Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
56/13.6GBCNT.C2.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: RECURSO PENAL
RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE DIREITO
VÍCIOS DO ARTº 410.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
ALÇADA
SUCUMBÊNCIA
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
Data do Acordão: 12/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :

I – A jurisprudência das Secções Criminais do STJ tem sustentado a aplicação subsidiária do regime da denominada dupla conforme ,previsto no artigo 671.º, n.º 3, do CPC, ex vi artigo 4.º do CPP, aos recursos relativos a pedidos de indemnização cível formulados em processo penal


II - A maioria da doutrina, tal como a jurisprudência largamente majoritária do STJ, nas secções cíveis e nas secções criminais, adotaram o critério da denominada dupla conforme «racional ou ponderada» ou «confirmação in melius» (critério da coincidência racional, por inclusão quantitativa), para aferir do requisito da conformidade decisória.


III - O mecanismo processual da convolação, em processo civil, tem por base a existência clara de um erro tipológico numa peça que apresenta determinada pretensão, ou seja, é, «grosso modo», o ato jurisdicional que, tendo em vista a inadequação da peça processual para atingir o que o seu apresentante tinha em vista, a requalifica juridicamente, aproveitando-a dentro do destino genérico que a apresentação da peça visou, tendo em vista o “princípio de boa economia processual” (artigo 193.º do CPC).


IV - A reclamação para a conferência, prevista no n.º 8, do artigo 417.º, do CPP, tem por finalidade fazer sindicar colegialmente a decisão tomada pelo relator, não habilitando a que o recorrente/reclamante altere em substância a sua pretensão mediante a alegação de novos factos e pressupostos do recurso, só podendo haver convolação quando possam considerar-se preenchidos os requisitos do meio para o qual o objeto será convolado.

Decisão Texto Integral:







RECURSO n.º 56/13.6GBCNT.C2.S1


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – RELATÓRIO


1. No Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – Juízo Local Criminal de ..., o Ministério Público requereu o julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular, dos arguidos A................ . ...... ............, Unipessoal, Lda., e AA, com os demais sinais dos autos, imputando-lhes factos suscetíveis de integrar:


- por parte do arguido AA, a autoria material, na forma consumada e em concurso real, de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, alíneas a) e e), por referência ao artigo 255.º, alínea a), e de um crime de burla, previsto e punido pelo artigo 218.º, n.º 2, alínea a), todos do Código Penal;


- por parte da sociedade arguida A................ . ...... ............, Unipessoal, Lda., a autoria material, na forma consumada e em concurso real, de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, alíneas a) e e), por referência aos artigos 255.º, alínea a), e 11.º, n.º 1, e de um crime de burla, previsto e punido pelos artigos 218.º, n.º 2, alínea a), e 11.º, n.º 1, todos do Código Penal.


Infraestruturas de Portugal, S.A., deduziu pedido de indemnização civil em que peticiona a condenação solidária dos arguidos/demandados civis, relativamente a danos patrimoniais sofridos, no valor total de 90 410,23 €, acrescido de juros de mora legais, contados desde 18-02-2013 até efetivo pagamento, posteriormente reduzido o pedido em 15 451,80 €, redução que foi admitida, cifrando-se o valor do pedido em 74 958,43 €.


Realizada a audiência de julgamento, a 1.ª instância proferiu sentença em que decidiu:


- Condenar AA, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, por um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, alíneas a) e e), por referência ao artigo 255.º, alínea a), numa pena de 6 meses de prisão, e por um crime de burla, previsto e punido pelo artigo 218.º, n.º 2, alínea a), todos do Código Penal, numa pena de 2 anos de prisão, sendo a pena única de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.


- Condenar a sociedade A................ . ...... ............, Unipessoal, Lda., em concurso real, por um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, alíneas a) e e), por referência aos artigos 255.º, alínea a), e 11.º , n.º 1, numa pena de 100 dias de multa, e por um crime de burla, previsto e punido pelo artigo 218.º, n.º 2, alínea a), e 11.º, n.º 1, todos do Código Penal, numa pena de 240 dias de multa, sendo a pena única de 300 dias de multa à taxa diária de 10,00 €, num total de 3 000,00 €.


Mais julgou parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por Infraestruturas de Portugal, S.A., e condenou solidariamente os referidos arguidos/demandados civis no pagamento à demandante da quantia de 54 446,48€ (cinquenta e quatro mil quatrocentos e quarenta e seis euros e quarenta e oito cêntimos).


2. Na sequência do recurso interposto pelos arguidos, a Relação de Coimbra proferiu acórdão em que declarou nula a sentença por falta de fundamentação e omissão de pronúncia e determinou a sua substituição por outra que suprisse as identificadas nulidades.


Os autos baixaram à 1.ª instância para que o tribunal a quo procedesse ao suprimento das nulidades, o qual proferiu nova sentença em que decidiu nos mesmos termos da primeira sentença.


3. Recorreram novamente os arguidos/demandados civis, tendo a Relação de Coimbra proferido acórdão, em 24.05.2023, que decidiu nos seguintes termos:


«Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em conceder provimento parcial ao recurso e, consequentemente, decidem:


1. Modificar a decisão sobre a matéria de facto na parte relativa aos parágrafos provados 14, 15, 38 e 20, nos precisos termos determinados em 3.4.2. e 3.5., para onde se remete.


2. Revogar a sentença recorrida na parte em condenou o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, alíneas a) e e), por referência ao artigo 255.º, alínea a), numa pena de 6 meses de prisão, e, em cúmulo com a pena de dois anos de prisão aplicada pelo crime de burla, previsto e punido pelo artigo 218.º, n.º 2, alínea a), todos do Código Penal, numa pena única de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na execução por igual período.


3. Condenar o arguido AA na prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, alíneas a) e e), por referência ao artigo 255.º, alínea a), na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de 10,00 € (dez euros), o que perfaz o total de 2 000,00 € (dois mil euros).


4. Confirmar, quanto ao mais, a sentença recorrida, na parte penal, relativamente ao arguido AA, incluindo a sua condenação como autor material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 218.º, n.º 2, alínea a), todos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na execução por igual período, resultando, em cúmulo jurídico com a pena aplicada em 3., nos termos do artigo 77.º, n.º 3 do Código Penal, na pena única de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na execução por igual período, e de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de 10,00 € (dez euros), o que perfaz o total de 2 000,00 € (dois mil euros).


5. Confirmar, quanto ao mais, a sentença recorrida, na parte penal, relativamente à arguida A................ . ...... ............, Unipessoal, Lda.


6. Revogar a sentença recorrida, na parte em que condenou os arguidos AA e A................ . ...... ............, Unipessoal, Lda., solidariamente a pagar à demandante Infraestruturas de Portugal, S.A. na quantia de 54 446,48 € (cinquenta e quatro mil quatrocentos e quarenta e seis euros e quarenta e oito cêntimos).


7. Condenar os arguidos AA e A................ . ...... ............, Unipessoal, Lda., solidariamente a pagar à demandante Infraestruturas de Portugal, S.A. a quantia de 52 794,68 € (cinquenta e dois mil setecentos e noventa quatro euros e sessenta e oito cêntimos), absolvendo-os do demais peticionado pela demandante.


(…).»


4. Deste acórdão recorrem para o Supremo Tribunal de Justiça os referidos arguidos/demandados civis, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):


1-O recurso tem por objeto a parte do douto acórdão da Relação que decidiu:


“7. Condenar os arguidos AA e A................ . ...... ............, Unipessoal, Lda., solidariamente a pagar à demandante Infraestruturas de Portugal, S.A a quantia de 52.794,68 € (cinquenta e dois mil setecentos e noventa e quatro euros e sessenta e oito cêntimos), absolvendo-os do demais peticionado pela demandante.”


2- De acordo com as disposições conjugadas dos artigos 432.º, n.º 1, alínea b), 400.º, n.ºs 2 e 3, 434.º, 410.º, n.ºs 2 e 3 e 403.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, dúvidas não restam que a decisão da Relação é recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça, porquanto o valor do pedido é superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão recorrida é desfavorável para os arguidos em valor superior a metade dessa alçada (€ 52.794,68).


3- Não se conformando os arguidos com a decisão da Relação que os condenou no pagamento da indemnização civil por esta se revelar manifestamente iníqua e violadora dos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da presunção de inocência e da livre apreciação da prova, tendo o tribunal recorrido usado o método indiciário, inferindo a partir dos factos provados, a verificação do cometimento de factos não provados diretamente.


4- Tendo o tribunal a quo liberdade para apreciar a prova segundo as regras da experiência comum, nos termos do art. 127.º do Código de Processo Penal, incorporando-se este princípio do processo penal no dever de perseguir a verdade material, contribuindo para uma concretização deste princípio o previsto no supra referido artigo 125.º do CPP, conjugado com os arts. 349.º e 351.º, ambos do Código Civil.


5- Sobre o princípio da livre apreciação da prova, “a doutrina tem persistido na necessidade de identificar e concretizar as caraterísticas que possibilitam a confirmação da hipótese probatória, para além de toda a dúvida razoável, no caso concreto” – cfr. Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo II, 2.ª edição, Almedina, p. 79.


6-Na matéria objeto do presente recurso, e que conduziu à condenação dos ora recorrentes a pagarem à demandante a quantia de € 52.794,68, temos como duas questões essenciais a dirimir: a quantidade de material retirado do troço ... – ... e o respetivo valor, sendo as mesmas basilares para a condenação dos arguidos conforme foi decidido pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, tendo sido considerados os depoimentos das testemunhas BB (antigo presidente da R....), CC e DD, tendo entendido o tribunal a quo “que as três testemunhas referidas apresentam razão de ciência que não diverge grandemente entre si.” – cfr. fls. 48 da decisão recorrida.


7- Debruçando-nos especificamente sobre a quantidade de carril retirado da linha – 2.514,85 metros – considerou a Relação, no que se refere à contradição entre os factos provados invocada pelos recorrentes, concretamente os pontos 43 e 44 e 14 e 15 dos factos provados, que “a matéria dos pontos 43 e 44 se refere ao corte e desmantelamento dos carris apreendidos, sendo que para além destes houve também material que a demandante não recuperou, conforme resulta da factualidade descrita nos pontos provados 14 e 15 da sentença recorrida” – cfr. página 55 do aresto da Relação.


8- Acrescentando ainda a Relação “só se verificaria uma tal incompatibilidade lógica se todo o material de que se apropriaram os arguidos tivesse sido recuperado, e mesmo neste caso, se o material recuperado se encontrasse em estado idêntico ao que teria resultado de um corte e desmantelamento executado pela empresa dona do material ou a seu mando.


Apenas nesse caso a REFER se aproveitaria da obra dos arguidos que, na prática, teriam feito todo o trabalho por ela, sem quaisquer custos ou prejuízos para a mesma. Ora, como já se referiu, nem todos os carris que os arguidos cortaram e desmantelaram foram apreendidos, sendo que, conforme resulta da factualidade descrita nos pontos 14 e 15, houve material que a demandante não recuperou.


Pelo que, os pontos de facto em análise são compatíveis entre si e também neste caso não se verifica existir contradição insanável da fundamentação.” – cfr. página 57 da decisão recorrida.


9- Colocando-se a dúvida razoável no sentido de saber, se nem todo o material foi recuperado, como diz a Relação, ainda que se recorra a prova indireta, dos factos provados nos pontos 14 e 15, daí não se pode necessariamente inferir com a certeza para além de qualquer dúvida razoável, conforme é exigível em direito penal que foram os arguidos a retirar o material.


10- Como consta da decisão proferida pela Relação de Coimbra, valorando o depoimento do Sr. CC e do Sr. DD, este último disse que “ em virtude de diversos furtos que vinham ocorrendo no ramal da ..., o Conselho de Administração e o Eng. BB, posteriormente aos factos dos autos, deram autorização ao desmantelamento da linha, furtos esses que DD foi claro em afirmar que estavam identificados, assinalados e registados pelos serviços de manutenção – cfr. fls. 89 da decisão recorrida (sublinhado nosso).


11- O depoimento da testemunha CC sempre foi valorado como tendo um conhecimento mais profundo da situação em causa, especialmente no que respeita ao “registo de todo o carril existente no canal ferroviário em questão”, o que não é compatível com o seu desconhecimento da situação em que se encontrava o sobredito ramal à data dos factos – cfr. fls. 87 e 88 da decisão que ora se coloca em crise.


12- Concluindo o tribunal a quo que existia controlo ou, pelo menos, acompanhamento pela empresa lesada das baixas de material de apropriação ilegítima- cfr. fls. 89 da decisão recorrida.


13- Porém, era de todo impossível uma pessoa trabalhar em determinada área, estando adstrita a funções de manutenção e conservação da linha férrea naquele local, como era o caso da testemunha CC e não ter conhecimento dos furtos que vinham ocorrendo nesse ramal.


14- Da mesma forma, também não podemos aceitar a fundamentação ínsita no aresto recorrido ao dizer que os arguidos, fizeram-no de um modo que não estava conforme ao que teria resultado de um corte e desmantelamento executado pela demandante e a seu mando.


15- Com efeito, não tendo o material sido apreendido/visto pela demandante, resulta totalmente inverosímil e praticamente impossível à luz das regras da experiência comum que o arguido EE por si e em representação da sociedade arguida, sozinho ou acompanhado, pudesse deslocar-se ao canal ferroviário onde foi retirado o carril, ou se deslocasse ao armazém da R.......... onde o mesmo estava depositado e o levasse para onde quer que seja, a não ser com recurso à maquinaria que consta do facto provado 11, nomeadamente uma carrinha, um camião grua e uma máquina retroescavadora que o mesmo não possuía, porquanto teve que solicitar o seu aluguer à testemunha FF – cfr. fls. 28 do acórdão recorrido.


16- Sem olvidar que o carril em causa, apesar da sua dimensão e peso, encontrando-se a céu aberto, estava acessível a qualquer pessoa, munida do indispensável equipamento para o efeito, que não apenas aos arguidos, como é facilmente percetível e sem necessidade de maiores indagações.


17-Nesta conformidade, dúvidas inexistem que a prova por presunção judicial é admissível no processo penal, desde que seja possível dela fazer uso, aplicando as regras de experiência comum, da racionalidade e da lógica, obtendo um elevado grau de certeza no que à prova de ocorrência de determinado facto diz respeito, o que não se verificou no caso sub judice, sendo necessária uma exigência acrescida para que possa ser valorada como prova uma presunção judicial, cuja acuidade sai reforçada no domínio do direito penal.


18- Assim, a Relação devia ter tido em conta toda a prova produzida e, através dela, concluir se os factos trazidos a juízo são suscetíveis de serem dados, ou não, como provados, com base na experiência de vida, na lógica e na razão, o que não se verificou, não podendo a decisão ser subjetiva, mas sim baseada em critérios objetivos, mesmo que tenha por base a prova indiciária, não sendo admissível a inferência subjetiva que vá além do que consta provado nos autos.


19 - “ A censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode (…) assentar de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para aquisição desses dados objetivos” – cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004.


20- Como foi decidido, “ O tribunal de recurso só pode censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e oralidade, se se evidenciarem que decidiu contra o arguido não obstante terem subsistido (ou deverem ter subsistido) dúvidas razoáveis e insanáveis no seu espírito” – cfr. Ac. de Relação do Porto de 28/02/2018, proc. 156/16.0PIVNG.P1.


21- No caso vertente, ressalta de forma cristalina, à luz do homem médio, que a Relação devia ter suscitado dúvidas razoáveis e insanáveis no seu espirito, porquanto, o iter cognoscitivo seguido pelo tribunal a quo para fundamentar a condenação dos arguidos no pedido de indemnização civil, está diretamente relacionado com a quantidade de material que não foi recuperada e que foi dada como provada terem sido os arguidos a retirar, servindo ainda para, de forma lógica e coerente, observar o princípio da presunção de inocência de que gozam os arguidos e não o seu inverso, como veio a acontecer.


22- Porém, mesmo que não se saiba o seu paradeiro ou destino, sendo bens que pela sua dimensão e peso não são fáceis de transportar, armazenar e ocultar, o tribunal a quo parece não ter qualquer sombra de dúvida para condenar os arguidos ao pagamento de € 52.794,68 à demandante, Infraestruturas de Portugal, S.A. ainda que com recurso à prova indiciária, não podendo manter-se a condenação dos arguidos, o que colocaria em causa o dever de fundamentação da decisão previsto no art. 205.º da CRP, padecendo, pois a decisão recorrida de insuficiência para a decisão de matéria de facto provada, nos termos do disposto no art. 410.º, n.º 2, alínea a) do CPP.


23- No caso dos autos, para corroborar a sua tese, o tribunal a quo considerou “que é da lógica e do senso comum que a quantidade de metros lineares de material retirado de um concreto segmento de linha férrea que se situa entre o km 39,851 e o km 41,600 não tem necessariamente de corresponder à medida de grandeza da distância entre esses dois pontos, bastando para tanto pensar que a linha ferroviária é composta por dois carris (duas vigas de ferro instaladas no solo, em paralelo ao longo da referida distância).”- cfr. fls. 59 da decisão recorrida.


24- Considerando, pois, a Relação que o conhecimento do vício suscitado pelos recorrentes nesta questão deve resultar do texto da sentença recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não podendo estes fazer apelo ao que resulta dos depoimentos das testemunhas – cfr. página 59 da decisão recorrida.


25- Porém, noutro segmento da decisão colocada em crise, a fls. 90, é referido que no recurso interposto pelos recorrentes para o tribunal a quo, os mesmos deviam ter suscitado junto daquele a audição do depoimento do motorista que procedeu ao transporte do material, para aferir da quantidade do mesmo.


26- A este propósito, diga-se, ainda que o vício suscitado pelos recorrentes junto do tribunal a quo, não resultasse do texto da sentença per si, sempre resultaria da mesma conjugada com as regras da experiência comum, nos termos supra expostos, sendo as mesmas regras da experiência comum e do normal acontecer que sustentam a decisão recorrida para dar como provado a quantidade de carril “furtado” da linha ferroviária.


27- Concluindo-se, pois, pela contradição insanável em que incorreu o tribunal a quo nos termos e para os efeitos do disposto no art. 410.º, n.º 2, alínea b) do CPP.


28- Com efeito, a testemunha, Sr. GG, no seu depoimento prestado na sessão de julgamento de 6/04/2018, cujo depoimento foi integralmente ouvido pela Relação, disse que não podia garantir ao tribunal que foram os arguidos que levaram o carril em falta, sendo que esta alegação não foi contrariada pelo tribunal a quo – cfr. fls. 86 da decisão recorrida - , acrescentado que não se recordava se antes dos factos sub judice “o mesmo canal ferroviário já havia sido alvo de outros levantamentos não autorizados e se havia carril em falta na linha” – cfr. fls. 88 e 89 da decisão recorrida.


29- Por outro lado, sempre se dirá que cabe questionar a integridade dos registos levados a cabo pelos serviços de manutenção da demandante relativamente aos furtos ocorridos no ramal, porquanto, os arguidos trouxeram os trabalhadores a operar naquele troço de linha férrea por um período compreendido entre os dias 11 e 18 de fevereiro de 2013, e apenas passado cerca de uma semana foi dado a conhecer aos serviços de manutenção da Infraestruturas de Portugal, S.A que andava alguém a levantar o carril do referido ramal.


30- Donde se evidencia que não era possível registar na sobredita plataforma todos os furtos que tinham ocorrido naquele canal ferroviário, porquanto não havia um controlo diário ou sequer semanal do mesmo, quiçá por o mesmo estar desativado desde 2009, conforme notícia do Público referida na decisão em análise a fls. 86, não se tratando de mera hipótese académica, pois, enquanto os ora recorrentes retiravam material, outros sujeitos o poderiam ter feito nos períodos em que aqueles lá não estavam, como por exemplo, no fim-de-semana, que correspondeu aos dias 16 e 17 de fevereiro de 2013, ou porventura em data anterior a 11 de fevereiro de 2013, como será a hipótese mais provável, ou até de noite – cfr. fls. 73 da decisão recorrida.


31- É inequívoco que, a este ensejo, era impossível ao tribunal a quo, com todo o respeito que é sempre devido, afirmar que os arguidos levantaram maior quantidade de carril do que a que consta dos autos de apreensão, pois nada consta dos autos nesse sentido, como seja, a prova de transação do referido material, ou que os arguidos tenham escondido o material em falta noutro local, havendo apenas prova do levantamento do carril depositado no armazém da R.........., na ... - cfr. fls. 88 da decisão ora colocada em crise


32- Nem vinga sequer a tese de que os cinco dias em que andaram no local os trabalhadores dos arguidos fossem suficientes para levantar todo esse carril, na medida em que foi afirmado por mais do que uma testemunha que estava previsto apenas um carregamento diário daquele material, nenhuma outra informação constando no sentido de que tenha sido feito mais do que um carregamento de carril por dia – cfr. fls. 89 da decisão recorrida.


33- O facto de haver dias em que tenham sido contabilizadas mais horas de trabalho, por si só, não é suficiente para corroborar a tese de que foi levantado mais carril do que aquele que, efetivamente, consta dos autos de apreensão, pelo que, se por um lado, consta um dia em que foram feitas 8 h e 10 h de trabalho, nos outros dois dias, foram feitas metade das horas normais de um dia de trabalho (8 horas), ou pouco mais de metade – 5h e 6.30 h – cfr. fls. 90 da decisão recorrida.


34- Donde, outra não poderá ser a conclusão que não seja a de que o material levantado pelos arguidos corresponde ao que consta dos sobreditos autos elaborados pelos OPC, não podendo, a qualquer título, ser imputados aos arguidos maior quantidade de carril levantado que extravase a que foi apreendida.


35- Sendo lícito o recurso à livre apreciação da prova, já não é lícito ao douto Tribunal da Relação afirmar de forma perentória que “o material de que se apropriaram os arguidos não se circunscreveu apenas ao que foi apreendido”, para sustentar o facto de considerar que foi igualmente levantado carril de tipo 30 e 40, apesar desta informação não constar de nenhum auto de apreensão – cfr. fls. 87 e 88 da decisão recorrida.


36- Nesta senda, cumpre afirmar que é inequívoco, do ponto de vista do homem médio, que existem algumas contradições entre a prova tida em conta pelo tribunal a quo e as conclusões tiradas da sua análise, contradições, essas, que resultam de erro notório na apreciação dos factos tidos como provados e que deve ser alvo de reapreciação.


37- Como é sabido, o Eng. BB exercia, à data dos factos, as funções de Presidente do Conselho de Administração da R...., sendo o seu depoimento essencial para o apuramento dos factos ocorridos e descoberta da verdade material.


38- É certo que o depoimento da referida testemunha foi valorado para efeitos de condenação do arguido EE no crime de falsificação de documentos em que afirma não ter aposto a sua assinatura no contrato em questão, não sendo, no entanto, valorado quando se refere ao carril e à situação da via-férrea em questão, tendo o tribunal a quo considerado que, pelas funções que desempenha, não tinha conhecimento direto dos factos.


39- Porém, atendendo ao depoimento da testemunha BB, o qual foi perentório ao afirmar que o carril levantado numa via-férrea com as características da via em causa nunca poderia ser reaproveitado e seria sempre sucata, sendo pago ao preço correspondente a essa qualificação quando entregue na Siderurgia Nacional, uma vez que era um ramal que tinha dezenas de anos e era de via estreita, sendo claro não ser possível reutilizar o carril levantado nessa via, porquanto não estaria em condições mínimas de adequação e segurança para efeitos de transporte ferroviário.


40- Nesta conformidade, o carril não poderá ser classificado de outra forma que não seja a de sucata, devendo ser pago ao preço correspondente e não ao preço de carril usado como foi considerado, o que se mostra contraditório com a fundamentação aduzida pela Relação, passível de configurar violação do disposto no art. 410.º, n.º 2, alínea b) do CPP.


41- Sendo certo que, na ata da reunião da Câmara Municipal ... de 23/04/2013, consta a intervenção do Eng. BB em que afirma perentoriamente que vinham ocorrendo furtos naquele ramal, bem como se refere à qualificação do carril assente nesse ramal como sucata, por não ter aproveitamento, afirmação que reitera no depoimento prestado em audiência de julgamento – cfr. fls. 79, 85 e 86 da decisão recorrida.


42- No que concerne ao valor probatório da ata, o art. 363.º, n.º 2 do CC estatui que são documentos autênticos os elaborados pelas entidades públicas, desde que no âmbito das suas competências, com as formalidades legais exigidas, pelo que, a ata da reunião da Câmara Municipal ... de 23/04/2013, é documento autêntico e, como tal, nos termos do disposto no art. 169.º do CPP, tem força probatória plena, porquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não foram fundadamente postos em causa.


43- Quanto à matéria de falsificação do contrato, o tribunal a quo confirmou a decisão da Primeira Instância, pugnando pela manutenção da decisão no sentido de que o contrato foi efetivamente fabricado pelo arguido, baseando-se na factualidade diretamente provada - cfr. fls. 72 e 73 da decisão recorrida.


44- Ora, a Relação não poderia ter provado de forma indireta a falsificação do contrato, na medida em que deveria ter recorrido à prova direta, neste caso a designada prova vinculada ou tarifada, nomeadamente a prova pericial, para aferir se o contrato era ou não fabricado pelo arguido e se foi o mesmo a apor a assinatura do Eng. BB.


45- Para tanto, o art. 151.º do CPP estatui que se recorre à perícia “quando a perceção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos”, afigurando-se inequívoco que a falsificação de uma assinatura exige um conhecimento técnico que o juiz, por si só, não tem mas que pode obter através da realização da competente perícia.


46- No caso dos autos, não houve confissão nem resulta dos factos provados que alguém tenha presenciado o arguido EE a fabricar o documento nem a apor as assinaturas dele constantes.


47- Pelo que, de acordo com o determinado no art. 340.º, n.º 1 do CPP, cabia mesmo ao juiz ordenar a realização da perícia que, no caso dos autos, revestia elevada essencialidade para a determinação dos factos que levaram à condenação do arguido pelo tribunal a quo na pena de multa pelo cometimento do crime de falsificação de documento previsto e punido pelo art. 256.º do CP devendo, a contrario, ter este pugnado pela absolvição do sobredito crime, em cumprimento do princípio in dubio pro reo, tendo implicações diretas, desde logo na qualificação do crime como de furto, ao invés do de burla.


48- Deste modo, como subsistem dúvidas quanto à autoria material do arguido EE, em representação da sociedade-arguida, dos crimes de falsificação de documento e burla qualificada, e afigurando-se impossível o juízo de mínima certeza por parte do tribunal a quo com base nas regras de experiência comum, na lógica e na razão, então não era possível produzir prova indiciária, recorrendo a presunções judiciais, pelo que a solução deveria ter sido no sentido da absolvição dos arguidos dos referidos crimes.


49- Retirando como conclusão imperativa que o tribunal não poderia condenar os arguidos solidariamente no pagamento da quantia indemnizatória de € 52.794,68, por não ser possível provar que foram estes a levantar o material em falta, quer no armazém onde o arguido depositou o carril, quer no próprio local da ocorrência dos factos.


50- Quanto à classificação do material em causa, cumpre dizer que o Sr. CC diz que o carril que se encontrava amontoado ao longo do ramal de linha férrea em questão iria ser reaplicado e que era no Entroncamento que o carril era classificado, sendo posteriormente avaliado segundo essa classificação; porém, veja-se o documento junto aos autos pelos arguidos em 29/03/2018 relativo à notícia do “Público”, referido a fls. 86 de decisão recorrida para facilmente se concluir que o ramal em questão já vinha a ser alvo de vários furtos, o que não mereceu qualquer pronúncia por parte do Ministério Público ou da demandante, no exercício do contraditório.


51- Logo, de toda a indagação até aqui levada a cabo, impõe-se, pois, concluir no sentido de que, padecendo o depoimento de CC de diversas contradições, não poderia ser valorado como credível, perante o depoimento do Eng. BB que, apesar de não ter um conhecimento pormenorizado da situação em que se encontrava aquele ramal em específico, sabia da situação no geral, porquanto pronunciou-se sobre ela na reunião da Câmara ..., como consta da ata da mesma, documento que não foi devidamente apreciado e deveria ter sido por se afigurar necessário/indispensável ao correto apuramento dos factos.


52- Relativamente ao vício invocado pelos recorrentes no tribunal a quo sobre a consideração de documentos que não foram produzidos ou examinados em audiência de julgamento, nomeadamente as guias de transporte de fls. 36 a 40 e o contrato de fls. 311 a 320, em claro prejuízo do princípio do contraditório imposto pelo art. 327.º, n.º 2 do CPP, por referência ao disposto na segunda parte do n.º 5 do art. 32.º da CRP, entendeu a Relação que os ora recorrentes tiveram oportunidade de se pronunciar sobre tal prova documental, em obediência àquele princípio, nomeadamente por tais meios de prova estarem referenciados na acusação, o que não foi feito pelos arguidos, concluindo o tribunal a quo que as exigências do contraditório foram asseguradas e não existe impedimento legal à utilização da referida prova para o julgador formar a sua convicção, não se tendo pois, verificado a violação da proibição de valoração de prova, estatuída no art. 355.º do CPP.


53- Com todo o respeito que é devido, os recorrentes não concordam com o entendimento perfilhado pelo tribunal a quo nesta matéria, dada a relevância que a mesma assumiu para a sua condenação, desde logo pela violação do princípio da igualdade plasmado no art. 18.º, n.º 1 da CRP.


54- Na verdade, se tais documentos foram valorados pelo tribunal a quo nos termos conhecidos, não se entende a razão de não ser atendida a documentação junta aos autos pelos arguidos, mormente a ata da Câmara ... de 23/04/2013, da qual tiveram igualmente conhecimento a demandante e o Ministério Público, não se concebendo pois que tivessem sido asseguradas as exigências do contraditório de que beneficiam os arguidos, ora recorrentes.


55- Decidiu a Relação que o erro notório da apreciação da prova, previsto na al. c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, deve resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, ancorando a sua decisão no acórdão do STJ de 20/04/2006, considerando, o tribunal a quo que da análise do texto da decisão recorrida, em conjugação com as regras da experiência comum, não detetou qualquer erro ostensivo que coloque em causa a matéria considerada provada pela Primeira Instância, porquanto esta terá explicitado de forma compreensível a valoração que efetuou e as razões de assim ter valorado a prova, identificando a prova pessoal e documental com relevo para a formação da sua convicção e indicando os aspetos de tal prova que conjugadamente levaram a concluir no sentido da factualidade apurada.


56- Decidindo ainda o tribunal a quo que os arguidos, nas situações em que invocaram erro notório, o fazem sobretudo com base em elementos que extravasam o texto da sentença recorrida, mormente os documentos supra indicados e o conteúdo gravado de prova pessoal produzida em audiência de julgamento.


57- Posição com a qual continuamos a não concordar, porquanto, reiteramos, a violação do princípio da igualdade, plasmado no art. 18.º, n.º 1 da CRP, na medida em que houve uma distinta valoração da prova documental carreada para os autos pelo Ministério Público em relação àquela que juntaram os arguidos, mormente as guias de transporte de fls. 36 a 40 e a ata da Câmara ... de 23/04/2013, concluindo-se, pois pela violação do disposto no art. 410.º, n.º 2, alínea c) do CPP.


58- Relativamente ao princípio da presunção de inocência, dúvidas inexistem de que se trata de um dos princípios basilares do processo penal, devendo ter-se em conta que se trata de uma verdadeira questão de direito e, que, como tal, cabe recurso para esse Colendo Tribunal.


59- O princípio in dubio pro reo é uma decorrência do sobredito princípio previsto no art. 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, princípio este que resulta de várias normas do direito internacional como são a CEDH e a CDFUE, nos seus arts. 6.º, n.º 2 e 48.º, respetivamente.


60- Assim, o princípio em causa aplica-se quando existe uma dúvida do tribunal inultrapassável relativamente a qualquer um dos temas da prova, num caso em que não tem sequer os elementos necessários para que essa prova possa ser feita através do método indiciário.


61- Assim, surge de primacial importância analisar qual o grau de dúvida que deve relevar para efeitos de aplicação do mencionado princípio, tendo a jurisprudência e a doutrina apoiado a seu raciocínio no critério anglo-saxónico de “dúvida razoável”, devendo este conceito de dúvida razoável ser objeto de alguma análise que permita descortinar um critério a seguir, relevando que, para que essa dúvida inexista, a prova produzida seja de tal forma que permita excluir outra qualquer solução lógica e plausível.


62- Acrescentando Germano Marques da Silva que, para além dos indícios que incriminam o arguido, não podem deixar de ser tidos em conta os indícios que provam a sua inocência (contra-indícios) e que, por conseguinte “enfraquecem ou eliminam” a possibilidade de responsabilizar criminalmente o arguido, tudo isto devendo ser tido em conta quando o julgador forma a sua convicção, o que parece não ocorrer no caso dos autos. A este ensejo, também Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” – Vol. II, pp. 154 e ss.


63- No mesmo sentido, o acórdão do TRP, de 23/10/2013, proc. n.º 2020/10.8PBMTS.P1, em que foi relator Pedro Vaz Pato, tendo afirmado que é necessária prova “capaz de fundar um juízo de certeza para além de toda a dúvida razoável, e não de mera probabilidade” e ainda o acórdão do TRG de 16/05/2016, proc. n.º 732/11.8JABRG.G1, cujo relator foi João Lee Ferreira, em que se afirma que “(A) eficácia probatória da prova indiciária depende da existência de uma ligação precisa e directa entre a afirmação base e a afirmação consequência, por forma a permitir uma conclusão segura e sólida da probabilidade de ocorrência do facto histórico probando.”


64- Como é de fácil perceção pela leitura do acórdão de que ora se recorre, em diversas situações, o julgador serve-se apenas de prova vaga para firmar a sua convicção, como ocorre na prova da falsificação do contrato em causa nos autos denominado de “Minuta de Prestação de Serviços” e na prova da quantidade de carril que efetivamente foi levantada do troço de linha férrea em causa.


65- Em sequência ao exposto, cumpre verificar se estão preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual pelos danos patrimoniais causados à Infraestruturas de Portugal SA, decorrente da prática do crime burla sendo, por isso, essencial apurar a responsabilidade criminal dos arguidos indagando se se conecta com a sua esfera de responsabilidade ou não.


66- No domínio dos pressupostos da responsabilidade, o que em primeiro lugar tem de haver é um facto praticado pelo agente que seja ilícito, facto esse que é causador de um dano, tendo de ter o agente a consciência da ilicitude do facto que pratica e, mesmo assim, vontade de o praticar, nos termos do art. 483.º do Código Civil.


67- Quanto à ilicitude dos factos ocorridos (levantamento de carril), concatenando este critério com o do nexo de imputação, a ilicitude presente nos atos praticados pode desvelar-se ao nível da modalidade de violação de direitos absolutos, sendo certo que o direito de propriedade sobre o carril propriedade da Infraestruturas de Portugal, SA, constitui um direito absoluto, porque eficazes erga omnes.


68- Ora, aqui chegados, confrontamo-nos com o problema do nexo de imputação, estatuindo o art. 487.º, n.º 2 do CC que a culpa deve ser apreciada em abstrato, segundo o critério do “bonnus pater familias”, tendo em conta a forma como agiria o homem médio.


69- Por sua vez, o art. 483.º do CC dispõe que será responsabilizado quem com dolo ou mera culpa causar o facto danoso, sendo de concluir que tanto haverá responsabilidade do agente se atuar com dolo (verificação cumulativa do elemento volitivo e do elemento psicológico) como se trate de uma conduta negligente, sendo depois um critério essencial para fixação do quantum indemnizatório.


70- Revertendo ao caso dos autos, subsumindo-o ao direito vigente, na medida em que a prova assente no processo não permite concluir com um nível de certeza exigível que foi o arguido o autor da falsificação do contrato, bem como não é sequer lícito afirmar que o mesmo conhecia da falsidade do referido contrato, porquanto apenas se pode chegar à conclusão de que não se verifica o elemento psicológico do dolo.


71- Quanto ao mais, no domínio da fahrlässing Verursachung (culpa negligente), tendo em conta o critério do “bonnus pater familias”, enunciado supra, e a culpa como deficiência da conduta, tendo como critérios específicos o zelo e a aptidão, não era exigível ao arguido que agisse com cúria acrescida no sentido da verificação da veracidade do contrato que executava, pois nada fazia crer que este fosse falso.


72- Assim, por tudo quanto se expôs e também com base na indagação levada a cabo supra sobre o erro notório do tribunal a quo na apreciação da prova produzida, outra conclusão não se pode tirar que não seja a da não culpabilidade do agente e, por isso, o afastamento da sua responsabilidade pelos danos patrimoniais causados.


73- Ademais, existe concurso de várias esferas de responsabilidade, na medida em que, se existia o cometimento de elevado número de crimes de furtos naquele ramal ferroviário, e não sendo feito um controlo diário do material depositado no referido troço então, não só concorrem as esferas de responsabilidade dos terceiros que cometiam os furtos assumidamente levados a cabo, como decorre do depoimento da testemunha DD, como a esfera do lesado que, por incúria, mantinha um material sua propriedade em local não vedado ao público, sem uma vigilância diária exaustiva.


74- A este ensejo, indagando sobre a teoria de imputação objetiva, de que é precursora Mafalda Miranda Barbosa, aquela assenta em dois critérios essenciais: a assunção de uma esfera de risco, baseada na previsibilidade e na controlabilidade e o cotejo de esferas de risco assumidas, quando várias concorram para a verificação do facto danoso, sendo imperativamente de levar em conta as esferas de risco do lesado; de terceiros e a esfera de risco geral da vida – cfr. Mafalda Miranda Barbosa in “Responsabilidade Civil Extracontratual – Novas Perspetivas em Matéria de Nexo de Causalidade”, Princípia Editora, pp. 39 – 194.


75- Deste modo, mesmo que o arguido tivesse assumido uma esfera de risco, não podemos ignorar que a demandante lesada assume uma esfera de risco, na medida em que ao deixar ali disposta aquela quantidade de carril, já tendo a linha deixado de ter circulação efetiva desde 2009, não se prevendo uma aplicação de carril naquele troço, mas, pelo contrário, o seu desmantelamento, tendo em conta o critério da diligência do homem médio, era de prever que naquelas circunstâncias poderiam ocorrer furtos daquele material.


76- Ora, não é admissível que a incúria da demandante possa ser imputada aos arguidos, porquanto, como referido supra, além da disposição de carril ao longo de um troço ferroviário que viria a ser desmantelado, esse material era muito precariamente vigiado, na medida em que os trabalhadores dos arguidos andaram no local durante 5 dias e apenas após esse intervalo de tempo alguém os interpelou.


77- Neste contexto, reitera-se com o respeito que é sempre devido, mal andou o douto tribunal a quo ao não considerar estas hipóteses como altamente prováveis, devendo ter pugnado por decidir no sentido da absolvição dos arguidos no pagamento da quantia indemnizatória em questão, porquanto não ficou provado, com o grau de certeza que é sempre exigido em casos desta natureza, que foram os arguidos que retiraram os metros de carril em falta e que dão origem à obrigação de pagamento daquele montante.


78- Pelo exposto, consideram-se violadas as disposições dos artigos, 151.º, 169.º, 125.º, 127.º, 340.º, 355.º, 410.º. n.º 2, todos do Código de Processo Penal, artigo 18.º, 32.º, n.º 2 e 5, 205.º, todos da Constituição, artigo 6.º, n.º 2 da CEDH e 48.º da CDFUE, artigo 483.º, 487.º e 562.º, todos do Código Civil.


Nestes termos e nos melhores de Direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve o presente recurso ser considerado procedente por provado, revogando-se a decisão na parte recorrida, absolvendo-se os arguidos do pedido de indemnização civil em que foram condenados, com todas as consequências legais, só assim se fazendo JUSTIÇA!


5. O Ministério Público junto da 1.ª instância apresentou resposta em que assinala que o recurso respeita apenas à questão civil, acrescentando, não obstante, que “da leitura do acórdão recorrido não se deteta contradição, insuficiência ou erro de apreciação que permitam considerar verificados quaisquer vícios ou violados quaisquer princípios do Direito, máxime no que tange à matéria penal”.


6. O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto, neste Supremo Tribunal, apôs o seu visto, consignando que o recurso se circunscreve à decisão cível e demandante e demandados estão representados por mandatários judiciais.


7. Relativamente à questão concreta da recorribilidade do acórdão da Relação, pronunciaram-se os recorrentes no sentido de não se verificarem os pressupostos da dupla conforme, após o que foi proferida decisão sumária que rejeitou, por inadmissibilidade, ao abrigo do disposto nos artigos 417.º, n.º 6, al. b), 414.º, n.ºs 2 e 3, e 420.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal (doravante CPP), o recurso interposto pelos demandados civis, AA e A................ . ...... ............, Unipessoal, Lda.


8. Da decisão sumária reclamam os demandados civis/recorrentes para a conferência, nos seguintes termos que se transcrevem:


1.º


Em 03/07/2023, os recorrentes interpuseram recurso do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/05/2023, estritamente em relação à matéria cível, por não ser admissível recurso quanto à matéria penal, vindo este a ser admitido pelo Tribunal a quo.


2.º


Chegado o recurso a esse Supremo Tribunal, veio a ser proferido despacho em que são intrinsecamente suscitadas dúvidas quanto à admissibilidade do mesmo, porquanto, por aplicação do art. 671.º, n.º 3 do CPC para o qual remete o art. 4.º do CPP, estariam preenchidos os pressupostos da dupla conforme, o que obsta à admissibilidade da revista.


3.º


Nesta sequência, vieram os recorrentes em resposta ao douto despacho invocar as razões pelas quais deveria o recurso de revista para esse Supremo Tribunal ser admitido.


4.º


Tendo, porém, o relator, Excelentíssimo Senhor Juiz Conselheiro Jorge Gonçalves, proferido despacho com rejeição do recurso por aplicação do art. 671.º, n.º 3 do CPC, concluindo que o acórdão do Venerando Tribunal da Relação, não tendo voto de vencido nem fundamentação essencialmente diferente da experimentada na sentença do tribunal de 1.ª instância, estava em conformidade com o que por esta havia sido decidido, havendo dupla conforme.


5.º


Nesta conformidade, vêm os recorrentes, nos termos do plasmado no art. 417.º, n.ºs 6 e 8 do CPP, interpor reclamação para a conferência, uma vez que, com todo o respeito que é sempre devido, não concordam com a decisão sumária proferida pelo Relator.


6.º


Como consta na motivação do recurso, em primeira linha, este será admissível nos termos do art. 400.º, n.ºs 2 e 3 por remissão do art. 432.º, n.º 1, al. b), ambos do CPP, com os fundamentos previstos no art. 410.º, n.º 2 do mesmo diploma legal, nomeadamente erro notório na apreciação da prova, contradição entre os factos provados e a fundamentação e insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.


7.º


Denote-se que, no caso dos autos, são suscitadas várias questões com relevo não apenas para o assunto em análise, mas com elevado interesse social, porquanto se trata de matérias como sejam a falsificação de documentos, a exigência/obrigatoriedade da prova pericial em detrimento da prova por presunção quando aquela for possível, bem como a determinação da situação de contradição entre os depoimentos prestados pelas testemunhas e a decisão para que, desse modo, o tribunal possa formar uma convicção de tal maneira inderrogável que, outra forma de solucionar o caso concreto, não possa subsistir.


8.º


Tendo em conta que as decisões judiciais provocam efeitos diretos na vida das pessoas, nomeadamente no que diz respeito à opinião pública sobre as mesmas e a sua forma de estar na sociedade, as decisões em processo penal devem estar dotadas de um nível de certeza para além de qualquer dúvida razoável, sendo que, in casu, apesar da razoabilidade da dúvida que, salvo o devido respeito, deveria imperar no julgador, esta não foi tida em conta, conduzindo à solução da qual se interpôs recurso para esse Supremo Tribunal.


9.º


Não sendo o propósito da presente reclamação a repetição dos fundamentos invocados para a interposição do recurso, é imperativo salvaguardar que são temas de importância considerável os que estão em discussão nos autos e, por isso, motivam em pleno a admissão do recurso interposto.


Vejamos:


10.º


O regime dos recursos em processo penal, como vem sendo a opinião da maioria da jurisprudência e doutrina, tem um regime autónomo dos recursos em processo civil, só se podendo recorrer supletivamente ao regime previsto para estes últimos, nos termos do preceituado no art. 4.º do CPP, quando não existir previsão legal quanto a determinada matéria na lei processual penal.


11.º


Ora, de acordo com o que estatui o art. 400.º, n.º 1, al. f), por remissão do art. 432.º, n.º 1, al. b), ambos do CPP, não é admitido recurso de revista quando o acórdão da Relação confirme a condenação do arguido e a pena não for superior a oito anos, salvaguardando o n.º 3 do art. 400.º daquele diploma que, mesmo que a parte penal da decisão não seja recorrível, será ainda assim passível de recurso a parte que diga respeito à indemnização civil.


12.º


Acresce ainda que, o n.º 2 do art. 400.º dispõe sobre os pressupostos do recurso quanto à indemnização civil e, nesse conspecto, determina como requisitos para a admissibilidade do mesmo a superioridade do valor da causa em relação à alçada do tribunal recorrido, bem como o valor da sucumbência ser superior a metade da alçada desse tribunal, in casu, do Tribunal da Relação.


13.º


Deste modo, cumpre questionar o seguinte: se fosse propósito do legislador que o julgador penal recorresse ao regime previsto para os recursos em processo civil, faria sentido estar a consagrar no CPP regras que já estão plasmadas nos mesmos termos no Código de Processo Civil?


14.º


Denote-se que, também o art. 629.º, n.º 1 do CPC, contém disposição idêntica no âmbito dos recursos às que dispõe o CPP, nomeadamente no que diz respeito à recorribilidade, o que, por maioria de razão, leva a crer que a ratio legis dos preceitos relativos aos recursos penais prescinda da intervenção das normas do processo civil nesse âmbito.


15.º


Aliás, também nas normas relativas à formulação do pedido de indemnização civil concentradas nos arts. 71.º a 84.º do CPP, está implícito que a indemnização em processo penal deve seguir trâmites diversos dos que normalmente seguiria em processo civil, prevendo, por exemplo, um prazo mais curto para a contestação, o efeito não cominatório em caso de falta de contestação, ou outras regras relativamente à competência.


16.º


Nesta conformidade, tendo em mente que o pedido de indemnização civil é parte do processo penal, a norma que rege a admissibilidade do recurso de revista para esse Supremo Tribunal é a constante do art. 432.º, que remete na alínea b) do n.º 1, como afirmamos supra, para o art. 400.º, cujo normativo não prevê a regra da dupla conforme para os pedidos de indemnização civil, o que deve considerar-se para efeitos de admissibilidade do presente recurso.


17.º


Ademais, tendo o regime dos recursos em processo penal a autonomia que todos lhe reconhecem, é manifestamente inviável que se restrinja o recurso da parte relativa à matéria civil por verificação da dupla conforme (se fosse o caso), tendo em conta que a decisão a proferir sobre o mérito do recurso apresentado tem efeitos reflexos na decisão quanto à matéria penal, o que o Código de Processo Penal não impede, tal como decorre do art. e 403.º, n.º 3 que estatui que a decisão do recurso, mesmo que limitada a uma das partes da decisão proferida pelo tribunal a quo, implica que se retirem as devidas consequências para toda a decisão.


18.º


Atento a esta relevância que hipoteticamente (não obrigatoriamente, por via da responsabilidade civil independente da responsabilidade penal em alguns casos) poderá ter a decisão do recurso de revista quanto à matéria civil para a parte penal da mesma, deve prevalecer a tese de ter querido o legislador afastar a dupla conformidade quanto à matéria civil, devendo assim aplicar-se apenas o preceito contido no art. 671.º, n.º 3 do CPC quando o pedido de indemnização civil for apresentado em separado, nas situações expressamente previstas no art. 72.º do CPC.


19.º


Assim, podemos concluir que, no caso dos autos, tendo a decisão quanto à matéria civil inegável impacto na decisão proferida quanto a matéria penal, o recurso deve ser admitido, afastando-se o regime legal da dupla conforme previsto, em bom entender, para os recursos em processo civil, não se justificando o recurso à supletividade, porquanto a autonomia e suficiência do regime recursório em sede processual penal o impedem.


20.º


Ainda que assim não entenda esse Colendo Tribunal, sempre se fará uma indagação pelos pressupostos de aplicação da dupla conforme, prevista no art. 671.º, n.º 3 do CPC, demonstrando, salvo o devido respeito, quais as razões pelas quais não tem aplicação ao caso concreto.


21.º


A este ensejo, cumpre afirmar, a priori, que: se por um lado não existe divergência quanto à regra não se reconduzir a uma consagração de um triplo grau de jurisdição, também não deixa de ser verdade que, em determinadas situações, não estando verificados os requisitos para que o recurso tome a forma de revista excecional, continuará a haver necessidade de nova pronúncia por parte de uma terceira instância de modo a assegurar eficazmente os direitos dos quais beneficia o arguido.


22.º


Assim, no que diz respeito à aplicação ao caso vertente da figura da dupla conforme, cumpre escalpelizar em que situações se verifica, indagando sobre o preenchimento dos pressupostos legais e doutrinais.


Vejamos:


23.º


O art. 671.º, n.º 3 do CPC é claro ao afirmar que não é admissível o recurso de revista para o STJ quando a decisão da Relação confirmar a proferida em primeira instância, desde que não exista fundamentação essencialmente diferente e não haja voto de vencido.


24.º


Assim, podemos retirar do texto legal três pressupostos cumulativos para a não admissão do recurso: decisão da 2.ª instância confirmatória da sentença proferida na 1.ª instância; inexistência de voto de vencido e divergência irrelevante na fundamentação.


25.º


Inexistindo voto vencido no douto Acórdão de que se recorre, é imperativo indagar sobre a concretização dos demais requisitos, mormente no que tange à conformidade de decisões e quando se verifica.


26.º


No que diz respeito ao pressuposto da conformidade da decisão da Relação com a da primeira instância, a doutrina divide-se havendo quem entenda, por um lado, que o critério a usar será o de coincidência racional e, por outro lado, quem interprete o espírito do legislador segundo um critério de coincidência formal, sendo aquela a doutrina que esse Supremo Tribunal mais tem acolhido.


27.º


Distinguindo os dois critérios, temos por um lado as situações em que, por exemplo, o valor peticionado pelo autor é de € 5.000,00, a primeira instância condena o réu no montante de € 1.000,00 e, após recurso interposto pelo autor, a Relação mantém a condenação, alterando o valor para 1.500,00.


28.º


Ora, numa situação destas, para os autores que seguem a doutrina da coincidência racional, o autor já não poderia interpor recurso de revista, porquanto o montante pelo qual o réu foi condenado na Relação engloba o valor da condenação em primeira instância.


29.º


Para estes autores, o mesmo ocorreria na situação em que o autor peticionasse € 5.000,00, a primeira instância condenasse o réu em € 2.000,00 e a Relação, após apreciar o recurso interposto pelo réu, viesse a diminuir o montante da condenação em € 500,00, ficando vedada a possibilidade de recurso de revista.


30.º


Há, no entanto, outros autores, como Rui Pinto, que consideram haver apenas dupla conforme quando há uma coincidência total entre as duas decisões, optando por aceitar o critério da conformidade formal.


31.º


A corroborar esta tese da coincidência formal, também Lopes do Rego e Lebre de Freitas, considerando este último inaceitável que exista dupla conforme sempre que tenha ocorrido reformatio in melius para o sujeito que pretende recorrer, concluindo que “mais conforme à lei seria a posição da coincidência irrestrita, que começou por ser a do STJ.” – cfr. José Lebre de Freitas in Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, p.209.


32.º


Revertendo ao caso dos autos, tratando-se de uma decisão que inclui decisão penal e quanto ao pedido de indemnização civil, o dispositivo da mesma, na parte cível, evidencia que não existe uma coincidência total com a sentença proferida pelo tribunal de primeira instância.


33.º


Denote-se que, quanto à parte relativa ao pedido de indemnização civil, o acórdão da Relação de Coimbra revoga a decisão proferida pela primeira instância, proferindo uma nova decisão que condena, ainda que mais favoravelmente à anterior, os demandados em € 52.794,68.


34.º


Neste ensejo, logo aqui, não existe dupla conforme no que diz respeito às duas decisões em análise, porquanto existe uma reformatio in melius a favor dos ora recorrentes.


35.º


Apesar de ser o entendimento que vem a ser seguido nesse Supremo Tribunal o da não admissibilidade de recurso de revista na situação em apreciação, como se demonstrou supra, não é essa a ratio legis do estatuído no art. 671.º, n.º 3 do CPC.


36.º


Aliás, seguindo-se o critério da coincidência racional no que tange ao apuramento da existência de dupla conformidade, leva a que exista uma dupla conformidade que, no caso em epígrafe, produz efeitos quanto aos arguidos/demandados, impedindo-os de recorrer, permitindo ainda assim à demandante interpor recurso de revista, se preenchidos os demais pressupostos legais de admissibilidade do recurso.


37.º


Entende-se, por isso, que o critério da coincidência formal é o que melhor acautela os interesses dos cidadãos, bem como aquele que mais próximo está do cumprimento do princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrada internamente no art. 20.º da Constituição da República Portuguesa e internacionalmente no art. 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da UE, devendo concluir-se que não existe dupla conforme por não verificação do pressuposto da conformidade entre as decisões proferidas em primeira instância e pela Relação.


38.º


Por fim, atente-se ainda no requisito da “fundamentação essencialmente diferente” sendo, desde logo, praticamente unânime que deve atender-se somente à fundamentação de direito, na medida em que não é admissível o recurso para esse Supremo Tribunal da matéria de facto.


39.º


Assim sendo, de acordo com Rui Pinto, Repensando os requisitos da dupla conforme, in Revista Julgar, p. 23, “a fundamentação essencialmente diferente é que tem consequências necessárias nos efeitos qualitativos ou quantitativos da parte dispositiva” pois, “se os fundamentos de direito mudam e, por isso, muda a qualidade ou extensão do efeito material da decisão, em bom rigor há uma nova decisão, mesmo que esta se mantenha formalmente ou aparentemente idêntica.”.


40.º


Neste conspecto, cumpre relembrar que a questão dos metros de carril, bem como do seu valor se trata de uma matéria controversa no que à prova diz respeito, daí que tenha sido invocado nesse parâmetro erro na apreciação da prova quanto a esses factos.


41.º


Aliás, essa controvérsia está patente na douta decisão recorrida do Tribunal da Relação de Coimbra, na medida em que modifica alguns parágrafos dos factos provados, o que, inelutavelmente, teve influência direta na redução do valor pelo qual os demandados foram solidariamente condenados.


42.º


Ora, sendo assim, como efetivamente é, com o respeito que é sempre devido, a única conclusão a retirar do caso sub judice, é que é inequívoco que existe fundamento bastante para que o recurso seja apreciado por esse Supremo Tribunal, porquanto existem questões que, apesar de terem já sido sindicadas, salvo o devido respeito, carecem ainda de melhor reflexão e apreciação.


43.º


Ademais, havendo modificação da matéria de facto e, consequentemente, da fundamentação, levando a uma revogação da sentença proferida em primeira instância, indica que ainda há dúvida, para além da dúvida razoável que poderá sempre existir na convicção do julgador.


44.º


Deste modo, é imperativo que, sob a alçada do princípio da tutela jurisdicional efetiva, no caso em que a conformidade de decisões não seja de tal forma coincidente que possa resultar ainda dúvida sobre a efetiva realização de justiça, seja providenciado o acesso a uma terceira jurisdição que permita uniformizar o sentido de decisão no caso concreto.


45.º


Ainda sob a égide daquele princípio constitucional, para admissão do recurso e verificação da existência de dupla conforme, não se deverá ter sempre em conta unicamente um critério quantitativo que atente apenas no valor que o arguido é condenado a pagar no pedido de indemnização civil, mas um critério qualitativo que tenha em conta o interesse da questão decidenda para o Direito e para a efetiva realização de justiça.


46.º


Acresce que, aquando da interposição do presente recurso de revista, o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, tendo a possibilidade de se pronunciar pela sua inadmissibilidade, não o fez, não levantando a questão da existência de dupla conforme, o que evidencia não estarem reunidos os pressupostos de aplicação desta figura processual, mesmo que a essa posição não esteja vinculado esse Supremo Tribunal.


47.º


Em suma, sempre se dirá que, mesmo que a dupla conforme se aplicasse aos recursos em processo penal e, por efeito, ao caso concreto, a fundamentação aduzida deveria ser sempre considerada essencialmente diferente, porquanto teve impacto ao nível da alteração do dispositivo da decisão e, assim, não se verificava, em última ratio a aplicação da dupla conforme, in casu.


48.º


Deste modo, outra não poderá ser a conclusão que não seja a de admissão do recurso interposto nesse Supremo Tribunal, não estando verificados os pressupostos da dupla conforme por aplicação do art. 671.º, n.º 3 do CPC.


49.º


Se o regime quanto ao recurso de revista normal previsto no CPP é suficiente, dispensando-se a aplicação supletiva do CPC, assim já não acontece com a revista excecional, na medida em que o CPP é omisso sobre esta espécie de recurso, quer no que tange à matéria cível, quer no que diz respeito à matéria penal.


50.º


Nesta conformidade, escrutinando as decisões recentes dos tribunais, bem como a doutrina sobre esta matéria, a orientação seguida é a de aceitar o recurso de revista excecional quanto à parte da decisão sobre o pedido de indemnização civil, ainda que não se trate de uma corrente unânime, havendo quem contraponha dizendo que a não previsão no CPP da revista excecional não se trata de uma lacuna, mas de atitude propositada do legislador em não consagrar essa espécie de recurso.


51.º


De todo o modo, rejeita-se, ao que nos parece, a admissibilidade da revista excecional no que diz respeito à matéria penal.


52.º


No entanto, há um aspeto relevante que ressalta nas posições doutrinárias: se no âmbito da revista excecional (e, portanto, na previsão de mais uma possibilidade de recorrer para o STJ) maioritariamente se assume que inexiste lacuna na lei processual penal, reconduzindo a exceção prevista na al. f) do n.º 1 do art. 400.º à vontade única do legislador, em nome da autonomia do processo penal em relação ao processo civil,


53.º


Já assim não se considera no que tange à inclusão da dupla conforme (ou seja, a abertura de mais uma possibilidade de rejeitar o recurso para o STJ) no processo penal, admitindo-se que esta atue amplamente no que diz respeito ao pedido de indemnização civil, não colocando sequer a hipótese da autonomia da lei processual penal em relação à lei processual civil, nem a suposição que se o legislador tivesse querido estabelecer esse limite, o teria feito quando prevê as normas relativas ao recurso de revista, no art. 432.º do CPP, ou nas disposições relativas à possibilidade de recurso em separado quanto à matéria cível.


54.º


Ora, com o respeito que é sempre devido, do exposto se pode retirar que, se o julgador tem um critério restritivo no que diz respeito à admissibilidade dos recursos, já não o tem quando se tratam de situações em que o recurso deva ser rejeitado, aceitando amplamente a inclusão de disposições limitativas, mesmo que esse não fosse o espírito do legislador, tendo em conta a autonomia do processo penal que todos lhe reconhecem, bem como a necessidade de maiores cautelas, porquanto estão em causa a honra, a dignidade e a liberdade dos cidadãos.


55.º


Deste modo, fechando este parêntesis de comparação entre a aceitação da dupla conforme, por um lado, e a admissibilidade da revista excecional, por outro, cumpre dissecar a possibilidade de enxertar esta espécie de recurso no processo penal, tendo em conta que, a este ensejo, nada o legislador processual penal previu, contrariamente ao que acontece na questão da conformidade de decisões.


56.º


Neste conspecto, dúvidas inexistem que, estando em causa princípios e direitos constitucionalmente protegidos, cuja violação mais parcamente se verificará em processo civil, justifica-se a aplicação da revista excecional, aplicando-se, por se verificar uma verdadeira lacuna da lei nesta matéria, os pressupostos previstos no art. 672.º do CPP, por via do art. 4.º do mesmo diploma legal que só muito excecionalmente permite a integração de lacunas mediante aplicação do CPC.


57.º


Deste modo, são três as situações a que alude o art. 672.º do CPC para que se possa interpor recurso de revista excecional: a apreciação da questão contribuir para uma melhor aplicação do direito; estejam em causa interesses de particular relevância social ou a contradição entre a decisão do tribunal a quo e uma outra proferida por Tribunal da Relação ou pelo STJ.


58.º


Tendo em conta o caso concreto e todo o exposto na motivação do recurso apresentado, verifica-se o preenchimento dos três pressupostos, ainda que estes sejam alternativos, para que o recurso interposto, não sendo aceite sob a forma de revista normal, o seja por via da revista excecional.


Vejamos:


59.º


No que diz respeito ao primeiro leque de situações (art. 672.º, n.º 1, al. a) do CPC), a relevância da apreciação para uma melhor aplicação do direito tem de traduzir-se numa situação em que tenha havido uma má aplicação do direito que justifique a intervenção do STJ, não sendo suficiente que exista uma divergência na doutrina ou na jurisprudência – cfr. José Lebre de Freitas e outros, in Código de Processo Civil Anotado, p. 213.


60.º


Desta forma, diga-se, de acordo com os fundamentos amplamente expostos na motivação do recurso interposto que Vossas Excelências doutamente examinarão, sobressai que os recorrentes consideram ter havido erro na aplicação do princípio da livre apreciação da prova, porquanto, através da prova constante nos autos, se fizeram inferências lógicas, cuja admissibilidade, por aplicação das regras da experiência comum e do nível de certeza que deve imperar no juízo do tribunal, tende a rejeitar-se.


61.º


Ademais, como é de fácil perceção, salvo o devido respeito, existe uma necessidade premente de delimitar quanto possível, o conceito indeterminado de certeza que deve imperar no espírito do julgador para que possa produzir prova indiciária, não se discutindo a admissibilidade desta.


62.º


Por outro lado, ainda no preenchimento do primeiro requisito estatuído pelo art. 672.º do CPC, como também foi questão levantada no recurso, existe a necessidade de aferir da admissibilidade do recurso à prova indireta quando a produção de prova seja possível através de um meio probatório previsto na lei, como seja o recurso a prova pericial prevista no art. 151.º do CPP, por força de aplicação do art. 340.º do mesmo diploma legal.


63.º


Indagando sobre o pressuposto da particular relevância social previsto no art. 672.º, n.º 1, al. b) do CPC, a doutrina tem dificuldade em delimitar o critério, porquanto podemos estar perante uma pluralidade de situações, afirmando que deve ser “a determinação em concreto atribuída a «um livre juízo do tribunal sobre a relevância do interesse em causa»”, sendo que a relevância social deve ser aferida restritivamente quanto à esfera jurídica do recorrente – cfr. José Lebre de Freitas e outros, in Código de Processo Civil Anotado, pp. 214 e 215.


64.º


Ora, também neste pressuposto encontram os recorrentes respaldo, tendo em conta que a decisão que venha a ser proferida por esse Supremo Tribunal, sendo de procedência do peticionado, como cremos, relevará para o restabelecimento da honra e dignidade social dos recorrentes, direitos que viram afetados com a decisão de condenação proferida quer pelo tribunal de 1.ª instância, quer pelo tribunal a quo.


65.º


Por último, no que tange ao requisito previsto na alínea c) do n.º 1 do art. 672.º do CPC, a contradição entre a decisão posta em crise e o acórdão proferido pela Relação ou o STJ, deve fundar-se na identidade da questão fundamental de direito, sendo as decisões opostas.


66.º


Também aqui, com o respeito que é sempre devido, o tribunal a quo decidiu contrariamente a uma decisão pelo mesmo tribunal superior tomada no processo n.º 174/08.2GASPS.C1, tal como exposto nas motivações do recurso interposto para esse Supremo Tribunal, dado que em situações semelhantes decidiu de forma diferente relativamente aos pressupostos de admissibilidade da prova indireta, questão que influencia diretamente a decisão tomada.


67.º


E, bem assim, cumpre prover à unidade das decisões tomadas pelos tribunais, contribuindo para uma uniformização de conceitos, o que não ocorre manifestamente quando confrontadas as decisões tomadas nos autos e no processo supra identificado, como poderão Vossas Excelências inferir após exame das motivações do recurso interposto.


68.º


Nestes termos, caso não se entenda admissível o recurso de revista normal por verificação dos pressupostos da dupla conforme, o que não cremos, deve o mesmo ser convolado em recurso de revista excecional, verificados que estão os pressupostos da sua admissibilidade, tendo em conta que apenas existe a necessidade de verificação de uma das situações previstas no n.º 1 do art. 672.º do CPC e, in casu, se preenchem todos os pressupostos legalmente previstos.


69.º


Aliás, ainda neste âmbito, são suscitados alguns problemas de constitucionalidade, nomeadamente no que diz respeito à falta de fundamentação; ao desvio da aplicação do princípio in dubio pro reo; violação do princípio do contraditório e do princípio da igualdade, também estes relevantes para significar um reexame da decisão no que compreende a violação de normas jurídicas e princípios de direito – cfr. conclusões 22, 52, 53, 57, 59 e 78 do recurso interposto.


70.º


Contrariamente ao que se afirma na decisão sumária, ora reclamada, os fundamentos utilizados no recurso interposto têm a função de permitir a esse Supremo Tribunal a verificação da conformidade da decisão com os princípios normativos e constitucionais do direito vigente, alertando para a violação na decisão recorrida de verdadeiras normas de direito, invocando apenas questões a este título.


71.º


Normal será que, em caso de procedência do recurso, por via da violação de normas de direito pelo tribunal a quo, seja necessário mudar a decisão de que se recorre e, não apenas o dispositivo, mas o seu conteúdo, porquanto são consequências que diretamente decorrem da lei e do senso comum.


72.º


O que, a priori, não pode determinar a irrecorribilidade da decisão posta em crise, sob pena da violação do direito fundamental a uma tutela jurisdicional efetiva, tal como decorre dos arts. 20.º e 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, bem como das normas de direito internacional invocadas supra.


73.º


Reconhece-se, porém, que não existe um direito subjetivo, por força daqueles princípios constitucionais, a um triplo grau de jurisdição/duplo grau de recurso, devendo, no entanto, as decisões da Relação a que se reconheçam relevância social e impacto na vida em sociedade dos arguidos, como são as sentenças/acórdãos proferidos em sede de processo penal, ser objeto de uma reavaliação de modo a suprir toda a dúvida razoável que se tenha formado, ou deva ter-se formado, na convicção do julgador.


Nestes termos, e nos mais de Direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve a presente reclamação ser julgada procedente, revogando-se a decisão sumária proferida nos presentes autos e, em consequência, admitir-se o recurso interposto em 03/07/2023, por não verificação dos pressupostos da dupla conforme, uma vez que esta apenas se deve circunscrever ao processo civil, salvo as exceções previstas na lei processual penal.


Mais requer, caso assim não se entenda, a convolação do recurso de revista interposto, em recurso de revista excecional, admitindo-se a sua recorribilidade a esse título, com todas as consequências legais, só assim se fazendo JUSTIÇA!


9. Colhidos os vistos, os autos foram à conferência.


*


II – FUNDAMENTAÇÃO


1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do CPP, que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.


Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência com a decisão impugnada, verificamos que o recurso refere-se à parte respeitante à condenação em indemnização civil, como está, aliás, expressamente indicado na conclusão 1, onde se diz que o recurso tem por objeto a parte do douto acórdão da Relação que decidiu: «7.Condenar os arguidos AA e A................ . ...... ............, Unipessoal, Lda., solidariamente a pagar à demandante Infraestruturas de Portugal, S.A. a quantia de 52 794,68 € (cinquenta e dois mil setecentos e noventa quatro euros e sessenta e oito cêntimos), absolvendo-os do demais peticionado pela demandante.»


2. É sabido que o conhecimento das questões em matéria de facto esgota-se nos tribunais da relação, que conhecem de facto e de direito (artigo 428.º do CPP), visando o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (doravante STJ) exclusivamente matéria de direito (artigo 434.º do CPP).


Analisado o recurso, é manifesto o inconformismo dos recorrentes com a decisão de facto, imputando ao acórdão recorrido vícios atinentes a tal decisão, como são os da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [artigo 410.º, n.º2, al. a)], da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão [artigo 410.º, n.º2, al. b)] e do erro notório na apreciação da prova [artigo 410.º, n.º2, al. c)], com diversas menções à valoração da prova indiciária e aos princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo. Os recorrentes visam, através do presente recurso, sindicar a convicção a que o tribunal recorrido chegou e que determinou a fixação da decisão de facto, retomando, aliás, argumentos já esgrimidos no recurso interposto da sentença proferida na 1.ª instância, visando a decisão de facto, para o que invocam a prova produzida e que a Relação reapreciou.


Estamos face a um recurso de acórdão da Relação proferido em sede recursória [artigo 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, na redação da Lei n.º 94/2021, de 21.12], pelo que, tendo em vista os poderes de cognição do STJ, não cabem em tal recurso os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º, sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do STJ, sendo caso disso, dos vícios da decisão recorrida e de nulidades não sanadas a que se refere o dito preceito, para decisão de questão de direito que deva ser conhecida.


No caso vertente, as questões suscitadas a propósito da apreciação das provas e da decisão sobre os factos provados e não provados inscrevem-se, com clareza, na competência do tribunal da Relação (artigo 428.º do CPP), que sobre elas se pronuncia em última instância (entre outros, o acórdão deste Supremo, de 15.02.2023, proc. 1964/21.6JAPRT.P1.S1, in www.dgsi.pt, como outros que sejam citados sem diversa indicação), pelo que a temática que os recorrentes pretendem discutir reconduz-se à apreciação de prova sujeita a livre apreciação, o que exorbita dos poderes de conhecimento do Supremo Tribunal de Justiça.


É certo que o STJ não está desobrigado de detetar nas decisões recorridas, oficiosamente, os vícios a que alude o artigo 410.º, ao abrigo do disposto no artigo 434.º do CPP, mas para esse efeito impõe-se, como premissa, que a concreta decisão seja recorrível para o Supremo.


Independentemente da questão dos fundamentos do recurso em causa na sua conexão com os poderes de cognição do STJ, confrontamo-nos com outra questão: a da concreta recorribilidade do acórdão recorrido, que os recorrentes assumem, no requerimento de interposição, como um facto apodítico.


Por decisão sumária do relator, de 13.11.2023, foi entendido ser aplicável aos recursos relativos a pedidos de indemnização cível formulados em processo penal o regime da denominada dupla conforme previsto no artigo 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC), ex vi artigo 4.º do CPP, pelo que, verificando-se no caso concreto a ausência de votos de vencido, a conformidade essencial de fundamentação e a conformidade decisória entre as decisões da 1.ª instância e do Tribunal da Relação, segundo o critério da coincidência racional, por inclusão quantitativa - «confirmação in melius» -, o recurso foi rejeitado ao abrigo do disposto nos artigos 417.º, n.º 6, al. b), 414.º, n.ºs 2 e 3, e 420.º, n.º 1, al. b), do CPP.


Contrapõem os recorrentes, em reclamação para a conferência, o entendimento de que, tendo em vista a autonomia do regime dos recursos em processo penal relativamente aos recursos em processo civil, o legislador quis afastar a dupla conformidade quanto à matéria civil, devendo assim aplicar-se o preceito contido no artigo 671.º, n.º 3, do CPC, apenas quando o pedido de indemnização civil for apresentado em separado.


Vejamos.


2.1. Estabelece o artigo 400.º, n.ºs 2 e 3, do CPP:


«2 - Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.


3 - Mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil.»


O transcrito n.º2 corresponde ao n.º 1, do artigo 629.º, do CPC, que dispõe que o recurso ordinário “só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa”.


Assim, a admissibilidade do recurso das decisões relativas ao pedido civil deduzido no processo penal depende da verificação cumulativa de dois requisitos:


(i) que o pedido tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre, sendo que a alçada constitui o limite (definido em regra pelo valor da causa) dentro do qual um tribunal julga sem possibilidade de recurso ordinário;


(ii) que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal que proferiu a decisão de que se recorre, sendo que a sucumbência (decaimento) constitui o prejuízo ou desvantagem que a decisão implicou para uma parte (que tenha ficado, total ou parcialmente, vencida).


No regime vigente, mesmo que a sucumbência seja superior a metade da alçada do tribunal, não é admissível o recurso se o valor do pedido se situar dentro da alçada do tribunal recorrido.


Em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de (euro) 30 000,00 e a dos tribunais de primeira instância é de (euro) 5 000,00 (artigo 44.º, n.º1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, que aprovou a Organização do Sistema Judiciário).


O supra transcrito n.º3, do artigo 400.º, do CPP, resultou da reforma introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, fazendo caducar a jurisprudência fixada em sentido contrário pelo STJ no denominado Assento n.º 1/2002, de 14.3.2002 (DR, I Série, de 21.05.2002), no sentido de que: «No regime do Código de Processo Penal vigente – n.º2 do artigo 400.º, na versão da Lei n.º 59/98, de 25 de agosto – não cabe recurso ordinário da decisão final do Tribunal da Relação, relativa à indemnização civil, se for irrecorrível a correspondente decisão penal.»


Por força da referida alteração legislativa, a recorribilidade do segmento decisório relativo à matéria cível deixou de estar dependente da admissibilidade de recurso da decisão quanto à parte criminal.


Comentando o artigo 400.º, do CPP, escreve o Conselheiro Pereira Madeira (Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar et alii, 2016. Almedina, 2.ª edição revista, pág.1202):


«Por força do disposto no artigo 4.º do CPP, e uma vez que a ação civil se autonomiza dos destinos da causa penal, importa ter em conta que a admissibilidade de recurso não está condicionada apenas pelas circunstâncias do n.º 2 do artigo 400.º. A pretendida igualação com o regime de recursos da ação civil importa, com efeito, que os casos de admissibilidade previstos no artigo 721.º do Código de Processo Civil na redação do DL 303/2007, de 24 de Agosto, nomeadamente o de «dupla conforme», previsto no n.º 3, sejam aqui aplicáveis.»


O entendimento expresso no citado comentário corresponde à orientação uniforme seguida nas Secções Criminais do STJ, no sentido de que o regime de admissibilidade dos recursos previsto no CPC tem aplicação subsidiária aos recursos relativos a pedidos de indemnização cível formulados em processo penal, sendo de aplicar o regime da denominada dupla conforme previsto no artigo 671.º, n.º 3, do CPC, ex vi artigo 4.º do CPP.


Neste sentido, entre outros, os seguintes acórdãos: de 27.06.2012, proc. 1466/07.3TABRG.G1.S1; de 15.05.2013, proc. 7/04.9TAPVC.L2.S1; de 29.01.2015, proc. Proc. n.º 91/14.7YFLSB; de 07.09.2016, proc. 256/10.0GARMR.E1.S1; de 25.01.2017, proc. 1729/08.0JDLSB.L1.S1; de 19.12.2018, proc. 10179/12.3TDLSB.L2.S1; de 04.12.2019, proc. 354/13.9IDAVR.P2.S1; de 24.09.2020, proc. 416/13.2GBTMR-A.E1.S1; de 12.11.2020, proc. 163/18.9GACDV.C1.S2; de 20.10.2022, proc. 1991/18.0GLSNT.L1.S1; de 07.12.2022, proc. 406/21.1JAPDL.L1.S1; de 14.09.2023, proc. 1923/16.0T9VNG.P2.S1.


Veja-se, a este propósito, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 442/2012, de 26.09.2012 (Diário da República n.º 222/2012, Série II, de 2012-11-16), onde podemos ler na sua fundamentação:


«O Tribunal Constitucional tem vindo a apreciar, de modo reiterado e constante, a questão da delimitação da esfera de proteção normativa do direito fundamental de acesso aos tribunais. Precisamente em sede de processo penal, a jurisprudência constitucional tem considerado, de modo unânime, que não decorre do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP) um direito subjetivo a que determinada questão jurisdicionalmente controvertida goze de um duplo grau de recurso (nesse sentido, entre muitos outros, ver os Acórdãos n.º 338/2005, n.º 2/2006, n.º 575/2006 e n.º 551/2009). Estando em causa, nos presentes autos, um recurso circunscrito a matéria de natureza cível – ainda que enxertado em processo penal –, existem razões acrescidas que justificam que a privação de um duplo grau de recurso não afeta, de modo desproporcionado, o direito de acesso do recorrente aos tribunais (artigo 20.º, n.º 1, da CRP). O que este último preceito constitucional garante é a possibilidade de ver sindicadas decisões jurisdicionais proferidas por um tribunal de primeira instância. Tal não significa, porém, que essa possibilidade de confronto de uma decisão jurisdicional perante um tribunal superior exija um grau ótimo (ou pleno) de recurso, que apenas cabe ao legislador ordinário decidir se e em que medida é justificado.»


Não há qualquer razão para afastarmos aquele que é o entendimento uniforme deste Supremo Tribunal sobre a dita questão e que foi acolhido na decisão sumária.


Não procede o argumento de que a decisão a proferir sobre o mérito do recurso poderá, na perspetiva dos recorrentes, ter efeitos reflexos na decisão quanto à matéria penal, nos termos do artigo 403.º, n.º3, do CPP, pois constitui pressuposto incontornável para que se conheça do recurso que o mesmo seja legalmente admissível.


Adquirido que é aplicável aos recursos relativos a pedidos de indemnização cível formulados em processo penal o regime da denominada dupla conforme previsto no artigo 671.º, n.º 3, do CPC, ex vi artigo 4.º do CPP, vejamos em que consiste esse regime.


2.2. O artigo 671.º do CPP, sob a epígrafe «Decisões que comportam revista», estabelece, no seu n.º 3:


«Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.»


Para que se verifique dupla conforme entre as decisões das instâncias, impeditiva da admissibilidade do recurso de revista, são três os requisitos cumulativos: a ausência de votos de vencido; a conformidade essencial de fundamentação; a conformidade decisória.


O primeiro requisito consiste na exigência de unanimidade por parte do coletivo de juízes da Relação, que se traduz, na letra da lei, na ausência de votos de vencido.


O requisito da conformidade essencial de fundamentação exige uma identidade de fundamentos adotados por ambas as instâncias, mas que não precisa de ser total, pois basta uma identidade essencial.


Na delimitação do que é ou não essencialmente diferente, há que distinguir as figuras da fundamentação diversa e da fundamentação essencialmente diferente. Como se diz no acórdão de 19.02.2015, proc. 302913/11.6YIPRT.E1.S1 (relatado pelo Conselheiro Lopes do Rego, autor que os recorrentes invocam a seu favor,) «não é, na verdade, qualquer alteração, inovação ou modificação dos fundamentos jurídicos do acórdão recorrido relativamente aos seguidos na sentença apelada, qualquer nuance na argumentação jurídica assumida pela Relação para manter a decisão já tomada em 1.ª instância, que justifica a quebra do efeito inibitório quanto à recorribilidade, decorrente do preenchimento da figura da dupla conforme».


Acrescenta-se:


«É necessário, na verdade, que estejamos confrontados com uma modificação qualificada ou essencial da fundamentação jurídica em que assenta, afinal, a manutenção do estrito segmento decisório – só aquela se revelando idónea e adequada para tornar admissível a revista normal.


Note-se que este regime normativo (que sucedeu ao inicialmente editado pelo DL 303/07, estabelecendo a absoluta irrelevância da fundamentação para aferir da existência ou inexistência de dupla conforme) destina-se a permitir ao STJ sindicar, em revista normal, o decidido pela Relação nos casos em que – sendo coincidentes os segmentos decisórios da sentença apelada e do acórdão proferido na apelação – a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1ª instância.»


Este o sentido da jurisprudência consolidada do STJ sobre o conceito de fundamentação essencialmente diferente, que não se basta com qualquer modificação ou alteração da fundamentação, sendo antes indispensável que o âmago fundamental do enquadramento jurídico seguido pela Relação seja completamente diverso daquele que foi seguido pela 1.ª instância. Ou seja, somente deixa de existir dupla conforme quando a solução jurídica prevalecente na Relação seja inovatória, esteja ancorada em preceitos, interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos daqueloutros que fundamentaram a sentença apelada, «sendo irrelevantes discordâncias que não encerrem um enquadramento jurídico alternativo, ou, pura e simplesmente, sejam o reforço argumentativo aduzido pela Relação para sustentar a solução alcançada» (acórdãos de 17.11.2021, processo n.º 22990/16.1T8PRT-B.P1-A.S1; de 31.03.2022, processo n.º 14992/19.2T8LSB.L1.S1, contendo diversas referências jurisprudenciais; cf. caderno de jurisprudência temática sobre o tema da dupla conforme, incluindo o conceito de “fundamentação essencialmente diferente”, disponível na página do Supremo, de 2013 até março de 2022, no seguinte link: https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2022/05/dupla_conforme.pdf).


A inexistência de fundamentação essencialmente diferente não fica afastada pela mera modificação pela Relação da decisão de facto proferida na 1.ª instância, qualquer que seja o âmbito ou alcance dessa modificação, se a mesma não se projetar numa solução jurídica nuclearmente distinta da adotada na 1.ª instância, pela evidente divergência da construção jurídico-argumentativa que a Relação tenha desenvolvido, sufragando, a final, um enquadramento jurídico, institucional ou conceptual, claramente distanciado do que foi realizado na 1.ª instância (entre muitos, os acórdãos deste STJ, de 31.03.2022, processo n.º 15063/16.9T8LSB.L3.S1; de 29.09.2022, proc. n.º 19864/15.7T8LSB.L1-A.S1; de 30.11.2022, proc. n.º 12674/21.4T8SNT.L1.S1).


Finalmente, no que toca ao requisito da conformidade decisória, pressuposto sobre o qual incide a verdadeira ratio da dupla conforme, importa determinar quando se verifica a conformidade entre as decisões.


São dois os critérios que têm sido enunciados: (1) um critério mais amplo de conformidade racional entre as decisões em confronto (a decisão de 1.ª instância e a decisão do Tribunal da Relação resultante do recurso interposto daquela); (2) um critério mais restrito de conformidade formal entre as decisões.


O critério da conformidade formal impõe uma identidade completa e formal entre as decisões.


O critério da conformidade racional, diversamente, sustenta que integra o conceito de “dupla conforme” a situação em que a Relação profere uma decisão que, embora não seja quantitativamente coincidente com a da 1.ª instância, seja mais favorável à parte – isto é, quando o recorrente foi beneficiado com o acórdão da Relação comparativamente com a decisão da 1.ª instância, ou seja, entende existir dupla conforme impeditiva de um recurso de revista nas situações em que exista conformidade in melius.


Não se ignora que, na doutrina, há quem pugne pelo critério da conformidade formal.


Porém, a maioria da doutrina, tal como a jurisprudência largamente majoritária do STJ, nas secções cíveis e nas secções criminais, adotaram o critério da denominada dupla conforme «racional ou ponderada» ou «confirmação in melius» (critério da coincidência racional, por inclusão quantitativa), impeditiva do conhecimento do recurso (acórdão deste STJ, de 04.06.2020,proc.8641/14.2RDLSB.C1.S1,https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:8641.14.2RDLSB.C1.S1#integral-text, com amplas citações).


Este o entendimento do Conselheiro Lopes do Rego, que os recorrentes alegam, sem razão, defender o critério da coincidência formal.


Podemos ler no acórdão de 10.05.2012, proferido no processo 645/08.0TBALB.C1.S1, relatado por esse ilustre Juiz Conselheiro (cujo argumentário é retomado, por exemplo, no acórdão de 22.02.2017, proferido no processo n.º 811/10.9TBBJA.E1.S1, também pelo mesmo relatado):


«(…) na verdade, o referido conceito de dupla conformidade tem de ser interpretado, não em termos empíricos de coincidência puramente numérica ou matemática dos valores pecuniários das condenações constantes das decisões já proferidas pelas instâncias, mas com apelo a um elemento normativo, funcionalmente adequado à actual fisionomia dos recursos e do acesso ao STJ. E, nesta perspectiva, não faria o menor sentido admitir que a parte que viu a sua condenação ser atenuada pelo acórdão proferido pela Relação tivesse a possibilidade de aceder ao Supremo – quando seguramente a não teria se o acórdão proferido em 2.ª instância tivesse mantido, nos seus precisos termos, o montante condenatório mais elevado, arbitrado na sentença proferida em 1.ª instância. Constituiria, na verdade, seguramente solução normativa qualificável como arbitrária ou discricionária a que se traduzisse em conceder o direito ao recurso à parte beneficiada pela decisão da 2ª instância – quando era inquestionável que não poderia recorrer se a Relação, em vez de proferir decisão mais favorável para o recorrente, se tivesse limitado a manter, ipsis verbis, a condenação mais gravosa, decretada na sentença proferida na 1ª instância.


(…)


Ocorrendo, deste modo, uma relação de inclusão quantitativa entre o montante arbitrado na 2.ª instância e o que foi decretado na sentença proferida em 1.ª instância, de tal modo que o valor pecuniário arbitrado pela Relação já estava, de um ponto de vista de um incontornável critério de coerência lógico-jurídica, compreendido no que vem a ser decretado pelo acórdão de que se pretende obter revista, é evidente que tem de se ter por verificado o requisito da dupla conformidade das decisões, no que respeita ao montante pecuniário arbitrado pela Relação.»


Finalmente, também o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) n.º 7/2022 (publicado no D.R., 1.ª Série, n.º 221, de 18.10.2022) tem subjacente o entendimento de que a conformidade decisória que caracteriza a dupla conforme impeditiva da admissibilidade da revista normal, nos termos do artigo 671.º, n.º 3, do CPC, deve ser aferida por um critério de coincidência racional, avaliado em função do benefício (reformatio in melius) que o apelante retira do acórdão da Relação relativamente à decisão da 1.ª instância.


Como se refere no AUJ:


«Na verdade, na escolha do caminho de racionalização do acesso ao STJ, pouco sentido faria inibir a parte de interpor recurso no caso de a Relação manter a mesma condenação da 1.ª instância, mas admiti-lo na situação de a parte obter uma reformatio in melius. Nestas duas situações ocorre uma identidade de razão que impõe, em termos de raciocínio lógico, o mesmo efeito impeditivo do recurso para ambas.»


2.3. Regressando ao recurso em análise, é inequívoca a unanimidade do coletivo de juízes da Relação, manifestada na ausência de votos de vencido.


Foi deduzido nos autos pedido de indemnização civil em que foi peticionada a condenação solidária dos arguidos, relativamente a danos patrimoniais, no valor total de 90 410,23 €, acrescido de juros de mora legais, contados desde 18.02.2013 até efetivo pagamento, posteriormente reduzido o pedido em 15 451,80 €, redução que foi admitida pela 1.ª instância, cifrando-se o valor do pedido em 74 958,43 €.


A 1.ª instância julgou parcialmente procedente o pedido civil e condenou os arguidos/demandados solidariamente no pagamento à demandante da quantia de 54 446,48 € (cinquenta e quatro mil quatrocentos e quarenta e seis euros e quarenta e oito cêntimos), absolvendo-os do demais peticionado.


A Relação, no provimento parcial do recurso, alterou uma pena parcelar (diminuindo-a) e diminuiu a quantia indemnizatória para 52 794,68 € (cinquenta e dois mil setecentos e noventa quatro euros e sessenta e oito cêntimos).


Ou seja: 1.ª instância condenou em 54 446,48 € e a Relação fixou a quantia em 52 794,68 €.


Como se assinala na decisão sumária, a diferença de valor indemnizatório entre o fixado pela 1.ª instância e o fixado pela Relação não decorre de um enquadramento jurídico distinto entre as duas decisões, mas apenas de duas alterações na decisão de facto: uma que se limitou a corrigir um erro de cálculo/contagem nela contido; a outra, derivada da circunstância de a Relação, diversamente da 1.ª instância, ter entendido ser de descontar no valor do prejuízo a quantia de 15 451,80 €, relativa a material recuperado (e alienado pela demandante por esse valor), enquanto a 1.ª instância descontou o valor do mesmo material recuperado pelo que constava da sua avaliação, em 13.800,00 €.


Conclui-se, em consonância com a decisão sumária, que estão preenchidos os requisitos da conformidade essencial de fundamentação e da conformidade decisória, resultando esta da existência de uma confirmação decisória por inclusão quantitativa entre as decisões da 1.ª instância e do Tribunal da Relação, com decisão da Relação mais favorável aos recorrentes.


Como se diz na decisão sumária:


«Assim, não podem os demandados cíveis/arguidos recorrer para o STJ uma vez que ambas as instâncias estão de acordo de que aqueles devem pagar pelo menos 52 794,68 €, tendo sido a decisão recorrida mais favorável para os demandados civis/arguidos.


Ficando os recorrentes beneficiados com a decisão da Relação, sem fundamentação de direito essencialmente diferente e sem voto de vencido, nenhum direito dos recorrentes é restringido comparativamente com o caso de a condenação no Tribunal da Relação manter a indemnização arbitrada em 1.ª instância, situação em que, inquestionavelmente, também não poderiam recorrer para o STJ.»


Inexistindo divergência essencial das instâncias no que toca à fundamentação, sem voto de vencido, e sendo o acórdão recorrido mais favorável aos recorrentes, não se vislumbra na interpretação adotada na decisão sumária, de inadmissibilidade do recurso por existência de “conformidade in melius”, qualquer violação do direito à tutela jurisdicional efetiva previsto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa. Como se refere na decisão sumária, nenhum direito dos recorrentes é restringido comparativamente com o caso de a condenação no Tribunal da Relação manter a indemnização arbitrada em 1.ª instância, em que os demandados não poderiam recorrer para o STJ, sem que por isso estivéssemos perante uma situação em que o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva tivesse sido violado.


2.4. Pretendem os recorrentes, subsidiariamente, em sede de reclamação para a conferência, a convolação do recurso interposto em recurso de revista excecional.


A ser legalmente admissível a revista excecional, limitada à matéria civil enxertada no processo penal, a reclamação para a conferência da decisão sumária do relator que rejeitou o recurso não constitui mecanismo processual adequado para requerer e operar a convolação do recurso interposto na dita revista excecional.


O mecanismo processual da convolação, em processo civil, tem por base a existência clara de um erro tipológico numa peça que apresenta determinada pretensão, ou seja, é, «grosso modo», o ato jurisdicional que, tendo em vista a inadequação da peça processual para atingir o que o seu apresentante tinha em vista, a requalifica juridicamente, aproveitando-a dentro do destino genérico que a apresentação da peça visou. A convolação para a forma de processo que devia ter sido escolhida observa o “princípio de boa economia processual” (artigo 193.º do CPC).


A convolação constitui, em suma, um remédio (excecional) contra um erro notório de inserção tipológica.


A reclamação para a conferência, prevista no n.º 8, do artigo 417.º, do CPP, tem por finalidade fazer sindicar colegialmente a decisão tomada pelo relator, não habilitando a que o recorrente/reclamante altere em substância a sua pretensão mediante a alegação de novos factos e pressupostos do recurso.


Quer isto dizer que cabe à conferência, nesta sede, cotejar os fundamentos vertidos na decisão sumária, por referência aos pressupostos e aos elementos constantes dos autos, à data da prolação daquela decisão, em particular, o teor do requerimento de interposição de recurso.


Ora, o que os recorrentes visam com a presente reclamação, no que toca à pretendida convolação do recurso em “revista excecional”, é uma verdadeira convolação do recurso primitivamente interposto para um recurso com pressupostos distintos dos que constavam no requerimento de interposição de recurso.


Não estamos perante uma mera diferença de qualificação jurídico-processual da peça recursória, sendo manifesta a diferença entre os recursos em cotejo no que concerne aos seus pressupostos.


A este propósito, importa reter que a possibilidade de convolação não existe independentemente das circunstâncias, estando dependente do preenchimento de determinadas condições: só pode haver convolação quando possam considerar-se preenchidos os requisitos do meio para o qual o objeto será convolado.


Na revista excecional, nos termos do artigo 672.º, n.º2, do CPC, o requerente deve indicar, na sua alegação, sob pena de rejeição:


a) As razões pelas quais a apreciação da questão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;


b) As razões pelas quais os interesses são de particular relevância social;


c) Os aspetos de identidade que determinam a contradição alegada, juntando cópia do acórdão-fundamento com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição.


A reclamação para a conferência não é processualmente adequada para transmutar o recurso interposto pelos recorrentes/reclamantes por via da alegação inovatória, em sede de reclamação, dos fundamentos específicos para a admissibilidade do (novo) recurso (não invocados, aliás, quando os recorrentes se pronunciaram, previamente à decisão sumária, sobre a questão da recorribilidade).


Veja-se, por exemplo, a alegação de que teria sido invocada a contradição do acórdão recorrido com outro, já transitado em julgado.


O que se extrai do recurso é a citação, como é normal acontecer, de jurisprudência que, no entendimento dos recorrentes, sustenta a sua pretensão, incluindo, entre outros arestos, o acórdão da Relação de Coimbra, de 20.09.2017, proferido no processo 174/08.2GASPS.C1, por sinal da mesma relatora do acórdão recorrido, mencionado no corpo da motivação (mas não retomado nas conclusões que definem o objeto do recurso), sumariado nos seguintes termos:


«(…) IV - A prova indirecta, cuja admissibilidade em processo penal não se questiona, pressupõe que a factualidade conhecida permite adquirir ou alcançar a realidade de um facto não directamente demonstrado.


V - O facto de o agente ter na sua posse um dos objetos furtados não é suficiente como indício seguro e inequívoco, capaz de fundar um juízo de certeza para além de toda a dúvida razoável, e não de mera probabilidade, de que foi ele o autor do furto.»


O acórdão recorrido, quando se refere a prova indireta, sustenta que a mesma era apta à demonstração da factualidade impugnada em questão, mencionando a prova direta em que aquela (indireta) se baseia e a existência de múltiplos factos indiciários conducentes, em função da consistência da inferência a que se chegou, a um resultado concludente pela ausência de hipóteses alternativas que revistam um mínimo de plausibilidade.


Manifestamente, inexiste qualquer contradição entre os acórdãos, mas tão somente o inconformismo dos recorrentes com a valoração da prova efetuada pela Relação, apresentado agora sob o pretexto de uma pretensa contradição.


Em suma, não tendo os recorrente apresentado argumentos, na respetiva reclamação, que coloquem em crise a apreciação contida na decisão sumária reclamada quanto ao não preenchimento dos pressupostos de admissibilidade do recurso interposto, mantêm-se na integra e incólumes todos os argumentos ali vertidos, sendo inadmissível a pretendida (em sede de reclamação) convolação, o que conduz, necessariamente, ao indeferimento da reclamação.


***


III. DECISÃO


Em face do exposto, acordam, em conferência, na 5.ª secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em indeferir a reclamação da decisão sumária do relator, de rejeição do recurso, confirmando na íntegra a decisão reclamada e não admitindo a pretendida convolação.


Custas pelos recorrentes/reclamantes, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça de cada um.


Supremo Tribunal de Justiça, 14 de dezembro de 2023


(certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3, do CPP)


Jorge Gonçalves (Relator)


Leonor Furtado (1.ª Adjunta)


Orlando Gonçalves (2.º Adjunto)