Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
Relator: | ANTÓNIO GAMA | ||
Descritores: | RECURSO PENAL ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS AMEAÇA MEDIDA CONCRETA DA PENA PENA DE PRISÃO IMPROCEDÊNCIA | ||
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Data do Acordão: | 11/24/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO. | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO. | ||
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Sumário : |
I – A aplicação de penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo em caso algum a pena aplicada ultrapassar a medida da culpa. II – A finalidade primária da pena é a de tutela de bens jurídicos vulnerados no caso, com um sentido de restabelecimento da paz jurídica posta em crise pelo ilícito, finalidade que se identifica com a ideia da prevenção geral positiva ou prevenção de integração e que dá por sua vez conteúdo ao princípio da necessidade da pena que o artigo 18.º, nº 2, da CRP consagra de forma paradigmática e, na medida possível, a reinserção do agente na comunidade. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Processo n.º 1541/209JAPRT.P1.S1
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:
I 1. No Juízo Central Criminal ... foi decidido condenar o arguido AA, nos seguintes termos (transcrição): «a) 12 crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada, ps. e ps. pelos arts. 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal, na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão por cada um; b) 291 crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada, ps. e ps. pelos arts. 171.º, n.º 2 e 177.º, nº 1, al. a), do Cód. Penal, na pena de 5 anos e 4 meses por cada um; c) 58 crimes de abuso sexual de menores dependentes, na forma consumada, ps. e ps. pelos arts. 172.º, n.º 2 e 171.º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Penal - atualmente por força da redação introduzida pela Lei n.º 40/2020, de 18 de agosto ps. e ps. no art. 172º, nº 1, als. a) e b) - na pena de 1 ano e 8 meses por cada um; d) 1 crime de ameaça agravada, na forma consumada, previsto e punido pelos arts. 153.º e 155.º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal, na pena de 8 meses de prisão; 2. em cúmulo jurídico dessas penas parcelares, na pena única de 12 (doze) anos de prisão. 3) na pena acessória de inibição do exercício das responsabilidades parentais, prevista no art.º 69.º - C, n.º 3, do Código Penal, relativamente à menor sua filha BB, até à data em que esta atingir a maioridade civil; 4) na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, prevista no art.º 69.º-B, do C. Penal, pelo período de 10 anos; Mais foi o arguido AA condenado a pagar à ofendida BB a quantia de € 40.000,00 (quarenta mil euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais por esta sofridos».
2. Inconformado recorreu o arguido para o TRP que manteve integralmente a decisão recorrida.
3. Ainda inconformado recorre o arguido, apresentando as seguintes conclusões (transcrição): 1.º O presente recurso tem por objeto a reapreciação da matéria de direito. 2.º É convicção do Recorrente que a pena aplicada revela-se pouco criteriosa e desequilibradamente doseada, não tendo sido aplicada as disposições relativas a dissimetria da pena na sua plenitude. 3.º Desta forma, é notório que o Tribunal violou grosseiramente todo o comando normativo dos Artigos 40.º, N.º 2, 71.º, N.º 1 e 2, 72.º, N.º 1, al. d), 73.º do Código Penal bem como o Artigo 30.º e 32.º, N.º 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa. 4.º A pena é o reflexo da junção da concreta medida da culpa e das atuais exigências de prevenção; e na sua (boa) determinação, o julgador atende a todas circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, por que relacionadas com a pessoa e carácter do agente, deponham contra ou a seu favor. E aqui, particularmente, as condições pessoais (morais e sociais) dos agentes, a sua situação económica, e a sua conduta anterior e posterior ao crime. 5.º Condená-lo na pena de 12 (Doze) anos de prisão, seria condicionar totalmente o seu futuro! 6.º Nestes termos, e como se encontra adquirido pela doutrina e jurisprudência e insistentemente se repete, na determinação da medida concreta da pena o Tribunal deve atender, em primeira linha, à culpa do agente, que constitui o limite superior e inultrapassável da pena a aplicar, sob pena de, ultrapassando-o, se afrontar a dignidade humana do delinquente. 7.º A dignidade da pessoa humana impede que a pena ultrapasse a culpa, pelo que tal limite encontra consagração no Artigo 40.º do Código Penal. 8.º Por mais repugnante que seja o crime, por mais dramáticas que sejam os seus efeitos, por maiores que sejam as necessidades de prevenção, nunca pode ser infligida ao Arguido uma pena que vá para além dos limites impostos pela medida da sua culpa. 9.º Nesta aceção, “a culpa é o juízo de censura ético-jurídica dirigida ao agente por ter atuado de determinada forma, quando podia e devia ter agido de modo diverso” (Eduardo Correia, Direito Criminal, Coimbra, Reimpressão, 1993 Vol. I, Pág. 316). A culpa afere-se pelas circunstâncias de facto que rodearam a conduta do Arguido. 10.º Por seu turno, o limite mínimo da moldura concreta há-de ser dado pela necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e pretende corresponder a exigências de prevenção positiva ou de integração. 11.º Assim, esse limite inferior decorrerá de considerações ligadas às exigências de prevenção geral, não como prevenção negativa ou de intimidação, mas antes como prevenção positiva ou de integração, já que a aplicação de uma pena visa a proteção de bens jurídicos com um significado prospetivo que se traduz na tutela das expectações da comunidade na manutenção da validade e permanência das normas infringidas. Estão em causa a inclusão e reforço da consciência jurídica comunitária e o seu sentimento de segurança face às ocorridas violações das normas. 12.º Desta forma, o Tribunal dispõe dos módulos de vinculação na escolha da medida da pena constantes do Artigo 71.º do Código Penal, consignando os critérios suscetíveis de “contribuir tanto para determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento) ao mesmo tempo que transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente. Observados estes critérios de dosimetria concreta da pena, há uma margem de atuação do julgador dificilmente sindicável, se não mesmo impossível de sindicar” - in Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-04-2008, Rel. Souto Moura, cit. por Martins, A. Lourenço, Medida da Pena, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, pp 242). 13.º Como é evidente, os fatores concretos de medida da pena, expostos de forma exemplificativa no Artigo 71.º N.º 2 do Código Penal compreendem contextos que, não fazendo parte do tipo de crime, se relacionam com a execução do facto, a personalidade do agente e, por último, os elementos relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto. 14.º Considerando todos estes fatores, julgamos evidente que a pena determinada pelo Tribunal como sanção da prática do crime em causa, não é, como deveria, um reflexo sério e justo da culpa do agente e das reais e atuais necessidades de prevenção (geral e especial) que a situação reclama. 15.º A pena única resultante do cúmulo jurídico deverá, consequentemente ser reformada e reduzida. 16.º Atendendo à violação dos Artigos 40.º, N.º 2, 71.º, N.º 1 e 2, 72.º, N.º 1, al. d), 73.º do Código Penal, bem como o Artigo 30.º e 32.º, N.º 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa. Termos em que deverão V/Exias, dar provimento ao presente recurso, devendo ser revogada a decisão recorrida, sendo o Arguido condenado a pena não superior a 9 (Nove) anos de prisão.
4. O Ministério Público respondeu sustentando (transcrição parcial): «[O recorrente] continua a não fundamentar validamente a sua pretensão de ver reduzida a pena única, nomeadamente através da atenuação especial nos termos do art. 72º do CP, cujos requisitos obviamente o Recorrente não preenche, pelo que não vemos razões válidas para dissentir da decisão desta Relação em manter a pena única imposta na 1ª instância e que também deverá ser confirmada. Permita-se-nos acrescentar que, não vindo impugnada a subsunção dos factos ao direito, nomeadamente a incriminação pela prática em concurso efectivo de centenas de crimes, nem as penas parcelares cominadas por cada um deles (a pena parcelar mais elevada, a constituir o limite mínimo da pena única – art. 77º nº 2 do CP, é de 5 anos e 4 meses de prisão), a pena única seria assim fixada em medida fixada entre esse limite mínimo e o máximo de 25 anos (a soma aritmética ultrapassaria largamente os 1000 anos …), forçoso é concluir que a impugnada pena única se peca é por manifesto defeito, devendo mesmo ser considerada benevolente. Pelo que, reduzi-la agora como pretende o Recorrente manifestaria, quanto a nós, salvaguardado sempre o enorme respeito pelos critérios seguidos na sua fixação, claro desfasamento entre a gravidade dos factos provados e o grau de culpa com que foram perpetrados, com risco de evidenciar alguma ideia de condescendência com e banalização de condutas criminosas execráveis e incompreendidas, abominadas e repudiadas pelo comum das pessoas, a imporem severa repressão com vista à salvaguarda dos mais elementares direitos das crianças e dos menores dependentes, como valor primordial do estado de direito, e à prevenção sobretudo especial, mas também geral inerente às finalidades das penas. Termos em que, rejeitando-se o recurso por manifesta improcedência por falta de fundamentação válida na impugnação da pena única e confirmando-se, nos seus precisos termos, o douto acórdão recorrido, far-se-á justiça».
5. Neste Supremo Tribunal de Justiça o Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se pela improcedência do recurso do arguido referindo, entre o mais, (transcrição): «(…) o Tribunal fixou a pena do cúmulo jurídico acrescentando, ao limite mínimo, uma ínfima parcela da diferença entre este e o limite máximo. Na verdade, teria sido difícil ser mais brando, considerando, desde logo, os valores contra os quais o arguido atentou e os reflexos – decerto, gravíssimos – das suas condutas. Parece-nos, pois, que o aresto fez uma adequada interpretação dos critérios contidos nas disposições conjugadas dos art.ºs 40º, n.º 1 e 71º, n.º 1 e 2, als. a) a c), e) e f) do Código Penal. Atendeu-se, cremos, à vantagem da reintegração tão rápida quanto possível do arguido em sociedade; sem se esquecer, porém, que a pena deve visar também, de forma equilibrada, a protecção dos bens jurídicos e a prevenção especial e geral, neste caso particularmente relevantes. Com efeito, as fortes exigências de prevenção e a gravidade do comportamento do arguido tinham, em conformidade e de acordo com os critérios acima referidos, de ser traduzidos em pena correspondente à medida da sua culpa; o que o tribunal recorrido conseguiu com uma pena leve mas que, em todo o caso, respeita as finalidades visadas pela punição».
6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à Conferência para decisão.
II A Factos provados (transcrição): 1. BB nasceu no dia .../.../2004, sendo filha de CC e do arguido, tendo com estes coabitado na Rua ..., ..., em ..., .... 2. No período compreendido entre 23 de junho de 2011 e 23 de junho de 2012, tinha a assistente BB 7 anos, por diversas vezes, mas não menos que uma por mês, aproveitando a ausência ou a distração de CC, aos domingos de manhã, o arguido sujeitou a sua filha a um jogo a que chamava “jogo da aranha”. 3. Em tais ocasiões, no interior do seu quarto, na cama do casal, o arguido disse à filha BB que a mão dele era uma aranha e que o seu pénis era um dos dedos dele, levando-a a tocar-lhe no seu órgão genital exposto. 4. Em simultâneo, o arguido tocou na parte externa dos órgãos genitais da menor. 5. No hiato temporal entre janeiro de 2013 e até dia não concretamente apurado do mês de fevereiro de 2019, em dias não concretamente apurados, pelo menos uma vez por semana, e com maior reiteração na sequência das reuniões trimestrais escolares, sempre após as 18.30 horas, em momentos em que não se encontrava na habitação a sua mulher DD, na sala da referida residência e por regra no sofá, o arguido roçava o seu pénis ereto na zona genital exterior da filha BB e tentava, sem êxito, penetrar a menor na sua vagina. 6. De seguida, o arguido introduzia o seu pénis ereto na boca da filha BB, levando-a a estimulá-lo com a boca até ejacular. 7. Uma de tais situações ocorreu num anexo existente na casa do avô da menor, num dia chuvoso, em dia concreto que não foi possível apurar. 8. Após 15 de setembro de 2016, pela altura em que a menor BB passou a frequentar o 7.º ano de escolaridade, depois de perfazer os 12 anos, o arguido começou também a tocar nos seios da menor. 9. Pelo menos numa das descritas ocasiões, depois da menor perfazer catorze anos, o arguido tentou ainda penetrar com o seu pénis no ânus da filha BB. 10. Aquando das práticas descritas nos pontos 5 e 6, pelo menos em quatro ocasiões diferentes, em dias não concretamente apurados, o arguido mostrou à filha BB, vídeos exibidos em sites de pornografia, que reproduziam práticas sexuais entre homens e mulheres, incluindo de penetração vaginal. 11. A progenitora da assistente, CC começou a trabalhar para o P... no mês de novembro do ano 2012, saindo às 20:00 uma vez por semana. 12. Desde pelo menos setembro de 2016 e até fevereiro de 2019, CC passou a trabalhar todos os dias úteis da semana, entre as 19:00 e as 23:00. 13. Em fevereiro de 2019, CC deixou de trabalhar e ficou em casa por causa da gravidez da filha mais nova. 14. No dia 00.00.2019 nasceu a irmã mais nova da BB, EE, e nesse dia, aproveitando a circunstância de CC estar ausente de casa, na sala, o arguido uma vez mais introduziu o seu pénis na boca da filha, levando-a a estimulá-lo até ejacular. 15. Depois de CC voltar ao trabalho após o nascimento da EE, entre a última semana de fevereiro de 2020 e o dia 12 de março de 2020, nos 15 anos de idade da assistente, pelo menos em duas ocasiões diferentes, na sala da residência, o arguido uma vez mais introduziu o seu pénis na boca da filha, levando-a a estimulá-lo até ejacular. 16. No do dia 13.03.2020, dia em que BB pretendia ir a uma festa de aniversário e para a deixar ir, na sala da residência, o arguido voltou a introduzir o seu pénis na boca da filha, levando-a a estimulá-lo. 17. Como BB e CC denunciaram às autoridades esta situação no dia 10.04.2020, no dia seguinte, o arguido disse à menor que a mataria caso viesse a ser preso. 18. Em todas as situações, o arguido agiu sabendo e querendo aproveitar-se do facto da BB ser sua filha, de coabitar com ela, da relação de proximidade que tinha sobre ela por ser também responsável pela sua educação e assistência, o que facilitou o cometimento dos atos, sendo ainda conhecedor da idade da assistente. 19. Em todas as ocasiões, o arguido agiu sabendo e querendo constranger a assistente, sua filha, a contactos de natureza sexual, mais sabendo e querendo levá-la também a praticar consigo os descritos atos de natureza sexual. 20. Em cada uma daquelas situações, o arguido agiu com o propósito de satisfazer os seus desejos sexuais, bem sabendo que perturbava e prejudicava o desenvolvimento da personalidade da sua filha e que a sua conduta colocava em causa o são desenvolvimento psicológico e afetivo e a consciência sexual da menor. 21. E fê-lo, não obstante estar ciente da idade, imaturidade e inexperiência sexual da menor e da relação familiar existente entre ambos. 22. Na situação descrita no ponto 10 quis o arguido agir como descrito, ciente que expunha a menor a visionar atos de penetração vaginal, atos esses que constituíam imagens explícitas referentes à sexualidade humana. 23. Na situação descrita no ponto 17, quis o arguido dirigir tais palavras a BB, sabendo que convocava o evento morte dependente apenas da sua vontade e ação, o que fez, atento o já mencionado ascendente, de um modo adequado a amedrontá-la, como sabia ser o caso e pretendia fazer. 24. Em todas situações o arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta lhe era proibida e punida por lei como crime. 25. Mercê de todo o sucedido, a assistente vivencia ansiedade e o sentimento de traição de relações por ela consideradas afetivas. Mais se provou: 26. O arguido é o filho mais novo da fratria de 2 elementos, tendo o seu percurso infantil decorrido junto da progenitora e do irmão mais velho. 27. Esta situação cessou com a morte da progenitora, quando tinha 10 anos de idade, tendo ficado desde então aos cuidados de familiares, principalmente da avó paterna, que se tornou a figura de referência. 28. O seu processo de socialização decorreu num contexto intrafamiliar de fraca supervisão e ténues laços afetuosos, cujas condições socioeconómicas eram modestas. 29. Em termos escolares o arguido conta com percurso normativo, até conclusão do 4.º ano de escolaridade, com abandono escolar precoce para integrar o mercado de trabalho no ramo da construção civil. 30. Por volta dos 16/17 anos de idade, principiou os consumos de substâncias psicoativas ilícitas e vivenciou dependência aditiva. 31. Posteriormente, ingressou num centro de tratamento e reabilitação, onde após um ano de tratamento em regime de internamento passou a exercer tarefas profissionais e remuneradas como monitor, que manteve ao longo de cinco anos consecutivos. 32. O arguido casou com CC em janeiro de 2004, passando o casal a residir, juntamente com a mãe desta última, que apresenta comprometimento cognitivo na sequência de meningite, no imóvel mencionado no ponto 1, de tipologia 2, arrendado por 250.00/mês. 33. Ao nível laboral regista experiência como operário numa fábrica de calçado, onde permaneceu durante 7 anos e na construção civil. 34. Após a separação e saída da casa de morada de família, em abril de 2020, durante cerca de 6 meses pernoitou num veículo automóvel e manteve na generalidade inserção laboral, sem vínculo contratual, na construção civil. 35. Posteriormente, entre setembro de 2020 e abril de 2021, esteve a trabalhar em ... como pintor de construção civil, pernoitando no hotel onde trabalhava e recebia cerca de 700€. 36. Regressado a Portugal, arrendou um quarto na cidade ... e privava com a filha mais nova, todas as segundas-feiras, em local público, contribuindo com 200€/mês para as despesas das filhas. 37. Entretanto voltou a ausentar-se para ... onde se encontra atualmente a trabalhar na construção civil, auferindo cerca de € 1.100.00. 38. No âmbito do Processo Sumário nº 515/20.... do J 3 dos Juízos Locais Criminais de ..., o arguido foi em 31.08.2020 condenado na pena de 70 dias de multa e em 4 meses de proibição de condução de veículos motorizados, pela prática em 29.08.2020 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, tendo a respetiva decisão transitado em julgado em 20.10.2020.
B O Direito 1. Questão a decidir: medida da pena única.
2 A propósito da medida das penas, parcelares e única, expendeu-se na decisão recorrida (transcrição parcial): «Com efeito, as elevadas exigências de prevenção especial estão sobretudo associadas à ausência de arrependimento do arguido pela conduta adotada e à falta de consciencialização demonstrada pela gravidade da sua atuação e que, por isso, impõem uma maior severidade nas penas a aplicar. Na verdade, não obstante o arguido se mostrar uma pessoa profissionalmente integrada, de mostrar com uma boa aceitação social, de estar inserido familiarmente, o certo é que, não estamos, no caso concreto, apenas perante atos perversos, ocasionais determinados por circunstâncias especiais da vida do arguido, mas antes, considerando a continuidade do comportamento, “revelador de uma tendência criminosa”. Acresce que, a ausência de uma confissão livre e espontânea da prática dos atos sexuais dados como assentes, face à prova produzida, tornam as exigências de prevenção especial ainda mais elevadas e também justificam a aplicação ao arguido da pena única que concretamente lhe foi aplicada. O acórdão recorrido fez, a nosso ver, uma apreciação correta de todas as circunstâncias que depõem a favor e contra o arguido para a determinação concreta da pena, não violando qualquer norma legal, nomeadamente os art.ºs 40.º, 43.º 47.º, 70.º, a 73.º do Cód. Penal, e art.ºs 18.º, 32.º, n.ºs 1 e 2, da CRP. Assim, nenhum reparo há a fazer ao acórdão recorrido, sendo as penas parcelares e a pena única de prisão corretas, equilibradas e ajustadas aos níveis da culpa e da ilicitude refletidas na conduta do arguido, bem como das exigências de prevenção especial e de prevenção geral».
3. A crítica do arguido consiste em que a pena aplicada é pouco criteriosa e desequilibradamente doseada, não tendo sido aplicadas as disposições relativas a dissimetria da pena na sua plenitude; que o tribunal violou grosseiramente todo o comando normativo dos Artigos 40.º, N.º 2, 71.º, N.º 1 e 2, 72.º, N.º 1, al. d), 73.º do Código Penal bem como o Artigo 30.º e 32.º, N.º 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa; que condená-lo na pena de 12 (Doze) anos de prisão, seria condicionar totalmente o seu futuro; que o arguido [deve ser] condenado a pena não superior a 9 (nove) anos de prisão.
4. Pese embora alegar violação grosseira dos artigos 40.º/2, 71.º/1/2, 72.º/1/ d), 73.º do Código Penal, bem como do artigo 30.º e 32.º/1/2 da Constituição, o certo é que o arguido não concretiza essa violação, qual o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ser aplicada, como lhe exige o art. 412.º/2/b, CPP. O recurso do arguido resume-se a uma mera discordância com a pena única aplicada pretendendo uma pena única não superior a 9 anos de prisão. 5. A aplicação de penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo em caso algum a pena aplicada ultrapassar a medida da culpa (art. 40.º/1/2, CP). A finalidade primária da pena é assim a de tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade. À culpa cabe a função de estabelecer um limite inultrapassável por parte da pena dentro da moldura penal abstrata A culpa funciona no sistema jurídico-penal como limitação do intervencionismo estatal na vida do agente e de veto a uma sua eventual arbitrariedade (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, 2019, p. 670.
6. Ponto de partida na determinação da pena é a consideração de que ela visa a tutela necessária dos bens jurídico-penais vulnerados no caso, com um sentido de restabelecimento da paz jurídica posta em crise pelo ilícito, finalidade que se identifica com a ideia da prevenção geral positiva ou prevenção de integração e que dá por sua vez conteúdo ao princípio da necessidade da pena que o artigo 18.º, nº 2, da CRP consagra de forma paradigmática (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, 3.ª ed. p. 91).
7. O ponto de chegada são as exigências da prevenção especial, nomeadamente da prevenção especial positiva ou de socialização. Dentro da moldura ou dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração – entre o ponto ótimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos (ou de defesa do ordenamento jurídico – devem atuar, em toda a medida possível, as considerações de prevenção especial, que, em última instância, determinam a medida da pena. A medida da necessidade de socialização do agente é, em princípio, o critério decisivo das exigências de prevenção especial, mas, se o agente não se revelar carente de socialização, tudo se resumirá, em termos de prevenção especial, em conferir à pena uma função de suficiente advertência, o que permitirá que a medida da pena desça até perto do limite mínimo da moldura de prevenção ou que com ele coincida (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, 3.ª ed. p. 93).
8. Salvo o crime de ameaça agravada, os demais trezentos e sessenta e um (361) crimes por que o arguido foi condenado inscrevem-se no capítulo dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual. Segundo o Relatório Anual de Segurança Interna de 2021 (acedido em 17.11.2022, disponível em https://www.portugal.gov.pt/download-ficheiros/ficheiro.aspx?v=%3d%3dBQAAAB%2bLCAAAAAAABAAzNLI0NgcAIUgtZwUAAAA%3d) p. 46, nestes crimes os arguidos são maioritariamente do género masculino e as vítimas maioritariamente do género feminino. A maioria das detenções teve por base o crime de abuso sexual de criança. Relativamente aos inquéritos iniciados, a tipologia que regista maior percentagem é o abuso sexual de crianças (36,3%). Relativamente a arguidos, observa-se predominância nos escalões etários 31-40 e 41-50, seguidos pelos escalões etários 21-30 e 51-60. Relativamente a vítimas, observa-se predominância no escalão etário 8-13, idade em que a vítima dos presentes autos sofreu os abusos. Prevalece o contexto da relação familiar (53,1%), o caso dos autos, enquanto espaço de relacionamento entre autor e vítima. Destes dados objetivos em conjugação com a factualidade apurada, resultam inequívocas e prementes as necessidades de prevenção geral e especial.
9. Em tema de medida da pena única, a moldura penal abstrata da punição do concurso de crimes tem como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas (art. 77.º/2, CP), 5 anos e 4 meses de prisão e como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas (art. 77.º/2, 1ª parte, CP), no caso 25 anos, por imposição legal. É dentro desta moldura, a moldura do concurso, que deve ser encontrada a pena única a aplicar, atendendo aos critérios gerais da culpa e prevenção (art. 71.º e 40.º, CP), e à regra específica da punição do concurso que manda atender, em conjunto, aos factos e à personalidade do arguido (art. 77.º/1, CP). 10. É ao conjunto dos factos que nos devemos ater para aquilatar da gravidade do comportamento ilícito do arguido. Na avaliação da pessoa e da personalidade do arguido importa saber se os factos delituosos espelham uma tendência criminosa ou uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade do arguido (JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 1993, p. 291). Os factos provados falam por si e dispensam qualquer enfâse ou considerando, permitindo afirmar que o arguido tem uma tendência para a prática de crimes de abuso sexual. O arguido atuou com o propósito da sua satisfação sexual.
11. A pena única foi fixada abaixo do meio da moldura penal abstrata legalmente consentida, (a soma aritmética das penas de prisão aplicadas ultrapassa os 1600 anos), pelo que jamais pode ser taxada, ao contrário do que diz o recorrente, de pouco criteriosa e desequilibradamente doseada. Ponderando as exigências de prevenção e a necessidade de reafirmação da validade dos bens jurídicos pessoais postos em crise pela conduta global do arguido – a liberdade e autodeterminação sexual de menor, ainda muito jovem adolescente, sua filha – nada aponta no sentido da atenuação da pena, pena que sem sombra de dúvida cumpre o desígnio da reintegração do arguido na comunidade, assim ele assuma esse propósito.
III Decisão: Acordam em julgar improcedente o recurso do arguido AA. Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) unidades de conta. Supremo tribunal de Justiça, 24.11.2022. António Gama (Relator) João Guerra. Orlando Gonçalves |