Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
167/17.9YHLSB.L2.S2
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Descritores: PROPRIEDADE INDUSTRIAL
MODELO INDUSTRIAL
REGISTO
NULIDADE
PRINCÍPIO DA NOVIDADE
Data do Acordão: 04/30/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (PROPRIEDADE INTELECTUAL)
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I - No sistema português (arts. 188.º a 197.º do CPI), o exame dos requisitos de fundo (nomeadamente a novidade e a singularidade, exigidas pelos arts. 176.º a 180.º) só ocorrerá quando seja apresentada reclamação com fundamento na falta de preenchimento das condições previstas nestas disposições. Não havendo oposição, o registo é concedido independentemente do preenchimento desses requisitos.

II - A tutela dos desenhos ou modelos (doravante DM) incide sobre a aparência dos produtos, resultante das suas características visíveis, nomeadamente das linhas, contornos, cores, forma, textura ou materiais do próprio produto ou da sua ornamentação (art. 173.º do CPI) e está reservada aos que preencham os requisitos definidos nos arts. 173.º e ss. do CPI, concretamente a novidade e o caráter singular (cf. arts. 176.º e 177.º do CPI).

III - A novidade só existe quando o desenho ou o modelo em questão não tenha sido divulgado ao público, dentro ou fora do país, em momento anterior ao do pedido de registo, nem tenha havido divulgação de DM idênticos (art. 177.º do CPI).

IV - O caráter singular do produto depende de a impressão global causada no utilizador informado diferir da impressão global causada a esse utilizador por qualquer desenho ou modelo divulgado ao público antes da data do pedido de registo ou da prioridade reivindicada (art. 178.º, n.º 1, do CPI).

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




I – Relatório

1. Francisco Ribeiro & Filhos, Lda. intentou ação declarativa de processo comum contra J. C. Nascimento, Lda., pedindo que se declare a nulidade do registo n.º 3223, no respeitante às figuras representativas do “vilão” e “viloa” da Madeira.


Para tanto, alegou, em síntese que:


Os trajes típicos do “vilão” e da “viloa”, que representam, respectivamente, o camponês e a camponesa da Madeira estão, há largos anos, imortalizados, na literatura, pintura, gravura, dança folclórica e emissões de selos, sendo que as vendedoras de flores que existem em diversas praças do Funchal envergam o traje regional da “viloa”.


Também se fabricam as figuras do “vilão” e “viloa” da Madeira, em louça, barro, vidro, bonecos, em diversas formas e variados materiais.


A ré, porém, em 2013, procedeu ao registo dos modelos e desenhos ao arrepio das normas reguladoras da propriedade industrial, o qual, por isso mesmo, enferma de nulidade.


2. Na contestação, a ré, defendendo-se por exceção, arguiu a nulidade do processo, por ineptidão da petição inicial; a ilegitimidade da autora; a impropriedade ou inidoneidade da ação para os efeitos pretendidos; a caducidade do direito da autora em propor a ação; a litispendência, por haver identidade entre a presente causa e a que estava a ser discutida nos autos de procedimento cautelar, com inversão do contencioso, que correu termos no Tribunal da Propriedade Industrial, sob o nº 101/17.6… .


Por impugnação, refutou os factos alegados pela autora, dizendo que os modelos e desenhos por si criados configuram obra nova e original, para efeitos da proteção visada pelo registo.


Por sua vez, em reconvenção, pediu a condenação da autora no pagamento de €17.500,00 a título de indemnização, sendo €10.000,00 a título de danos patrimoniais e €7.500, a título de danos não patrimoniais.


3. Foi proferido despacho saneador, que julgou improcedentes todas as exceções invocadas pela ré e rejeitou a reconvenção, por inadmissibilidade legal.


4. Realizado o julgamento, foi proferida sentença que, julgando a ação procedente, declarou nulo o registo do desenho ou modelo n.°3223, com a seguinte configuração:      




5. Inconformada com o decidido, a ré interpôs recurso para o Tribunal da Relação, que proferiu acórdão a confirmar a sentença recorrida.


6. De novo irresignada, a ré veio interpor a presente revista excecional, a qual foi admitida pela Formação de Juízes Conselheiros a que se alude no art. 672º, nº3, do CPC, formulando as seguintes conclusões:


I – Os Tribunais – órgãos de soberania que administram a Justiça em Nome do Povo – , compostos de magistrados judiciais, têm por função administrar a justiça de acordo com as fontes a que, segundo a lei, deva recorrer [artigo 3.º, n.º 1, do EMJ], de tal modo que lhes é pedido que julguem segundo a Constituição da República portuguesa e a lei.


II – O Tribunal da Relação de Lisboa, no seu Acórdão de 02/05/2019, deu provimento parcial à pretensão recursória da Recorrente.


III – Importa relembrar que, nas suas Alegações e Conclusões, em sede de Recurso de Apelação, a Recorrente propugnou a alteração da matéria de facto, na sua conclusão XXVII, mais precisamente os factos 3, 6, 7, 8 e 9.


IV – Pugnou-se, ainda, pela consideração como não provado do facto 15, por o mesmo ir contra o vertido no ponto 9. O Ponto 15 dispunha o seguinte: “Uma funcionária da Ré fez desenhos para o fabrico dos bonecos em causa em 2007”. Ora,


V – O TRL viria a dar provimento parcial às pretensões da Recorrente, ao proceder, no sentido propugnado, a alterações ao nível dos factos 3, 6, 7, 8 e 9, apenas se recusando, por razões adjectivas, a que adiante se dará a devida expressão, a alteração do Ponto 9 e a não procedência da consideração como «não provado» do facto 15.


VI – O que significa que, após a passagem do TRL de 02/05/2019, a matéria de facto provado ficou assim configurada:


«1. A A. é uma pessoa colectiva ligada ao turismo, que comercializa souvenirs com as figuras tradicionais do “vilão” e “da “viloa”, reproduzidas a fls. 21 verso a 31.


2. Estas figuras representam os camponeses da Madeira com o seu traje Típico do “bailinho da Madeira”.


3. Há mais de 60 anos que existe comércio artesanal de bonecos e bonecas, com o traje típico da Madeira [“vilão” e “viloa”], inspirado no folclore regional madeirense, vendendo-se vários “souvenirs” representativos dessas figuras tradicionais. [a anterior redação dispunha: “Estas figuras têm existência há, pelo menos, uma centena de anos, vendendo-se vários souvenirs, bonecos de trapos e de outros materiais].


4. A R. pediu o registo junto do INPI o modelo/desenho nº 3223 em 10/05/2008 com as seguintes configurações:


5. O registo foi concedido por despacho de 23/08/2013.


6. Os bonecos e bonecas referidos em 3, representam os camponeses da Madeira, cujas figuras ficaram conhecidas por “vilão” e “viloa”. [a anterior redação dispunha: Estas figuras representam os camponeses da Madeira, cujas figuras ficaram conhecidas por “vilão” e “viloa”].


7. Estes bonecos e bonecas faziam parte dos brinquedos de infância dos habitantes da Madeira. [a anterior redação dispunha: Estes bonecos faziam parte dos brinquedos de infância das habitantes da Madeira].


8. A partir de 2004/2005, os bonecos e bonecas referidos em 3, que eram feitos à mão, artesanalmente, passaram a ser produzidos em série, industrialmente. [a redação anterior dispunha: Estes bonecos eram feitos à mão, sendo hoje em dia fabricados em série].


9. A Ré comercializa estes bonecos e bonecas, pelo menos, desde 2008.». [a anterior redação dispunha: A R. comercializa estes bonecos, pelo menos, desde 2008].


10. A R. propôs ação crime contra a A. e seu sócio gerente imputando-lhe a prática, em autoria material, do crime de “violação dos direitos exclusivos relativos a desenhos e modelos”, p. e p. pelo art. 322º, 1, a), do CPI e de um crime de “venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos”, p. e p. pelo art. 324º do mesmo diploma.


11. A mercadoria da A. foi apreendida em 03/07/2014 e consistiu num exemplar de cada um dos bonecos por si vendidos.


12. A 14/01/2015 foi massivamente apreendida a mercadoria da A., tendo-lhe sido apreendido milhares de exemplares de bonecos, porta-chaves e chaveiros.


13. Por sentença proferida em 01/02/2017 foi a A. e o respectivo sócio-gerente absolvidos da prática dos crimes em causa e foi julgado improcedente o pedido da indemnização ali formulado pela ora R.


14. Por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 19/12/2017 a sentença proferida em 1ª instância foi totalmente confirmada.


15. Uma funcionária da R. fez desenhos para o fabrico dos bonecos em causa em 2007.

VII – Exigia-se que o TRL tivesse feito uso da prerrogativa ínsita no artigo 662.º, n.º 2, alíneas a) b), c) e d), e 3, alíneas a) a d), do NCPC, de mandar ampliar a matéria de facto e renovar prova testemunhal e, ainda que oficiosamente, levar a cabo perícia para verificar se existia ou não, entre a boneca ou bonecos de 2008 e os de 2013, uma relação de identidade ou diferença, não sendo possível dar o salto ilógico, sem elemento probatório para o efeito, muito pelo contrário (com depoimentos a indicar o contrário), que, a Ré e Recorrente, hoje, ontem e há 100 anos, mesmo sem existir, sempre comercializou a mesma boneca e bonecos da Madeira. Na verdade,


VIII – Ambas as instâncias, em cada momento, olvidaram a necessidade de esclarecer, ao fixar o facto, se estavam a falar das «bonecas e bonecos de antanho, isto é, há mais de 100 anos», se estavam a falar das «bonecas e bonecos de há menos de 60 anos», se estavam a falar das «bonecas e bonecos de 2008», estavam a falar das «bonecas e bonecos de 2013».


IX – São tantas as contradições do acórdão que, face ao teor dos artigos 662.º, n.º 2, alíneas a), b), c) e d), e 3, alíneas a) a d), e 674.º, n.º 1, alínea b), do NCPC 2013, o TRL deveria ter procedido à anulação da sentença da 1.ª instância, ou, alternativamente, ter mandado repetir o julgamento, com ampliação da matéria de facto.


X – O Tribunal da Relação de Lisboa, à semelhança do da 1.ª Instância, não fez prova, em momento algum, de ter existido, em 2008 ou em qualquer outro ano, até 2013, de divulgação ao público das mesmas bonecas e bonecos, bem como “souvenirs” cobertos pelo Registo n.º 3223.


XI – Verifica-se, igualmente, existir, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 674.º, nºs 1, alínea a), e 2, do NCPC 2013, um erro de interpretação e aplicação do regime vigente em matéria de registo de modelo ou desenho (industrial) sujeito ao regime especial da propriedade industrial e sua nulidade – dado que o requisito da novidade é interpretado e aplicado de modo incoerente e sem identificação da existência ou não, entre os bonecos e bonecas vendidos pela ré, em 2008, uma relação de identidade ou de proximidade e confusão, com essoutras por si adotadas em 2013 e que configuraram o novo modelo sujeito a registo da propriedade industrial.


XII – Contraditoriamente, o tribunal reconhece que as bonecas de 2008 não eram iguais às de 2013 e, ainda, que umas e outras, da ré, não eram iguais às de antanho ou há mais de 60 anos, mas, depois, vêm, muito estranhamente, invocar e dizer, pela via da negação da novidade, que elas, afinal, eram em tudo iguais.


XIII – O Tribunal da Relação de Lisboa, sentiu essa forte dificuldade, em proteger, de um lado, a autora e, por outro lado, a ré, o explorador industrial do desenho ou modelo industrial.


XIV – O que o Tribunal deveria ter dito, é que urge, no caso, averiguar se, pela porta do CDADC ou pela do CPI, a Ré poderia almejar sucesso.


XV – Não se percebe a razão pela qual, o Sr. Dr. Juiz-Desembargador (Relator) do TRL, no douto acórdão de 02/05/2019, não fez uso da possibilidade de mandar aperfeiçoar as conclusões, ao ter detectado que a recorrente, nas conclusões XXVII e XLIV, no entender do Tribunal, terá proposto duas redações distintas para o mesmo facto 9.


XVI – A conclusão XLIV não é de sugestão de redação para o facto 9, mas, outrossim, porque tal já havia sido feito, para todos os factos, na conclusão XXVII, apenas um desenvolvimento e aprofundamento da retórica.


XVII – Não restam dúvidas que, no geral, o TRL foi ao encontro, no que aos factos postos «em crise» respeita, às aspirações da Recorrente.


XVIII – A presente lide não pode ser definitivamente decidida sem prova pericial, a realizar as bonecas de antanho, há 60 anos, de 2008 e de 2013, com vista a afirmar a violação do princípio da novidade ou a afirmar a sua não violação e existência, como o defende a Recorrente, relativamente às bonecas de 2013, que motivaram o registo junto INPI, IP.


XIX – A recorrente pediu a alteração dos factos 3, 6, 7, 8 e 9 e ela ocorreu, de tal modo que isso, mesmo a não ter acontecido nos termos precisos peticionados, sempre se deverá contabilizar como procedência parcial do recurso.


XX – O TRL incorreu no vício de incorreto uso e compreensão da faculdade de modificabilidade da decisão de facto, com notória violação da lei processual civil – artigo 674.º, n.º 1, alínea b), e 662.º, do NCPC 2013 – o TRL não usou de demonstração da sua «razão de ciência» no acórdão, quando identifica todos os bonecos e bonecas – independentemente dos materiais e do seu tempo histórico de criação.


XXI – O Acórdão do TRL enferma de nulidade por não especificar, os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão de improcedência do Recurso de Apelação e, consequentemente, o decretamento da nulidade do registo n.º 3223 do Modelo/Desenho industrial idealizado e criado pela Recorrente, visto que, nos autos, inexiste prova da mesmidade ou identidade das bonecas criadas em 2013 com essoutras de 2008, há mais de 60 anos ou desde tempos imemoriais, na Região Autónoma da Madeira.


XXII – Pela leitura do Acórdão do TRL em que, umas vezes, refere que o registo ocorreu em Maio de 2008 e outras em 2013, bem como quando identifica, indiscriminadamente, as bonecas da Ré, com as de há mais de 100 anos ou 60 anos, deve concluir-se ter o mesmo incorrido em nulidade, dado que os seus fundamentos, em vários pontos (data do registo, venda de bonecas pela Ré na Madeira em data anterior a 2008, no tempo de outrora ou antanho, etc.), estarem, entre si e face à prova produzida, em oposição com a decisão;


XXIII – O TRL, sobretudo ao avaliar os depoimentos das testemunhas da Autora, deu relevância à ideia de que os bonecos da Ré eram iguais aos de outrora, embora tal não possa, em termos materiais, técnicos e científicos, ser possível, já que usam materiais somente recentemente descoberto, de tal modo que, com isso, se verificou um grosseiro erro na apreciação das provas (testemunhal e documental) e na fixação dos factos materiais da causa.


XXIV – Acresce que o TRL fez letra morta da entrada em vigor de um novo CPI, não obstante o regime transitório do mesmo indicar que ele se aplica a todos os registos em vigor, relativamente a desenhos, à data da sua entrada em vigor. O que é o caso do modelo 3223 ainda não declarado nulo, por decisão judicial, transitada em julgado.


XXV – O que exige uma nova repetição do julgamento e análise do mesmo à luz do novo regime da propriedade industrial.


XXVI – O TRL refere que «É verdade que o Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC) confere ao autor de desenhos ou modelos industriais direitos de autos sobre a sua obra, posto que os desenhos ou modelos constituam criação artística [art.º 2.º, n.º 1, alínea i)].


XXVII – Entende o TRL que para que seja possível uma obra, neste caso o registo de desenho ou modelo n.º 3223, gozar de proteção autoral, a mesma teria de beneficiar de um registo válido, mas o artigo 213.º do Código do Direito de Autor e Direitos Conexos dispõe que «O direito de autor e os direitos deste derivados adquirem-se independentemente de registo» e tal direito está sujeito a um regime próprio de caducidade, nomeadamente no artigo 31.º, do citado diploma legal, que dispõe que «O direito de autor caduca, na falta de disposição especial, 70 anos após a morte do criador intelectual, mesmo que a obra só tenha sido publicada ou divulgada postumamente».


XXVIII – A proteção conferida pelo registo junto do INPI está sujeita ao seu próprio regime de caducidade, nomeadamente o regime previsto no artigo 37.º, do Código de Propriedade Industrial [Decreto-Lei n.º 36/2003, de 5 de Março, alterado pela Lei n.º 83/2017, de 18 de Agosto].


XXIX – A interpretação errada efetuada pelo TRL não faz qualquer sentido, isto porque se o seu entendimento é de que uma obra não registada não pode beneficiar da proteção conferida pelo Código do Direito de Autor e Direitos Conexos, a aplicação do regime previsto no CPI tornará inúteis as normas respeitantes ao Regime de Caducidade previstas nos artigos 31.º e 38.º do CDADC, em contravenção com o disposto no n.º 3, do artigo 9.º do Código Civil.


XXX – Por outro lado, no Código do Direito de Autor e Direitos Conexos não existem as limitações impostas pelo Código de Propriedade Industrial relativas à divulgação ao público, ou seja uma obra protegida pelo CDADC não “cai” em domínio público após 12 meses de divulgação ao público sem que a obra seja registada.


XXXI – Assim, a interpretação conferida pelo TRL às supracitadas normas é inconstitucional por violação dos artigos 1.º, 2.º, 9.º, alínea h), 13.º, 18.º, n.os 2 e 3, 20.º, n.os 1, 4 e 5, 61.º, n.º 1, 62.º, n.º 1, 111.º, 164.º, 165.º, 202.º, n.os 1 e 2, 204.º, 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa de 1976.


XXXII – O TRL ao tentar remediar a situação, alega que a Ré não poderia prevalecer-se de direitos de autor, na medida em que a proteção autoral está legalmente direcionada [artigo 2.º, n.º 1, alínea i), do CDADC] exclusivamente para os desenhos ou modelos que constituam “criação artística” e conclui que o desenho ou modelo n.º 3223 não integra essa categoria (“criação artística”), não pode a Ré, ora Recorrente concordar com a fundamentação apresentada pelo TRL para concluir pelo não preenchimento do requisito mínimo para considerar o modelo ou desenho n.º 3223 criado pela funcionária da Ré como “obra”, conforme estabelece o artigo 1.º, n.º 1, do Código do Direito de Autor e Direitos Conexos.


XXXIII – Menosprezar ou desdenhar o esforço artístico desenvolvido pela “designer” da Recorrente, apelidando a sua criação de “mera cópia”, é redutor e desconsidera o trabalho desenvolvido pela “designer” da Recorrente.


XXXIV – O único elemento comum entre as bonecas “centenárias” e o modelo ou desenho n.º 3223 é o traje típico da Ilha da Madeira e tal elemento não é impeditivo do registo ou até de se poder considerar que se trata de uma “criação artística”, isto porque a única exceção (por referência à proveniência geográfica) é a que está prevista no artigo 223.º, n.º 1, alínea c), do CPI, aplicável apenas às marcas e não aos modelos ou desenhos.


XXV – No que diz respeito à originalidade ou criatividade da obra, vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo n.º 8864/2008-5, de 16/12/2008: «No tocante à originalidade ou criatividade da obra protegida pelo direito de autor, cumpre-nos dizer que a originalidade enquanto característica da obra, não se confunde com a noção legal que resulta dos arts 2º e 3º do CDADC, os quais, como aludido, apenas distinguem entre as obras que não têm por base uma obra pré-existente (obras originais) e as que derivam de uma outra, designadamente traduções, sumários, dramatizações, etc. (obras equiparadas a originais). O mínimo exigível é o que corresponde ao necessário para que possa falar-se em criação intelectual. Como escreve o Prof. Oliveira Ascensão, “… se só há criação quando se sai do que está ao alcance de toda a gente para chegar a algo de novo, a obra há-de ter sempre aquele mérito que é inerente à criação, embora não tenha mais nenhum: o mérito de trazer algo que não é meramente banal.”. (cfr. ob. cit. p. 93).....Refere ainda o autor a este respeito: “ Se não se exige que se reconheça uma personalidade, exige-se que se reconheça positivamente que há um mínimo de criação. Um novo elemento, que não constava do quadro de referências da comunidade, não se apresentava como óbvio, nem se reduz a uma aplicação unívoca de critérios pré - estabelecidos, foi introduzido por um ato criativo. Este é o fundamento da atribuição do Direito de Autor.


Pode, pois, considerar-se com aquele autor que o carácter criativo da “obra”, a que alude o art. 1º do CDADC, depende de não constituir cópia de outra obra (requisito mínimo), não constituir o resultado da aplicação unívoca de critérios pré – estabelecidos, nomeadamente de natureza técnica, em que estejam ausentes verdadeiras escolhas ou opções do autor e traduzir um resultado que não seja óbvio, banal, e que, portanto, permita distingui-lo de outros, reconhecer-lhe uma individualidade própria, enquanto obra, independentemente do suporte material que a encerra.» (sublinhado nosso).


XXXVI – Foi precisamente isso que a “designer” da Recorrente fez. Ao estudar o percurso histórico das bonecas vestidas com o traje típico madeirenses procurou criar um novo modelo de boneca mais moderno, nomeadamente bonecas de peluche, ao invés das antigas bonecas de “trapos”, empregar novos materiais e novas linhas, contornos e acabamentos.


XXXVII – Não só estamos perante uma “criação artística” como a mesma gozará, indubitavelmente, da proteção autoral conferida pelo Código do Direito de Autor e Direitos Conexos.


7. Nas contra-alegações, pugnou-se pela confirmação do acórdão recorrido.

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8. Como se sabe, o âmbito objetivo do recurso é definido pelas conclusões apresentadas (arts. 608.º, n.º2, 635.º, nº4 e 639º, do CPC), pelo que só abrange as questões aí contidas.


Por sua vez – como vem sendo repetidamente afirmado – os recursos são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação do tribunal que proferiu a decisão impugnada, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal a quo.


Sendo assim, as únicas questões de que cumpre conhecer consistem em saber se:


a) – O acórdão recorrido enferma de nulidade;


b) - Há erro na fixação os factos materiais da causa e se deve ser ampliada a matéria de facto e renovada a prova;


c) - Há fundamento para declarar a nulidade do registo do desenho ou modelo nacional nº 3223de que a ré é titular;


d) – A interpretação conferida pelo acórdão recorrido a determinadas normas é inconstitucional.

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II – Fundamentação de facto


9. As instâncias deram como provados os seguintes factos:


“1. A A. é uma pessoa colectiva ligada ao turismo, que comercializa souvenirs com as figuras tradicionais do “vilão” e “da “viloa”, reproduzidas a fls. 21 verso a 31.


2. Estas figuras representam os camponeses da Madeira com o seu traje Típico do “bailinho da Madeira”.


3. Há mais de 60 anos que existe comércio artesanal de bonecos e bonecas, com o traje típico da Madeira [“vilão” e “viloa”], inspirado no folclore regional madeirense, vendendo-se vários “souvenirs” representativos dessas figuras tradicionais.[1]

4. A R. pediu o registo junto do INPI o modelo/desenho n° 3223 em 10/05/2008 com as seguintes configurações:


 

5. O registo foi concedido por despacho de 23/08/2013.


6. Os bonecos e bonecas referidos em 3, representam os camponeses da Madeira, cujas figuras ficaram conhecidas por “vilão” e “viloa”.[2]


7. Estes bonecos faziam parte dos brinquedos de infância das habitantes da Madeira.[3]


8. A partir de 2004/2005, os bonecos e bonecas referidos em 3, que eram feitos à mão, artesanalmente, passaram a ser produzidos em série, industrialmente.[4]


9. A R. comercializa estes bonecos, pelo menos, desde 2008.[5]


10. A R. propôs ação crime contra a A. e seu sócio gerente imputando-lhe a prática, em autoria material, do crime de “violação dos direitos exclusivos relativos a desenhos e modelos”, p. e p. pelo art. 322°, 1, a), do CPI e de um crime de “venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos”, p. e p. pelo art. 324° do mesmo diploma.


11. A mercadoria da A. foi apreendida em 03/07/2014 e consistiu num exemplar de cada um dos bonecos por si vendidos.


12. A 14/01/2015 foi massivamente apreendida a mercadoria da A., tendo-lhe sido apreendido milhares de exemplares de bonecos, porta-chaves e chaveiros.


13. Por sentença proferida em 01/02/2017 foi a A. e o respectivo sócio-gerente absolvidos da prática dos crimes em causa e foi julgado improcedente o pedido da indemnização ali formulado pela ora R.


14. Por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 19/12/2017 a sentença proferida em 1ª instância foi totalmente confirmada.


15. Uma funcionária da R. fez desenhos para o fabrico dos bonecos e bonecas em causa em 2007.[6]


***


10. Por sua vez, não se provou que:


- O modelo dos bonecos que a R. registou sob o n° 3223 fossem diferentes dos desenhados pela sua funcionária em 2007, ou sequer fossem diferentes dos bonecos típicos representativos do rancho folclórico da Madeira e existentes há, pelo menos, uma centena de anos.

 


***

III – Fundamentação de direito

11. Da nulidade por falta de fundamentação

Na revista, a recorrente veio alegar que o acórdão recorrido enferma de nulidade por não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

Está, assim, a imputar ao acórdão impugnado a nulidade prevista no art.615º, n° 1, al. b), do CPC.

Pois bem.

A causa de nulidade ali tipificada, aplicável aos acórdãos da Relação, por via das normas remissivas dos artigos 663.º, n.º 2, e 666.º do CPC, ocorre quando não se especifiquem os fundamentos de facto e de direito em que se funda a decisão.

Como é entendimento corrente, esta nulidade apenas se verifica quando se omite ou se mostra de todo ininteligível o quadro factual em que era suposto assentar a decisão, ou quando, não obstante a indicação dos factos, não se enuncia o quadro legal aplicável, mais ou menos desenvolvido, de forma a deixar transparecer os seus fundamentos.

Nesta conformidade, eventuais deficiências da motivação da decisão de facto ou o não uso ou o uso deficiente pela Relação dos poderes que lhe são atribuídos pela lei processual, em sede de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, não configuram a nulidade invocada.

Ora, in casu, o acórdão recorrido contém a discriminação dos factos considerados provados e não provados, com análise crítica da prova no âmbito do julgamento da impugnação da matéria de facto, bem como a correspondente subsunção jurídica.

Não ocorre, por conseguinte, a invocada nulidade.


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12. Da nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão

A recorrente veio também alegar que o acórdão proferido pela Relação padece de nulidade, uma vez que os seus fundamentos, em vários pontos, nomeadamente quanto à data do registo, venda de bonecas pela ré na Madeira em data anterior a 2008, no tempo de outrora ou antanho, estão, entre si e face à prova produzida, em oposição com a decisão.

Sem qualquer razão.

Efetivamente, constituindo a sentença um silogismo lógico-jurídico (cf. art. 607º, do CPC), de modo que a decisão seja a conclusão lógica dos factos apurados, aquela nulidade só se verifica quando das premissas de facto e de direito se extrair uma consequência oposta à que logicamente se deveria ter extraído.

Note-se, por outro lado, que eventual erro na apreciação da prova não permite integrar a nulidade prevista na alínea c), do nº 1, do artigo 615º, do CPC, que – repete-se - sanciona o vício de contradição formal entre os fundamentos de facto ou de direito e o segmento decisório da sentença.

Ora, no caso em apreço, não se depreende qualquer relação de exclusão formal entre a fundamentação de facto e de direito e o dispositivo da decisão recorrida, pelo que – manifestamente – não se verifica a nulidade em questão.


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13. Da fixação dos factos materiais da causa

A recorrente invoca como fundamento da revista que o acórdão recorrido incorreu em erro na apreciação das provas e que a decisão padece de ilogicidade, patologias que, em seu entender, devem ser sindicadas pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Ora bem.

O fundamento de revista previsto no art. 674.º, n.º 3, do CPC permite a intervenção (excecional) do Supremo, no plano dos factos, quando tenha havido “ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.”.


Por conseguinte, quando estejam em causa erros de apreciação da prova resultantes da violação de direito probatório material, permite-se que o Supremo possa cassar uma decisão sustentada em determinado facto cuja prova tenha sido feita através de um meio que não respeite a exigência de prova legal que ao caso respeite.


No caso presente, porém, na apreciação ou na fixação dos factos materiais da causa não ocorre qualquer violação por parte da Relação para efeitos do preenchimento do fundamento da revista previsto no art. 674.º, n.º 3, do CPC.


Na verdade, o que resulta, com toda a clareza, do acórdão recorrido é que a formação da convicção do Tribunal resultou da ponderação de meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação, maxime de prova testemunhal, mostrando-se, assim, excluída a sindicabilidade por este Supremo do juízo probatório efetuado pelo Tribunal da Relação.

De igual modo, relativamente à alegação de que a decisão padece de ilogicidade, por não ter sido produzida prova que permita concluir que as figuras em causa nesta ação são comercializadas há largos anos na Madeira não se reconhece razão à recorrente.

Com efeito:

No que respeita às presunções judiciais, importa esclarecer que não são, em rigor, verdadeiros meios de prova, mas antes «meios lógicos ou mentais ou operações firmadas em regras de experiência»[7], reconduzindo-se a ilações que o julgador extrai a partir de factos conhecidos (factos-base) para dar como provados factos desconhecidos (factos-presumidos) – cf. art. 349.º do CC.

Tais presunções judiciais são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal, conforme se estabelece no artigo 351.º do mesmo Código.

Face aos poderes atribuídos à Relação, em sede de modificabilidade da decisão de facto (cf. art. 662º, do CPC), é hoje incontroverso que a 2ª instância “deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não com as regras da experiência.”[8].

Contudo, em sede de revista, a intervenção do Supremo é muito circunscrita, admitindo-se que possa sindicar o seu uso pela Relação, mas apenas quando esse uso ofender qualquer norma legal ou padeça de evidente ilogicidade.

Ou seja:

O STJ poderá sindicar o uso de presunções judiciais quando a lei o não admita, por violação, por ex. do artigo 351.º do CC, ou quando tal uso se verificar à margem do disposto no art. 349º, do mesmo Código.

Quanto ao erro acerca do juízo presuntivo formado com apelo às regras da experiência, o mesmo só será sindicável pelo tribunal de revista em casos de manifesta ilogicidade, tendo, porém, em atenção que, mesmo neste caso, está vedado ao tribunal de revista envolver-se na indagação de eventual erro sobre a ponderação das provas sujeitas à livre apreciação do julgador.

Ora, no caso em apreciação, como resulta da motivação da decisão de facto, a Relação, para formar a sua convicção, apoiou-se essencial e decisivamente nos depoimentos testemunhais produzidos, que analisou detalhada e criticamente, e cuja idoneidade, objetividade e isenção enfatizou, não tendo dúvidas em dar como provada a matéria de facto, nos termos consignados no acórdão recorrido.

Nesta conformidade, atendendo às razões que serviram para fundar a convicção dos Julgadores é patente não se detetar qualquer ilogicidade no raciocínio seguido pelo Coletivo de Juízes Desembargadores e que pudesse ser merecedora de censura por este Tribunal de revista.

Não se vislumbra, portanto, qualquer fundamento para interferir no juízo de facto formulado pela Relação em sede de valoração da prova livre.

Nestas circunstâncias, surge como absolutamente infundada a pretendida ampliação da matéria de facto, ao abrigo do disposto no art. 682º, nº3, do CPC, já que os factos dados como provados constituem, indubitavelmente, a base suficiente para a decisão de direito.

O mesmo se diga quanto à pretendida renovação da produção de prova testemunhal e/ou a produção de novos meios de prova, uma vez que a Relação apenas deve ordenar a renovação de prova em situações em que surjam «dúvidas sérias sobre a credibilidade de algum depoente ou sobre o sentido do depoimento» que não sejam ultrapassadas por outras vias. Por seu turno, apenas deve ordenar a produção de novos meios de prova, quando haja fundadas dúvidas sobre a prova realizada em 1ª instância (art. 662º, nº2, als. a) e b), do CPC), o que, manifestamente não se verifica no caso em apreço. Diga-se, aliás, que a ora recorrente só, agora, nas alegações da revista, veio invocar a necessidade de realização de uma perícia, meio de prova que nunca, anteriormente, havia requerido, podendo tê-lo feito.

Por fim, diremos ainda que carece de fundamento legal, a alegação de que a Relação devia ter mandado aperfeiçoar as conclusões das alegações, apresentadas no recurso de apelação, dado que não está previsto, quanto ao recurso da decisão da matéria de facto, a prolação de despacho de aperfeiçoamento (cf. art. 652º, nº1, al. a), do CPC).

Improcedem, pois, em toda a linha, as suas alegações.


***


14. Da nulidade do registo


A autora veio instaurar a presente ação declarativa, pedindo a declaração de nulidade do registo do modelo ou desenho nº 3223, respeitante a figuras representativas do “vilão” e “viola” da Madeira, o qual foi concedido à ré por despacho de 23.8.2013, do diretor do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI).

O Tribunal da Relação de Lisboa, em sintonia com a 1ª instância, julgou a ação procedente e declarou a nulidade do registo.

Contra o assim decidido se insurge a ré, pugnando na presente revista, admitida pela Formação a título excecional, pela revogação do acórdão recorrido.

Apreciando.

No ordenamento jurídico português, a tutela da estética industrial é conferida quer pelo Código da Propriedade Industrial, quer pelo Código do Direito de Autor e Direitos Conexos, desde que verificados os requisitos de proteção de cada sistema (cf. art. 200º, do CPI e art. 2º, do CDADC).

Na presente ação, atendendo ao objeto do processo, delimitado pela causa de pedir e pelo pedido, está exclusivamente em causa a proteção específica dos desenhos e modelos decorrente do registo no INPI pelo Direito Industrial (cf. art. 203º, do CPI), pelo que será apenas neste âmbito que se conhecerá das questões suscitadas no recurso, surgindo como injustificada a invocação do regime jurídico da proteção jus autoral.

Importa também esclarecer que os recursos são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação do tribunal que proferiu a decisão impugnada, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal a quo.

Nessa medida, está absolutamente vedado à ré/recorrente formular, nesta instância de recurso, o pedido de que se “reconheça o direito de propriedade industrial da ré sobre o desenho registado sob o nº 3223” e que “decrete a destruição imediata de todos os bonecos apreendidos”, parecendo, além do mais, esquecer que a reconvenção que deduziu na contestação não foi admitida (cf. decisão de fls. 124-125, já transitada em julgado).

Dito isto.

No caso sub judice, o registo cuja validade se questiona foi concedido em 23.8.2013, a ação deu entrada em juízo em 2.5.2017, a sentença da 1ª instância foi proferida em 11.4.2018 e o acórdão recorrido em 2.5.19. Mostra-se, assim, aplicável o Código da Propriedade Industrial aprovado pelo DL nº 36/2003, de 5 de março (doravante, CPI), não obstante a entrada em vigor (em 1.1.2019) do DL nº 110/2018, de 10 de dezembro que aprovou o atual Código da Propriedade Industrial (cf. art. 13º, do respectivo diploma preambular).

Prosseguindo.

O nº2, do art. 4º, do CPI estabelece que a concessão de direitos de propriedade industrial implica mera presunção jurídica do cumprimento dos requisitos legais da sua concessão. Trata-se, no entanto, de uma presunção juris tantum que, enquanto tal, pode ser ilidida junto do órgão jurisdicional competente.

Na verdade, no sistema português (arts. 188º a 197º, do CPI), “o exame dos requisitos de fundo (nomeadamente a novidade e a singularidade, exigidas pelos arts. 176º a 180º) só ocorrerá quando seja apresentada reclamação com fundamento na falta de preenchimento das condições previstas nestas disposições. Não havendo oposição, o registo é concedido independentemente do preenchimento desses requisitos (…).”[9].

Uma das vertentes do contencioso do Direito Industrial respeita precisamente às ações declarativas destinadas a apreciar a validade de direitos de propriedade industrial, já que a declaração de invalidade destes direitos só pode resultar de decisão judicial, como se estabelece no art. 35º, nº1, do CPI.

Vejamos, pois, se deve ser declarada a nulidade do registo em causa nesta ação.

A tutela dos Desenhos ou Modelos (doravante DM) incide sobre a aparência dos produtos, resultante das suas características visíveis, nomeadamente das linhas, contornos, cores, forma, textura ou materiais do próprio produto ou da sua ornamentação (art.º. 173º, do CPI) e está reservada aos que preencham os requisitos definidos nos arts. 173º e ss. do CPI, concretamente a novidade e o caráter singular (cf. arts. 176º e 177º, do CPI).

A novidade só existe quando o desenho ou o modelo em questão não tenha sido divulgado ao público, dentro ou fora do país, em momento anterior ao do pedido de registo, nem tenha havido divulgação de DM idênticos (art.º. 177.º, do CPI).

O carácter singular do produto depende de a impressão global causada no utilizador informado diferir da impressão global causada a esse utilizador por qualquer desenho ou modelo divulgado ao público antes da data do pedido de registo ou da prioridade reivindicada (art.º 178.º, nº1, do CPI).

A figura do “utilizador informado” que serve de referencial para a aferição da singularidade não vem definida no CPI. Porém, na linha da jurisprudência do Tribunal Geral[10] e do Tribunal de Justiça[11] pode afirmar-se que se está perante um conceito intermédio entre o de consumidor médio, do direito das marcas, e o perito da especialidade. Por outras palavras, um utilizador conhecedor, atento e experimentado no ramo de atividade em causa.[12]

Por sua vez, como o Tribunal Geral esclareceu no acórdão Danuta BudZiewka,[13] o carácter singular de um DM resulta de uma impressão global de diferença, ou de ausência de «déjà-vu», do ponto de vista do utilizador informado (…), sem ter em conta diferenças que não sejam suficientemente marcadas para afetar a dita impressão global.

Esta comparação deve ser sintética, e não analítica, isto é, deve fazer-se uma apreciação global. Quer dizer: a perceção que o desenho ou modelo causa no utilizador informado em relação a outro desenho ou modelo não está dependente da “contagem” das características semelhantes ou diferentes entre eles, nem da existência de uma eventual percentagem de similitude ou dissemelhança (cf. António Campinos/Luís Couto Gonçalves – CPI Anotado, 2015, pág. 332).

Neste contexto, “um desenho ou modelo é novo quando nunca antes existiu outro igual e é singular quando se distingue do conjunto de DM que existiam quando ele foi divulgado. (…) Se ele se distingue apenas em “pormenores sem importância” (…), então está carecido não só de novidade, mas também de caráter singular. Em contrapartida, se a impressão global que suscita no utilizador informado diferir da impressão global suscitada nesse utilizador por qualquer desenho ou modelo divulgado ao público, é porque, além do caráter singular, ele também dispõe de novidade, pois, de outro modo a impressão global seria a mesma…”.[14]

Na apreciação do caráter singular há também que ter em consideração o grau de liberdade que o criador pôs na realização do desenho ou modelo. Neste particular, há que levar em conta a tipologia do produto em que o desenho ou modelo está aplicado/incorporado e o sector de atividade a que pertence.

No que respeita ao conceito de «divulgação», relevante para efeitos da aferição da novidade e/ou do carácter singular do desenho ou modelo industrial (arts. 177º e 178º, do CPI), estabelece-se no art. 179º, do CPI que se considera que “um desenho ou modelo foi divulgado ao público se tiver sido publicado na sequência do registo, ou em qualquer outra circunstância, apresentado numa exposição, utilizado no comércio, ou tornado conhecido de qualquer modo, exceto se estes factos não puderem razoavelmente ter chegado ao conhecimento dos círculos especializados do sector em questão que operam na Comunidade Europeia, no decurso da sua atividade corrente, antes da data do pedido de registo ou da prioridade reivindicada”.

Há, porém, situações em que as divulgações não são oponíveis ao requerente do registo.

Assim, no que agora releva, dispõe o art. 180° do CPI: 

1- Não se considera divulgação, para efeito dos arts. 177° e 178°, sempre que, “cumulativamente, o desenho ou modelo que se pretende registar tiver sido divulgado ao público:

a) - Pelo criador, pelo seu sucessor ou por um terceiro, na sequência de informações fornecidas, ou de medidas tomadas, pelo criador ou pelo seu sucessor;

b) - Durante o período de 12 meses que antecede a data da apresentação do pedido de registo ou, caso seja reivindicada uma prioridade, a data de prioridade.”

No campo das «divulgações não oponíveis», merece destaque a prevista na referida alínea b). Este prazo de 12 meses em que o desenho ou modelo pode ser divulgado e comercializado sem prejuízo da novidade permite aos agentes económicos, sem encargos ou formalidades, testar os seus produtos no mercado, podendo, então, em função disso, decidir se lhes interessa proceder ao registo junto do INPI.

Atendendo aos elementos que constam dos autos, cremos ser indiscutível que qualquer utilizador informado, no sentido normativo atrás referido, numa apreciação de conjunto, não distinguirá os modelos em confronto, dada a evidente similitude das suas características essenciais, como sejam as formas, contornos, cores, trajes, ornamentação e materiais dos produtos comercializados pela ré, cujo desenho/modelo foi objeto de registo, e dos produtos comercializados por outros agentes económicos da Ilha da Madeira há mais de 60 anos.

Por outro lado, como se referiu no acórdão recorrido, “as diferenças assinaladas pela ré, como as faces mais rosadas dos bonecos e das bonecas produzidas e comercializadas por si ou o maior detalhe dos dedos das mãos, não geram uma impressão global diferente no consumidor informado de tais produtos.“.

Acresce que:

À data do pedido de registo (10.5.2008) as figuras em causa eram já comercializadas, e  há mais de 60 anos,  (cf. pontos 3, 4, 6, 7 e 8). Ficou, inclusive, provado que a própria ré, ora recorrente, comercializa, pelo menos, desde 2008, os tais bonecos e bonecas (cf. ponto 9 dos factos provados).

Quer isto significar que os modelos e desenhos foram anteriormente divulgados ao público na Região Autónoma da Madeira e durante um larguíssimo período temporal, chegando, por esta via, ao conhecimento de amplos círculos especializados do sector.

Em face do exposto, impõe-se concluir que, à data do registo, os modelos e desenhos não gozavam nem de novidade, nem de singularidade, o que determina a sua nulidade, por a sua concessão ter infringido o disposto nos arts. 197, nº4, al. a) e 176º a 178º, todos do CPI.

Por fim, dir-se-á que não se mostra que a interpretação das normas convocadas para a decisão do recurso configure violação de quaisquer normas e/ou princípios constitucionais, mormente os assinalados pela recorrente.

IV – Decisão

15. Nestes termos, acorda-se em negar a revista.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 30.4.2020

Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado

Oliveira Abreu

Ilídio Sacarrão Martins

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[1] Redação introduzida pela Relação.
[2] Redação introduzida pela Relação.
[3] Redação introduzida pela Relação.
[4] Redação introduzida pela Relação.
[5] Redação introduzida pela Relação.
[6] Redação introduzida pela Relação.
[7] Cf. Vaz Serra, RLJ, 108º, 352; v. ainda Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Tomo IV, 2005, págs. 477-485 e Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 1985, págs. 500 e ss.
[8]Cf. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, pág. 286.
[9] Cf. Pedro Sousa e Silva, Direito Industrial, Coimbra editora, 2011, pág. 105.
[10] Cf. Acórdãos do TG de 18/3/2010 processo T-9/07 (Promer Mon Graphic SA v. PepsiCo) e de 13/11/2012, processos T-83/11 e T-84/11 (Antrax It Srl v The Heating Company), disponíveis em www.oami.europa.eu.
[11] Cf. Acórdão do TJUE de 20/10/2011, processo C-281/10 (PepsiCo, Inc v Promer Mon Graphic SA), disponível em www.oami.europa.eu.
[12] Cf. Couto Gonçalves, Manual de Direito Industrial, Almedina, 2012, pág. 129.
[13] Ac. TG de 7.11.2013, processo T-666/11, &29, disponível em www.oami.europa.eu.
[14] Cf. Pedro Sousa e Silva, Direito Industrial, Coimbra Editora, 2011, pág. 101.


Feito este breve enquadramento, regressemos ao caso sub judice.