Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
63/2000.C1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: SILVA GONÇALVES
Descritores: INABILITAÇÃO
ANOMALIA PSÍQUICA
DONATIVO CONFORME AOS USOS SOCIAIS
INCAPACIDADE
PROVA PERICIAL
MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
Data do Acordão: 11/19/2015
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / PESSOAS SINGULARES / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIOS JURÍDICOS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSOS ESPECIAIS / PROCESSO DE INABILITAÇÃO.
Doutrina:
- A. Varela, Obrigações, I Volume, pp. 514 /516.
- Castro Mendes, Direito Civil, Teoria Geral, Vol. I, p. 346.
- J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, p. 269.
- Raul Guichard Alves, Direito e Justiça, Revista da faculdade de Direito da Universidade Católica, volume IX, Tomo 2; Centro de Estudos Judiciários, Maio de 2015.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 152.º, 234.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 655.º, N.º1, 712.º, 722.º, N.º2, 729.º, 951.º, 954.º, N.º1, 957.º, N.º 1.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 18.º, N.º 2, 26.º, N.º4.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 21/09/1993, C.J., TOMO III, P. 21;
-DE 28/01/2003, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 1/07/2008, PROCESSO N.º 191/08, 1.ª SECÇÃO.
Sumário :
I - Podem ser inabilitados todos os cidadãos que detenham uma anomalia psíquica tal que os incapacite de determinar a sua vontade para reger o seu património.

II - Não nos dá a lei a noção de anomalia psíquica; e seria pouco aconselhável que o legislador tivesse de harmonizar a definição que este conceito haveria de abranger, pois que a ciência médico-psiquiátrica, a verdadeira autoridade nesta matéria, o não pode cristalizar no seu natural, racional e contínuo aperfeiçoamento, sempre permeável à atualização do seu conteúdo; podemos, porém, adiantar que “anomalia psíquica” compreende qualquer perturbação das faculdades intelectuais ou intelectivas (afetando a inteligência, a perceção ou a memória) ou das faculdades volitivas (atinentes quer à formação da vontade, quer à sua manifestação).

III - Se é certo que houve atos de altruísmo que o requerido praticou e que são conformes aos usos sociais, por serem praticados por uma pessoa de avantajados réditos, também é verdade que, tomando na devida conta o valor do denunciado dispêndio afeto à doação dos “jeep Honda” a todos os trabalhadores das sociedades de que era sócio e que intentou concretizar, anotando nós a sequência temporal de todas estas dádivas, havemos de ajuizar que todos estes atos, de duvidosa filantropia, se entrecruzam numa movimentação de insanidade mental, a corporizar a avaliação de que o requerido sofreu de singular patologia mental que consubstancia anomalia psíquica a justificar a inabilitação.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



AA, BB e CC intentam a presente ação especial de inabilitação por anomalia psíquica contra DD, alegando, para o efeito, e em síntese:

São, respetivamente, irmãos germanos e sobrinho do requerido, e este, fruto da anomalia psíquica permanente de que padece - psicose maníaco depressiva grave/doença bipolar - encontra-se impossibilitado de reger por si só a sua pessoa e bens, pelo que pugnam, para além da sua inabilitação provisória imediata, pela sua inabilitação;

O requerido encontra-se reformado por força da sua doença mental, não exercendo qualquer atividade empresarial ou de mera gestão corrente há mais de 20 anos, encontrando-se desde há muitos anos sob medicação, com períodos de internamento, e com a progressiva deterioração das capacidades intelectuais e cognitivas;

O requerido desde sempre que vem praticando atos de benemerência, em períodos de crise psíquica, com o desejo de doar um terreno com 7.000 m2 ao Clube de Rugby da …, desejo de doação da sua quota-parte da sociedade “EE, Lda.”, de determinadas máquinas de uma secção da mesma, de pretender casar com a sua companheira em Albufeira, pretender fazer doações em numerário aos sobrinhos, pretender doar apartamentos aos sobrinhos netos e manifestar vontade de doar um jipe a cada um dos seus funcionários, em número de 150 a 200 unidades, tendo para o efeito redigido o respetivo contrato-promessa, sendo que muitos negócios não se realizaram por oposição dos potenciais beneficiários.

Concluem, aduzindo que o requerido não é habitualmente pródigo mas incorre, por tendência, em excessos patrimoniais, pelo que pugnam, para sua proteção, pela sua inabilitação, devendo, por conseguinte, ser representado por um curador a fim de lhe administrar todo o seu património, bem como a prática dos atos de natureza pessoal de carácter familiar.


O requerido apresentou contestação, alegando, em síntese:

Padece de uma doença de foro neurológico, hereditária, do tipo “psicose”, não o impedindo de exercer de forma proveitosa e bem sucedida a sua atividade industrial, pelo que não padece de anomalia psíquica que o impeça de reger a sua pessoa e bens.

Tal doença não tem carácter permanente, manifestando-se com intervalos de muitos meses ou anos, recorrendo espontaneamente ao médico adequado que lhe prescreve a adequada medicação e que respeita escrupulosamente, com auxílio de terceiros;

Sofreu períodos de internamento, por sua iniciativa, e quando não tinha auxílio de terceiros para o auxiliar na terapêutica, reconhecendo os sintomas iniciais da doença e, consequentemente, suspendendo qualquer atividade.

Sempre foi contido nos seus gastos quotidianos, e seguindo o caminho do seu pai, foi um filantropo e benemérito, tendo após o 25 de Abril de 1974 oferecido uma bicicleta a todos os seus funcionários, adquiriu para a ARCIL o edifício para as suas instalações e reconstruiu-o, impulsionou a Fanfarra dos Bombeiros Voluntários da …, concedeu-lhe um donativo anual e emprestou o terreno para o Clube de Rugby;

Os jipes que pretende oferecer aos seus trabalhadores visa recompensá-los pelo seu esforço e dedicação, e cuja decisão vem sendo ao longo do tempo ponderada, manifestando os requerentes oposição ao negócio, pelo que o referido negócio se encontra em suspenso.


Procedeu-se ao interrogatório judicial e exame pericial do requerido, o qual concluiu que o estado psicopatológico apresentado pelo requerido, “que lhe vem condicionando a capacidade de gerir/e ou dispor dos seus bens, deverá relevar para efeitos de requerimento da sua eventual inabilitação/interdição por anomalia psíquica”.


Falecido o requerido na pendência da ação (a 23 de março de 2005), foi determinado o prosseguimento dos autos ao abrigo do disposto no artigo 958º do CPC (na redação anterior à reforma).


Foi proferido despacho saneador, com seleção da matéria de facto assente e fixação da base instrutória.


Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida decisão de resposta à matéria de facto dado como provada.


O juiz a quo proferiu sentença em que, julgando a ação totalmente improcedente, em consequência, absolveu o requerido dos pedidos contra si formulados.


Inconformados com tal decisão, dela interpuseram recurso os requerentes para a Relação de Coimbra, que, por acórdão de 11.11.2014 (cfr. fls. 3099 a 3259), julgando a apelação parcialmente procedente, julgou a ação parcialmente procedente e reconheceu a existência de uma situação de incapacidade que justificaria a inabilitação por anomalia psíquica do requerido, retirando-lhe a possibilidade de praticar, por ato próprio e sem autorização de curador, atos de disposição de bens entre vivos, fixando-se o início da incapacidade no ano de 1995.


Irresignado, recorre agora para este Supremo Tribunal o requerido DD, representado pelo seu advogado FF, que alegou e concluiu pelo modo seguinte:

Quanto à modificação da decisão de facto operada pela douta decisão recorrida.

1.ª) - Ao modificar a decisão de facto, quanto aos factos dos quesitos 1°., 40°. e 41.º da base instrutória, a decisão recorrida não enunciou, como devia, as razões da preferência dos contributos probatórios que em concreto elegeu para operar tal modificação em relação aos fundamentos de facto enunciados na decisão de facto proferida em Primeira Instância. Com o que violou o dever legal de fundamentação, enunciado no art. 158° do Cód. Proc. Civil, na redacção aplicável. E violou, entre outras, a disposição dos arts. 712°., n°. 1 a), do Cód. Proc. Civil, na redacção anterior ao DL n.º. 303/2007, de 24 de Agosto;

2.ª) - O Venerando Tribunal da Relação, ao decidir a apelação, estava em desvantagem perante a Primeira Instância, que dispusera da imediação do contacto com as provas produzidas em julgamento. Em particular com o interrogatório do Requerido de fls. feita pela mesma Meritíssima Juiz que presidiu ao julgamento e que decidira de facto a lide. Não tinha os mesmos elementos probatórios de que dispusera a Primeira Instância para concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro na apreciação relativamente aos quesitos 1.º, 40.º e 41.º da base instrutória. Com o que violou entre outros os arts. 712°, n.º do CPC, 655° do mesmo Código, 950°., 389.º., 392° e 386° do Cód. Civil.


Quanto ao segmento decisório da douta decisão recorrida em que se decide de Direito:

3.ª) - Apenas se justifica a medida restritiva da limitação da capacidade jurídica de exercício de direitos em que a inabilitação consiste quando a aptidão, liberdade ou ponderação normal da pessoa para entender e querer, base natural da capacidade de exercício, se encontre diminuída de forma grave ou profunda, e com carácter prejudicante da capacidade de reger os bens da pessoa;

4.ª) Ficou provado que o Recorrente padecia de doença afectiva bipolar (doravante também designada por DAB), na classificação CID 10 da Organização Mundial de Saúde; sendo que aproximadamente dez anos antes da sua morte se foi associando um processo de deterioração cognitiva sem compromissos grosseiros das funções nervosas superiores (em termos intelectivos e volitivos) com alguns défices cognitivos selectivos ou lacunares que lhe comprometem a capacidade de cálculo (incluindo para operações simples ou elementares) a compreensão e o manejo das quantidades (do todo e das partes), a traduzir uma menor conservação das áreas cerebrais nobres (corticais), responsáveis pelo efeito da abstracção e pelo sequenciamento e ou processamento das diferentes etapas de elaboração mental.

5.ª) - Todos nós sabemos que a classificação internacional de doenças - chamada CID - da Organização Mundial de Saúde, integrante da ONU, constitui uma verdadeira tipologia caracterizada pelo seu exclusivismo, à qual todas as Autoridades do Estado se devem submeter. Uma regra universal de uniformização de patologias, acessível a médicos e, também, ao cidadão comum. Anomalia da saúde humana que não tenha enquadramento em tal tipologia não é doença considerada relevante enquanto tal. Esta patologia, por definição, não tem nível psicótico. Elemento que a distingue da esquizofrenia. A doença afectiva bipolar cursa por períodos de normalidade, que são os mais prolongados no tempo, e por períodos de euforia e de depressão.

6.ª) No caso do Requerido, a doença bipolar manifestava-se de tempos a tempos, com episódios raros de mania e mais frequentes de depressão, apresentando-se com intervalos de muitos meses sem sinais. Nos momentos de surto depressivo, que eram os predominantes, o Requerido suspendia toda a actividade, recolhendo-se em casa.

7.ª) - Entre as crises - de euforia ou de depressão - não há alteração da vontade, da consciência, do raciocínio, do juízo crítico. Entre as crises não ocorre alteração das funções nervosas superiores. Não há alterações da vontade, da consciência, do raciocínio, do juízo crítico. Entre as crises, o doente afectivo bipolar tem as capacidades intelectivas conservadas - o doente beneficia da restitutio ad integrum.

8.ª) - A perícia médico-legal do Instituto de Medicina Legal (doravante também designado por IML, e o relatório que a corporiza de RML) - transcrevem-se as expressões que os Peritos do IML exararam no seu relatório autuado a fls. - "não detectou alterações psicopatológicas de doença psiquiátrica, propriamente dita, em fase produtiva (ou activa). A atenção é captável. Também não apurou alterações significativas do humor. O mesmo acontecendo quanto à senso-percepção, pela ausência de ilusões e ou alucinações. O mesmo acontecendo quanto ao curso, posse e conteúdo do pensamento; onde foi negativa a presença de qualquer actividade delirante ou de corte com a realidade".

9.ª) - O Requerido reagiu positivamente à avaliação que dele se fez em sede de funções de cálculo. O cálculo mandado efectuar em sede de interrogatório judicial a que se reporta a acta de fls. 383 a 389 do produto de 3500 por 161 - registado no documento de fls. 347 releva que o Requerido sabia indicar o cálculo, fazer os produtos parcelares; tirar a prova dos nove (operação que envolve cálculo mental). Também a avaliação de Psicologia Clínica para efeitos de apuramento do quociente de inteligência verbal engloba aritmética. E o resultado global foi favorável (cfr. também o relatório de fls. 2571 ss. da Dra. GG; relatório que enuncia as matérias que englobam os subtestes de QI verbal - informação, compreensão, aritmética, semelhanças, dígitos, vocabulário e do QI de execução (código, completamento de gravuras, cubos, disposição de gravuras, composição de objectos). O relatório psicométrico da Dra. GG pode ser confrontado com a parte do relatório de perícia de Psicologia Clínica de fls. 479, que aplicou o mesmo teste (a WAIS) e tem registos de pontuação semelhantes. Para além de que no interrogatório judicial - fls. 383 - 389 - revelou saber o preço dos bens de uso corrente. E conseguiu contar notas de banco. Sendo de ponderar que este tipo de investigações foi feito num ambiente tão pesado como a sala de audiências; achando-se o Requerido sob forte emoção própria da circunstância de a sua integridade mental ser posta em causa. Tendo sabido enunciar a operação de multiplicação, bastaria que estivesse rotinado a operar com a calculadora - e não estava - para obter o resultado daquela operação. Por isso a afectação das funções de cálculo deve ser valorada como ligeira.

10.ª) - A avaliação das competências do Requerido para realizar funções executivas foi feita à luz dos testes de Psicologia Clínica, em sede de subtestes específicos dirigidos à quantificação do QI de execução (código, completamento de gravuras, cubos, disposição de gravuras, composição de objectos). Para além da lentificação cognitiva e motora própria da idade e da medicação, é de atender às características de personalidade e de carácter do Requerido - que era, por personalidade, um indivíduo lento - e à medicação que tomava regularmente para o controlo da sua doença afectiva bipolar. Os resultados obtidos, nos testes de aplicação da mesma escala de inteligência de WAIS pelo Psicólogo Clínico feito intervir pelo IML como pelo pela Psicóloga Clínica Dra. GG conduziram a resultados semelhantes. Sendo que no teste solicitado particularmente (fls. há grande semelhança entre o QI verbal e o QI de execução.

11.ª) - A perícia do IML, que se continua a transcrever, " também não apurou na pessoa do examinando prejuízos manifestos das funções biológicas vitais ".

12.ª) - A perícia do IML, que se continua a transcrever, verificou "a inexistência de compromissos grosseiros das funções nervosas superiores em termos intelectivos e volitivos".

13.ª) A perícia do IML, que se continua a transcrever, afirmou que o Recorrente tinha alguns défices cognitivos selectivos ou lacunares.

14.ª) A perícia do IML, que se continua a transcrever, verificou que o Recorrente confirmava a toma regular de medicação que lhe vem sendo prescrita desde há muitos anos para a sua doença bipolar.

15.ª) - Segundo o RML (continuam a transcrever-se as expressões aí consignadas pelos Peritos do IML): "o Requerido da inabilitação apresentou-se calmo, consciente e orientado no espaço, no tempo e no self. Denotou ser um homem de trato educado, deferente e respeitador, cuidado no arranjo pessoal e alinhado no traje. Foi também detectado no relatório médico-legal (RML) do IML que o seu biótipo é normolíneo, mantendo uma boa compleição física. O seu discurso foi reconhecido como lógico e coerente.”

16.ª) - Também segundo o RML (prossegue a transcrição): quer à data dos factos que haveriam de estar na base da presente acção, quer à data das avaliações efectuadas pelo RML "não havia razões substantivas de natureza psiquiátrica incompatíveis com a expressão de uma vontade livre e esclarecida".

17.ª) Embora não passem de exames complementares, e não sejam decisivos para o apuramento da sanidade do cidadão, em vista da decisão desta lide, o apuramento do seu quociente de inteligência merece ponderação. O raciocínio médico, por meio do qual se faz o diagnóstico clínico, sobrepõe-se aos resultados de tais exames. Mas a verdade é que os testes de Psicologia Clínica e de Psicometria incorporados no RML e aplicados ao Recorrente deram como resultado que ele estava normal na expressão do RML: médio, normal.

18.ª) - Também o relatório do exame complementar, de natureza neurorradiológica, a tomografia axial computorizada crânio-encefálica (igualmente não decisivo para o apuramento da sanidade mental do cidadão; uma vez que decisivo é o diagnóstico clínico que sobre ele se debruça apoiado na observação médico-psiquiátrica) não vai além da detecção de atrofia. O que é próprio do envelhecimento humano o Recorrente já tinha, à data, 66 anos.

19.ª) A perícia do IML considerou o examinando, aqui Recorrente, “detentor de uma soma de conhecimentos acerca dos direitos e deveres e das regras da vida em sociedade; detentor de um juízo suficiente para aplicá-los num caso concreto “.

20.ª) E, muito embora tivesse afirmado que a integridade da vontade necessária para influenciar uma decisão livre pode resultar fortemente prejudicada, o certo é que o mesmo relatório já afirmara, em momento anterior, que, quer à data dos factos que haveriam de estar na base da acção, quer no momento das diferentes avaliações por nós realizadas, não havia razões substantivas de natureza psiquiátrica incompatíveis com a expressão de uma vontade livre e esclarecida. Esta última asserção do RML declarando peremptoriamente a capacidade do cidadão para exprimir uma vontade livre e esclarecida, exclui a validade lógica da anterior. Por conseguinte: também a terceira premissa do conceito enunciado como sendo, em termos médico-legais, o de capacidade jurídico-civil se encontra preenchida pelo Recorrente. Que, por isso, também em termos médico-legais deveria ter sido considerado capaz.

21.ª) - No que concerne à intenção da dádiva dos automóveis (jeep) aos empregados, o RML, ao referir que, quer à data dos factos que haveriam de estar na base da acção, quer no momento das diferentes avaliações por nós realizadas, não havia razões substantivas de natureza psiquiátrica incompatíveis com a expressão de uma vontade livre e esclarecida, reporta-se, segundo uma interpretação objectiva do texto em que se corporiza, também ao momento em que o Recorrido formulou a intenção da dádiva dos jeep. Mais adiante, os Peritos do IML afirmam que a dádiva dos jeep foi, aparentemente, uma resolução tomada de forma irreflectida, em acting-out.

22.ª) - A afirmação constante do RML, da tomada de decisão em acting-out pretende ligar tal manifestação de vontade a um momento de crise da doença afectiva bipolar, na sua fase de euforia. Mas: tendo dito anteriormente que à data dos factos que haveriam de estar na base da acção não havia razões substantivas de natureza psiquiátrica incompatíveis com a expressão de uma vontade livre e esclarecida. Então: a decisão foi tomada numa fase da sua doença em que o Recorrente estava eutímico. Isto é, numa fase de normalidade. Por isso: é de presumir, segundo as regras da experiência comum, que a decisão de vir a dar os jeep foi reflectida, consciente, e inspirada pelo nobre critério pessoal da benemerência, visando gratificar os seus empregados pelo seu esforço e dedicação. A opinião que coloca a intenção de dádiva dos jeeps fora da expressão de uma vontade livre e esclarecida é, assim, contraditória com os termos do próprio RML. Circunstância que foi em devido tempo - reclamação de fls. - suscitada em reclamação dirigida ao relatório (o RML) .

23.ª) - Não obstante: a Medicina Legal é Ciência complementar do Direito Privado (das Pessoas). É a enunciação e aplicação do conceito jurídico de capacidade jurídico-civil que deve ser mobilizada para decidir a lide, sobrepondo-se ao conceito médico-legal.

24.ª) - O relatório elaborado em vista da reforma antecipada por invalidez, a pedido do Recorrido, não constitui material atendível, nem em termos médico-legais, nem psiquiátrico-forenses. A consideração de tal relatório, subscrito pelo Psiquiatra Dr. HH, contraria a decisão tomada pela Merit.ma Juiz, antes do interrogatório de excluir da formação do colégio que realizou a perícia do IML o próprio Dr. HH (e os demais Psiquiatras que o haviam assistido). E a avaliação para efeito de capacidade para o trabalho tem finalidades e tons diferentes da avaliação psiquiátrico-forense em vista da decisão judicial sobre a capacidade jurídico-civil.

25.ª) - O momento do relatório dito de conclusões é contraditório com as premissas, enunciadas nos seus segmentos relativos à história do caso e ao exame mental. E, nessa medida, tal segmento do relatório não é válido em termos probatórios. Os termos utilizados no relatório médico-legal "a integridade da vontade pode resultar fortemente condicionada" - que está cm oposição com o passo do relatório em que afirmavam não haver razões substantivas de natureza psiquiátrica incompatíveis com a expressão de uma vontade livre e esclarecida - ; "vem condicionando a capacidade de gerir e/ou dispor dos bens" - que está em oposição com a administração dos bens que o Requerido desde data muito remota fez sempre com o auxílio de procuradores ou meros prestadores de serviços por si livremente eleitos - "eventual inabilitação/interdição por anomalia psíquica" - que demonstra dúvida sobre o preenchimento dos pressupostos legais da interdição e inabilitação, e, na afirmativa, na escolha e oportunidade de aplicação em concreto de uma delas - , interpretados objectivamente, são sugestivos da dúvida dos Psiquiatras que o elaboraram, e, não podem, por isso, influenciar a decisão dos Ex. mos Julgadores a respeito da capacidade jurídico-civil do Recorrente.

26.ª) - A afirmação, constante do RML, de que nos períodos de normalidade (ou eutimia), ou fora das crises da agudização da doença se não verifica no Requerente o restitutio ad integrum das suas funções mais nobres é contraditória com todas as demais declarações médicas constantes do relatório.   

E não tem suporte em observações clínicas contemporâneas da sua elaboração, constantes das dezasseis extensas páginas anteriores da mesma peça.

De facto o Requerido não apresentou disfunções cognitivo/comportamentais; a tomografia axial computorizada não revelou lesão cerebral; os aspectos de observação clínica pretensamente reveladores de défices cognitivos selectivos/lacunares não foram enunciados no relatório. O Requerido apresentou razoável capacidade de cálculo, atenta a lentificação provocada pelos medicamentos.

27.ª) - O que é decisivo e suficiente para o doente poder reger os seus bens e a sua pessoa. Nessa conformidade, deve declarar-se no provimento deste recurso, não verificado o condicionalismo segundo o qual - caso vivo ainda fosse - o Recorrente seria inabilitado. Com as legais consequências.

28.ª) - Não tendo sido concretizado em vida do Recorrido o negócio sequer de compra dos automóveis (jeeps), em vista da futura dádiva aos trabalhadores, não há necessidade de qualquer prevenção judicial, por via da inabilitação, neste momento só passível de efeitos póstumos; está apenas provado que o agora Recorrido anunciou a intenção de vir a dar os automóveis - jeep - ; sem, sequer, a ter concretizado durante os poucos anos que ainda viveu.

29.ª) - A acção constitutiva em que a lide de inabilitação consiste destina-se a conferir a determinadas pessoas, selecionadas de entre os membros da família do requerido da inabilitação, um poder funcional sobre a regência da sua pessoa e a administração dos seus bens, com vista à protecção dos interesses pessoais de tal pessoa - o hipotético inabilitando; a outorga de tais poderes funcionais destina-se a satisfazer interesses próprios do próprio incapaz. Pessoa em cujo exclusivo interesse pessoal o Direito determinará - verificados que sejam os demais pressupostos - a restrição (que é uma medida excepcional) da capacidade de exercício. Os Recorridos mais não pretendem, com a propositura da lide após a morte do Recorrente do que satisfazer interesses patrimoniais deles próprios - e da conservação do máximo de valores patrimoniais no património do Recorrente para futura partilha. Que não interesses do próprio recorrente, como cidadão. O que de resto até conseguiram. Pois que a maior parte do património que pertencia ao Requerido à ora da morte - dinheiros, outros valores mobiliários de natureza financeira, participações sociais em sociedades comerciais com enormíssimos e muito valiosos activos imobiliários - acabou por ser atribuído aos irmãos e sobrinhos (aos sobrinhos, em representação dos irmãos do falecido), segundo as regras da sucessão legítima, pois que faleceu solteiro, sem descendentes nem ascendentes vivos.

30.ª) - Nessas circunstâncias, um suposto direito de ver decretada a inabilitação, após a morte do Requerido da inabilitação, a existir - o que não se concede - seria ilegítimo e abusivo. Pois que, tanto os bons costumes, como o fim social visado com a restrição da capacidade de exercício em que a inabilitação consiste obrigam à prova da existência de um interesse próprio e exclusivo do suposto inabilitando em tal decretamento. O património do Requerido manteve-se conservado até à morte. Não foram alegados negócios de carácter oneroso que tivessem prejudicado o Recorrente. Configurando uma situação de abuso de direito, não consentida pelo art. 334.º do Cód. Civil. . Que é de conhecimento oficioso, já suscitada nos autos, e que novamente se alega, neste específico momento processual;

31.ª) - Não é qualquer anomalia psíquica que por si própria justifica a inabilitação. A decisão de inabilitação deve ser avaliada em concreto em função da pessoa do cidadão visado, dos seus interesses pessoais, da necessidade da medida. A regra é a capacidade civil. A inabilitação é a excepção. É indispensável que a anomalia psíquica comprometa a razão o raciocínio e o juízo crítico.

32.ª) - E tem de ser permanente. Os institutos da anulação e nulidade dos negócios jurídicos por falta ou vício de vontade ou por vícios ligados ao objecto negocial são suficientes para prevenir, segundo o legislador, as situações esporádicas de incapacidade negocial.

33.ª) - No caso dos autos não se justificaria, se vivo fosse, a aplicação ao Recorrente da medida restritiva da capacidade civil em que a inabilitação consiste. Na vertente da sua sanidade mental, o Recorrente mantinha a razão, o raciocínio lógico e o juízo crítico.

34.ª) - A benemerência e a e filantropia eram traços de personalidade, geneticamente ligados à influência da pessoa do seu progenitor, à compatibilidade dos seus actos de dádiva com o património. Tal restrição à capacidade de exercício também se não se justificaria face à sua iniciativa, por si livremente decidida, de se socorrer de auxiliares por si próprio escolhidos para o ajudar na gestão do seu património.

35.ª) - Não se justifica que a medida de inabilitação fosse do seu interesse, caso decretada em vida. Pelo contrário: os interesses visados com esta concreta acção são interesses pessoais à época dos seus presuntivos sucessores; e, agora, efectivos sucessores da maior parte elo seu património.

36.ª) No caso dos autos o Requerido mais não era do que um cidadão com património cristalizado em dinheiro, aplicações financeiras e participações sociais (corporizadas nas quotas nas sociedades por quotas de que era titular). Cuja administração não envolvia grandes riscos. Nem exigia conhecimentos especializados muito apurados. E, por sua própria escolha, fazia-se auxiliar por terceiros, por si livremente escolhidos.

37.ª) - No caso dos autos não se justifica à luz da patologia de que era portador. Pois que não obstante, mantinha a razão, o raciocínio lógico e o juízo crítico. Não se justifica face à sua personalidade benemerente e filantrópica. Não se justifica face à dimensão do seu património. Não se justifica face à compatibilidade dos seus actos de dádiva com o património. Não se justifica face à sua iniciativa, por si livremente decidida, de se socorrer de auxiliares por si próprio escolhidos para o ajudar na gestão do seu património. Não se justifica que seja do seu interesse. Pelo contrário: os interesses visados com a acção são interesses pessoais dos seus sucessores quanto à partilha do património do falecido.

38.ª) - O Recorrente está a ser vítima do estigma de que, sofrendo de doença afectiva bipolar, as suas decisões (designadamente as generosas intenções de dádiva a que os autos se reportam) são o efeito de um episódio de crise da sua doença. O que se não provou.

39.ª) Ao entender que a incapacidade atribuída ao Recorrente no segmento fáctico do acórdão recorrido constituía anomalia psíquica permanente e prejudicante da capacidade de dispor dos seus bens, caso vivo fosse, o segmento fáctico da decisão recorrida incorreu em erro de julgamento; não tendo ponderado que, para mais, em sede de avaliação jurídica das suas capacidades que o Recorrente já era pessoa de idade, à época do relatório médico-legal com 68 anos, o acórdão recorrido violou, entre outras, as disposições dos arts. 152.º., com referência ao art. 138°., 70°., 71°, 67°. do Cód. Civil, 26° e 18°., nº. 2 da Constituição;

40.ª) - Ao declarar reconhecer no Recorrente a existência de uma situação de incapacidade que justificaria a inabilitação por anomalia psíquica do Requerido retirando “a possibilidade - caso vivo fosse, de praticar, por acto próprio e sem autorização de curador, actos de disposição de bens entre vivos, fixando-se o início da incapacidade no ano de 1995”, o acórdão recorrido violou, entre outras, as mesmas e citadas disposições dos arts. dos arts. 152°., com referência ao art.º 138°, 70°, .71º, 67º. do Cód. Civil, 334° do Cód, Civil, 26° e 18°, nº 2 da Constituição.

41.ª) - A proposição contida no art. 957°., nº. 1, do Cód Proc. Civil (na versão que vigorava à data dos factos) e no art. 904°, nº, 1 do Cód. Proc. Civil vigente, na acepção normativa segundo a qual o Tribunal pode verificar se existe e desde quando datava a incapacidade alegada, mesmo quando o Requerido se tenha finado com património, e sem ter herdeiros legitimários, é materialmente inconstitucional, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 26° e 18°., n.º 2 da Constituição. Inconstitucionalidade que deve, como tal ser declarada - o que se requer - julgando-se a acção improcedente.

42.ª) - Ao declarar fixar o início da incapacidade no ano de 1995, o acórdão recorrido violou, por erro de julgamento, a regra do art. 957° do Cód. Proc. Civil. Pois que nenhuma prova se fez - caso a incapacidade se tivesse verificado - a respeito da suposta data do seu início. Aliás: nem foi proposta prova nesse sentido.

43.ª) - O fundamento específico de recorribilidade é o erro de julgamento, corporizado na decisão recorrida. Na parte em que esta impugnação recursória se dirige ao segmento decisório que modificou as respostas aos quesitos 1°., 40°. e 41°. - por erro de interpretação e aplicação das regras que consentem à Relação a modificação da decisão de facto - a violação os arts. 712°, nº 1 do CPC, 655° do mesmo Código, na redacção aplicável, e dos 950º, 389°, 392° e 386° do Cód. Civil. Na parte em que ela se dirige ao segmento decisório de Direito, por erro de interpretação e aplicação das disposições dos arts. 152°., com referência ao art. 138°, 70°., 71º, 67° do Cód. Civil, do 334° do Cód. Civil, dos arts. 26° e 18°, n.º, 2 da Constituição e 957° do Cód. Proc. Civil. E, também, a inconstitucionalidade da disposição do art. 957°., n.º. 1 do Cód Proc. Civil (na versão que vigorava à data dos factos) e no art. 904°., n.º, 1 do Cód. Proc. Civil vigente, na acepção normativa segundo a qual ao consagrar que o Tribunal pode verificar se existe e desde quando datava a incapacidade alegada, mesmo quando o Requerido se tenha finado com património, e sem ter herdeiros legitimários, é materialmente inconstitucional, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 26° e 18°, n.º 2 da Constituição. Inconstitucionalidade que deve, como tal ser declarada.

Termina pedindo que seja revogado o acórdão recorrido, designadamente o seu segmento em que operou a modificação da decisão da matéria de facto tomada pela Primeira Instância, no que concerne à respostas aos quesitos 1°,40.º da base instrutória, julgando-se a acção improcedente.


Contra-alegaram os recorridos de modo a concluir:

a) O presente recurso deve ser rejeitado, não tomando V.as E.as conhecimento, sequer, do respetivo mérito, por a minuta de revista ter dado entrada na secretaria judicial desatempadamente, isto é, muito para além do prazo para tanto decorrente do art. 685°-1 do Código de Processo Civil, na última redação deste normativo anterior a 1 de janeiro de 2008.

b) A não se entender assim, devem V.as Ex.as declarar, assim julgando ou decidindo que no caso é já impossível obter uma decisão em prazo razoável, o que conduz à conclusão de que, por violação do disposto no art. 20°-4 da Constituição da República, no art. 6°-1, primeiro inciso, da Convenção Europeia e 47°, segundo comando, da Carta dos Direitos Fundamentais, o presente recurso não deve agora ser apreciado, sob pena do Estado Português, ante uma sempre excogitável queixa no Tribunal Europeu, vir a ser condenado, designadamente por violação do artigo 6°-1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, ao não ter adaptado o respetivo direito interno à referida injunção decorrente do assinalado comando da Convenção (situação por força da qual Portugal tem vindo a ser sistematicamente condenado, na referida instância).

Ou, então,

c) A não se julgar assim, deve considerar-se que o recorrente violou os ditames da lide leal, ao colocar propositadamente os respondentes amiúde ante a impossibilidade de exercer um efetivo contraditório, com as consequências que, do acabado de dizer, devem retirar-se, designadamente face ao art. 32°-5, segunda parte, da CRP. Ou,

d) Declarado que o recurso, atento o manifesto voluntário confusionismo na exposição das ideias, viola claramente o princípio do fair trial ou da lide leal, o que sucedeu no precípuo intuito de prejudicar os recorrentes ou mesmo impossibilitá-los do exercício eficaz do contraditório e, nessa medida violando os artigos 30°-4, in fine e 32°-2 da CRP, bem como o art. 6°-1 (primeira regra) da Convenção Europeia e 14°-3 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e, destarte rejeitando o recurso por violação das referidas normas, quer de direito interno, quer de direito supraconstitucional, todas vigentes na ordem jurídica interna. A não se entender em qualquer dos jeitos preconizados

e) e na manifesta improcedência de todas as conclusões, o presente recurso deve ser julgado não provado e improcedente, com total confirmação do douto acórdão recorrido.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.



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I. Na sequência da impugnação da matéria de facto deduzida pelos apelantes, após a reapreciação da matéria de facto considerada provada na 1.ª instância, a Relação, introduzindo alterações na resposta ao quesito 1.º, dando por não provado o quesito 40.º e modificando a resposta ao quesito 41.º, considerou provados factos seguintes:

A) O requerido DD nasceu no dia 7 de Outubro de 1934, na freguesia e concelho da …, e é filho de II e de JJ, ambos falecidos.

B) O requerido tem vindo a ser assistido de há cerca de 20 anos a esta parte por diversos médicos, neurologistas e psiquiatras, tais como o falecido Dr. KK, o Dr. LL, o Prof. MM, o Prof. NN, o Prof. OO, o Prof. PP, o Dr. HH, a Dra. QQ, o Dr. RR e o Dr. SS.

C) O requerido esteve internado, desde 08.05.85, durante um período de 7 dias, na Casa de Saúde …, em … - Queluz; no Instituto de Investigationes Neuropsiquiátricas - Dr. TT, S.A.., desde 24.04.89 até 27.04.89 e na Clínica de …, L.da, o que ocorreu em 08.02.95.

D) Em 24.10.1995, o Sr. Dr. HH, médico-psiquiatra e assistente convidado de psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, elaborou o relatório médico junto a fls. 83, dele constando, além do mais, que:

“…declara por sua honra profissional que tem seguido em regime de consulta e internamento o Sr. DD por este vir apresentando crises reetidas depressivas ou maniformes que caracterizam a Psicose Maníaco Depressiva.

Desde muito novo que vem apresentando algumas dificuldades emocionais (tal como outros membros da família) que com o tratamento lhe possibilitavam o exercício profissional, contudo, nos últimos anos o seu estado agravou-se e desde então tem-se assistido a um contínuo agravamento e declínio cognitivo dependente da evolução da doença e às próprias terapêuticas que necessita de fazer cronicamente.

Devido à evolução do seu estado crónico, neste momento profundamente depressivo com as ruminações relacionadas com o dormir e à impotência que apresenta, aos deficits cognitivos e mnésicos que são manifestos, sou de opinião que não possui as condições consideradas mínimas para poder exercer a sua actividade profissional, ou mesmo outras tarefas, pelo que deverá ser proposto à junta de reforma para atribuição de incapacidade permanente para o trabalho e consequente atribuição de reforma por doença…”.

E) Este relatório médico foi emitido para instruir o processo de obtenção da reforma por parte do requerido, proposta pela Sra. Dra. UU, a qual subscreveu a “Informação Médica Para Avaliação de Incapacidade Permanente” com data de 24.11.1995, junta a fls. 84 a 87.

F) Em 27 de Setembro de 1996 foi atribuída ao requerido a reforma por invalidez.

G) Por volta do ano de 1974, o requerido procedeu a diversos actos de benemerência - como a doação de uma Quinta para nela ser instalada a sede da ARCIL (Associação para a Recuperação do Cidadão Inadaptado da …), o que envolveu uma despesa que, a preços de hoje, se cifraria em muitas dezenas ou centenas de milhares de contos/euros.

H) Adquiriu ainda o edifício e restaurou-o à sua custa, reparando o telhado, os tetos, as janelas, as paredes interiores e exteriores.

I) Após o que adquiriu, à sua custa, o mobiliário.

J) Precedeu ainda a vários donativos pecuniários a diferentes entidades de serviço público da ….

K) Foi também o requerido o responsável pelo impulso da “Fanfarra dos Bombeiros Voluntários da …”.

L) Tem exercido a benemerência periódica em benefício da “Fanfarra” a quem dá, quase todos os anos, mil contos (5.000.00 euros).

M) De maneira idêntica procede em relação à Filarmónica, fazendo em benefício dela e à custa do seu património pessoal, quase todos os anos, um donativo de mil contos (5.000.00 euros).

N) Em Janeiro de 1998, o requerido passou a viver como se de marido e mulher se tratassem, com VV.

O) Em finais de Março/inícios de Abril de 1998, deslocaram-se ambos a Albufeira onde fizeram correr os “banhos” com vista à celebração do casamento entre eles.

P) Em requerimento apresentado pelo requerente, AA, datado de 29 de Abril de 1998, dirigido à Conservatória do Registo Civil de Albufeira, constante de fls. 88 e 89, é declarado que: “…o nubente DD tem 63 anos de idade e sofre de anomalia psíquica grave e crónica desde há cerca de 24 anos, o que constitui impedimento para contrair casamento (…) Devido à sua doença, que por um lado tanto o deprime como impele a decisões irreflectidas tomadas em períodos de optimismo, e por outro lado diminuiu as suas capacidades, delegou a gestão dos seus bens aos seus familiares, já desde há longos anos…

Q) Pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial de Albufeira correu os seus termos o processo de impugnação de casamento com o n.º 169/98, em que era requerente AA e requeridos o ora requerido e VV.

R) No âmbito de tal processo judicial, em 25.06.98, foi proferido um despacho, que consta a fls. 91, do seguinte teor: “Inexiste intenção de casar por parte do nubente, DD. Assim, o impedimento perde o seu objecto – o casamento. Verifica-se, assim, a inutilidade superveniente da lide. Assim, julgo extinta, por inutilidade superveniente da lide, a instância – artigo 287º, al. e) do C.P.C. Custas pelos nubentes em partes iguais. (…)”

S) No dia 5 de Janeiro de 2000, o requerido referiu ao seu sobrinho, XX, que pretendia oferecer um “jeep Honda” a todos os trabalhadores das sociedades de que é sócio, diretamente - como é o caso de EE, Lda. - ou através de participações sociais - como sucede com ZZ e Cª Ldª., com sede na …, e Sociedade Têxtil AAA, Lda. com sede em …, Seia.

T) No dia 10 seguinte, o referido XX e o irmão BBB dirigiram-se a casa do requerido, a solicitação deste, constatando a presença do gerente da “CCC”, DDD, tendo tomado conhecimento que o contrato-promessa para aquisição dos jeeps já estava redigido.

U) Nessa ocasião, o requerido manifestou intenção de proceder, de imediato, à emissão de um cheque de 90.000 contos para sinalizar o negócio.

V) O requerido é sócio das sociedades “AAA, Limitada” e “EE Limitada”, ambas com sede na ….

X) No ano de 1981, o requerido outorgou uma procuração na qual constitui seus irmãos, AA e BB, em alternativa, seus representantes junto de todos os bancos e demais instituições, tudo conforme documento de fls. 93.

Z) Em 5 de Agosto de 1988, o requerido municiou o sobrinho XX de uma procuração com poderes, nomeadamente para “…comprar, vender, trocar propriedades mobiliárias ou imobiliárias (…) adquirir ou ceder quotas em sociedades comerciais…”

AA) O requerido procedeu à revogação de todas aquelas procurações que outorgara.

BB) Pouco depois do 25 de Abril de 1974, a sociedade da família …, sob o impulso do requerido e do seu empenhamento pessoal, resolveu dar uma bicicleta a cada um dos empregados.

CC) Essa dádiva representava já na altura largas centenas de contos.

DD) Quando na …se tomou a iniciativa de organizar um clube de rugby, o requerido emprestou o terreno para o campo de jogos.

EE) Há mais de 25 anos que foi diagnosticado ao requerido/falecido uma doença do foro psiquiátrico - doença bipolar afetiva, na classificação da CID-10 da OMS, - sendo que aproximadamente desde 10 anos antes da sua morte à mesma se foi associando um processo de deterioração cognitiva sem compromissos grosseiros das funções nervosas superiores (em termos intelectivos e volitivos), com alguns défices cognitivos seletivos ou lacunares, que lhe comprometem a capacidade de cálculo (incluindo para operações simples ou elementares), a compreensão e o manejo das quantidades (do todo e das partes), a traduzir uma menor conservação de áreas cerebrais nobres (corticais) responsáveis pelo efeito da abstração e pelo sequenciamento e/ou processamento das diferentes etapas de elaboração mental (resp. ao ponto 1).

FF) O requerido deixou de exercer qualquer atividade empresarial ou de gestão, de forma sistemática, há cerca de 15 a 10 anos (com referência à propositura da causa) (resp. ao ponto 2).

GG) O requerido foi acometido por vários surtos depressivos com duração semanal e por vezes mensal, que alternaram com períodos mais curtos e escassos de exaltação e euforia (estes desacompanhados de ideias psicóticas de alucinação ou delírio) (resp. ao ponto 3).

HH) Nos períodos de manifestação da doença de fase maníaca o requerido apresentava algumas ideias obsessivas, alguma desinibição e euforia (resp. ao ponto 4).

II) Quando a fase é depressiva, o requerido fecha-se em casa, no quarto de dormir, sem qualquer atividade, com pensamentos pessimistas sobre a sua vida e a sua pessoa, permanecendo na cama até a fase passar ou a medicação começar a surtir efeito (resp. ao ponto 5).

JJ) Há cerca de 20 anos, o requerido, em conversa com o dirigente do “Rugby Club da …” manifestou-lhe a possibilidade de se decidir a doar a este um terreno com cerca de 7000 m2, sito no coração da …, que o referido clube já vinha utilizando há vários anos (resp. ao ponto 6).

KK) Durante uns tempos uma tal possibilidade caiu no esquecimento, até que decorrido cerca de uma ano o requerido pretendia, à viva força, proceder à doação imediata do mencionado terreno (resp. ao ponto 7).

LL) Exigia que a escritura tivesse lugar nesse mesmo dia (resp. ao ponto 8).

MM) Há cerca de 5 anos, o requerido dirigiu-se à ARCIL, propondo ao respetivo Presidente da Direção a doação da sua “quota-parte” em determinadas máquinas de uma secção da sociedade “EE, Lda.” (resp. ao ponto 9).

NN) Decorridos uns dias, essa intenção do requerido caiu no esquecimento (resp. ao ponto 10).

OO) O requerido desistiu de levar em diante a intenção de casamento que projetara com D. VV (resp. ao ponto 11).

PP) Em 27 de Março de 1999, no início da Assembleia-geral ordinária de “EE, Lda.”, o requerido anunciou ser sua vontade fazer a entrega a cada um dos seus sobrinhos - que são 16 - de um cheque de 30.000.000$00 (resp. ao ponto 12).

QQ) Continuando a falar deste assunto durante mais alguns dias até que dele, por completo, veio a esquecer-se (resp. ao ponto 13).

RR) No dia 2 de Janeiro de 2000, o requerido, encontrando o sobrinho EEE, passou a comunicar-lhe que pretendia proceder à aquisição para doação de um apartamento para cada um dos sobrinhos-netos (resp. ao ponto 14).

SS) A essa data, os sobrinhos netos perfaziam número 25 (resp. ao ponto 15).

TT) Desde, pelo menos, o início dos anos 70, o requerido outorgou a favor do seu irmão AA, uma procuração com plenos poderes de representação na gerência de AAA, Lda. (resp. ao ponto 16).

UU) A partir do momento em que começou a manifestar-se a doença, foi o irmão, AA, quem, por vontade expressa do requerido, passou a orientar todos os negócios particulares deste (resp. ao ponto 17).

VV) A doença bipolar do requerido manifestava-se de tempos a tempos, com episódios raros de mania e mais frequentes de depressão, apresentando-se com intervalos de muitos meses sem sinais (resp. ao ponto 18).

XX) (eliminado).

ZZ) Quando as manifestações consistiam de insónia (crise de mania), muitas vezes após auto-sedação prolongada, o requerido consultava médico especialista, mas sendo acompanhado em regra por familiares, sendo já depois de Janeiro de 1998, por VV, sua companheira - médico aquele que o observava e prescrevia os medicamentos necessários (resp. ao ponto 20).

AAA) Após a morte dos pais, com o apoio de outros familiares - nomeadamente até à sua morte, da cunhada e mulher do irmão AA - foi solicitado, por várias vezes, o internamento médico do requerido (resp. ao ponto 21).

BBB) Nos momentos de surto depressivo, que eram os predominantes, o requerido suspendia toda a sua atividade, recolhendo-se em casa (resp. ao ponto 24).

CCC) O requerido era habitualmente poupado nos gastos do quotidiano, e habitualmente seletivo na convivência, contido naquilo que dizia e fazia (resp. ao ponto 25).

DDD) Quando começou a tratar da reforma, o requerido carecia de parecer médico comprovativo da sua incapacidade, sob pena de a pretensão de reforma antecipada esbarrar na negação da junta médica (resp. ao ponto 27).

EEE) Com essa finalidade procurou o Dr. HH (resp. ao ponto 28).

FFF) E marcou consulta com a Dra. UU pois necessitava do impulso procedimental do médico de família (resp. ao ponto 29).

GGG) O requerido pretendeu que a ARCIL pudesse dispor das máquinas da “EE, Lda.” para ocupação e ensino profissional dos deficientes (resp. ao ponto 31).

HHH) No mês de Março, por ocasião da Páscoa, o requerido teve intenção de celebrar o acto matrimonial em Albufeira - local onde a D. VV tem família (resp. ao ponto 32).

III) Os requerentes AA e BB, os sobrinhos filhos do primeiro e outros sobrinhos procuraram demover o requerido de casar (resp. ao ponto 33).

JJJ) Por força da oposição dos sobrinhos, acabou por subscrever requerimento dirigido ao processo judicial mencionado na alínea Q)declarando que não tinha intenção de casar (resp. ao ponto 34).

LLL) O requerido vai diariamente à fábrica da …, uma ou duas vezes por dia, e vai frequentemente à fábrica de S. Romão (resp. ao ponto 38).

MMM) Acompanha a D. VV nas suas deslocações (resp. ao ponto 39).

NNN) (eliminado).

OOO) O requerido não definiu, em concreto, o número de jeeps - entre os 150 e os 200 (resp. ao ponto 41).

PPP) O património do requerido, avaliado por baixo, valerá mais de 2 milhões de contos (resp. ao ponto 42).



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Os autores, irmãos germanos e sobrinho do requerido DD, apontando que este (requerido), fruto da anomalia psíquica permanente de que padece (psicose maníaco depressiva grave/doença bipolar) se encontra impossibilitado de reger por si só a sua pessoa e bens, pugnam pela sua inabilitação.

Mais concretamente, evocam que o requerido desde sempre que vem praticando atos de benemerência, em períodos de crise psíquica, com o desejo de doar um terreno com 7.000 m2 ao Clube de Rugby da …, desejo de doação da sua quota-parte da sociedade “EE, Lda.”, de determinadas máquinas de uma secção da mesma, de pretender casar com a sua companheira em Albufeira, pretender fazer doações em numerário aos sobrinhos, pretender doar apartamentos aos sobrinhos netos e manifestar vontade de doar um jipe a cada um dos seus funcionários, em número de 150 a 200 unidades, tendo para o efeito redigido o respetivo contrato-promessa, sendo que muitos negócios não se realizaram por oposição dos potenciais beneficiários.


 O requerido DD contesta o pedido formulado na presente ação:

Padece, é certo, de uma doença de foro neurológico, hereditária, do tipo “psicose”, mas esta patologia não o impede de exercer de forma proveitosa e bem sucedida a sua atividade industrial, pelo que, afirma, não padece de anomalia psíquica que o impeça de reger a sua pessoa e bens.

  Sempre foi contido nos seus gastos quotidianos e, seguindo o caminho do seu pai, foi um filantropo e benemérito, tendo após o 25 de Abril de 1974 oferecido uma bicicleta a todos os seus funcionários, adquiriu para a ARCIL o edifício para as suas instalações e reconstruiu-o, impulsionou a Fanfarra dos Bombeiros Voluntários da …, concedeu-lhe um donativo anual e emprestou o terreno para o Clube de Rugby;

 Os jeeps que pretende oferecer aos seus trabalhadores visa recompensá-los pelo seu esforço e dedicação, e cuja decisão vem sendo ao longo do tempo ponderada, manifestando os requerentes oposição ao negócio, pelo que o referido negócio se encontra em suspenso.


 A 1.ª instância, considerando não haver fundamento para a requerida inabilitação, julgou a ação improcedente.

 A Relação, todavia, modificando parte da matéria de facto em que a sentença recorrida se havia fundamentado, reconheceu a existência de uma situação de incapacidade que justifica a inabilitação por anomalia psíquica do requerido, falecido na pendência da ação (em 23/03/2005) e retirou-lhe a possibilidade de praticar, por ato próprio e sem autorização de curador, atos de disposição de bens entre vivos, fixando-se o início da incapacidade no ano de 1995.

    

        É contra esta resolução que o recorrente se insurge.

 No seu entendimento é ilegal, por falta de fundamentação, a modificação da decisão de facto operada pela Relação e não estão verificados os pressupostos legais para a decretação da inabilitação do requerido.

Prosseguindo invoca em seu proveito que a inabilitação decretada após a morte do requerido, a existir, sempre será ilegítima e abusiva.

Porfiando, deduz a inconstitucionalidade material da proposição contida no art. 957.º, n.º 1, do Cód Proc. Civil (na versão que vigorava à data dos factos) e no art.º 904.º, n.º, 1 do Cód. Proc. Civil vigente, na acepção normativa segundo a qual o Tribunal pode verificar se existe e desde quando datava a incapacidade alegada, mesmo quando o Requerido se tenha finado com património e sem ter herdeiros legitimários, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 26.º e 18.º, n.º 2 da Constituição.


Vamos procurar demonstrar que a razão não está do lado do recorrente.



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   I. Argumenta o recorrente que, ao modificar a decisão de facto quanto aos factos dos quesitos 1°., 40°. e 41.º da base instrutória, o acórdão recorrido não enunciou, como devia, as razões da preferência dos contributos probatórios que em concreto elegeu para operar tal modificação em relação aos fundamentos de facto enunciados na decisão de facto proferida em primeira instância, desta feita violando o dever legal de fundamentação enunciado no art. 158.º do Cód. Proc. Civil, e, ainda, entre outras, a disposição dos arts. 712.º, n.º 1 a), do Cód. Proc. Civil, na redacção anterior ao DL n.º. 303/2007, de 24 de Agosto;


     Vejamos se lhes assiste razão.

 “O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova” (n.º 2 do artigo 722º do C.P.Civil, na redacção anterior ao Decreto-Lei nº 303/2007, de 24-08).

    Neste circunstancialismo jurídico-processual havemos de ter em conta que a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excepcional previsto no n.º 2 do artigo 722º (artigo 729.º, n.º 2, do C.P.Civil) e que “o processo só volta ao tribunal recorrido quando o Supremo entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito” (n.º 3 deste mesmo normativo legal).


     Quer isto dizer que, funcionando como tribunal de revista e, por isso, excluído por regra da possibilidade de abordar questões de facto, o Supremo Tribunal de Justiça só nos particularizados termos admitidos pelo n.º 2 do art.º 722.º e 729.º lhe é permitida ingerência em matéria de facto, ou seja, neste domínio só é admissível a sua intervenção no campo da designada prova vinculada, isto é, quando a lei exige determinado tipo de prova para certas circunstâncias factuais ou quando atribui específica força probatória a determinado meio probatório.

Como tribunal de revista este Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente aos factos fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado, não podendo alterar a decisão proferida pelo tribunal recorrido sobre a matéria de facto, salvo o caso excepcional previsto no art. 722.º, nº 2, ou seja, a não ser que exista disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

 Às instâncias cabe averiguar, exclusivamente, todo o circunstancialismo factual envolvente da acção, reservando-se para a Relação o último passo a dar sobre esta temática.

Ao Supremo Tribunal de Justiça compete vigiar e denunciar se a Relação fez mau uso dos poderes que a proposição descrita no art.º 712.º do C.P.Civil lhe concede.

Neste último aspecto também se pode dizer que estamos perante uma discussão sobre matéria jurídica, porquanto em tais casos, não estamos a dirimir consistências de provas segundo a convicção de quem julga (artigo 655º, n.º 1 CPC).


 A modificação da decisão de facto decidida pela Relação quanto aos factos integrantes dos quesitos 1.º, 40.º e 41.º da base instrutória, encontra-se profícua, copiosa e rigorosamente fundamentada.

A resposta dada ao quesito 1.º (provado apenas que há mais de 25 anos que foi diagnosticado ao requerido/falecido uma doença do foro psiquiátrico – doença bipolar afetiva, na classificação da CID-10 da OMS –, sendo que aproximadamente 10 anos antes da sua morte à mesma se foi associando um processo de deterioração cognitiva sem compromissos grosseiros das funções nervosas superiores (em termos intelectivos e volitivos), com alguns défices cognitivos seletivos ou lacunares, que lhe comprometem a capacidade de cálculo (incluindo para operações simples ou elementares), a compreensão e o manejo das quantidades (do todo e das partes), a traduzir uma menor conservação de áreas cerebrais nobres (corticais) responsáveis pelo efeito da abstração e pelo sequenciamento e/ou processamento das diferentes etapas de elaboração mental), resultou da análise crítica do relatório de exame pericial efetuado pelo Instituto de Medicina Legal, com a audição dos esclarecimentos prestados em audiência de julgamento pelos Srs. Peritos que elaboraram tal relatório (FFF, GGG e HHH) e que tiveram em consideração o que consta dos vários Relatórios e Pareceres, subscritos por diferentes Psiquiátricos e com posições contraditórias no respeitante à capacidade do requerido para dispor da sua pessoa e bens.


A resposta de “não provado” dada ao quesito 40.º (o requerido pretendeu gratificar os trabalhadores das empresas com a doação dos jipes como compensação pelo seu esforço e dedicação?) está exuberante e ponderadamente discriminada no acórdão recorrido, após circunstanciado estudo sobre as declarações dos Srs. Peritos que elaboraram o relatório de exame médico-legal junto aos autos, FFF, GGG e HHH, sobre o depoimentos dos médicos psiquiatras indicados pelo requerido, III e JJJ (no ano de 2000 elaboraram relatórios a pedido do próprio requerido), do psiquiatra KKK (consultou o requerido “uma meia dúzia de vezes”, entre 1998 e 2001/2002), Dr. LLL (acompanhou o requerido entre 1993 e até 2005) e na ponderação dos testemunhos de MMM (que trabalhou na EE Lda. desde 1986 a 2006 e que acompanhou o requerido aquando da assinatura do contrato-promessa com a CCC), XX (sobrinho), NNN (técnico de contas da EE, Lda., desde Novembro de 1999 e que, como tal, seria um dos contemplados com a oferta) e OOO (oficial de contas durante 15 anos das duas empresas, AAA, Lda. e ZZ, Lda., desde 1970 a 1985).


A resposta dada ao quesito 41.º (o requerido não definiu, em concreto, o números de jeeps - entre os 150 e os 200 - porque pretendia ponderar melhor acerca desse acto de atribuição quanto aos trabalhadores que entretanto se reformaram ou têm contratos de trabalho a termo certo?) - “Provado apenas que o requerido não definiu, em concreto, o número de jeeps - entre os 150 e os 200”, foi elaborada após exaustiva análise dos depoimentos prestados pelas testemunhas XX, NNN, MMM, DDD, OOO e PPP.


A tese difundida pelo recorrente, no sentido de que a 1.ª instância está melhor preparada para responder, com acerto, às perguntas postas nos quesitos, não tem a apologia que ele lhe pretende imprimir e está em antagonismo com a lei vigente.

Lembremos que a intenção do legislador, já declaradamente professada no relatório do Dec. Lei n.º 39/95, é no sentido de desenvolver um duplo grau de jurisdição quanto ao julgamento da matéria de facto exposta nos articulados, programando, todavia, o modo como esta prática há-de ser processualmente exercido - a Relação há-de formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das provas, tal como a 1ª instância, sem estar de modo algum limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida, em função do princípio da imediação da prova ou de qualquer outro” (Ac. STJ de 1/07/2008, Revista n.º 191/08-1ª Secção).

Convenhamos que “a Relação, neste caso, é um Tribunal de substituição, e não de mera cassação. Na verdade, se na reapreciação das provas a Relação encontrar justificação, dentro das fronteiras da lei, para alterar a matéria de facto, não anula a decisão do tribunal inferior para que este a reformule, antes se substitui ao tribunal a quo, ficando subjacente à alteração que porventura introduza no quadro factual uma nova e diferente convicção entrementes adquirida” (Ac. STJ de 28 de Janeiro de 2003; disponível em www.dgsi.pt).

A Relação, ao reapreciar a matéria de facto provada e que os recorrentes impugnaram na apelação, observou os princípios ínsitos na lei a esse propósito acomodada.


II. Podem ser inabilitados os indivíduos cuja anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira, embora de carácter permanente, não seja de tal modo grave que justifique a sua interdição, assim como aqueles que, pela sua habitual prodigalidade ou pelo uso de bebidas alcoólicas ou de estupefacientes, se mostrem incapazes de reger convenientemente o seu património - art.º 152.º do C.Civil.


Podem, assim, ser inabilitados todos aqueles cidadãos que detenham uma anomalia psíquica tal que os incapacitem de determinar a sua vontade para reger o seu património. A interdição consubstancia uma anomalia psíquica que faz restringir o exercício de direitos da pessoa de modo a motivar a sua incapacidade de poder governar a sua pessoa e os seus bens.


Não nos dá a lei a noção de anomalia psíquica; e seria pouco aconselhável que o legislador tivesse de harmonizar a definição que este conceito haveria de abranger, pois que a ciência médico-psiquiátrica, a verdadeira autoridade nesta matéria, o não pode cristalizar no seu natural, racional e contínuo aperfeiçoamento, sempre permeável à actualização do seu conteúdo.

    

Anomalia psíquica compreende qualquer perturbação das faculdades intelectuais ou intelectivas (afectando a inteligência, a percepção ou a memória) ou das faculdades volitivas (atinente quer à formação da vontade, quer à sua manifestação). Há enfermidades mentais nas quais o primeiro aspecto permanece suficientemente intacto, mas em que a componente volitiva surge alterada (Raul Guichard Alves; Direito e Justiça, Revista da faculdade de Direito da Universidade Católica, volume IX, Tomo 2).


Havendo nós de ajuizar a incapacidade mental de uma identificada pessoa, tarefa que nos é particularmente pouco acessível, o recurso à peritagem médica, nesta matéria especializada, é uma necessidade que a lei expressamente impõe.


 A perícia prevista no art.º 898.º (anterior art.º 951º) C.P.Civil constitui uma diligência obrigatória, onde o perito poderá, ou não, concluir pela necessidade da interdição ou inabilitação.


Tratando-se de uma incapacidade mental, não podemos duvidar de que, em tese geral, está cometida a peritos médicos especialistas em psiquiatria o juízo sobre o a existência e o momento em que esta patologia se processou, para tanto lhes atribuindo a lei assinaladas interferências com vista a determinar, com o rigor medicamente possível, o procurado juízo seguro sobre a ocorrência e a extensão da incapacidade mental do examinado.

 Esta atitude justifica-se, e até se exige, nos casos em que estamos perante um caso de especial risco, isto é, quando o inabilitando apresenta sintomas de duvidoso diagnóstico e, por isso, o recurso a métodos científicos se não podem dispensar para se fazer uma apreciação exacta da questão a julgar.

 A avaliação a transpor para o relatório pericial é primordialmente clínica, ainda que possam ser úteis, e até necessários, exames complementares de diagnóstico. Referimo-nos, em particular, ao recurso a: (1) exames imagiológicos (TC e/ou RM-crânio-encefálica), em caso de síndromes demenciais, não esquecendo que a estrutura não traduz necessariamente a funcionalidade; (2) análises clínicas (hemograma, função renal, hepática, vírus trópicos do SNC, vitamina B12, ácido fólico, etc., nas situações de alcoolismo ou de toxicodependência em que seja requerida a inabilitação); e (3) instrumentos psicométricos (“vulgo” testes psicológicos que discriminem e quantifiquem eventuais defeitos cognitivos) - Centro de Estudos Judiciários; Maio de 2015; Raúl Guichard Alves.


III. À saúde mental do inabilitando são médico-psiquiatricamente apontadas estas especificidades:

- Há mais de 25 anos que foi diagnosticado ao requerido/falecido uma doença do foro psiquiátrico - doença bipolar afetiva, na classificação da CID-10 da OMS, - sendo que aproximadamente desde 10 anos antes da sua morte à mesma se foi associando um processo de deterioração cognitiva sem compromissos grosseiros das funções nervosas superiores (em termos intelectivos e volitivos), com alguns défices cognitivos seletivos ou lacunares, que lhe comprometem a capacidade de cálculo (incluindo para operações simples ou elementares), a compreensão e o manejo das quantidades (do todo e das partes), a traduzir uma menor conservação de áreas cerebrais nobres (corticais) responsáveis pelo efeito da abstração e pelo sequenciamento e/ou processamento das diferentes etapas de elaboração mental;

- O requerido foi acometido por vários surtos depressivos com duração semanal e por vezes mensal, que alternaram com períodos mais curtos e escassos de exaltação e euforia (estes desacompanhados de ideias psicóticas de alucinação ou delírio);

- Nos períodos de manifestação da doença de fase maníaca o requerido apresentava algumas ideias obsessivas, alguma desinibição e euforia;

- Quando a fase é depressiva, o requerido fecha-se em casa, no quarto de dormir, sem qualquer atividade, com pensamentos pessimistas sobre a sua vida e a sua pessoa, permanecendo na cama até a fase passar ou a medicação começar a surtir efeito.

- A doença bipolar do requerido manifestava-se de tempos a tempos, com episódios raros de mania e mais frequentes de depressão, apresentando-se com intervalos de muitos meses sem sinais.

 - Quando as manifestações consistiam de insónia (crise de mania), muitas vezes após auto-sedação prolongada, o requerido consultava médico especialista, mas sendo acompanhado em regra por familiares, sendo já depois de Janeiro de 1998, por VV, sua companheira - médico aquele que o observava e prescrevia os medicamentos necessários.

 - Nos momentos de surto depressivo, que eram os predominantes, o requerido suspendia toda a sua atividade, recolhendo-se em casa.

   Da análise destas deficiências que caraterizam a personalidade do requerido havemos de retirar a resultante de que o DD padece de patologia, patenteadamente apta para o incapacitar de gerir decorosamente o seu património no que diz respeito a atos de disposição de bens entre vivos.


    Do exame dos atos que comandaram a administração da sua actividade doméstica e empresarial, avaliando-a na sua globalidade, assinalamos estes denotados e pouco avisados comportamentos:

 - Por volta do ano de 1974, o requerido procedeu a diversos actos de benemerência - como a doação de uma Quinta para nela ser instalada a sede da ARCIL (Associação para a Recuperação do Cidadão Inadaptado da…), o que envolveu uma despesa que, a preços de hoje, se cifraria em muitas dezenas ou centenas de milhares de contos/euros; adquiriu ainda o edifício e restaurou-o à sua custa, reparando o telhado, os tetos, as janelas, as paredes interiores e exteriores, após o que adquiriu, à sua custa, o mobiliário.

 - Precedeu ainda a vários donativos pecuniários a diferentes entidades de serviço público da …. Foi também o requerido o responsável pelo impulso da “Fanfarra dos Bombeiros Voluntários da …”.

- Tem exercido a benemerência periódica em benefício da “Fanfarra” a quem dá, quase todos os anos, mil contos (5.000.00 euros). De maneira idêntica procede em relação à Filarmónica, fazendo em benefício dela e à custa do seu património pessoal, quase todos os anos, um donativo de mil contos (5.000.00 euros).

 - No dia 5 de Janeiro de 2000, o requerido referiu ao seu sobrinho, XX, que pretendia oferecer um “jeep Honda” a todos os trabalhadores das sociedades de que é sócio, diretamente - como é o caso de EE, Lda - ou através de participações sociais - como sucede com ZZ e Cª Ldª., com sede na …, e Sociedade Têxtil AAA, Lda. com sede em …, Seia.

  - No dia 10 seguinte, o referido XX e o irmão BBB dirigiram-se a casa do requerido, a solicitação deste, constatando a presença do gerente da “CCC”, DDD, tendo tomado conhecimento que o contrato-promessa para aquisição dos jeeps já estava redigido. Nessa ocasião, o requerido manifestou intenção de proceder, de imediato, à emissão de um cheque de 90.000 contos para sinalizar o negócio.

 - O requerido é sócio das sociedades “QQQ, Limitada” e “EE Limitada”, ambas com sede na …. No ano de 1981, o requerido outorgou uma procuração na qual constitui seus irmãos, AA e BB, em alternativa, seus representantes junto de todos os bancos e demais instituições, tudo conforme documento de fls. 93.

  - Pouco depois do 25 de Abril de 1974, a sociedade da família ..., sob o impulso do requerido e do seu empenhamento pessoal, resolveu dar uma bicicleta a cada um dos empregados. Essa dádiva representava já na altura largas centenas de contos.

 - Há cerca de 20 anos, o requerido, em conversa com o dirigente do “Rugby Club da …” manifestou-lhe a possibilidade de se decidir a doar a este um terreno com cerca de 7000 m2, sito no coração da Lousã, que o referido clube já vinha utilizando há vários anos.

 - Durante uns tempos uma tal possibilidade caiu no esquecimento, até que decorrido cerca de uma ano, o requerido pretendia, à viva força, proceder à doação imediata do mencionado terreno. Exigia que a escritura tivesse lugar nesse mesmo dia.

- Há cerca de 5 anos, o requerido dirigiu-se à ARCIL, propondo ao respetivo Presidente da Direção a doação da sua “quota-parte” em determinadas máquinas de uma secção da sociedade “EE, Lda. Decorridos uns dias, essa intenção do requerido caiu no esquecimento.

     - Em 27 de Março de 1999, no início da Assembleia-geral ordinária de “EE, Lda.”, o requerido anunciou ser sua vontade fazer a entrega a cada um dos seus sobrinhos - que são 16 - de um cheque de 30.000.000$00, continuando a falar deste assunto durante mais alguns dias até que dele, por completo, veio a esquecer-se.

- No dia 2 de Janeiro de 2000, o requerido, encontrando o sobrinho EEE, passou a comunicar-lhe que pretendia proceder à aquisição para doação de um apartamento para cada um dos sobrinhos-netos. A essa data, os sobrinhos netos perfaziam número 25.

Ponderando estes predicados da vivência que norteava a mente do requerido, sócio das sociedades “QQQ, Limitada” e “EE Limitada”, não temos dúvida em pensar que, mesmo considerando o seu património -  avaliado por baixo em mais de 2 milhões de contos - era inconsequente o significado que ele atribuía ao valor dos seus bens e que só por ter sido auxiliado pelas pessoas que dele estavam próximas é que o dissipação do seu património não sucedeu.

Se é certo que houve actos de altruísmo que ele praticou e que são conformes aos usos sociais, por serem praticados por uma pessoa de avantajados réditos, também é verdade que, tomando na devida conta o valor do denunciado dispêndio afeto à doação dos “jeep Honda” a todos os trabalhadores das sociedades de que era sócio e que o requerido intentou concretizar, anotando nós a sequência temporal de todas estas dádivas, havemos de ajuizar que todos estes atos, de duvidosa filantropia, se entrecruzam numa movimentação de insanidade mental, a corporizar a avaliação que de tudo fazemos e no sentido de que o requerido sofreu de singular patologia mental que o restringia na sua aptidão para gerir ou dispor dos seus bens e precisando, por isso, de ser amparado na prática de actos de disposição dos seus bens.

     A anomalia psíquica que faz proceder a inabilitação não é aquela que impede de modo absoluto a possa de reger a sua pessoa e bens; o que esta anomalia psíquica provoca é que a pessoa dela sofredora fique impossibilitada de reger, convenientemente, a sua pessoa e bens - reveste uma natureza “meramente prejudicial - (Prof. Castro Mendes; Direito Civil; Teoria Geral , Vol. I; pág. 346).


     A capacidade jurídica para os actos de administração ordinária deve, porém, ser consentida ao requerido.

  Como, sem objecção, vem dito pela Relação, discernimento que acompanhamos, atendendo ao grau de incapacidade evidenciado no relatório médico-legal (o quadro patológico relatado não é suficientemente grave para lhe retirar a vontade, apenas a condicionando, encontrando-nos perante uma capacidade de facto limitada ou diminuída), e ao princípio de que o sacrifício da liberdade individual deve ser restringido ao estritamente necessário para salvaguarda dos interesses do interdito, somos levados a concluir ser de manter intacta a sua capacidade jurídica para os actos de administração ordinária.


IV. Visa o processo de inabilitação retirar ao inabilitando a titularidade do exercício dos seus direitos e obrigações, considerando-o incapaz do seu gozo e do seu exercício, desta feita o protegendo contra as suas próprias deficiências ou características limitativas do seu poder dispositivo.

  Move-se este processo na procura de encontrar situações ligadas à pessoa do requerido e que apresentem especificidades suscetíveis de diminuírem a sua vontade e idoneidade para executar as suas prerrogativas, conduzir a regência do seu património.

 Neste contexto jurídico-substantivo torna-se de primordial importância saber a data em que tem o seu início a existência da detetada incapacidade advinda da anomalia psíquica que o atribula e que há-de constar, sempre que seja possível, da sentença que decreta a interdição ou inabilitação (n.º 1 do art.º 901.º do C.P.Civil e antigo n.º 1 do art.º 954.º do C.P.Civil).


     Cotejando o teor do relatório médico com a facticidade que, com ele conexionada, ficou provada, havemos de asseverar, tal e qual entende a Relação, que o início da incapacidade coincidirá com o agravamento da sua situação clínica: a partir do momento em que à doença bipolar afetiva se associa um processo de deterioração mental.

 Este entendimento, psiquiatricamente revelado, converge também com o circunstancialismo factual que se comprova acompanhar o requerido desde 1995, designadamente que há mais de 25 anos que foi diagnosticado ao requerido/falecido uma doença do foro psiquiátrico - doença bipolar afetiva, na classificação da CID-10 da OMS, - sendo que aproximadamente desde 10 anos antes da sua morte à mesma se foi associando um processo de deterioração cognitiva sem compromissos grosseiros das funções nervosas superiores (em termos intelectivos e volitivos).

      O início da incapacidade fixa-se, assim, no ano de 1995.


  V. A figura do abuso do direito está na lei para tornar mais ético o nosso ordenamento jurídico, com vista a impedir a conjugação de forças antijurídicas que, por vezes, a imposição fria e rígida da lei possa levar a cabo, em confronto com o ideal de justiça que sempre deve andar indissoluvelmente ligado à aplicação do direito e dentro da máxima "perde o direito quem dele abusa" e em oposição ao velho adágio romano "qui suo jure utitur neminem laedit":

 “É uma cláusula geral, uma válvula de segurança, uma janela por onde podem circular lufadas de ar fresco, para obtemperar a injustiça gravemente chocante e reprovável" - Ac. do STJ de 21.09.1993, C.J.; tomo III; pág. 21.

Daí que, embora se não vejam grandes dificuldades para a institucionalizar, já se encontram alguns estorvos quando se procura saber se em cada caso concreto esta forma de expressão tem ou não acolhimento.

O abuso do direito está consagrado na nossa lei - art.º 234.º do C.Civil que dispõe:

 - É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

"Trata-se do exercício anormal do direito próprio. O exercício do direito em termos reprovados pela lei, ou seja, respeitando a estrutura formal do direito, mas violando a sua afectação substancial, funcional ou teleológica. Para que haja lugar ao abuso do direito é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito" (Prof. A. Varela; Obrigações; I Volume; pág. 514 /516).

 A aplicação da figura do abuso do direito, posta no nosso ordenamento para reprimir os actos eticamente reprováveis, vai impedir que essa maldade se concretize, tornando ineficazes os actos praticados pela parte quando neles haja subversão dos princípios vigentes no nosso direito positivo; destina-se, precisamente, a impor a sua autoridade a actos praticados que, cobertos por legislação ao caso adequada, apresentam todavia um contexto disforme da pretensão legislativa.

    

 Não encontrámos, porém, na atitude dos requerentes/recorridos alguma prática que esteja em discrepância com os princípios da boa-fé, ou seja, em antagonismo com as regras da fidelidade, lealdade, honestidade e de reprobabilidade pessoal da sua conduta.


VI. Argui o recorrente que é materialmente inconstitucional, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 26.º e 18.º, n.º 2 da Constituição, a disposição do art. 957.º, n.º 1, do Cód Proc. Civil (na versão que vigorava à data dos factos - art. 904°., n.º, 1 do Cód. Proc. Civil vigente), na acepção normativa segundo a qual o Tribunal pode verificar se existe e desde quando datava a incapacidade alegada, mesmo quando o requerido se tenha finado com património e sem ter herdeiros legitimários.

 O n.º 2 do art.º 18.º da C.R.Portuguesa destaca que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, estabelecendo também no n.º 4 do art.º 26.º que a privação da cidadania e as restrições à capacidade civil só podem efectuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos políticos.

 A nossa Lei fundamental garante, deste modo, os direitos, liberdades e garantias pessoais de cada um dos cidadãos, delimitando a privação e as restrições à capacidade civil aos casos e termos previstos na lei.

  A inabilitação, porque redunda numa limitação à capacidade jurídica do inabilitando, está tutelada constitucionalmente.

Como procurámos elucidar atrás, o regime legal acomodado à constituição do estado jurídico do inabilitado tem a sua explicação jurisdicional apenas o propósito de defender o cidadão a quem, mercê de suportar uma enfermidade mental, está incapaz de exercitar os seus privilégios legais, gerir o seu património e, também em certas circunstâncias, a sua própria pessoa e não podendo, por isso, exercer, pessoal e livremente, os seus direitos e cumprir as suas obrigações.

É neste conspecto jurídico-positivo e neste quadro de incapacidade jurídica que afecta a mentalidade do interditando/inabilitando que se processa toda a dinamização judicial, sempre comandada pelo interesse de quem não tem a virtualidade necessária para, ele próprio, se reger.


O princípio da
conformidade ou adequação, que impõe que a medida adoptada para a realização do interesse público deve ser apropriada à prossecução do fim ou fins a ele subjacentes (J. J. Gomes Canotilho; Direito Constitucional; pág. 269), não se encontra violado com a resolução que ora tomamos quanto ao requerido DD: mantemos intacta a sua capacidade jurídica para os actos de administração ordinária e fixamos o início da sua incapacidade no ano de 1995.


          Concluindo:

1. Podem ser inabilitados todos aqueles cidadãos que detenham uma anomalia psíquica tal que os incapacitem de determinar a sua vontade para reger o seu património.

2. Não nos dá a lei a noção de anomalia psíquica; e seria pouco aconselhável que o legislador tivesse de harmonizar a definição que este conceito haveria de abranger, pois que a ciência médico-psiquiátrica, a verdadeira autoridade nesta matéria, o não pode cristalizar no seu natural, racional e contínuo aperfeiçoamento, sempre permeável à actualização do seu conteúdo; podemos, porém, adiantar que “anomalia psíquica” compreende qualquer perturbação das faculdades intelectuais ou intelectivas (afectando a inteligência, a percepção ou a memória) ou das faculdades volitivas (atinente quer à formação da vontade, quer à sua manifestação).

3. Se é certo que houve actos de altruísmo que ele praticou e que são conformes aos usos sociais, por serem praticados por uma pessoa de avantajados réditos, também é verdade que, tomando na devida conta o valor do denunciado dispêndio afeto à doação dos “jeep Honda” a todos os trabalhadores das sociedades de que era sócio e que o requerido intentou concretizar, anotando nós a sequência temporal de todas estas dádivas, havemos de ajuizar que todos estes atos, de duvidosa filantropia, se entrecruzam numa movimentação de insanidade mental, a corporizar a avaliação de que o requerido sofreu de singular patologia mental que consubstancia anomalia psíquica a justificar a inabilitação


Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.


Supremo Tribunal de Justiça, 19 de novembro de 2015.


Silva Gonçalves (Relator)

Fernanda Isabel Pereira

Pires da Rosa