Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1790/20.0JABRG.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: RECURSO PER SALTUM
CÚMULO JURÍDICO
CONCURSO DE INFRAÇÕES
TRÂNSITO EM JULGADO
DESPACHO
PERDÃO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
TENTATIVA
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA ÚNICA
Data do Acordão: 06/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I - Tendo o recorrente praticado três crimes de homicídio qualificado na forma tentada, agravados pelo uso de arma, um crime de detenção de arma proibida e um crime de tráfico de menor gravidade, e sendo a moldura penal aplicável abstracta aplicável ao concurso – superveniente – a de 5 anos e 6 meses de prisão a 18 anos e 2 meses de prisão, considerando, atento o disposto no art. 77º, nº 1 do C. Penal, relativamente à gravidade do ilícito global, o cometimento dos três crimes contra a vida e do crime de detenção de arma proibida no mesmo circunstancialismo de tempo e lugar, e a proximidade temporal do cometimento do crime de tráfico de menor gravidade, e relativamente à personalidade unitária, que o recorrente apresenta traços de uma personalidade imatura, impulsiva, violenta e desconforme ao direito, considerando ainda a sua juventude e a inexistência de antecedentes criminais relevantes, entendemos a pena única de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão, fixada pela 1ª instância, é adequada, necessária, proporcional e plenamente suportada pela medida da sua culpa, pelo que deve ser mantida.
II - É entendimento pacífico na jurisprudência deste Supremo Tribunal que o desconto previsto no nº 2 do art. 81º do C. Penal não pode ter por fundamento, apenas, o decurso do tempo da suspensão da execução da pena de prisão sem o cumprimento, pelo condenado, de deveres e regras de conduta impostas nos termos do disposto nos arts. 51º a 54º do mesmo código.
III - A pena de suspensão da execução da pena de prisão, na sua execução, pode implicar sacrifícios para o condenado, corporizados no cumprimento de deveres e observância de regras de conduta fixados, que não sendo comparáveis com os decorrentes do cumprimento de uma pena de prisão, constituem a ratio do desconto que, como dispõe a lei, só terá lugar quando seja equitativo.
IV - Assim, há que ponderar, no caso concreto, sob uma perspectiva de proporcionalidade e justiça material, por um lado, os sacrifícios sofridos pelo condenado com o cumprimento da pena de substituição e, por outro, as finalidades de prevenção geral e especial.
Decisão Texto Integral:


RECURSO Nº 1790/20.0JABRG.S1.


Recorrente: AA.


Recorrido: Ministério Público.


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Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I. RELATÓRIO


No Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo Central Criminal ... – Juiz ..., o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, do arguido AA, no termo do qual, por acórdão de 19 de Julho de 2022, transitado em julgado em 29 de Dezembro de 2022, foi o mesmo condenado:


- pela prática de um crime de homicídio qualificado, agravado pelo uso de arma, na forma tentada, p. e p. pelos artº 22º, 23º, 131º, 132º, nº 1 e 2, al e) do CP, na pena de cinco anos e seis meses de prisão;


- pela prática de um crime de homicídio qualificado, agravado pelo uso de arma, na forma tentada, p. e p. pelos artº 22º, 23º, 131º, 132º, nº 1 e 2, al e) do CP, na pena de quatro anos e três meses de prisão;


- pela prática de um crime de homicídio qualificado, agravado pelo uso de arma, na forma tentada, p. e p. pelos artº 22º, 23º, 131º, 132º, nº 1 e 2, al e) do CP, na pena de quatro anos e três meses de prisão;


- pela prática de um crime detenção de arma proibida, p. e p. pelo artº 86º, nº 1 al. c) do Regime Jurídico de Armas e Munições, na pena de um ano e seis meses de prisão; e,


- em cúmulo jurídico, na pena única de oito anos de prisão.


Por acórdão de 2 de Junho de 2021, transitado em julgado em 2 de Julho de 2021, proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo Central Criminal ... – Juiz ..., no processo nº 53/20.5..., foi o mesmo arguido condenado:


- pela prática de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo art. 40º, nºs 1 e 2, do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à Tabela Anexa I-C, na pena de 50 dias de multa à taxa diária de € 6,50, perfazendo a multa global de € 325,00;


- pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25º, a) do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à Tabela Anexa I-C, na pena de dois anos e oito meses de prisão, suspensa na respectiva execução pelo mesmo período, com sujeição a regime de prova.


Face ao conhecimento superveniente do concurso de crimes, por acórdão de 8 de Fevereiro de 2024, proferido pelo Juízo Central Criminal ... – Juiz ... [estes autos], foi o arguido condenado na pena única de nove anos e seis meses de prisão, mais se tendo decidido não haver lugar a desconto equitativo nos termos do art. 81º, nº 2 do C. Penal, e não haver lugar à aplicação do regime da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto.


No cúmulo não foi considerada a pena de multa aplicada no processo nº 53/20.5... por ter sido declarada extinta, por despacho de 25 de Novembro de 2021.


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Inconformado com a decisão, recorre o arguido AA para o Tribunal da Relação de Guimarães, formulando no termo da motivação, as seguintes conclusões:


1- Entende o recorrente que por força do recurso interposto da decisão da não aplicação da Lei 38/A, a sua condenação não transitou em julgado, uma vez que, a ser deferida a pretensão do recorrente, a moldura penal abstracta da pena dos presentes autos pode vir a ser alterada.


E, desta forma, a sua situação processual ainda não se encontra definitivamente concretizada.


2- Pelo que, e salvo o devido respeito por opinião contrária, o Tribunal deveria ter aguardado a decisão do Tribunal da Relação de Guimarães sobre o recurso interposto, e após o transito em julgado da decisão, realizar o cúmulo jurídico.


3- Violou- se o disposto nos arts 613, 616, 619, 620 e 628 do C.P.C


4- Discorda o recorrente da pena única fixada pelo Tribunal.


5- As razões aduzidas para fundamentar a sua pretensão, são as vertidas nos pontos 5 a 19 da motivação de recurso que aqui se dão por reproduzidas.


6- Em súmula, o recorrente aduz a seu favor o peso que ausência de padrões de conduta normativos e formação escolar, tiveram na formação da sua personalidade.


A ligação ao consumo de drogas foi potenciadora de condutas desajustadas.


O curto período de tempo em que as mesmas condutas ocorreram e em concreto, em ambos os casos, subsumíveis a um único dia.


A sua juventude e imaturidade.


Ao seu comportamento posterior assumindo particular relevo, a assunção de consciência crítica, bem como a adopção de comportamentos ajustados.


O empenho demonstrado na eliminação de factores que potenciaram a conduta delituosa, adição de estupefacientes e baixa escolaridade.


7- No modesto entendimento do recorrente, o tribunal atendeu sobretudo à gravidade dos factos praticados no âmbito dos presentes autos, sobrevalorizando o decurso do tempo entre o transito em julgado da decisão proferida no âmbito do Proc 53//20.5PEBRG, com base no facto do arguido ter estado grande parte do período em que esteve sujeito a regime probatório em reclusão, posição da qual discordamos pelos motivos indicados nos pontos 8 a 15 da motivação de recurso que aqui se dão por integralmente reproduzidos.


8- A manutenção dos laços afectivos com o agregado familiar de base, bem como com a namorada através de um regime regular de visitas, quando conjugado com o supra descrito apresenta-se como um factor mitigador de futuros comportamentos ilícitos. Mitigando as exigências de prevenção geral e especial que o caso impõe.


9- Tendo em conta que a moldura do concurso vai de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão, a 18 (dezoito) anos e 2 (dois) meses de prisão.


Seria justo e adequado manter a pena de 8 anos de prisão que lhe foi aplicada no âmbito dos presentes autos.


Considerando sobretudo que a pena englobada no cúmulo jurídico estava perto de ser declarada extinta, o arguido não praticou qualquer crime no decurso da suspensão, e adoptou um comportamento empenhado na procura de uma futura reintegração.


10- Violou-se o disposto no artigos 71, 77 nº 1 e nº 2 do C.P


Pelo que deve ser revogada, nos termos sobreditos.


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O recurso foi admitido por despacho de 19 de Março de 2024.


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Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público, alegando, em síntese, que nenhum impedimento existe na circunstância de ter sido realizado o cúmulo jurídico de penas, sem que se aguardasse pela decisão do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Guimarães, tendo por objecto a não aplicação do perdão da Lei nº 38-A/2023, sendo certo que a questão está ultrapassada, pois foi negado provimento ao recurso, por decisão da Relação de 19 de Março de 2024, que nada obsta à inclusão no cúmulo de penas de prisão suspensas na respectiva execução, como é entendimento da doutrina e da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional, que o ilícito global e a personalidade do arguido, considerada a moldura abstracta aplicável, justificam a adequação da pena única de 9 anos e 6 meses de prisão decretada pela 1ª instância, que a não aplicação do desconto equitativo previsto no art. 81º, nº 2 do C. Penal seguiu de perto a jurisprudência dos tribunais superiores, pois não pode assentar apenas no decurso do tempo de suspensão, sem qualquer sacrifício para o condenado, e concluiu pela integral manutenção do acórdão recorrido.


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Por despacho de 26 de Março de 2024 foi ordenada, ao abrigo do disposto na alínea c) do nº 1 do art. 432º do C. Processo Penal, a subida dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça.


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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Supremo Tribunal emitiu parecer, realçando ter a 1ª instância feito uma cuidada e crítica análise da situação em apreço, com correcta ponderação e valoração da ilicitude do facto e da culpa do arguido, atenta a gravidade dos factos e natureza dos crimes praticados, e serem elevadas as exigências de prevenção geral e especial, pelo que, atenta a moldura penal aplicável, a pena fixada de 9 anos e 6 meses de prisão, tendo respeitado os critérios legais aplicáveis, é justa, adequada e proporcional, não existindo fundamento para a sua alteração, o que impossibilita a suspensão, e concluiu, acompanhando a resposta do Ministério Público ao recurso, pela sua improcedência.


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Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.


O arguido respondeu ao parecer, dando por reproduzida a motivação do recurso.


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Colhidos os vistos, foram os autos presentes à conferência.


Cumpre decidir.


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II. FUNDAMENTAÇÃO


A) Factos provados


A matéria de facto provada que provém da 1ª instância é a seguinte:


“(…).


1. Por acórdão proferido no âmbito do Processo n.º 1790/20.0JABRG (presentes autos), em 19/07/2022, e transitada em 29/12/2022, que correu termos no Juízo Central Criminal ... (J.), o arguido foi condenado:


a. pela prática de um crime de homicídio qualificado, agravado pelo uso de arma, na forma tentada, p. e p. pelos artº 22º, 23º, 131º, 132º, nº 1 e 2, al e) do CP, na pessoa de BB, na pena de cinco anos e seis meses de prisão;


b. pela prática de um crime de homicídio qualificado, agravado pelo uso de arma, na forma tentada, p. e p. pelos artº 22º, 23º, 131º, 132º, nº 1 e 2, al e) do CP, na pessoa de CC, na pena de quatro anos e três meses de prisão;


c. pela prática de um crime de homicídio qualificado, agravado pelo uso de arma, na forma tentada, p. e p. pelos artº 22º, 23º, 131º, 132º, nº 1 e 2, al e) do CP, na pessoa de DD, na pena de quatro anos e três meses de prisão;


d. pela prática de um crime detenção de arma proibida, p. e p. pelo artº 86º, nº 1 al. c) do Regime Jurídico de Armas e Munições, na pena de um ano e seis meses de prisão;


2. Em cúmulo jurídico das penas parcelares atrás referidas, foi o arguido condenado na pena única de oito anos de prisão.


Factos na origem da condenação:


“1.1.O arguido AA (conhecido por “EE”) frequenta e frequentava, à data dos factos, o Bairro 1, onde residem familiares seus, sendo associado, por amigos e conhecidos, a um grupo de amigos que frequentam este Bairro, no qual se incluiu, nomeadamente, FF (conhecido como GG).


1.2. Os ofendidos CC (conhecido como HH ou II) e DD, são amigos entre si e fazem parte de um grupo de amigos mais alargado, associados, por amigos e conhecidos, ao Bairro 2, por aí residirem ou por o frequentarem, do qual fazem também parte, entre outros, JJ e KK.


1.3. Pelo menos a partir de meados de 2020, há um relacionamento hostil entre os referidos grupos, tendo-se desenvolvido até ao presente confrontos entre os membros de um e de outro grupos de amigos referidos.


1.4. JJ, KK e CC foram julgados no processo 500/21.9..., a correr termos pelo Juízo Central Criminal ... - Juiz ..., por factos ocorridos em 18.03.2021, que envolveram disparos de tiros no Bairro 1, tendo sido nele proferido acórdão em 7.03.2021, transitado em julgado em 6.04.2022, que absolveu JJ, CC e KK do crime de homicídio qualificado agravado pelo uso de arma, na forma tentada, de que vinham acusados em co-autoria; absolveu ainda o ali arguido CC de um crime de ofensa à integridade física qualificada e absolveu o ali arguido JJ do crime de detenção de arma proibida, tendo sido condenados CC e KK, como autores materiais de um crime de detenção de arma proibida, e este último, ainda, pela prática de um crime de ameaça agravada e de injúria agravada.


1.5. Alguns membros de tais grupos publicam nas redes sociais fotografias exibindo armas e/ou contendo ameaças e provocações relativamente ao outro grupo.


1.6. No dia 05 de Setembro de 2020, pelas 23h30m, pelo menos dois indivíduos, entre os quais se encontrava o arguido AA, fazendo-se transportar num veículo automóvel da marca BMW, cor escura, deslocaram-se à Praça..., com a intenção de amedrontar, provocar desacatos e atingir, com disparos de arma de fogo, indivíduos que integram o aludido grupo de amigos associados ao Bairro 2”.


1.7. Ali chegados, pararam esse veículo automóvel na via pública, do seu interior saiu o arguido AA, munido com uma arma de fogo apta a disparar munições de fogo de calibre 7.65mm e, sem que nada o fizesse prever, apontou essa arma para um aglomerado de indivíduos, nos quais se incluíam os pertencentes ao grupo de amigos associados ao Bairro 2, que ali se encontravam a confraternizar, entre os quais CC e DD, que se encontravam próximos um do outro, e, ainda, BB que também se encontra próximo daqueles, todos em local que do veículo acima referido distava cerca de 30 metros.


1.8. Acto seguido, o arguido AA efectuou vários disparos com a dita arma na direcção do referido grupo.


1.9. Assustados, os referidos indivíduos tentaram proteger-se e fugir do local.


1.10. O arguido AA ainda conseguiu atingir CC com um disparo no ombro direito, DD com dois disparos, ambos nos membros inferiores, e BB com três disparos, um no ombro esquerdo, outro no braço esquerdo e o último na perna direita.


1.11. Após estes disparos, o arguido AA e o indivíduo que o acompanhava arrancaram no dito veículo automóvel BMW e colocaram-se em fuga.


1.12. CC, DD e BB foram conduzidos ao hospital onde receberam assistência médica.


1.13. Em consequência directa e necessário dos referidos disparos, CC foi baleado na região do deltoide; ficou com um projéctil de arma de fogo alojado nos planos moles da região infraclavicular; sofreu hemopneumartrose glenoumeral e fractura do úmero, tendo ficado internado no Hospital até ao dia 14.09.2020.


1.14. Tais lesões determinaram a CC 47 dias de doença e como consequência permanente uma cicatriz na face externa do braço direito, no seu terço superior, com 1 cm de diâmetro, que não afecta de modo grave a sua capacidade de ganho ou de utilização do corpo.


1.15. Em consequência directa e necessário dos referidos disparos, DD sofreu, no membro inferior direito, ferida perfurante na face postero interna do terço inferior da coxa, com 1 cm de diâmetro, e ferida perfurante na face antero interna do terço inferior da coxa, com 2 cm de diâmetro (respectivamente portas de entrada e de saída de projéctil de arma de fogo).


1.16. Em consequência directa e necessário dos referidos disparos, BB sofreu ferimentos por arma de fogo nos membros superior esquerdo e inferior direito, de que resultaram fracturas expostas de grau II do úmero esquerdo e fémur direito, tendo sido submetido a intervenções cirúrgicas, tendo sido efectuada redução fechada e encavilhamento do fémur direito e do úmero esquerdo, ficando internado no Hospital desde o dia 6.09.20 até ao dia 10.09.2020.


1.17. Na data da alta hospitalar, o assistente BB deslocava-se em cadeira de rodas, empurrada por 3.ª pessoa.


1.18. As consequências das lesões descritas ainda não se encontram consolidadas, devendo ser reavaliadas, conforme exame pericial efectuado pelo Gabinete Médico-Legal, após a data da alta das consultas de ortopedia no Hospital ..., e nunca antes de 2023.


1.19. No local onde os factos acima referidos aconteceram, foram encontrados e apreendidos 7 invólucros deflagrados de calibre 7,65mm Browning (três da marca “Sellier & Bellot” e quatro da marca “Geco”), que resultam de outros tantos disparos efectuados pelo arguido AA, usando uma mesma arma apta a disparar munições de fogo desse calibre.


1.20. Para além da arma apta a disparar munições de fogo do dito calibre, o arguido AA, quando efectuou os disparos nos termos acima referidos, era possuidor e usou, pelo menos, 7 munições de fogo, de calibre 7,65mm Browning, que se encontravam em condições de serem disparadas, como efectivamente sucedeu.


1.21. Foi encontrado próximo do local onde o grupo do Bairro 2 se encontrava, e apreendido, um invólucro de calibre 9 mm e, na manhã seguinte, um projéctil de calibre .32 S&W que trespassou o toldo, vidro da fachada e ficou alojado numa parede interior da “Pastelaria ...”, que fica nas imediações daquele local.


1.22. Estes elementos municiais foram disparados por pessoa não concretamente apurada, que se encontrava do lado da Praça..., junto ao grupo de jovens do Bairro 2.


1.23. O arguido AA não tem licença para uso e porte de arma.


1.24. Ao deslocar-se à Praça..., onde se encontravam vários indivíduos que pertencem ao grupo de amigos associado ao Bairro 2, munido de uma arma de fogo e ao efectuar os disparos com tal arma, o arguido AA agiu, em comunhão de esforços e vontades, com pelo menos mais um indivíduo o acompanhava, com a intenção de provocar, amedrontar e atingir membros daquele referido grupo, ciente que ao efectuar os disparos nas condições acima referidas poderia tirar a vida a qualquer uma das pessoas que ali se encontrassem, resultado este com o qual se conformou, sendo que só por mero acaso nenhum desses disparos atingiu mortalmente qualquer um dos visados ou outra pessoa que ali se encontrasse.


1.25. O arguido AA sabia que ao agir do modo supra descrito, juntamente com pelo menos mais duas pessoas, movido pela hostilidade que opõe os membros do grupo em que se integra ao membros do grupo do Bairro 2, tal conduta lhe era especialmente censurável.


1.26. O arguido AA sabia, ainda, que ao levar consigo e usar uma arma apta a disparar munições de fogo do calibre acima indicado e, bem assim, pelo menos sete munições de fogo nos termos acima referidos, o fazia fora das condições legais, por não ter licença para tal.


1.27.O arguido AA agiu, em comunhão de esforços e vontades com os demais indivíduos que o acompanhavam, sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.”


3. Por acórdão proferido no âmbito do Processo n.º 53/20.5..., em 02/06/2021, e transitado em 02/07/2021, que correu termos no Juízo Central Criminal ... (J.), o arguido foi condenado:


a. Em autoria material singular, de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo artº 40º, nºs 1 e 2 do Dec. L. nº 15/93, de 22.01, por referência à respectiva Tabela Anexa I-C, na pena de 50 [cinquenta] dias de multa, à taxa diária de € 6,50 [seis euros e cinquenta cêntimos], o que perfaz a multa global de € 325,00 [trezentos e vinte e cinco euros] e a que corresponderão, se for caso, disso, 33 [trinta e três] dias de prisão subsidiária;


b. Em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artº 25º, al. a), por referência ao disposto no nº 1 do 21º, ambos do Dec. L. nº 15/93, de 22.01, e à Tabela I-B a ele anexa, na pena de 2 [dois] anos e 8 [oito] meses de prisão, suspensa na sua execução, por idêntico período de tempo, com acompanhamento de regime de prova, direccionado para a interiorização do desvalor das suas condutas e para a vinculação a actividade laboral e ocupacional regulares;


Factos na origem da condenação:


“a). No dia 25.09.2019, cerca das 15h40m, na praceta sita na Rua ..., em ..., o arguido AA tinha em seu poder cabanis resina, com o peso líquido de 8,99 gramas e com um grau de concentração do princípio activo THC de 12,2%, a permitir a sua divisão por 21 doses individuais. ---


b). No dia 23.11.2020, pelas 8h05m, os arguidos AA e LL deslocaram-se ao Bairro 3, localizado na cidade do ..., onde adquiriram cocaína.


c). De retorno a ..., foram, pelas 9h45m, interceptados, depois de transporem a linha de portagem ... da ..., trazendo aquela substância em seu poder, pela seguinte forma distribuída: ---


i. No bolso do casaco que AA trajava, e acondicionadas em papel de celofane, 100 [cem] pedras de cocaína, com o peso total líquido de 25,075 gramas, a permitir a sua divisão por 196 [cento e noventa e seis] doses individuais; ---


ii. No chão da viatura em que se faziam transportar, junto aos pés do lugar do passageiro dianteiro, 100 [cem] pedra de cocaína, com o peso total líquido de 26,403 gramas, a permitir a sua divisão por 214 [duzentos e catorze] doses individuais; ---


iii. Sob detenção de LL, 20 [vinte] pedras de cocaína, com o peso líquido de 5,283 gramas, a permitir a sua divisão por 49 [quarenta e nove] doses individuais. ---


d). Pelas quantidades referidas em c)., sob os pontos i. e ii., os arguidos pagaram a quantia global de € 1.000,00, à razão de € 5,00/pedra, representando a quantidade de produto mencionada no ponto iii. da mesma alínea as pedras extra que os arguidos receberam, à razão de uma pedra por cada dez que adquiriram. ---


e). Nas circunstâncias reportadas em c). o arguido AA trazia, ainda, em seu poder:


1. Canabis resina, com o peso líquido de 1,516 gramas, com um grau de concentração do princípio activo THC de 17,9%, a permitir a sua divisão por 5 [cinco] doses individuais; ---


2. A quantia de € 165,00 [cento e sessenta e cinco euros] distribuída por 16 [dezasseis] notas de € 10,00 [dez euros] e 1 [um] nota de € 5,00 [cinco euros] do BCE. -


f). O arguido AA destinava ao respectivo consumo a canabis resina que, nas circunstâncias e condições reportadas em a). e e)., sob o ponto 1., tinha em seu poder. ---


g). Os arguidos AA e LL destinavam a cocaína que adquiriram e detinham, nas circunstâncias e condições reportadas em b). a d)., à venda a terceiros, a realizar pela quantia de € 10,00/pedra, com o que tinham em vista a obtenção de um ganho, depois de subtraído o custo de aquisição, de € 1.200,00, a repartir pelos dois. ---


h). O arguido AA sabia que, por a tanto não se encontrar autorizado, não lhe era permitido deter, ainda que para seu consumo, canabis resina, cujas características estupefacientes bem conhecia, tendo agido, ao proceder em contrário, de forma livre, deliberada e consciente, sem ignorar que a detenção da referida substância na quantidade referida em a). era proibida e punida por lei penal. ---


i). Os arguidos AA e LL, ao procederem pela forma descrita em b). a d). e g)., agiram em conjugação de vontades e de esforços, de forma livre, deliberada e consciente, conhecendo da natureza e características estupefacientes da substância aí mencionada, que, adquiriram, detinham e destinavam à venda a terceiros, mais sabendo não se encontrarem, como não se encontravam, a tanto autorizados e que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.”.


4. No âmbito do acompanhamento que tem sido realizado ao arguido pelos serviços da DGRSP no processo n.º 53/20.5..., concluiu-se que: “Em data anterior à presente reclusão AA encontrava-se a viver junto do agregado familiar de origem, dependendo economicamente dos progenitores.


Mantinha um quotidiano pautado pela inexistência de qualquer atividade estruturada, em convívio com grupo de pares associado a comportamentos de risco.


Ao nível ocupacional, no EP..., encontra-se integrado ao nível formativo, para conclusão do 3.º Ciclo do Ensino Básico. Tem adotado comportamento de acordo com o normativo prisional.


Ao nível da saúde, AA revela abstinência de substâncias psicoativas.


Pelo exposto, AA tem demonstrado atitude de motivação para o exercício de atividade formativa. No que respeita à problemática aditiva de que padece, o arguido refere encontrar-se abstinente do consumo de substâncias psicoativas. Regista comportamento globalmente adequado às normas vigentes.”


5. A pena de multa aplicada no âmbito do processo n.º 53/20.5... foi declarada extinta por despacho datado de 25/11/2021.


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Condenações sofridas pelo arguido


6. O arguido regista ainda averbadas no seu certificado de registo criminal as seguintes condenações, para além das condenações supra referidas:


i. Por sentença proferida por tribunal espanhol, no processo n.º DUR-0002128/2019, datada de 25/09/2019, e transitada em julgado a 25/09/2019, o arguido foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 8 meses de multa.


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Condições económico-sociais


7. O itinerário maturativo e social empreendido por AA possui referências familiares afectivas partilhadas no agregado de origem e outras associadas à presença de diversos factores de risco com potencial delinquencial como as dificuldades de realização académica e abandono da escolarização habilitado com o 2º ciclo do ensino, dos reduzidos hábitos de trabalho e experiência laboral irregular no apoio aos pais na venda ambulante de vestuário e das dificuldades de autonomização do agregado de origem.


8. Acresceu a convivência quotidiana rotineira e ociosa com pares vicinais em actividades não estruturadas, decorridas no pequeno meio de residência em aglomerado habitacional degradado ocupado por outros familiares e com grupo de pares associados a comportamentos pró-criminais, contextualizando o advento do uso de haxixe em plena adolescência, hábito que facilitou a transição para outras drogas como a cocaína, comportamento percepcionado pelo próprio como não problemático, sem repercussões negativas na sua inserção familiar e social e desnecessitado de qualquer aporte terapêutico.


9. À data de reclusão, AA permanecia integrado no mesmo agregado familiar e prestava de modo pontual apoio aos seus pais na venda ambulante de vestuário, permanecendo sob a dependência económica destes, detinha um quotidiano de familiaridade com pares com idêntica vivência e prosseguia com o uso de drogas, comportamento desprovido de qualquer supervisão especializada.


10. AA detém o mesmo enquadramento familiar e habitacional do agregado parental, composto pelos seus pais e pela sua irmã, integrado no Complexo ..., empreendimento de cariz social onde residem há vários anos, em proximidade a outros familiares ali residentes. Situado na periferia urbana da cidade ..., este contexto residencial é conotado com o tráfico de estupefacientes e com outras problemáticas sociais de exclusão.


11. AA não possui qualquer rendimento e manifesta interesse em retornar ao agregado de origem e em retomar a actividade de coadjuvar os seus pais na venda ambulante.


12. As condições de subsistência familiar estão organizadas pelos rendimentos auferidos com venda ambulante de vestuário num valor mensal de 700€, acrescidos da pensão de invalidez atribuída à mãe do condenado, em razão de problemática de saúde mental, no valor de 250€ mensais.


13. As despesas fixas mensais mais significativas são relativas à renda da habitação e aos consumos de água e energia eléctrica, valores que rondam os 100€, circunscrevendo uma condição económica exígua para satisfazer as principais necessidades básicas de todos os elementos do agregado, permanecendo o condenado na dependência dos seus familiares e dos laços de solidariedade e entreajuda da rede vicinal.


14. AA deu entrada no EP... no dia 15-10-2021 à ordem deste Processo. Por decisão transitada em julgado em 29-12-2022, foi condenado na pena única de 8 anos de prisão pela autoria de um crime de homicídio qualificado na forma tentada e por um crime de detenção de arma proibida, factos decorridos a cerca de 1 km do meio residencial do condenado e que causaram impacto social podendo gerar alguma reacção de recusa à futura presença de AA naquele meio.


15. O condenado tem ainda pendentes dois processos, o 1401/21.6... com audiência de julgamento para 16-02-2024, e o 991/22.0..., sem qualquer diligência comunicada.


16. O Plano de Reinserção Social foi remetido ao Processo n.º 53/20.5... em 06-10-2021 e homologado em 23-01-2023.


17. O condenado conserva o juízo crítico sobre a sua condição jurídica e social, preserva uma atitude prisional de cumprimento das regras, de adequada convivência e de ocupação quotidiana na frequência do 3º ciclo do ensino.


18. Mantém acompanhamento pelos Serviços Clínicos do EP... direccionado ao controlo dos seus problemas de saúde, a obesidade, hipertensão e colesterol elevado e de asma. Assume um quadro de abstinência sem que tenha recorrido a qualquer apoio terapêutico especializado, podendo o mesmo ser insuficiente para suster recidivas.


19. A proximidade relacional às pessoas mais significativas, pais e companheira, tem sido regulada por um regime de visitas e de contactos telefónicos frequentes.


20. Da análise do curso de vida empreendido por AA ressalta a sua precoce permeabilidade à influência de uma cultura delinquente, de problemas de emprego, de educação e formação profissional e de responsividade às intervenções da justiça, com particular incidência na capacidade de se autodeterminar de modo independente do abuso de drogas.


21. AA não possui meios próprios de subsistência permanecendo subordinado ao suporte familiar que lhe possibilita assegurar as necessidades quotidianas.


(…)”.


B) Factos não provados


Inexistem factos não provados.


C) Fundamentação da medida concreta da pena única


“(…).


Assim, de acordo com o disposto no artigo 77.º, n.º 2 do Código Penal, o limite mínimo da moldura aplicável ao concurso é de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão, sendo o limite máximo de 18 (dezoito) anos e 2 (dois) meses de prisão.


No caso em apreço, para fixação da pena única deve tomar-se em atenção, como deriva do já exposto, os factos e a personalidade do agente.


Desta forma, neste âmbito, considera-se especialmente:


A favor do arguido:


- O arguido nasceu a .../.../1997, pelo que era ainda jovem à data da prática dos factos (praticados quando este tinha 22 anos de idade).


- O arguido tem demonstrado atitude de motivação para o exercício de atividade formativa.


- No que respeita à problemática aditiva de que padece encontra-se abstinente do consumo de substâncias psicoativas.


- No estabelecimento prisional regista comportamento globalmente adequado às normas vigentes, de adequada convivência e de ocupação quotidiana na frequência do 3º ciclo do ensino.


*


Contra o arguido:


- O facto de todos os crimes terem sido cometidos com dolo direto e intenso.


- Nos presentes autos a gravidade dos factos praticados pelo arguido é intensa, tendo este tentado atingir com disparos de arma três indivíduos diferentes; o arguido foi ainda condenado pela detenção de arma ilegal.


- Os factos em causa nestes autos e no processo n.º 53/20.5... foram praticados num espaço de tempo relativamente reduzido, de cerca de um ano (entre 25/09/2019 e 05/09/2020).


- O arguido regista uma outra condenação para além das objeto do presente cúmulo, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal.


- O arguido revelou na sua juventude dificuldades de realização académica e abandono da escolarização habilitado com o 2º ciclo do ensino, reduzidos hábitos de trabalho e experiência laboral irregular no apoio aos pais na venda ambulante de vestuário e dificuldades de autonomização do agregado de origem.


- O arguido vivia até à reclusão em convivência quotidiana rotineira e ociosa com pares vicinais em atividades não estruturadas, decorridas no pequeno meio de residência em aglomerado habitacional degradado ocupado por outros familiares e com grupo de pares associados a comportamentos pró-criminais, contextualizando o advento do uso de haxixe em plena adolescência, hábito que facilitou a transição para outras drogas como a cocaína, comportamento percecionado pelo próprio como não problemático.


- O arguido não possui qualquer rendimento e manifesta interesse em retornar ao agregado de origem e em retomar a actividade de coadjuvar os seus pais na venda ambulante.


*


Sopesando todos estes vetores, entende este Tribunal Coletivo como justa, por necessária, adequada e proporcional, a aplicação ao arguido da pena única de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática dos crimes referenciados nos n.ºs 1 a 3 factos provados.


*


Atendendo a que a pena única de prisão concretamente aplicada ao arguido ultrapassa o limite temporal de 5 (cinco) anos, está legalmente arredada qualquer hipótese de suspensão da sua execução (cf. artigo 50.º do Código Penal).


(…)”.


D) Fundamentação da não aplicação do desconto previsto no art. 81º, nº 2 do C. Penal


“(…).


Tendo em conta que o arguido tem vindo a cumprir o período de suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada no âmbito do processo n.º 53/20.5... e uma vez que esta não foi revogada, afigura-se-nos relevante esse cumprimento nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 81.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.


Com efeito, dispõe o artigo 80.º, n.º 1 do Código Penal, que:


“1 - A detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.”


E estipula ainda o artigo 81.º que:


“1 - Se a pena imposta por decisão transitada em julgado for posteriormente substituída por outra, é descontada nesta a pena anterior, na medida em que já estiver cumprida.


2 - Se a pena anterior e a posterior forem de diferente natureza, é feito na nova pena o desconto que parecer equitativo.”


*


Conforme se tem vindo a decidir na jurisprudência mais recente dos nossos tribunais superiores, designadamente no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães (Proc. n.º 1165/09.8TDPRT-A.G1, in dgsi.pt), de 30-06-2022:


“I - No âmbito do conhecimento superveniente de crimes, as penas parcelares de prisão com execução suspensa que estejam já parcialmente cumpridas quando foram englobadas no cúmulo jurídico podem dar origem ao «desconto que parecer equitativo» na pena única.


II - Em caso algum o desconto se pode reportar à mera suspensão da execução da pena de prisão pelo decurso do tempo, sem o concreto cumprimento de quaisquer deveres, regras de conduta ou atividades.


III - O momento próprio para a ponderação sobre tal desconto proporcional e equitativo, por integrar um caso especial de determinação da pena (e não uma regra legal em matéria de execução de penas) é o do acórdão cumulatório.”


No mesmo sentido do agora explanado decidiu ainda o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Proc. n.º 703/18.3PBEVR.S1), de 09-06-2021, in dgsi.pt.


*


Cumpre assim, no caso dos autos, aferir do desconto equitativo a aplicar na pena de prisão suspensa na sua execução já parcialmente cumprida pelo arguido.


Vejamos.


No âmbito do processo n.º 53/20.5..., o arguido foi condenado na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova, direcionado para a interiorização do desvalor das suas condutas e para a vinculação a actividade laboral e ocupacional regulares.


Foi solicitado e junto aos autos o relatório semestral de acompanhamento da suspensão da pena aplicada ao condenado, conforme já supra mencionado.


Do referido relatório consta, em síntese, que até à sua reclusão o arguido “Mantinha um quotidiano pautado pela inexistência de qualquer atividade estruturada, em convívio com grupo de pares associado a comportamentos de risco.” Desde que recluído, refere-se que “tem demonstrado atitude de motivação para o exercício de atividade formativa. No que respeita à problemática aditiva de que padece, o arguido refere encontrar-se abstinente do consumo de substâncias psicoativas.”


Ora, no que toca a tal processo, o trânsito em julgado da pena ocorreu a 02/07/2021, pelo que decorreram já cerca de 2 anos e 7 meses do mesmo.


Contudo, decorre dos autos que o condenado se encontra preso à ordem deste processo desde 06/07/2021.


Daqui se depreende que o arguido esteve escassos dias em liberdade após o início do decurso da suspensão da execução da referida pena.


Neste sentido, cumpre recordar, pela sua pertinência para o caso decidendo, o que consta do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães (Proc. n.º 1165/09.8TDPRT-A.G1, in dgsi.pt), de 30-06-2022:


“E fazendo nossas as palavras de Figueiredo Dias:


“Já se pretendeu que sendo o funcionamento do desconto «automático» — talvez melhor: «obrigatório» —, ele deixa de constituir um caso especial de determinação da pena, para se tornar em mera regra legal de execução: com a consequência de que o desconto não precisaria de ser mencionado na sentença, tornando-se tarefa das autoridades competentes para a execução.


É pelo menos duvidoso que assim deva ser entre nós. Por um lado, como veremos, em certas hipóteses o juiz fará na pena não o desconto pré-determinado na lei, mas aquele que lhe parecer «equitativo» — o que afasta de todo a hipótese de se falar, então, em mera regra de execução da pena; por outro lado, mesmo quando pré-determinado legalmente, o desconto transforma o quantum da pena a cumprir pelo agente, o que basta para justificar o tratamento sistemático do instituto do desconto entre os casos especiais de determinação da pena. Tudo convida, assim, a que o desconto seja sempre — mesmo quando legalmente pré-determinado — mencionado na sentença condenatória”.


Nesta linha, temos considerado o desconto como um caso especial de determinação da pena que, sempre que possível, deve ser mencionado na sentença condenatória, assim como na sentença cumulatória.»


De todo o modo, ainda que assim não fosse e o desconto proporcional relativamente às penas parcelares de prisão com execução suspensa incluídas no cúmulo jurídico dos autos pudesse ainda executar-se neste momento, em sede de liquidação da pena (4), também não se verificariam os pressupostos materiais para tal. Posto que em caso algum o desconto se pode reportar à mera suspensão da execução da pena de prisão pelo decurso do tempo, sem o concreto cumprimento de quaisquer deveres, regras de conduta ou atividades. Como se pode ler no acórdão do STJ de 29.06.2017, proc. n.º 1372/10.4 TAVLG.S1, citado na decisão recorrida, «o desconto não pode assentar simplesmente no decurso do tempo de suspensão, sem qualquer sacrifício para o condenado, por nisso não haver justificação, tendo de haver o cumprimento de qualquer imposição decretada ao abrigo dos art.ºs 51.º a 54.º do Código Penal. E o art.º 81.º, n.ºs 1 e 2, nesta interpretação, não fere os ditos princípios constitucionais, na medida em que o simples não fazer nada para que não seja determinada a revogação da suspensão não é mais do que aquilo que se exige a qualquer cidadão sobre o qual não impenda a ameaça da execução de pena de prisão». (sublinhados nossos).


*


Descendo ao caso dos autos, constata-se que, de facto, o condenado não permaneceu em liberdade durante qualquer tempo relevante no decurso da suspensão da execução da referida pena, tendo estado em reclusão desde 06/07/2021.


Daí que não tenha cumprido quaisquer deveres à ordem do regime de prova ordenado naquele processo que possam ser tidos em conta para a aplicação do desconto equitativo.


Com efeito, o referido regime de prova aplicado no âmbito daquela suspensão não representou qualquer impacto significativo na vida do arguido, posto que escassos dias depois ficou sujeito à medida de prisão preventiva.


Pelo que não pode considerar-se, no caso, que ao condenado foi imposto qualquer sacrifício no âmbito da referida pena suspensa.


Assim se concluindo que não pode haver, no concreto caso dos autos, lugar à aplicação de qualquer desconto equitativo relativamente ao processo n.º 53/20.5..., o que se decide.


(…)”.


*


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Âmbito do recurso


Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem, pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.


Consistindo as conclusões num resumo do pedido, portanto, numa síntese dos fundamentos do recurso levados ao corpo da motivação, entre aquelas [conclusões] e estes [fundamentos] deve existir congruência.


Deste modo, as questões que integram o corpo da motivação só podem ser conhecidas pelo tribunal ad quem se também se encontrarem sumariadas nas respectivas conclusões. Quando tal não acontece deve entender-se que o recorrente restringiu tacitamente o objecto do recurso.


Por outro lado, também não deve ser conhecida questão referida nas conclusões, que não tenha sido tratada no corpo da motivação (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2020, Universidade Católica Editora, pág. 335 e seguintes).


Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir no presente recurso, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, por ordem de precedência lógica, são:


- A saber se foram violados os arts. 613º, 616º, 619º, 620º e 628º do C. Processo Civil, por ter sido efectuado o cúmulo superveniente sem que tenha transitado em julgado o despacho de 21 de Setembro de 2023, que recusou a aplicação do regime da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto;


- A de saber se foi incorrectamente determinada a medida concreta da pena única de prisão.


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Da violação dos arts. 613º, 616º, 619º, 620º e 628º do C. Processo Civil, por ter sido efectuado o cúmulo superveniente sem que tenha transitado em julgado o despacho de 21 de Setembro de 2023, que recusou a aplicação do regime da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto


1. Alega o recorrente – conclusões 1 a 3 – que tendo interposto recurso da decisão que lhe negou a aplicação do regime da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, a sua condenação não transitou em julgado pois que, a ser deferida aquela pretensão, a moldura penal abstracta da pena a aplicar nos autos pode ser alterada, não sendo definitiva a sua situação processual, pelo que, deveria a 1ª instância ter aguardado a decisão da Relação de Guimarães, e só depois deveria ter efectuado o cúmulo das penas, deste modo tendo sido violados os arts. 613º, 616º, 619º, 620º e 628º do C. Processo Civil.


No corpo da motivação o arguido densificou a alegação, dizendo ter sido condenado nos autos, por acórdão de 19 de Julho de 2022, transitado em julgado em 29 de Dezembro de 2022, pela prática de três crimes de homicídio qualificado tentado [penas de 5 anos e 6 meses de prisão, 4 anos e 3 meses de prisão e 4 anos e 3 meses de prisão] e de um crime de detenção de arma proibida [pena de 1 ano e 6 meses de prisão], na pena única de 8 anos de prisão, que em 12 de Setembro de 2023 requereu a aplicação da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, que foi indeferida por despacho de 21 de Setembro de 2023, que interpôs recurso deste despacho para o Tribunal da Relação de Guimarães em 23 de Outubro de 2023, recurso que foi admitido mas ainda não foi decidido, que a eventual procedência do recurso terá influência directa na pena a aplicar impondo a realização de novo cúmulo jurídico, pelo que, a realização do acórdão cumulatório das penas aplicadas no acórdão de 19 de Julho de 2022 com as penas aplicadas no processo nº 53/20.5..., antes da decisão do recurso ter transitado violas as normas referidas do C. Processo Civil.


Com relevo para a questão suscitada, cumpre dizer que o Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão de 19 de Março de 2024 [certidão consultável no processo electrónico], negou provimento ao recurso do arguido, confirmando o despacho de 21 de Setembro de 2023.


Pois bem.


Começamos por notar que o requerimento de 12 de Setembro de 2023, através do qual o recorrente peticionou a aplicação do perdão da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, se refere apenas à pena única de 8 anos aplicada no acórdão de 19 de Julho de 2022, proferido nos autos, sendo que há muito se encontrava transitado em julgado este acórdão [em 29 de Dezembro de 2022], quando o requerimento foi apresentado.


Resulta, assim, incompreensível, ressalvado sempre o respeito devido, a afirmação levada à conclusão 1, segundo a qual, a sua condenação não transitou em julgado.


A circunstância de a 1ª instância ter procedido à realização do cúmulo superveniente [em 8 de Fevereiro de 2024], sem que estivesse decidido o recurso interposto para o Tribunal da Relação de Guimarães tendo por objecto a pretendida aplicação do perdão da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, em nada afectou a posição do recorrente, pela simples razão de que tal perdão, de 1 ano, em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena única (art. 3º, nºs 1 e 4 da lei citada).


E como se disse, o Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão de 19 de Março de 2024, entendendo que o recorrente não poderia beneficiar do perdão em causa, confirmou o despacho recorrido.


Por último, versando o art. 613º do C. Processo Civil a extinção do poder jurisdicional e suas limitações e versando o art. 616º do mesmo código os casos de reforma da sentença, não descortinamos a relevância de tais normas para a questão suscitada.


Por seu turno, referindo-se os arts. 619º, 620º e 628º do C. Processo Civil ao valor da sentença transitada em julgado, ao caso julgado formal e à noção de trânsito em julgado, porque a questão colocada não se prende com estas realidades, de modo algum podem ter sido violadas pela realização do cúmulo superveniente no acórdão recorrido.


Em suma, carece de fundamento a invocada questão prévia.


*


Da incorrecta determinação da medida concreta da pena única de prisão


2. Diz o recorrente – conclusões 4 a 10 – discordar da medida da pena única fixada, porque o tribunal atendeu, essencialmente, na sua determinação, à gravidade dos factos praticados nestes autos, valorizando incorrectamente o decurso do tempo em que esteve em liberdade, após o trânsito em julgado do acórdão proferido no processo nº 53/20.5..., quando devia ter valorado a circunstância de a sua personalidade se ter formado na ausência de padrões de conduta normativa e formação escolar, a sua adição ao consumo de estupefacientes enquanto factor potenciador de condutas desviantes, a circunstância de as condutas típicas terem, nos dois casos, tido lugar num único dia, a sua juventude e imaturidade, a assunção de consciência crítica e adopção de comportamentos ajustados, o empenho demonstrado na eliminação dos factores potenciadores de condutas típicas e aditivas, a manutenção de laços afectivos com o agregado familiar, tudo isto mitigador das exigências de prevenção, pelo que, tendo em conta a moldura penal aplicável ao concurso de crimes, é justa e adequada a pena única de 8 anos de prisão, violando a pena única fixada pela 1ª instância os arts. 71º e 77º do C. Penal.


No corpo da motivação o arguido densificou a alegação, argumentando que na data da prática dos factos tinha 22 anos de idade, que no relatório social de acompanhamento do regime de prova imposto no acórdão proferido no processo nº 53/20.5... consta que demonstrou atitude de motivação para o exercício de actividade formativa e que, quanto à adição de que padece, refere encontrar-se abstinente, registando comportamento globalmente adequado, que a pena imposta neste processo – prisão suspensa na respectiva execução com regime de prova – estava a vinte e dois dias de ser declarada extinta, quando, nestes autos, foi efectuado o cúmulo de penas que a englobou, que o tribunal a quo, entendendo que esteve escassos dias em liberdade após a condenação na pena de prisão suspensa na respectiva execução, considerou não haver lugar a desconto equitativo quanto ela, por não ter existido cumprimento de deveres ou actividade, o que não é correcto pois, mesmo estando em prisão preventiva, haveria a possibilidade de praticar crimes ou infracções disciplinares, como sucederia se estivesse em liberdade, que não se limitou a adequar o seu comportamento prisional às regras da instituição, tendo-se esforçado por se manter abstinente e tendo procurado novas competências escolares, pelo que, dada a atenuação do perigo de continuação de comportamentos desviantes, ainda que desconto não houvesse, deveria ter sido mais intensamente valorado este comportamento, que conserva juízo crítico sobre a sua situação, decorridos que estão 3 anos e 2 meses de privação de liberdade, que tem apoio familiar e da namorada, pelo que, tudo considerado, é excessiva a pena de 9 anos e 6 meses de prisão imposta, antes devendo ser aplicada a de 8 anos de prisão.


Vejamos.


O recorrente sindica as consequências jurídicas da sua conduta, limitando o objecto do recurso à correcção da medida da pena única que lhe foi imposta que, como vimos, considera desproporcional e excessiva.


Atentemos, pois, na problemática da determinação da pena no caso de concurso de crimes.


O art. 77º do C. Penal, com a epígrafe «Regras da punição do concurso», dispõe na 1ª parte do seu nº 1 que, [q]uando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena.


É pressuposto da aplicação deste critério especial de determinação da medida da pena que o agente tenha praticado uma pluralidade de crimes constitutiva de um concurso efectivo – real ou ideal, homogéneo ou heterogéneo –, antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer deles, distinguindo este último aspecto os casos de concurso dos casos de reincidência. Verificado que seja, o agente é condenado numa pena única.


A lei penal afastou o sistema da acumulação material de penas, tendo optado pela instituição de um sistema de pena conjunta, resultante de um princípio de cúmulo jurídico (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas/Editorial Notícias, pág. 283 e seguintes e Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, 2013, Coimbra Editora, pág. 56 e seguintes).


Com efeito, estabelece o nº 2 do art. 77º do C. Penal que, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limites mínimos a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.


A determinação da medida concreta da pena única a aplicar ao concurso de crimes impõe a observância de um procedimento, digamos assim.


A primeira etapa passa pela determinação da medida concreta da pena de cada crime que integra o concurso, de acordo com o critério geral de determinação da medida da pena, previsto no art. 71º do C. Penal. Tratando-se, como é o caso, de um concurso de conhecimento superveniente, o que verdadeiramente acontece é serem tomadas em conta as penas parcelares, nos termos fixados nas respectivas decisões condenatórias.


A segunda tarefa consiste na fixação da moldura penal do concurso, que terá como limite máximo a soma das penas parcelares aplicadas aos vários crimes que integram o concurso – limite que, contudo, não pode ultrapassar os limites expressamente fixados na lei – e como limite mínimo, a mais elevada das penas parcelares (nº 2 do art.77º do C. Penal).


O terceiro passo – verdadeira operação da concretização da pena única – consiste na determinação da medida concreta da pena conjunta do concurso, dentro dos limites da respectiva moldura penal, em função dos critérios gerais da medida da pena – culpa e prevenção – fixados no art. 71º do C. Penal, e do critério especial previsto no art. 77º, nº 1, parte final do mesmo código, nos termos do qual, na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.


A última etapa traduz-se na substituição da pena conjunta por pena de substituição, de acordo com o critério geral de escolha da pena, previsto no art. 70º do C. Penal, quando disso seja caso.


A ponderação conjunta dos factos e da personalidade do agente, para efeitos da medida da pena única aconselha uma explicação, ainda que breve.


Aqui, podemos dizer que o conjunto dos factos indicará a gravidade do ilícito global praticado – sendo particularmente relevante, para a sua fixação, a conexão existente entre os factos integrantes do concurso –, enquanto a avaliação da personalidade unitária do agente permitirá aferir se o conjunto dos factos integra uma tendência desvaliosa ou se, pelo contrário, é apenas uma pluriocasionalidade que não tem origem na personalidade, sendo que, só no primeiro caso, o concurso de crimes deverá ter um efeito agravante. É igualmente importante, nesta sede, a análise do efeito previsível da pena sobre a conduta futura do agente (Figueiredo Dias, op. cit., pág. 290 e seguintes). Na verdade, e como se escreveu no acórdão deste Supremo Tribunal de 27 de Fevereiro de 2013 (processo nº 455/08.5GDPTM, in www.dgsi.pt), «[f]undamental na formação da pena do concurso é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação desse espaço de vida com a personalidade.».


Aqui chegados, revertamos para o caso concreto.


3. O arguido foi condenado, nos autos e no processo nº 53/20.5..., nas seguintes penas parcelares:


- crime de homicídio qualificado, agravado pelo uso de arma, na forma tentada, 5 anos e 6 meses de prisão;


- crime de homicídio qualificado, agravado pelo uso de arma, na forma tentada, 4 anos e 3 meses de prisão;


- crime de homicídio qualificado, agravado pelo uso de arma, na forma tentada, 4 anos e 3 meses de prisão;


- crime detenção de arma proibida, 1 ano e 6 meses de prisão;


- crime de tráfico de menor gravidade, 2 anos e 8 meses de prisão, suspensa na respectiva execução pelo mesmo período, com sujeição a regime de prova.


Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 9 anos e 6 meses de prisão.


Estão verificados os pressupostos, processuais e substantivos, da realização do cúmulo jurídico superveniente destes penas parcelares, pressupostos cuja existência o recorrente não questiona no presente recurso.


A moldura penal abstracta aplicável ao concurso é, atento o disposto no art. 77º, nº 2 do C. Penal, a de 5 anos e 6 meses de prisão a 18 anos e 2 meses de prisão.


a. Tendo presente que os factores enunciados no art. 71º do C. Penal, globalmente considerados, podem constituir guia para a concretização da medida da pena única, constatamos que o tribunal a quo, na realização desta operação, considerou:


- como circunstancialismo agravante, a elevada gravidade dos factos praticados e o modo de execução dos mesmos, no que respeita aos crimes contra a vida, a relativa proximidade temporal entre os factos que integram o objecto de cada um dos processos em causa, a elevada intensidade do dolo que foi directo em todos os crimes, a condenação sofrida em Espanha com trânsito em 25 de Setembro de 2019, pela prática de crime de condução sem habilitação legal, os reduzidos hábitos de trabalho, a vivência diária de ociosidade e acompanhamento de grupos de pares associados a comportamentos desviantes, e o consumo de estupefacientes pelo recorrente – iniciado com haxixe e que evoluiu para a cocaína –, que não percepciona como problemático; e,


- como circunstancialismo atenuante, a sua juventude, tendo nascido a ... de ... de 1997, a atitude de motivação para o exercício de actividade formativa, a abstinência de consumo de estupefacientes, e o comportamento globalmente adequado às normas da instituição prisional.


Entende o arguido, se bem percebemos a sua argumentação, que a 1ª instância não valorou ou, pelo menos, não valorou com a intensidade por si pretendida, algumas das circunstâncias susceptíveis de, segundo o seu entendimento, o beneficiarem na concretização da medida da pena conjunta. Vejamos.


i) Começa o recorrente por realçar que os factos por si praticados, nos presentes autos e no processo nº 53/20.5..., foram executados, em cada processo, num único dia, embora no que a estes autos respeita, tenha existido uma pluralidade de ofendidos, e que entre os factos de cada processo mediou cerca de um ano, portanto, um hiato temporal relativamente pequeno.


Os crimes que constituem o objecto destes autos – três crimes de homicídio qualificado tentado e um crime de detenção de arma proibida – ocorreram no dia 5 de Setembro de 2020, e o crime de tráfico de menor gravidade, que integra o objecto do processo nº 53/20.5... ocorreu no dia 23 de Novembro de 2020 pelo que, contrariamente ao afirmado pelo recorrente, estão separados por dois meses e dezoito dias.


A proximidade temporal dos ilícitos não é, seguramente, uma circunstância atenuante, sendo certo que a ilicitude dos crimes contra a vida, embora sejam todos crimes tentados, é muito elevada, atenta a sua forma de cometimento e a violência grupal que lhes está subjacente.


ii) Invoca o recorrente a sua juventude na data da prática dos factos, sem explicar como possa ela, per se, constituir circunstância atenuante.


Consta do Relatório do acórdão recorrido ter o recorrente nascido a ... de ... de 1997 – e esta mesma data foi considerada quando no ponto 4.1. do mesmo acórdão, se enunciaram os aspectos, a favor do arguido – pelo que, estava muito próximo de perfazer 23 anos de idade quando praticou o crime de tráfico de menor gravidade e já tinha completado os 23 de anos quando praticou os crimes de homicídio qualificado tentado e o crime de detenção de arma proibida.


Sendo, em todo o caso, um jovem, o que podemos dizer é que muito cedo, na sua vida, começou a praticar factos típicos, alguns, infelizmente, da maior gravidade, quando o que a comunidade espera, de todo e qualquer cidadão, é que paute a sua vida, sempre, de forma socialmente responsável.


De qualquer forma, a juventude do recorrente encontra-se entre as circunstâncias que o tribunal a quo lhe considerou favoráveis.


iii) Convoca o recorrente a abstinência no consumo de estupefacientes, a aquisição de novas competências escolares, a existência de juízo crítico sobre a sua condição jurídica e social e o comportamento ajustado às regras do Estabelecimento Prisional.


Não podendo ser ignorada a realidade do sistema prisional português no que respeita ao consumo de drogas intra muros, deve, no entanto, reconhecer-se que a acessibilidade a tais substâncias no interior das instituições prisionais depara com acrescidas dificuldades por parte dos consumidores, o que faz, pelo menos, diminuir os níveis individuais de consumo, em comparação com os que se verificariam em liberdade.


A aquisição de novas competências escolares, num cidadão que poucas tinha, é um factor de valorização pessoal e social importante, a merecer devida ponderação.


Já a adequação do comportamento às normas do Estabelecimento Prisional é apenas o que se espera e exige de quem nele se encontre recluído.


Note-se, no entanto, que todos estes elementos se contam, também, entre as circunstâncias que o tribunal a quo considerou favoráveis ao recorrente.


Aqui chegados, podemos dizer que, quanto a circunstâncias atenuantes e agravantes, o tribunal a quo ponderou o que havia a ponderar.


Deve, no entanto, deixar-se claramente afirmado serem muito elevadas as exigências de prevenção geral portanto, as exigências de protecção dos bens jurídicos, especialmente, no que respeita aos três crimes contra a vida praticados pelo recorrente e, por outro lado, que, não obstante a inexistência de antecedentes criminais de relevo e da relativa inserção familiar, não são de desprezar as exigências de prevenção especial portanto, as exigências de ressocialização. Com efeito, para além da precoce permeabilidade à influência de uma cultura delinquente, da ausência de hábitos de trabalho e da pouca adesão às intervenções da justiça relativamente à capacidade de se autodeterminar de modo independente do abuso de drogas (pontos 18 e 20 da matéria de facto provada do acórdão recorrido), o recorrente apresenta traços de uma personalidade imatura, impulsiva, violenta e desconforme ao direito.


b. Atentando agora no critério previsto na segunda parte do nº 1 do art. 77º do C. Penal, no que respeita à gravidade do ilícito global, considerando o que se deixou dito em a., que antecede, referido agora ao conjunto dos factos, porque estamos perante três crimes de homicídio qualificado tentado, praticados nas mesmas circunstâncias de tempo e de lugar, com o uso de arma de fogo de calibre proibido, que implicou o cometimento do crime de detenção de arma proibida, é evidente a estreita conexão entre todos estes ilícitos típicos, enquanto o crime de tráfico de menor gravidade, devido à distinta natureza, e separação temporal de cerca de dois meses e meio, tem uma mais fraca conexão com aqueles, sendo que, a final, a análise e avaliação como um todo das condutas em causa aponta, inquestionavelmente, para uma ilicitude global de grau elevado.


No que à personalidade unitária do arguido concerne, damos por reproduzidos os traços já identificados, a fim de evitar desnecessárias repetições.


Tudo ponderado, dada a inexistência de antecedentes criminais relevantes, o número de crimes praticados e o tempo da sua prática e a juventude do recorrente, entendemos não ser possível, desde já, concluir pelo início de uma carreira criminosa, com raízes na sua personalidade, razão pela qual não pode o concurso de crimes funcionar como factor agravante, na determinação da pena conjunta.


A 1ª instância decretou ao recorrente, em cúmulo jurídico, a pena única de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão.


No arco da moldura penal aplicável ao concurso de crimes, a pena situa-se ligeiramente acima de um quarto da mesma, o que significa, manifestamente, que o concurso de crimes não funcionou como agravante.


Outrossim, considerando a gravidade do ilícito global e a personalidade unitária do recorrente, entendemos a pena única fixada pelo tribunal a quo como adequada, necessária, proporcional e plenamente suportada pela medida da sua culpa, pelo que deve ser mantida.


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4. Embora o recorrente não tenha sumariado em qualquer das conclusões formuladas, a questão da não aplicação do desconto equitativo de pena, previsto no art. 81º, nº 2 do C. Penal, decidida no acórdão recorrido, o mesmo abordou a questão no corpo da motivação, aí manifestando a sua discordância quanto ao decidido.


Porém, já tivemos oportunidade de dizer que, devendo as conclusões sintetizar os fundamentos do recurso levados ao corpo da motivação, entre estes e as conclusões deve existir congruência, pelo que, o tribunal de recurso só pode conhecer dos fundamentos sumariados nas conclusões, da mesma forma que só pode conhecer de questão sumariada nas conclusões, que tenha sido também abordada no corpo da motivação.


Sem prejuízo do que antecede, sempre diremos o que segue, ainda que não vá além de obiter dictum.


Dispõe o art. 81º do C. Penal, com a epígrafe «Pena anterior»:


1 – Se a pena imposta por decisão transitada em julgado for posteriormente substituída por outra, é descontada nesta a pena anterior, na medida em que já estiver cumprida.


2 – Se a pena anterior e a posterior forem de diferente natureza, é feito na nova pena o desconto que parecer equitativo.


Tem particular interesse para a questão de que cuidamos o nº 2 transcrito, pois à sua previsão se reconduz.


Com efeito, o recorrente foi condenado por acórdão de 2 de Junho de 2021 proferido no processo nº 53/20.5..., pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, na pena de 2 anos e 8 meses de prisão, substituída pela pena de suspensão da respectiva execução, pelo mesmo período, com sujeição a regime de prova, direccionado para a interiorização do desvalor das suas condutas e para a vinculação a actividade laboral e ocupacional regulares.


Este acórdão transitou em julgado em 2 de Julho de 2021, passando o recorrente a cumprir a imposta pena de substituição.


Consta dos autos [designadamente, do despacho de 9 de Novembro de 2023, que homologou a liquidação da pena única de 8 anos de prisão, imposta ao recorrente por acórdão de 19 de Julho de 2022, transitado em julgado em 29 de Dezembro de 2022, proferido nestes autos] que o recorrente se encontra ininterruptamente privado da liberdade, à ordem dos mesmos, desde 6 de Julho de 2021, o que significa que, o cumprimento da pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão aplicada no processo nº 53/20.5..., decorreu em liberdade apenas no período compreendido entre 2 e 6 de Julho de 2021.


Acontece que a pena principal de 2 anos e 8 meses de prisão, decretada ao recorrente no processo nº 53/20.5..., como sabemos, veio a integrar o cúmulo de penas efectuado pelo acórdão recorrido, que lhe impôs a pena única de 9 anos e 6 meses de prisão, obviamente, não susceptível de substituição.


Pois bem.


É entendimento pacífico na jurisprudência deste Supremo Tribunal que o desconto previsto no nº 2 do art. 81º do C. Penal não pode ter por fundamento, apenas, o decurso do tempo da suspensão da execução da pena de prisão sem o cumprimento, pelo condenado, de deveres e regras de conduta impostas nos termos do disposto nos arts. 51º a 54º do mesmo código.


Com efeito, a pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão pode, na sua execução, implicar, e frequentemente, implica, sacrifícios para o condenado, corporizados no cumprimento daqueles deveres e observância daquelas regras de conduta. Ora, não sendo, evidentemente, comparáveis, o cumprimento de uma pena de prisão efectiva e o cumprimento de uma pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão, com sujeição a deveres e regras de conduta, é o sacrifício que esta sujeição representa a ratio do questionado desconto que, como dispõe a lei, só terá lugar quando pareça equitativo.


Há, assim, que ponderar em cada caso, numa perspectiva de proporcionalidade e justiça material, por um lado, os sacrifícios sofridos pelo condenado e por outro, as finalidades de prevenção geral e especial. Sendo tais sacrifícios, como vimos, os decorrentes da observância dos deveres e regras de conduta fixados, não existindo estes, não pode haver lugar a desconto, por impossibilidade de o conceber como equitativo. Neste sentido, podem ver-se, entre outros, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 11 de Janeiro de 2024, processo nº 3130/22.4T8BRG.S2, de 14 de Dezembro de 2023, processo nº 130/18.2JAPTM.”.S1, de 12 de Outubro de 2022, processo nº 277/08.3TAEVR.S1, de 9 de Junho de 2021, processo nº 703/18.3PBEVR.S1 e de 29 de Junho de 2017, processo nº 1372/10.4TAVLG.S1, todos in, www.dgsi.pt).


Na argumentação apresentada para dissentir da decidida não aplicação do perdão, no acórdão recorrido, diz o recorrente que o simples facto de estar detido [à ordem destes autos] enquanto cumpria a pena de substituição imposta no processo nº 53/20.5..., não o impediria de praticar crimes ou infracções disciplinares, sendo certo que, para além de cumprir as regras do estabelecimento prisional, também se manteve abstinente do consumo de estupefacientes e procurou obter novas competências escolares, pelo que, ainda que o Tribunal não operasse a qualquer desconto, deveria ter ponderado de forma mais acentuada, o comportamento posterior do arguido, ainda que em situação de privação de liberdade.


É evidente, com ressalva do respeito devido, o equivoco do recorrente, pois a assunção de comportamentos socialmente responsáveis por qualquer cidadão, esteja em liberdade, esteja em reclusão, é sempre uma exigência da vida em comunidade e não, um sacrifício, capaz de fundamentar a aplicação do desconto.


Em suma, é também nosso entendimento não existir, in casu, fundamento para ser feito desconto na pena única de 9 anos e 6 meses de prisão.


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III. DECISÃO


Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo da 5.ª Secção Criminal, em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o acórdão recorrido.


Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UCS. (art. 513º, nºs 1 e 3, do C. Processo Penal, art. 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).


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(O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do art. 94º, nº 2 do C. Processo Penal).


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Lisboa, 20 de Junho de 2024


Vasques Osório (Relator)


Albertina Pereira (1ª Adjunta)


João Rato (2º Adjunto)