Acordam na 1.ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça:
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AA, residente na Alameda ……, freguesia …, concelho…. e, ocasionalmente, no lugar……, União de Freguesias …, …. e …, concelho de …, subsequentemente a procedimento cautelar que viria a ser apensado como apenso A, veio intentar a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB, residente na Av. …, freguesia…, concelho …, Tecnopalete – Indústria de Paletes, Lda, com sede na Zona Industrial de …., Lote ….., concelho ….. e CC, casada com o 1.º Réu e residente na Av. …., freguesia ….., concelho …….
Alega para tanto e em síntese: que é o legítimo proprietário de um prédio misto denominado “C….”, devidamente identificado, no lugar …., União de Freguesias …, …… e ……, concelho ….., tendo-o cedido (por comodato ou arrendamento) aos 1.º e 2.ª réus, de modo que estes o destinaram ao exercício da sua atividade industrial; que no dia 8 de junho de 2017 tomou conhecimento que 1.º e 2.ª Réus instalaram, no limite nascente do prédio da 3.ª Ré, a uma distância de cerca de 39,70 metros da sua casa de habitação, um equipamento de tratamento sanitário e de secagem de paletes de madeira, destinado ao extermínio do nemátodo da madeira do pinheiro, que funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana e do fim-de-semana, produzindo barulhos ensurdecedores, superiores ao permitido pela legislação do ruído, que se propagam por mais de 100 metros e se ouvem intensamente no interior da sua casa de habitação, mesmo com todas as portas e janelas fechadas.; que desde então, e apesar de intentado procedimento cautelar comum com o n.º 142/17……. (apenso A destes autos), o qual foi julgado procedente, não lhe é possível repousar, descansar e dormir com sossego e tranquilidade na casa de habitação, o que lhe vem provocando danos morais.
Concluiu o Autor, pedindo a condenação dos Réus: a reconhecerem o seu direito de propriedade sobre o prédio descrito em 1.º da petição inicial; a cessarem a atividade do equipamento de secagem de paletes e a absterem-se de desenvolverem, no prédio supra descrito no artigo 13.º da petição inicial, qualquer atividade ruidosa; no pagamento de uma indemnização, por danos não patrimoniais, no montante de €20.000,00.
Regularmente citada veio a 2.ª Ré apresentar contestação, pugnando pela sua absolvição e mais requerendo a condenação do Autor, enquanto litigante de má-fé, no pagamento de uma indemnização em montante nunca inferior a €5.000,00.
Alegou, em síntese que: o Autor habita em …. e apenas se desloca a …… 2 a 3 vezes por ano e que se queixa de todas as empresas situadas no parque Industrial ….; que, em Setembro/Outubro, fez diversas obras para melhorar a insonorização e reduzir drasticamente o ruido das estufas, com a colocação de novos amortecedores e aparelhos que reduziram a vibração dos motores; que continuou a fazer novas obras de insonorização, contratando uma empresa especializada para alterar os motores das estufas de secagem por outros menos potentes e mais silenciosos, já colocados; que foi obrigada a contratar uma empresa situada em …, denominada N......, Lda., para proceder à secagem de madeira, com elevados custos para si; que, por isso, deixou de utilizar o citado equipamento de secagem, ou melhor as estufas, deixando de produzir ruídos; que o Autor, por não habitar permanentemente na habitação...., não sofreu, ou sofre, quaisquer danos não patrimoniais tendo alegado factos que sabe não serem verdadeiros e que, por isso, actua como litigante de má fé.
Citada, a 3.ª Ré também contestou, por excepção - invocando a sua ilegitimidade passiva, porquanto, em suma, nada tem que ver com a gestão da 2.ª Ré - e por impugnação.
Em resposta à exceção de ilegitimidade passiva veio o Autor pugnar pela sua improcedência e, por outro lado, requerer a condenação da 2.ª Ré enquanto litigante de má fé, porquanto a mesma invocou factos que sabiam serem falsos na contestação, designadamente ter cessado a atividade do equipamento sanitário e de secagem de paletes.
Realizou-se audiência prévia, na qual foi conhecida e julgada improcedente a exceção de ilegitimidade passiva, e, bem assim, foi definido o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.
Após julgamento, foi proferida sentença, que concluiu assim:
“Nestes termos, julgando procedente a presente ação:
a) Condeno os réus a reconhecerem o autor como dono e legítimo proprietário do prédio misto denominado “C…”, descrito na Conservatória do Registo Predial …. sob o n.º ….;
b) Condeno os réus a que, no prédio rústico “S ….”, descrito na Conservatória do Registo Predial de …. sob o n.º ….., façam cessar a atividade do(s) equipamento(s) de tratamento sanitário e de secagem de paletes de madeira que ali se encontra(m) instalado(s), e nesse prédio se abstenham de desenvolver qualquer atividade ruidosa, entendendo-se esta como qualquer atividade que continue a perturbar o autor no gozo e exercício dos seus direitos de personalidade e de propriedade;
c) Condeno os réus a indemnizarem o autor, solidariamente, por danos morais, mediante o pagamento da quantia de € 10.000,00 (dez mil euros);
d) Condeno a 2.ª ré como litigante de má-fé, em multa processual que se fixa em 3 U.C.’s, e em indemnização a favor do autor, prevista no artigo 543.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Civil, cuja quantia deverá ser liquidada, após audição das partes, em incidente próprio;
e) Condeno os réus no pagamento, solidário, das custas. Notifique.”
Inconformada, apelou a Ré Tecnopalete-Indústria de Paletes Lda da sentença, tendo a Relação concluído o seguinte:
“Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente o recurso e, consequentemente, em alterar a sentença recorrida no sentido de condenar os Réus a que, no prédio rústico “S …”, descrito na Conservatória do Registo Predial de ….. sob o n.º ….., façam cessar a atividade do(s) equipamento(s) de tratamento sanitário e de secagem de paletes de madeira que ali se encontra(m) instalado(s), no período do entardecer e nocturno, das 20.00 às 07.00 horas, e bem assim ao fim-de-semana, a manter, no restante período, a actividade a funcionar num regime de 50%, e ainda a que nesse prédio se abstenham de desenvolver qualquer outra atividade ruidosa, entendendo-se esta como qualquer atividade que continue a perturbar o autor no gozo e exercício dos seus direitos de personalidade e de propriedade, confirmando-se no mais a sentença recorrida.
As custas do presente recurso e da ação são da responsabilidade da Recorrente e do Recorrido, fixando-se a respectiva responsabilidade em 2/3 para a Recorrente e 1/3 para o Recorrido.”
Não se conformou deste vez o autor que interpôs recurso de revista, formulando as seguintes conclusões:
“1. Ao abrigo dos art.os 671.º, n.º 1 e 674.º, n.º 1, als. a) e c) do CPC, vem o presente recurso interposto do douto acórdão do Tribunal da Relação … de 17 de Dezembro de 2019
2. Entre a fundamentação e a decisão verifica-se uma ambiguidade que torna a decisão ininteligível, porquanto:
a -) Na fundamentação equipara-se o Sábado a um dia da semana e considera-se que a Ré poderá manter, no período diurno, a actividade dos equipamentos de tratamento sanitário e de secagem de paletes.
b -) Na decisão não é mencionado o Sábado e determina-se que durante o fim de semana a Ré terá de cessar a actividade dos equipamentos de tratamento sanitário e de secagem de paletes.
3. O douto acórdão recorrido é totalmente omisso relativamente aos feriados nacionais, feriado municipal, dias santos e, em geral, dias não úteis, não se sabendo se a Ré pode, ou não, naqueles dias ter em funcionamento os equipamentos de tratamento sanitário e de secagem de paletes de madeira em regime de 50%;
Pelo que o douto acórdão recorrido padece das nulidades previstas nas alíneas c) e d) do art.º 615.º, aplicável ex vi art.º 674.º, n.º 1, alínea c) do CPC.
4.O douto acórdão recorrido revogou sã e imaculada sentença proferida pela 1.ª instância, fazendo errada aplicação da Lei e deixando totalmente à mercê dos prevaricadores – comprovadamente prevaricadores – a tutela e o respeito dos direitos de personalidade do A. que vêm sucessiva, ininterrupta e sistematicamente violando – comprovadamente violando – desde a prolação da douta sentença de 27/10/2017 (há muito transitada em julgado) no âmbito do procedimento cautelar, intentado como prelimitar da presente acção;
5. O Tribunal, ao determinar o modo de salvaguarda dos direitos de personalidade do autor, não deve alhear-se da conduta dos prevaricadores ao longo do processo, porquanto esta permite aquilatar qual o grau de probabilidade e perigosidade da sua violação em face de cada uma das diversas soluções / limitações abstractamente susceptíveis de serem impostas aos prevaricadores;
6. E perante o quadro factual apurado (vide pontos 15, 16, 17, 18 e 24 da fundamentação de facto), é muito intenso e elevado o perigo e probabilidade da lesão dos direitos de personalidade do Autor se aos RR. prevaricadores – sucessiva e ininterruptamente prevaricadores – se permitir manter em funcionamento os equipamentos de tratamento sanitário e de secagem de paletes de madeira no prédio descrito no ponto 4 da fundamentação de facto
7. Na prática, o douto acórdão recorrido, nos termos em que foi proferido, não coloca o ónus do cumprimento do acórdão / sentença sobre os RR., mas sim sobre o próprio lesado (o Autor) que não tendo forma de controlar o comportamento dos RR. e nem de saber se aqueles mantêm os ditos equipamentos em regime de 50%, ficará perpetuamente na insanável dúvida do cumprimento ou incumprimento da decisão judicial, ainda que não consiga descansar e repousar durante o seu funcionamento;
8. O Autor não tem só direito ao descanso, repouso e sossego, mas também ao mínimo de segurança, certeza e garantia do seu respeito por terceiros;
9. E o “cutelo” da sanção pecuniária compulsória é suficiente garantia do cumprimento da decisão, tanto mais que no âmbito do procedimento cautelar os RR. foram condenados em sanção pecuniária compulsória e, como também julgado provado, nem assim cumpriram a intimação;
10. A sentença proferida pela 1.ª Instância não impõe uma limitação total dos direitos dos RR., porque a limitação imposta apenas visa o prédio rústico “S …..”, descrito na Conservatória do Registo Predial…. sob o n.º …. e, especificamente, a utilização do(s) equipamento(s) de tratamento sanitário e de secagem de paletes de madeira que ali se encontra(m) instalado(s);
11. Não tendo os RR. alegado (e, por consequência, demonstrado) não ser possível exercer a sua actividade noutro local, estarem absolutamente dependentes do funcionamento dos equipamentos de tratamento sanitário e de secagem de paletes de madeira, não ser possível terem aqueles equipamentos noutro prédio, ou ainda ser excessivamente oneroso fazer o tratamento e secagem da madeira através de terceiros, não se vislumbra como possa a douta sentença proferida pela 1.ª Instância ter violado o princípio da proporcionalidade;
12. A integridade moral e física das pessoas é, em qualquer circunstância, inviolável;
13. Os limites de decibéis impostos pelo Regulamento Geral do Ruído, embora relevantes sob o ponto de vista das normas administrativas, não supõem uma bitola imperativa para a defesa dos direitos de personalidade;
14. A incomodidade de um ruído ou som em geral, enquanto critério subjectivo, não se afere apenas pela sua intensidade medida em decibéis (dB), mas igualmente pelas suas características de frequências, tom (grave ou agudo) e timbre.
15. para o “ser humano”, o ruído/som produzido pelas actividades industriais, designadamente a dos equipamentos da Recorrente é muito mais incómodo do que o ruído/som produzido por uma música de Mozart ou de Beethoven, ainda que os dois sejam produzidos à mesma intensidade (em decibéis);
16. A circunstância de o equipamento de tratamento sanitário e de secagem de paletes de madeira, em regime de funcionamento de 50%, respeitar os limites (em decibéis) do Regulamento Geral do Ruído, não quer significar que respeite os direitos à segurança, ao descanso, à tranquilidade e ao sono do A.;
17. Aliás, está provado nos autos (vide pontos 7, 8 e 9 da fundamentação de facto) que, mesmo em regime de funcionamento de 50%, aquele equipamento barulhos que se ouvem intensamente no interior da casa de habitação do A., mesmo com todas as portas e janelas fechadas, em consequência do que não é possível ao autor repousar, descansar e dormir com sossego e tranquilidade naquela sua casa de habitação;
18. Tem também aplicabilidade ao caso dos autos o disposto no art.º 1346.º do Código Civil;
19. O disposto nos art.os 25.º, n.º 1 da CRP, o art.º 70.º, n.º 1 e o art.º 1346.º do Código Civil tem aplicabilidade independentemente de serem respeitados, ou não, os limites de decibéis (intensidade) impostos pelo Regulamento Geral do Ruído;
20. O douto acórdão recorrido viola o 25.º, n.º 1 da CRP, o art.º 70.º, n.º 1 e o art.º 1346.º do Código Civil.”
Pede que seja revogado o acórdão revidendo e confirmada integralmente a sentença proferida na 1.ª instância.
Os recorridos não contra-alegaram.
Cumpre decidir.
A matéria de facto dada como provada nas instâncias é a seguinte:
”1. O autor tem a seu favor registado o direito de propriedade sobre um prédio misto, situado no lugar …, União de Freguesias…, ….. e …., do concelho ….., denominado “C.….”, descrito na Conservatória do Registo Predial …. sob o n.º …., composto por: a) casa com a superfície coberta de 66m2 e quintal com a área de 600m2, inscritos na matriz urbana sob o artigo ….; b) casa com a superfície coberta de 268m2 e dependência anexa com 40m2, inscritas na matriz urbana sob o artigo …..; c) terreno de cultivo, denominado “Campo ….”, e dependência agrícola para alpendre e eira com 52m2, inscritos na matriz rústica sob o artigo …..
2. Aquele prédio adveio à posse do autor por escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca, exarada a fls. 121 a 124-V, do Livro de Notas para escrituras diverso n.º …, em 27-06-2002, perante DD, … Ajudante …. Cartório Notarial …….
3. Desde então, mormente em períodos de férias e fins-de-semana, o autor vem utilizando esse prédio, habitando a casa, nela comendo, descansando, dormindo, recebendo familiares e amigos e dela retirando as demais utilidades que lhe são inerentes, o que sempre tem feito à vista de todos, sem oposição de ninguém, na convicção de que está, como sempre esteve, no exercício pleno e exclusivo de um direito de propriedade.
4. A 3.ª ré tem a seu favor registado o direito de propriedade sobre um prédio rústico, situado em …, da União de Freguesias…., ….. e …, denominado “S.…”, descrito na Conservatória do Registo Predial de …. com o n.º …. e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo …...
5. A 3.ª ré cedeu aos 1.º e 2.ª réus o prédio “S.…”, de modo a que estes o destinassem ao exercício de atividade industrial.
6. Entre a casa de habitação do prédio “C ….” e o prédio “S,,…” distam cerca de 40 metros.
7. Em 08-06-2017, o autor tomou conhecimento que, a uma distância de cerca de 40 metros da sua casa de habitação no prédio “C.…”, os 1.º e 2.ª réus haviam instalado, no limite nascente do prédio “S….”, um equipamento de tratamento sanitário e de secagem de paletes de madeira, que têm posto em funcionamento 24 horas por dia, de dia e de noite, todos os dias da semana e do fim de semana.
8. Produzindo barulhos que se ouvem intensamente no interior da casa de habitação do autor, mesmo com todas as portas e janelas fechadas.
9. Em consequência, não é possível ao autor repousar, descansar e dormir com sossego e tranquilidade naquela sua casa de habitação.
10. O autor tem, atualmente, cerca de 68 anos de idade e exerce a atividade profissional…. na Faculdade ….. da Universidade……, tendo residência habitual em …….
11. O autor apresentou queixa à GNR …, que se deslocou ao local.
12. Também apresentou queixa junto do Ministro do Ambiente.
13. O autor instou os 1.º e 2.ª réus a removerem do prédio “S…” a instalação descrita ou, pelo menos, a mudarem-na de local, afastando-a o máximo possível do prédio registado a favor do autor, e a se absterem de desenvolverem naquele prédio qualquer atividade ruidosa que prejudicasse o seu sossego e tranquilidade.
14. Após, em data não concretamente apurada, nas mesmas instalações, também passaram a ser audíveis disparos de pregos para assemblagem de paletes, serras elétricas e serração de madeira, o que antes não sucedia.
15. Em 26-06-2017, o autor intentou contra os réus procedimento cautelar comum com o n.º 142/17…. (apenso A destes autos), que correu termos no Juízo de Competência Genérica……, a fim de serem aqueles notificados para cessarem a atividade do equipamento de secagem de paletes e absterem-se de desenvolverem, no prédio registado a favor da 3.ª ré, qualquer atividade ruidosa, sob a cominação de aplicação de sanção pecuniária compulsória.
16. Esse procedimento cautelar foi julgado procedente por decisão, em primeira instância, de 27-10-2017 (com dispensa de contraditório prévio dos réus), mantida em 12-12-2017 (após oposição deduzida pelos réus) - já transitada em julgado, depois de interposto recurso para o Tribunal da Relação … (acórdão de 05-04-2018) -tendo os réus sido citados em 06-11-2017.
17. Pese embora aquela decisão cautelar, a atividade industrial no prédio “S.…..”, designadamente a laboração do referido equipamento de tratamento sanitário e de secagem de paletes de madeira, manteve-se.
18. Desde junho de 2017 que, em consequência do ruído proveniente do prédio “S….….”, o autor não utiliza aquela sua casa de habitação, encontrando-se, em consequência, perturbado e frustrado.
19. No interior da habitação do autor, a laboração da atividade industrial da 2.ª ré, num regime de funcionamento “a 100%”, designadamente o equipamento de tratamento sanitário e de secagem de paletes de madeira, produz ruído que ultrapassa, respetivamente, em 2 dB(A), 5 dB(A) e 7 dB(A) os valores diferenciais estabelecidos no Regulamento Geral do Ruído para os critérios de incomodidade nos períodos diurno, entardecer e noturno, sendo que, num regime de funcionamento “a 50%”, o ruído produzido não ultrapassa os valores regulamentares.
20. No exterior da habitação do autor, a laboração da atividade industrial da 2.ª ré, num regime de funcionamento “a 100%”, designadamente o equipamento de tratamento sanitário e de secagem de paletes de madeira, produz ruído que ultrapassa, respetivamente, em 3 dB(A), 3 dB(A) e 7 dB(A) os valores diferenciais estabelecidos no Regulamento Geral do Ruído para os critérios de incomodidade nos períodos diurno, entardecer e noturno, sendo que, num regime de funcionamento “a 50%”, o ruído produzido não ultrapassa os valores regulamentares.
21. No que respeita às condicionantes de ruído, o parque industrial de … e o prédio “S….…..” inserem-se em zona mista.
22. A 3.ª ré trabalha na Câmara Municipal …...
23. Em data não concretamente apurada, após a prolação da decisão no procedimento cautelar, a 2.ª ré fez obras para melhorar a insonorização e reduzir o ruído das estufas.
24. A 2.ª ré tinha conhecimento que não tinha cessado a laboração do equipamento de secagem de paletes após a notificação da decisão no procedimento cautelar.
25. A 3.ª ré não é sócia ou gerente da 2.ª ré. “
Factos considerados não provados:
“a) O autor queixa-se de todas as empresas que estão situadas, como a da 2.ª ré, no Parque Industrial …..
b) Após a decisão do procedimento cautelar, a 2.ª ré contratou uma empresa especializada que alterou os motores das estufas de secagem por outros menos potentes e mais silenciosos, já aí colocados.
c) A 2.ª ré foi obrigada a contratar uma empresa, situada em …, denominada de N....., Lda. para que esta lhe tratasse a madeira de que necessita para laborar.
d) O autor tem conhecimento que a 2.ª ré não produz ruído, que não é incomodado por esse ruído e pelo não acatamento, pelos réus, da decisão cautelar.”
Da nulidade prevista na al. c) do nº 1 do art. 615º do CPC:
Alega o recorrente que se verifica uma ambiguidade entre a fundamentação e a decisão que torna esta ininteligível, porque enquanto na fundamentação se equipara o sábado a um dia da semana e se considera que a ré poderá manter, no período diurno, a actividade dos equipamentos de tratamento sanitário e de secagem de paletes, na decisão não é mencionado o sábado e determina-se que durante o fim de semana a ré terá de cessar a actividade dos equipamentos de tratamento sanitário e de secagem de paletes.
Sucede, no entanto, que a ambiguidade a que se reporta a al. b) do nº 1 do art. 615º do CPC não abrange a fundamentação (Ramos Faria, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2ª edição pág. 605, Lebre de Freitas, Acção Declarativa Comum, 3ª edição, pág. 334). Só a obscuridade ou a ambiguidade que torne ininteligível a parte decisória, propriamente dita (e não os seus fundamentos) é susceptível de provocar nulidade. Não é o caso: o fim de semana abrange o sábado. É o sentido que um declaratário normal retirará da parte decisória e só desta.
Da nulidade prevista na al. d) do nº 1 do art. 615º do CPC:
Considera o recorrente, também, que a decisão, ao não pronunciar-se sobre os feriados nacionais, feriado municipal e, em geral, dias não úteis, padece da nulidade por omissão de pronúncia.
Todavia, não se verifica qualquer omissão no conhecimento de questão que tenha sido suscitada pelo recorrente. Trata-se, apenas, de uma decisão da qual o recorrente discorda, porque devia ter ido mais longe.
Do fundo da causa:
Dos factos provados resulta que, apesar de ter a residência habitual em …., o autor utiliza a sua casa de habitação …., designadamente em férias e fins de semana, onde dorme e descansa, o que não lhe é possível fazer em consequência dos barulhos que vêm do prédio vizinho, provocados pelo funcionamento do equipamento de tratamento sanitário e de secagem de paletes, que os réus têm posto em funcionamento 24 horas por dia, de dia e de noite, todos os dias da semana e ao fim de semana (factos 3, 7, 8, 9). Além disso, o autor (que tinha, à data do julgamento, cerca de 68 anos de idade) vinha usufruindo daquele descanso e repouso desde 2002, que foram perturbados pelos réus a partir de 8.6.2017.
E, por isso, foi reconhecido, justamente, pelas instâncias o direito do autor ao sono, ao repouso e à tranquilidade, como um direito de personalidade do mesmo, à face do disposto no art. 70º, nº 1 do Código Civil.
Do outro lado, reconheceu-se aos réus o direito à iniciativa económica (à exploração da actividade industrial).
Todavia, considerou-se superior o direito do autor relativamente ao dos réus, o que não oferece dúvidas, sendo a jurisprudência unânime neste aspecto.
A questão que releva reside, assim, no modo de harmonização do exercício dos dois direitos em simultâneo, tendo em conta que o art. 335º do Código Civil dispõe o seguinte: “havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes (n.º 1); se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior (n.º 2)”.
Sobre este artigo a doutrina tem-se manifestado no sentido de que “na hipótese de se concluir pela superioridade de um direito relativamente a outro, se deve encontrar uma solução que, sem prejuízo de dar prevalência ao superior, acautele na medida do possível um exercício residual e subsidiário do direito preterido. Com efeito, a prevalência de um direito relativamente ao exercício de outro direito não significa a exclusão obrigatória e completa deste último. Sempre que seja viável, o juiz deve tentar assegurar alguma oportunidade de exercício ao direito tido como inferior” (Elsa Vaz Sequeira, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, pág. 793); noutra obra, de referência, pode ler-se “o direito inferior deve ser respeitado até onde for possível e apenas deve ser limitado na exacta proporção em que isso é exigido pela tutela razoável do conjunto principal de interesses, inclusivamente, caso sejam possíveis e adequados vários modos de exercício dos direitos superior e inferior, a solução legal do conflito impõe que as partes adoptem modos alternativos de exercício que respeitem a diferença axiológico-jurídica em causa e se mostrem não colidentes entre si ou, se isso não for possível, impõe que o titular do direito predominante adopte o modo de exercício mais moderado ou menos gravoso, que limite no mínimo o direito secundário (Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, 1995, pág. 549).
Portanto, a prevalência de um direito superior relativamente ao inferior não significa o “esmagamento” do segundo pelo primeiro.
E este princípio de proporcionalidade sai reforçado se ambos os direitos forem, como é o caso, tutelados constitucionalmente: os direitos de personalidade encontram abrigo no art. 25º da CRP, subordinado à epígrafe” Direito à Integridade Pessoal”, que inclui a integridade moral e física (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP anotada, volume I, 4ª edição revista, pág. 455); e o direito de exploração de actividade industrial no art. 61º da CRP, que protege a liberdade de iniciativa privada (ob. cit. pág. 790).
Neste caso, a harmonização de tais direitos deverá conformar-se com as exigências contidas no art, 18º da Constituição mormente com o princípio da proporcionalidade inscrito na parte final do nº 2.
Para justificar a paralisação total da actividade dos réus, invoca o recorrente o disposto no art. 1346º do Código Civil, segundo o qual “o proprietário de um imóvel pode opor-se à emissão de fumo, fuligem, vapores, cheiros, calor ou ruídos, bem como à produção de trepidações e a outros, quaisquer factos semelhantes, provenientes de prédio vizinho, sempre que tais factos importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam”.
E, na verdade, o artigo tem aplicação ao caso: os ruídos provêm de um prédio vizinho e importam um prejuízo substancial para o uso habitacional do imóvel. Sendo que, como escreve Vaz Serra, em RLJ nº 103, a pág. 378, os danos derivados da vizinhança abrangem não apenas os direitos de propriedade, mas também os direitos de personalidade (como é o caso do referido direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade). Aliás, no sentido de que se verifica um actividade ilícita, porque violadora de um direito de personalidade, e um dano efectivo e consumado nesse direito (prevalecente sobre os interesses empresariais dos RR. em explorarem, no local, uma actividade de discoteca/estabelecimento de dança durante largos períodos nocturno) pode ver-se o Ac. STJ de 19.6.2017, proc. 117/13.1TBMLG.G1.S1, em www.dgsi.pt.
Assim, e tendo em consideração que os ruídos derivados do uso das instalações referidas afectam substancialmente o direito de personalidade do autor, verifica-se que este direito se mostra assegurado não apenas pelo art. 70º como ainda pelo art. 1346º do Código Civil.
Porém, também nesta perspectiva, a compressão do direito dos réus deve ser feita à luz do princípio da proporcionalidade, pelo que não existe fundamento para a exclusão absoluta do exercício do direito dos réus (Rui Pinto, Claudia Trindade, CC anotado, Coordenação Ana Prata, volume II, 2017, pág. 168).
Em aplicação de tal princípio, a Relação condenou os réus, como se viu, à cessação da actividade do(s) equipamento(s) de tratamento sanitário e de secagem de paletes de madeira que se encontra(m) instalado(s) no prédio dos réus, no período do entardecer e nocturno, das 20.00 às 07.00 horas, e bem assim, ao fim-de-semana, a manter, no restante período, a actividade a funcionar num regime de 50%, e ainda a que nesse prédio se abstivessem de desenvolver qualquer outra actividade ruidosa, entendendo-se esta como qualquer actividade que continue a perturbar o autor no gozo e exercício dos seus direitos de personalidade e de propriedade. Para tanto, ponderou: “(…) Ressalta, assim, da sentença recorrida que, considerando ser de dar prevalência aos direitos de personalidade do Autor, a única solução possível para a sua protecção, é a da cessação total da actividade dos equipamentos de secagem de paletes, considerando que qualquer decisão não poderá deixar na disponibilidade dos Réus, nomeadamente do 1.º Réu, activar (ou não) a redução do funcionamento das estufas para níveis de ruído consentâneos com os regulamentares, na medida em que todos os Réus já deram provas de que, mesmo sob ordem cautelar judicial e sanção pecuniária compulsória não têm mínima intenção de fazerem cessar ou reduzir o ruído emitido pelas estufas. Ou seja, analisou o tribunal a quo a questão do princípio da proporcionalidade e da eventual possibilidade de compatibilização dos direitos e conflito do ponto de vista do incumprimento da decisão por parte dos Réus. Entendemos contudo, e salvo melhor opinião, não ser essa a forma adequada para resolução da questão, tando mais que também nada poderia garantir que cumpririam agora voluntariamente a decidida cessação existindo, como é consabido, regras próprias para obter o cumprimento das decisões judiciais (aliás o Autor intentou execução na sequência da decisão proferida na providência cautelar conforme se constata da decisão proferida nos embargos de executado deduzidos pela aqui Recorrente, junta a fls. 90 e seguintes dos presentes autos).”
Insurge-se o recorrente contra o acórdão pelo facto de este colocar o ónus do cumprimento do acórdão /sentença não sobre os réus, mas sim sobre o próprio lesado (o autor) que não tendo forma de controlar o comportamento dos réus e nem de saber se aqueles mantêm os ditos equipamentos em regime de 50%, ficará perpetuamente na insanável dúvida do cumprimento ou incumprimento da decisão judicial, ainda que não consiga descansar e repousar durante o seu funcionamento.
E cremos que tem razão, nesta parte.
É evidente que existem regras próprias para o cumprimento das decisões judiciais.
Todavia, o cumprimento das decisões judiciais tem de ser controlável pelas partes. E aqui temos de convir que o autor pode não ter percepção clara sobre se o regime de funcionamento se mantém a 50% ou a 100%.
Por outro lado, não existe garantia de que os réus (o 1º e a 2ª) vão cumprir, por sua iniciativa, esse regime de 50%, pois, se é verdade que a 2ª ré fez obras para melhorar a insonorização e reduzir o ruído das estufas (23), com resultados desconhecidos, também é verdade que, não obstante a decisão cautelar, que cominou a sanção pecuniária compulsória, manteve, em pleno, a laboração do equipamento de tratamento sanitário e a drenagem de paletes de madeira (15, 17 e 24).
Cremos, ainda, que determinar que os réus observem os limites regulamentares do ruído na sua actividade industrial se revela insuficiente para uma tutela efectiva dos direitos do autor.
Assim, afigura-se-nos necessária a paralisação da actividade nos períodos em que o autor se encontre na casa de habitação em … (férias e fim de semana).
Não sendo possível (nem desejável) controlar os períodos de férias do autor, considera-se preferível (apesar de todos os inconvenientes que daí advêm) fixar períodos de paralisação da actividade em causa que tenham por referência os convencionais períodos de férias escolares.
Pode argumentar-se que esta paralisação apenas se justificará enquanto não se proceder a obras eficazes de insonorização, trazendo, garantidamente, o ruído para níveis que se contenham dentro dos limites regulamentares que resultariam do funcionamento do equipamento dos réus “a 50%” (19 e 20).
Sucede, no entanto, que os réus não demonstraram na acção que era possível a redução eficiente do ruído mediante obras de insonorização.
Além disso, o tribunal está impedido de proceder a uma decisão condicional, que faça depender a validade da paralisação da actividade de eventuais obras de insonorização (v. Ac. STJ de 19.4.2012, proc. 3920/07.8TBVIS.C1.S1, em www.dgsi.pt), prejudicando a definitividade e certeza da composição de interesses realizada na acção e a efectividade da tutela alcançada pelo demandante (Ac. STJ de 7.4.2011, proc. nº 419/06.3 TCFUN-L1.S1, também em www.dgsi.pt).
Pretende o recorrente que se salvaguarde, ainda, a cessação da actividade nos feriados nacionais e no feriado municipal. Acontece, porém, que não foi dado como provado que o autor aproveite os feriados (especialmente se eles incidirem em dias de semana) para se deslocar à sua casa de …...
Como assim, decide-se suspender a actividade dos réus no que respeita aos seguintes períodos: aos fins de semana (incluindo o sábado); no dia de Carnaval e na segunda-feira que o precede; nas férias da Páscoa do dia que precede a Sexta-feira Santa até ao Domingo de Páscoa; no período de férias de Verão que decorre entre o dia 16 de Agosto e o dia 31 do mesmo mês; nas férias de Natal de 24 de Dezembro a 26 do mesmo mês e, ainda, nos dias 31 de Dezembro e 1 de Janeiro. Para além destes períodos em que os réus devem paralisar tal actividade, mantém-se, ainda assim, a condenação da redução do funcionamento em 50% para os restantes períodos, uma vez que a supressão desta redução representaria uma violação do princípio da reformatio in pejus (atendendo a que os réus/apelantes não recorreram do acórdão).
Sumário (art. 663º, nº 7 do CPC):
“1. O direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade de uma parte prevalece sobre o direito à actividade económica da outra;
2. A harmonização entre esses direitos há-de obedecer ao princípio da proporcionalidade de modo que, se possível, a afirmação de um direito não implique necessariamente a exclusão do outro;
3. Procedendo-se a essa harmonização, tendo em conta que não é possível ao autor controlar a redução do funcionamento do equipamento poluente (em termos de ruído) de modo a conter-se dentro dos limites de 50% (caso em que o ruído se manteria dentro dos limites regulamentares), considera-se adequado fazer suspender esse funcionamento em períodos (fixos) que tenham por referência os convencionais períodos de férias escolares.
Pelo exposto, concede-se parcialmente a revista e altera-se o acórdão no sentido de condenar os Réus a que, no prédio rústico “S …”, devidamente identificado nos autos, suspendam, ainda, a actividade do(s) equipamento(s) de tratamento sanitário e de secagem de paletes de madeira que ali se encontra(m) instalado(s) nos períodos seguintes: aos fins-de-semana (incluindo sábado); no dia de Carnaval e na segunda-feira que o precede; nas férias da Páscoa do dia que precede a Sexta-feira Santa até ao Domingo de Páscoa; no período de férias de Verão que decorre entre o dia 16 de Agosto e o dia 31 do mesmo mês; nas férias de Natal de 24 de Dezembro a 26 do mesmo mês e, ainda, nos dias 31 de Dezembro e 1 de Janeiro.
Quanto ao mais, confirma-se o acórdão.
As custas (também nas instâncias) ficam pela recorrente e pelos recorridos em partes iguais.
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Lisboa, 20 de Abril de 2021
O relator António Magalhães
(Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A/2020 de 13.3., atesto o voto de conformidade dos Srs. Juízes Conselheiros Adjuntos Jorge Dias e Maria Clara Sottomayor que não assinaram, por não o poderem fazer).