesse para a decisão da causa. A este respeito, Marques Ferreira sustenta a aplicação subsidiária do disposto no n. 2 do artigo 523 do Código de Processo Civil, defendendo que o tribunal deve admitir a junção tardia injustificada do documento, se o não tiver por desinteressante à decisão da causa, mediante a condenação do apresentante numa soma em UCs (Jornadas de Direito Criminal, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1989, página 260).
O indeferimento da junção de documento apresentado nos termos e para o efeito referidos poderá constituir nulidade se configurar omissão de diligência essencial para a descoberta da verdade (artigo 120, n. 2 alínea d) do Código de Processo Penal); de contrário, não passará de mera irregularidade sujeita à disciplina do artigo 123 desse diploma (cf. acórdão deste Supremo Tribunal, de 7 de Outubro de 1992, Boletim do Ministério da Justiça, n. 420 páginas 366 e seguintes).
No caso sub judice, os documentos em questão respeitam à actividade profissional do arguido e ao facto de este, por ser toxicodependente, ter tido vários internamentos; tendo os mesmos interesse para a causa não podem, porém, considerar-se essenciais para a descoberta da verdade. Aliás, os factos que com eles se pretendia demonstrar acabaram por ser considerados provados pelo acórdão recorrido.
De tudo resulta que o indeferimento da sua junção constitui mera irregularidade que, não afectando qualquer termo posterior do processo, se tem por sanada.
4. Recurso do acórdão condenatório.
O recorrente não discute o enquadramento jurídico-criminal dos factos. Pretende tão só que a pena inflingida seja reduzida para não mais de 4 meses de prisão, mantendo-se a sua suspensão, com o fundamento de que era um toxicodependente e que praticou o crime numa altura em que sofria por falta de heroína e com o propósito de arranjar dinheiro para a compra desse produto, pelo que se achava limitado na sua vontade e condicionado na sua liberdade de querer e de agir, devendo pois considerar-se mitigado o dolo; além disso são modestas as consequências sócio-económicas do furto e danos praticados.
Não lhe assiste razão.
Os factos provados integram sem dúvida o crime previsto e punido pelos artigos 296, 297, ns. 1 e 2, alínea d), a que corresponde pena de prisão de 1 a 10 anos.
O arguido foi condenado em 16 meses de prisão, portanto ligeiramente acima do mínimo abstracto, cuja execução foi declarada suspensa na sua execução por dois anos.
Trata-se de uma pena perfeitamente proporcional e adequada em que o Colectivo teve presentes os parâmetros definidos no artigo 72 e atendeu a todas as circunstâncias susceptíveis de diploma a favor do agente ou contra ele, nomeadamente o grau de ilicitude do facto, o modo de execução, a gravidade das suas consequências, o dolo, os motivos determinantes, as condições pessoais e familiares do arguido, a sua confissão e arrependimento.
É certo que o arguido era toxicodependente e que agiu numa altura em que sofria pela falta de heroína. Procedeu no entanto, conscientemente, e admitindo, embora, que a toxicodependência condicione a liberdade de querer e de agir, tal não deixará, porém, de constituir uma circunstância agravante enquanto o agente revela grave falta de preparação para manter um comportamento licito, conforme aos padrões de uma vida normal em sociedade.

5. De harmonia com o exposto, acordam em dar provimento ao recurso interposto a folha 125, revogando-se o despacho de folha 1180; considerando-se, porém, sanada a irregularidade cometida; e em negar provimento ao recurso do acórdão condenatório que se mantém integralmente.
O recorrente vai condenado em 4 UCs de taxa de justiça e nas custas, com procuradoria mínima, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
Emolumento de 7500 escudos a favor do Excelentíssimo Defensor Oficioso.
Lisboa, 5 de Julho de 1995
Vaz dos Santos
Costa Figueirinhas
Pedro Marçal
Silva Reis
Decisão impugnada: da 1. Vara Criminal do Porto.