Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
23224/19.2T8PRT.P1.S2
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO DE LIMA GONÇALVES
Descritores: AÇÃO DE PREFERÊNCIA
DIREITO DE PREFERÊNCIA
PREÇO
BEM IMÓVEL
FRAÇÃO AUTÓNOMA
DEVEDOR
VALOR DE MERCADO
ABUSO DO DIREITO
Data do Acordão: 06/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA, REPRISTINANDO-SE A DECISÃO DA 1ª INSTÂNCIA
Sumário :

I. A expressão “preço devido” corresponde ao valor em dinheiro a pagar pelo preferente como contrapartida da aquisição do bem que constitui objeto da preferência.

II. O preço real (o que foi verdadeiramente pago pelo adquirente) não se confunde com o valor de mercado da fração autónoma.

Decisão Texto Integral:

Acórdão



Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

1. AA e mulher BB, intentaram a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra:

Encantos e Virtudes, Lda.;

CC;

DD;

EE;

FF,

pedindo que:

a) Seja reconhecido o direito de preferência relativo à fração autónoma designada pela letra “F”, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal conforme apresentação quatro, de catorze de julho de mil novecentos e oitenta e oito, descrito na Conservatória do Registo Predial... sob o número ...oitenta e cinco, de ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...11;

b) Se declare transmitido para os AA. o direito de propriedade sobre o identificado imóvel, substituindo-se estes à 1ª R.;

c) Se declare a anulação de todos e quaisquer atos de registo que sobre o mesmo imóvel tenham incidido, ou que venham a incidir na pendência da demanda.

Para tanto, alegaram, em síntese que:

- a 27/07/2018, a 2.ª Ré, 3.º Réu, 4.º Réu e 5.ª Ré venderam à 1.ª Ré, entre outros imóveis, a fração autónoma designada pela letra “F”, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal conforme apresentação quatro, de catorze de julho de mil novecentos e oitenta e oito, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...oitenta e cinco, de ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...11, de que os Autores são arrendatários;

- os Réus nunca informaram os Autores da sua intenção de vender, nem da escritura de compra e venda;

- o imóvel foi alienado sem conhecimento dos Autores, arrendatários, que poderiam ter exercido a preferência, se para tanto fossem notificados.

2. Citados, os Réus vieram contestar, alegando, em suma, a simulação do negócio de compra e venda e a caducidade do direito dos Autores, tendo ainda impugnado os fundamentos da causa.

3. Proferida sentença, o Tribunal de 1.ª instância julgou totalmente procedente a ação, sendo o dispositivo do seguinte teor:

“… a) Reconhece-se aos AA. o direito de preferência relativo à fração autónoma designada pela letra “F”, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal conforme apresentação quatro, de catorze de julho de mil novecentos e oitenta e oito, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...oitenta e cinco, de ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...11;

b) Declara-se transmitido para os AA. o direito de propriedade sobre o identificado imóvel, substituindo-se estes à 1ª R. Encantos e Virtudes, Lda.;

c) Declara-se a anulação de todos e quaisquer atos de registo que sobre o mesmo imóvel tenham incidido, ou que venham a incidir na pendência da presente ação”.

4. Inconformados com esta decisão, os Réus interpuseram recurso de apelação.

5. O Tribunal da Relação do Porto veio a julgar parcialmente procedente o recurso interposto, sendo do seguinte teor o dispositivo:

“PROVIDO PARCIALMENTE O RECURSO. REVOGA-SE EM PARTE A SENTENÇA E CONSEQUENTEMENTE:

A). Reconhece-se aos AA o direito de preferir, pelo montante de 218.300,00 euros na aquisição da fração autónoma designada pela letra “f”, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal conforme apresentação 4, de 14-07-1988, descrito na CRP, ... sob o número ...85, de ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...11;

B). Os AA depositarão a diferença entre o valor já depositado e o montante fixado para a preferência, no prazo de seis meses contado a partir da data do trânsito deste acórdão, sob pena de caducidade do direito, ora reconhecido.

C). Efetuado o depósito da diferença do preço nos termos ora fixados declara-se transmitido para os AA. o direito de propriedade sobre o identificado imóvel, substituindo-se estes à 1ª R. Encantos e Virtudes, Lda.

No mais, (alínea c) da parte decisória) vai confirmada a sentença”.

6. Inconformados, os Autores vieram interpor recurso de revista e os Réus interpuseram recurso subordinado.

7. O STJ proferiu Acórdão, sendo o dispositivo do seguinte teor: “concede-se, parcialmente, a revista (no recurso subordinado), revogando-se o acórdão recorrido, determinando-se que o Tribunal da Relação do Porto proceda à reapreciação da matéria de facto nos termos referidos;

- Fica prejudicado o conhecimento do recurso principal interposto pelos Autores –“.

8. O Tribunal da Relação do Porto veio a julgar parcialmente procedente o recurso interposto, sendo do seguinte teor o dispositivo:

“PROVIDO PARCIALMENTE O RECURSO. REVOGA-SE EM PARTE A SENTENÇA E CONSEQUENTEMENTE:

A). Reconhece-se aos AA o direito de preferir, pelo montante de 218.300,00 euros na aquisição da fração autónoma designada pela letra “f”, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal conforme apresentação 4, de 14-07-1988, descrito na CRP, ... sob o número ...85, de ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...11;

B). Os AA depositarão a diferença entre o valor já depositado e o montante fixado para a preferência, no prazo de seis meses contado a partir da data do trânsito deste acórdão, sob pena de caducidade do direito, ora reconhecido.

C). Efetuado o depósito da diferença do preço nos termos ora fixados declara-se transmitido para os AA. o direito de propriedade sobre o identificado imóvel, substituindo-se estes à 1ª R. Encantos e Virtudes, Lda.

No mais, (alínea c) da parte decisória) vai confirmada a sentença”.

9. Inconformados com esta decisão, os Autores vieram interpor recurso de revista, formulando na sua alegação, as seguintes (transcritas) conclusões:

1.ª Os AA. recorrem da decisão da segunda instância que reconheceu aos AA. o direito de preferir, pelo montante de €218.300,00 euros na aquisição da fração autónoma designada pela letra “F”, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal conforme Ap. 4, de 14/7/1988, descrito na CRP, ... sob o número ...85, de ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...11.

2.ª O presente recurso incide sobre a interpretação a atribuir à letra da lei no que tanje ao “preço devido”.

3.ª Resulta dos autos que a primeira R., em virtude da lavrada escritura, passou a ser proprietária do mesmo imóvel, isto é, em função do pagamento do preço acordado e indicado na escritura.

4.ª Não se vislumbra o enquadramento legal de alterar a redação do ponto 14 por se introduzir que “declararam”, já a escritura produz prova plena, o que constitui violação do disposto no art. 879º do C.C.

5.ª No que se refere ao aditamento à matéria de facto provada quanto ao valor da fração, o mesmo constitui um aditamento absolutamente irrelevante. Já que acordo com a jurisprudência citada, só o valor real do preço da aquisição é o preço pago e recebido.

6.ª De resto, o preferente só poderá exercer o seu direito após conhecer os elementos essenciais do negócio, que são todos os fatores capazes de influir decisivamente na formação da vontade de preferir- incluindo o preço da venda.

7.ª O que se afigura contraditório com o facto de os AA. não terem o conhecimento do pretenso “valor real” antes de propor a ação.

8.ª Quando foi proposta a ação, os AA. depositaram o valor constante da escritura e nenhum outro há a considerar.

9.ª Não há enriquecimento ilegítimo, dado que os AA. nenhum ilícito praticaram. De resto, também a compradora não pagou o preço constante da dita avaliação e não é posta em causa o locupletamento por parte deste.

10.ª Este entendimento de que a preferência far-se-á pelo valor de mercado afigurará uma abusiva intromissão na liberdade contratual das partes de fixaram livremente os preços nos contratos celebrado, ao arrepio do determinado no art. 405º do C.C.

11.ª Nem este entendimento tem acolhimento jurisprudencial, já que citamos vários arestos que sustentam que o preço devido é o preço pago. E, se outro não existir, o preço devido é o preço constante da escritura de compra e venda.

12.ªA preferência, traduzida no direito de haver para si a coisa alienada, assegura ao respetivo titular uma prioridade de contratar em igualdade de condições, no que esta igualdade de condições representa para o adquirente (Agostinho Cardoso Guedes, O Exercício do Direito de Preferência, Publicações Universidade Católica, Colecção Teses, Porto 2006, pág. 655). Na realidade, “o direito de preferência numa versão tradicional autêntica, consiste na faculdade atribuída a alguém de em condições de igualdade (tanto por tanto) chamar a si com preterição de outrem a aquisição de determinada coisa ou direito que o titular pretenda alienar”, cfr. Antunes Varela, in RLJ 119, pág. 381.

13.ª Nos termos do art. 874º do C.C., a expressão “preço devido” designa o valor em dinheiro a pagar pelo preferente como contrapartida da aquisição do bem sujeito à preferência, valor esse correspondente ao benefício económico ajustado entre vendedor e o adquirente como contrapartida da alienação do bem.

14.ª Ora, o benefício económico ajustado entre vendedor e adquirente é o já indicado na escritura de compra e venda.

15.ª É este o entendimento que se extrai da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, dominante na matéria, de que são exemplo os seguintes: -Ac. do STJ de 22-02-2005, (Revista n.º 4669/04;-Ac. do STJ de 01-04-2014 (Revista n.º 854/07.0TBLMG.P1.S1, in www.dgsi.pt); Ac. do STJ de 27-10-2015 (Revista n.º 125/04.3TBSAT.C1.S1, in www.dgsi.pt); Ac. da Relação de Coimbra de 04-11-2008 (Apelação n.º 557/2001.C1, in www.dgsi.pt); Ac. da Relação de Guimarães de 24-05-2011 (Apelação n.º 1/09.3TCGMR-A.G1, in www.dgsi.pt); Ac. da Relação de Guimarães, de 19-01-2012 (Apelação n.º 3782/09.0TBGMR.G1, in www.dgsi.pt): é o preço real, efectivamente pago, independentemente de se tratar ou não de um caso de simulação do preço.

16.ª Pelo que o preço devido, é o constante da escritura, salvo se os RR. alegarem e provarem que, por engano ou intencionalmente, se declarou na escritura um preço não correspondente à realidade, caso em que dever-se-á depositar o preço efetivamente pago (não o da avaliação).

17.ª O direito de preferência assegura ao titular prioridade de contratar em igualdade de condições.

18.ª O preço devido é o valor em dinheiro a pagar ao preferente, corresponde ao benefício económico ajustado entre vendedor e adquirente, como contrapartida da alienação do bem.

19.ª Na esteira do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo: 1022/12.4TBCNT.C1.S1, de 08-09-2016, in www.dgsi.pt, donde se extrai no Sumário que: “A expressão preço devido corresponde ao valor em dinheiro a pagar pelo preferente como contrapartida da aquisição do bem que constitui objeto da preferência (cfr. art. 874.º do CC). Trata-se da totalidade (e não somente aquela parcela que se acha paga ou vencida) do preço real já pago ou declarado para a transação; apurando-se que o preço real é superior ao declarado e apesar de a simulação não ser oponível a terceiros, deve o preferente liquidá-lo sob pena de incorrer em injusto locupletamento.”

20.ª Ou seja, todos os RR., vendedores e compradora acordaram o valor do imóvel negociado, montante esse que os AA. depositaram.

21.ª Sem prejuízo, sempre se dirá que caso não se prove qual o preço real, mesmo que não tenha sido pago ou recebido, o preço devido será o constante da escriturara – v.g. fls. 1120 Abílio Neto, Ediforum – 12ª Edição de 1999.

Referem que: “Ao não decidir como propugnado, o Tribunal recorrido violou o disposto no art. 1410º do Código Civil, bem como a correta interpretação jurídica a atribuir àquele normativo, no sentido em que preço devido é o declarado e acordado entre as partes na escritura, dado que nenhum outro foi pago pela compradora.

Do mesmo modo, e salvo melhor entendimento, o Tribunal recorrido violou o disposto no art. 874º do Código Civil, a expressão preço designa o valor em dinheiro a pagar pelo preferente como contrapartida da aquisição do bem sujeito à preferência, valor esse correspondente ao benefício económico ajustado entre vendedor e o adquirente como contrapartida da alienação do bem.”

E concluem pela revogação da “decisão do Tribunal da Relação do Porto e repristinada a decisão da primeira instância”.

10. Tendo falecido o Autor/Recorrente veio a instância a ser suspensa.

11. Transitada a sentença de habilitação de herdeiros (BB, GG e HH), que juntaram procurações, com ratificação do processado, os Réus/Recorridos, na sua alegação de recurso, formularam as seguintes (transcritas) conclusões:

I. O douto Acórdão recorrido é um paradigmático exemplo de bem julgar e aplicar o direito, como de seguida melhor se demostra.

II. Foi alegado nos respetivos articulados e provado por perícia que o valor real da fração é muito superior ao valor patrimonial tributário;

III. O valor real constitui um factor importante para a decisão, até porque existe entendimento uniforme na jurisprudência que a simulação do preço é oponível pelos próprios simuladores ao preferente.

IV. O preço real foi determinado, como superiormente alegado, por perícia, cfr. Relatório Pericial junto aos autos em 3/05/2021, com a referência Citius 28767409, notificado aos Recorrentes a 04/05/2021, com a referência Citius ...07, perícia esta que não foi considerada pela douta Sentença, mas que o Venerado Tribunal da Relação do Porto veio a corrigir, fazendo-se a habitual justiça;

V. O que está em causa é o montante pelo qual deverá ser exercido o direito de preferência. De acordo com o artigo 874.º do Cód. Civil: “Compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço.” O termo “preço” designará o valor em dinheiro a pagar pelo preferente como contrapartida da aquisição do bem sujeito à preferência, valor esse correspondente ao benefício económico ajustado entre vendedor e o adquirente como contrapartida da alienação do bem. Sendo que o mais justo e adequado à formulação legal é o entendimento de que a preferência se há fazer pelo preço real, isto é, o valor correspondente à contrapartida da alienação do bem.

VI. A não ser assim, verificar-se-ia locupletamento injustificado dos preferentes, ora Recorrentes, que não merece a proteção da lei (mesmo apesar de a simulação ser inoponível a terceiros de boa fé – art. 243.º, n.º 1, do Código Civil).

VII. Nos presentes autos, os Recorrentes pretendem exercer o direito de preferência, visando adquirir um prédio urbano por cerca de 87 mil euros, um T3 em pleno ..., com excelentes áreas, “em bom estado de conservação, com 125,5 m2, integrado num prédio com apenas 7 habitações, no centro da cidade ..., e boas acessibilidades” (cfr. facto assente n.º 17). Mesmo tendo sido determinado por perícia que o valor real do prédio urbano é muito superior, avaliado o mesmo em 218.300,00€. Apesar do conhecimento deste valor real do imóvel, confirmado por douto Acórdão, já transitado em julgado, os Recorrentes pretendem um locupletamento injustificado.

VIII. Ora, permitir que os Recorrentes aufiram um lucro fabuloso, com prejuízo para os Recorridos, essencialmente a herdeira 5R e a sua sociedade 1R, era dar cobertura a um exercício do direito de preferência em termos clamorosamente ofensivos do sentimento jurídico dominante, permitindo-se desta forma um locupletamento injustificado dos preferentes, que não pode merecer a proteção da lei.

IX. Como ensina Menezes Cordeiro, em Tratado, Parte Geral, I, tomo I, páginas 211 e 212, “(…) a desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifico imposto pelo exercício a outrem, ultrapassados certos limites, é abusiva, defrontando a boa fé”. Mais refere que: “Trata-se de uma fórmula antiga e intuitiva de abuso de direito: mercê de conjunções extraordinárias, ocorre um exercício jurídico, aparentemente regular, mas que desencadeia resultados totalmente alheios ao que o sistema poderia admitir, em consequência do exercício.”

X. Neste sentido decidiu o douto Acórdão do Venerado Supremo Tribunal de Justiça de 04.03.1997, publicado no CJ (STJ), tomo I, pág. 122 -125, tendo o seu sumário sido superiormente transcrito e que aqui se dá por integralmente reproduzido;

XI. Relativamente ao que deve ser entendido por “preço devido”, designadamente no caso de haver divergência entre preço declarado e preço real, veja-se em que sentido vai o entendimento do Venerado Supremo Tribunal de Justiça, no douto Acórdão de 08/09/2016, nos autos 1022/12.4TBCNT.C1.S1, em que foi Relatora a Juíza Conselheira Sr.ª Dr.ª Fernanda Isabel Pereira: “O preço devido corresponderá ao preço real, que pode ser quer o preço pago pelo terceiro adquirente ao alienante, quer o preço acordado entre estes para a transacção, mesmo que ainda não esteja pago, a menos que tal não se tenha provado, situação em que, a final, o preço devido corresponderá, simplesmente, ao preço declarado na escritura pública.”

XII. Este douto Acórdão conclui ainda designadamente da seguinte forma (conclusão IV): “(…) apurando-se que o preço real é superior ao declarado e apesar de a simulação não ser oponível a terceiros, deve o preferente liquidá-lo sob pena de incorrer em injusto locupletamento.”

XIII. E no mesmo sentido vai o Venerado Tribunal da Relação de Guimarães, no douto Acórdão de 29/09/2004, no proc. 1355/04-1, em que foi Relatora a Juiz Desembargador Sra. Dra. Rosa Tching: “Em caso de divergência entre o preço real e o preço declarado na escritura, quer se trate de um caso de lapso na indicação do preço, quer de um caso de simulação do preço, o direito de preferência só pode ser reconhecido se o preferente pagar o preço real pago pelo adquirente.”

XIV. Assim, o facto provado n.º 36 que fixa o valor real da fração em 218.300,00€ teve que ser chamado à colação. Tendo sido provado que é este o valor real, por relatório pericial que não mereceu qualquer reclamação, dúvidas não restam que deverá ser este o valor a ser pago para que possa ser exercido o direito de preferência.

XV. Face à evolução que tem vindo a ser seguida pela Jurisprudência, designadamente a supra mencionada, quanto à questão de direito suscitada e em crise na decisão proferida, não pode ser outra a decisão;

XVI. Assim, as alegações dos Recorrentes a que se responde carecem, em absoluto, de fundamento, pelo que devem improceder. O douto Acórdão decidindo como decidiu, fez a devida aplicação do direito, pelo que não violou qualquer disposição legal invocada pelos Recorrentes, muito menos o mencionado artigo 1410.º do Cód. Civil;

E concluem pela improcedência do recurso.

12. Cumpre apreciar e decidir.

II. Delimitação do objeto do recurso

Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que, dentro dos preditos parâmetros, da leitura das conclusões recursórias formuladas pelos AA. / Recorrentes, decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito à seguinte questão:

- o preço a pagar pelos Autores.

III. Fundamentação

1. As instâncias deram como provados os seguintes factos:

1.1. Os AA. são arrendatários da fração autónoma designada pela letra “F”, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal conforme apresentação quatro, de catorze de julho de mil novecentos e oitenta e oito, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...oitenta e cinco, de ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...11. A fração integra prédio constituído em propriedade horizontal.

1.2. Os AA. adquiriram a qualidade de arrendatários em data indeterminada de abril de 1970, desde então e até ao presente, ininterruptamente.

1.3. Senhorios eram, à data, o Sr. Dr. II e sua mulher CC, ora 2ª R..

1.4. O A. marido e A. mulher, reformados, engenheiro e funcionária pública respetivamente, vivem autonomamente, naquele imóvel que é a casa de morada de família.

1.5. A 28 junho de 2019, os AA. receberam uma comunicação da 1ª R., do seguinte teor: “Pela presente comunicamos a V. Exª que, ao abrigo do disposto no art. 1097 do Código Civil e da cláusula 3ª do contrato de arrendamento celebrado em 1 de junho de 2015, referente à nossa propriedade sita na Rua ..., ..., pretendemos fazer cessar o referido contrato de arrendamento, devendo o locado ser-nos entregue livre e limpo, no dia 31 de maio de 2020.”

1.6. Os AA. ficaram muito surpreendidos dado que desconheciam a existência do aludido contrato de arrendamento, o significado e alcance que se pretendeu atribuir ao referido documento.

1.7. Responderam à referida comunicação, por carta de 25-07-2019, repudiando a existência de qualquer contrato celebrado em 1-06-2015, invocando ainda, em síntese: “Importa desde já referir, que o signatário adquiriu a qualidade de inquilino, em abril de 1970, como é do conhecimento de V. Ex.a.

1.8. Acontece que, em 2015, o senhorio, Dr. II, comunicou-lhe que não conseguia encontrar o contrato de arrendamento formalizado em 1970, e, como pretendia iniciar um processo de partilha em vida com os seus herdeiros, queria deixar os bens, devidamente formalizados.

1.9. O signatário confiou totalmente no seu Senhorio que, conhecia de longa data, e assinou o “novo” contrato sem prestar qualquer atenção ao seu conteúdo, contrato cuja elaboração é da integral e exclusiva responsabilidade do senhorio, que o apresentou pronto a assinar, sem qualquer tipo de negociação (…)

1.10. O A., na qualidade de inquilino desconhecia, até 10/09/2019, que o senhorio não é o herdeiro do Sr. II, mas Encantos e Virtudes, Lda., de cuja transmissão não foi nunca notificado, desconhecendo em absoluto até à aludida data os termos do contrato.

1.11. Por carta registada de 12-09- 2019, veio a 1ª R. propor a transição do contrato de abril de 1970 para o NRAU, nos dizeres seguintes:

“Atento o facto de o contrato de arrendamento ter sido celebrado antes da entrada em vigor do DL n.º 321/90, de 15 de outubro (…) venho, (…) comunicar a V. Exa o seguinte: ser minha intenção que o referido contrato transite para o regime do NRAU, propondo-lhe que o mesmo contrato passe a ser do tipo prazo certo com a duração de 8 anos;

Propor-lhe que o valor da renda mensal, atualmente de 146,70 euros, passe para 486,20 euros mensais;

1.12. O valor do locado, avaliado nos termos do artigo 38º e seguintes do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), constante da respetiva caderneta predial, cuja cópia se anexa, é de 87.515,38 euros (…)”.

1.13. A 10 de setembro de 2019, por intermédio de terceiros, os AA. deslocaram-se ao Cartório Notarial ... onde obtiveram certidão do teor integral da escritura lavrada no Cartório Notarial de JJ, em 27.7.2018, de compra e venda, em que são outorgantes os RR., sendo que a 1ª R. comprou aos 2º, 3º, 4º, e 5º RR. o imóvel que os AA. habitam.

1.14. Conforme declaração que consta mesma escritura que a 27.7.2018, a 2ª R., 3º R., 4º R e 5ª R venderam à 1º R., entre outros imóveis, pelo aludido preço, a fração autónoma designada pela letra “F”, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal conforme apresentação 4, de 14-07-1988, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número...85, de ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...11, com o valor patrimonial, igual ao atribuído, de € 87.515, 38, de que os AA. são arrendatários.

1.15. Os 2º, 3º, 4º e 5º RR. nunca informaram os AA. da sua intenção de vender, nem da escritura de compra e venda.

1.16. O imóvel identificado em 1º foi alienado sem conhecimento dos AA., arrendatários.

1.17. O imóvel está em bom estado de conservação; trata-se de um T3, com 125,5 m2, integrado num prédio com 7 habitações, no centro da cidade ... e boas acessibilidades.

1.18. Por diversas vezes, o A. marido apresentou proposta de aquisição do imóvel em apreço ao Sr. Dr. II, ao tempo seu dono e legítimo possuidor, cujas negociações nunca se concretizaram.

1.19. No dia .../07/2017 faleceu II.

1.20. Na sequência do óbito do seu cônjuge, a R. CC passou a exercer as funções de cabeça-de-casal da herança aberta.

1.21. Da herança fazia parte, além de outros mais, a fração autónoma designada pela letra “F”, sita na Rua ..., descrito no registo predial sob o n.º ...85-F-... e inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...11-F, freguesia de ..., ..., ..., ..., ... e..., Concelho ..., com o valor patrimonial e o atribuído de 87.515,38€.

1.22. Tendo este imóvel sido adjudicado, sem determinação de parte ou direito, aos Réus FF, DD e EE.

1.23. A partir do óbito, passaram os AA. a proceder ao pagamento da renda à 2.ª Ré, na qualidade de cabeça casal, até à realização da partilha.

1.24. A 2.ª Ré não esteve presente no ato identificado em 13).

1.25. Na partilha por óbito de II declarou-se: “Todos os bens são adjudicados em comum e partes iguais a FF, DD e EE”.

1.26. A 5.ª Ré é sócia gerente da 1.ª R. conforme certidão permanente da sociedade.

1.27. A Outorga deste contrato de compra e venda foi acompanhada pelo ilustre Advogado Sr. Dr. KK, portador da cédula profissional ...08p.

1.28. Foi indicado ao A. marido, o IBAN da conta bancária da 1.ª Ré, onde deveriam os inquilinos, aqui AA, passar a depositar o valor da renda.

1.29. Em Agosto de 2018, dia 3, foi depositada na conta da sociedade aqui 1.ª Ré pela primeira vez a renda, no valor de € 108,00 (cento e oito euros), referente a setembro do mesmo ano.

1.30. O que aconteceu sucessiva e mensalmente, pelo mesmo montante, até ao mês de novembro de 2019, inclusive.

1.31. Em dezembro de 2019, passaram os AA a pagar o valor de renda atualizado de €486,20 para a mesma conta da sociedade aqui 1 Ré.

1.32. Tendo, durante todos estes meses, sido pela sociedade (1.ª Ré) emitido e entregue o respetivo recibo de quitação.

1.33. O Eng. AA, aqui Autor é uma pessoa com formação superior.

1.34. O A. representou a 1.ª Ré na Assembleia Geral de 21/02/2019.

1.35. Em 18 de Fevereiro de 2019, foi emitida a respectiva procuração, dando a 1.ª Ré poderes para representar a proprietária (1.ª Ré), na assembleia de condóminos datada de 21 de Fevereiro de 2019.

1.36. O valor real da fração dos autos à data do negócio sub iudice era o de 218.300 euros. (Facto aditado pelo Tribunal da Relação do Porto)

1.37. Não houve qualquer movimentação monetária, nunca receberam, nem foi depositado o cheque referido na escritura, mais precisamente o cheque n.º ...34, no valor de €179.384,16 (cento setenta e nove mil, trezentos e oitenta e quatro euros e dezasseis cêntimos) (Facto aditado pelo Tribunal da Relação e que tinha sido dado como não provado -2.i.)

2. E foram julgados como não provados os seguintes factos:

2.a. O imóvel se encontre arrendado apenas desde 22/05/2015.

2.b. Tenha sido formalizada a partilha e adjudicado à R. FF o imóvel em discussão nos autos.

2.c. A 2.ª Ré, pese não estar presente no ato identificado em 13), tinha conhecimento de que se tratava apenas da formalização da adjudicação de bens, na sequência de partilha realizada entre os herdeiros do seu falecido cônjuge.

2.d. Nada lhe foi pago, nada recebeu, nem isso foi combinado entre si e os outorgantes da alegada compra e venda formalizada entre todos os Réus.

2.e. As partes nunca pretenderam celebrar um contrato de compra e venda, mas antes, pretendiam a celebração da partilha, adjudicando o imóvel supramencionado à ora R. FF.

2.f. A 2 R. CC nem sequer tem conhecimento dos contornos do negócio, uma vez que para si o bem imóvel supra identificado foi apenas adjudicado, por partilha, à sua enteada 5ª Ré.

2.g. A partilha dos bens que integravam o acervo patrimonial da herança, sob a forma de um negócio de compra e venda, foi motivado por razões fiscais (dedução de despesas com o imóvel, condomínio, etc.) sendo os bens adjudicados à 5ª Ré, e

2.h. Na verdade, a real intenção das partes foi a partilha do acervo patrimonial do de cujos II com o 3.º e 4.º Ré, a favor da 5.ª R. FF.

2.i. Eliminado (Facto dado como provado pelo Tribunal da Relação).

2.j. Não tendo assim sido pago o alegado preço, por corresponder ao valor do quinhão hereditária que à 5ª Ré pertencia.

2.k. O Sr. Dr. KK é sobrinho dos AA., com quem mantem uma boa relação familiar, convívio e grande proximidade.

2.l. Em data que não consegue precisar, mas uns dias antes da outorga da alegada escritura aqui em causa, no mês de Julho de 2018, reuniu a 5.ª Ré com o Autor marido, tendo-o informado que na sequência da partilha verbal realizada, com os seus irmãos (3.º e 4.º Réus) fariam a divisão dos bens, sendo-lhe atribuído o imóvel que está arrendado aos AA;

2.m. O que fez após várias reuniões mantidas com o próprio sobrinho dos AA., o Sr. Dr. KK, que conhece desde os seus 15 anos de idade, em convívios na casa da 5.ª Ré pois eram vizinhos.

3. O preço

Os Autores intentaram, invocando a sua qualidade de inquilinos, a presente ação contra os Réus, pretendendo exercer o direito de preferência na venda da fração autónoma designada pela letra “F”, do prédio sito na Rua ..., descrito no registo predial sob o n.º...85-F-... e inscrito na respetiva matriz sob o artigo...11-F, freguesia de ..., ..., ..., ..., ... e ..., Concelho ....

Os Réus outorgaram escritura pública, tendo os 2.º a 4.º Réus declarado que vendiam, entre outros, a fração autónoma atrás identificada, “com o valor patrimonial, igual ao atribuído, de oitenta e sete mil e quinhentos e quinze euros e trinta e oito cêntimos”, e que a 1.ª Ré declarou que comprava.

Prescreve a alínea a) do n.º1 do artigo 1091.º do Código Civil que o arrendatário tem preferência sobre o local arrendado há mais de 2 anos.

E, neste caso, o senhorio está obrigado à comunicação prevista no artigo 416.º do Código Civil.

Se o senhorio não der conhecimento da venda do local arrendado, o inquilino pode propor a ação respetiva, no prazo de seis meses contados da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais do negócio, depositando o preço devido nos 15 dias seguintes à sua propositura (artigos 1091.º, n.ºs 4 e 5, 416.º a 418.º e 1410.º, n.º1, todos do Código Civil).

O Tribunal de 1.ª instância e o Tribunal da Relação do Porto consideraram que os Autores tinham o direito de preferência que reclamaram.

As partes não põem crise esta conclusão das instâncias.

Contudo, as instâncias têm divergências quanto ao preço devido:

O Tribunal de 1.ª instância entendeu que o montante a suportar pelos Autores era de €87 515,38, por não se ter demonstrado outro montante pago pela 1ª Ré (compradora) aos restantes Réus (vendedores).

No Acórdão recorrido, o Tribunal da Relação do Porto entendeu que o montante a pagar pelos Autores é de €218 300,00 (valor apurado por peritos).

É desta questão que os Autores divergem do Acórdão recorrido, interpondo o presente recurso e concluindo pela revogação do Acórdão e a repristinação da decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância.

Vejamos.

No Acórdão recorrido, o Tribunal da Relação do Porto, para concluir pelo valor atribuído pelos peritos, refere que teve em consideração o entendimento do jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, apoiando-se, mais concretamente, no Acórdão do STJ, de 8/09/2016 (processo n.º1022/12.4TBCNT.C1.S1).

Ora, não podemos deixar de concordar com o que se refere no Acórdão recorrido, tendo em consideração a fundamentação do Acórdão do STJ referido (e que desde já se afirma concordarmos com o mesmo).

Assim, respigando esses Acórdãos, diremos:

O preço devido corresponderá ao preço real, que pode ser quer o preço pago pelo terceiro adquirente ao alienante, quer o preço acordado entre estes para a transação, mesmo que não esteja pago, a menos que tal não se tenha provado, situação em que, afinal, o preço devido corresponderá, simplesmente, ao preço declarado na escritura pública.

A preferência, traduzida no direito de haver para si a coisa alienada, assegura ao respetivo titular uma prioridade de contratar em igualdade de condições, no que esta igualdade de condições representa para o adquirente.

Como tal, o termo “preço devido” designará o valor em dinheiro a pagar pelo preferente como contrapartida da aquisição do bem sujeito à preferência (no fundo, o conceito técnico de “preço” a que alude o artigo 874.º do Código Civil), valor esse correspondente ao benefício económico ajustado entre vendedor e o adquirente como contrapartida da alienação do bem.

E não podem os preferentes valer-se da inoponibilidade da simulação do negócio pelos simuladores a terceiros de boa fé sob pena de em tal situação obterem um enriquecimento ilegítimo.

Como se afirma no sumário do Acórdão do STJ citado: “a expressão preço devido corresponde ao valor em dinheiro a pagar pelo preferente como contrapartida da aquisição do bem que constitui objeto da preferência (cfr. art. 874.º do CC). Trata-se da totalidade (e não somente aquela parcela que se acha paga ou vencida) do preço real já pago ou declarado para a transação; apurando-se que o preço real é superior ao declarado e apesar de a simulação não ser oponível a terceiros, deve o preferente liquidá-lo sob pena de incorrer em injusto locupletamento”.

Deste modo, com estas transcrições, estamos de acordo com o Acórdão recorrido sobre as considerações gerais.

Contudo, não se aceita a conclusão a que se chegou no Acórdão recorrido sobre o preço devido.

No caso presente, a fração autónoma objeto de preferência tinha o valor patrimonial (que, como se sabe, não corresponde ao valor do bem inscrito na matriz) de €87 515,38 e que na escritura pública de compra e venda os Réus consideraram que era o preço do mesmo bem.

Nos autos não se demonstrou que o valor pago pela adquirente aos vendedores fosse outro.

Assim, só temos de concluir que o preço foi aquele e não qualquer outro (repete-se a expressão preço devido corresponde ao valor em dinheiro a pagar pelo preferente como contrapartida da aquisição do bem que constitui objeto da preferência), pelo que não merece censura a decisão do Tribunal de 1.ª instância.

O Tribunal da Relação do Porto, no Acórdão recorrido, entendeu que deve ser fixado, como preço devido, o valor do bem que lhe foi atribuído pelos peritos (€218 300,00).

Ora, como se vem afirmando o preço devido é o preço pago pelo adquirente; o Tribunal da Relação do Porto, no Acórdão recorrido, confunde preço real (o que foi verdadeiramente pago pelo adquirente) com o valor de mercado da fração autónoma, que não é o que releva.

Assim, o Acórdão recorrido não pode manter-se.

Os Recorridos, na sua resposta à alegação dos Autores, veio invocar o abuso de direito, atento o valor a pagar pelos Autores e o valor de mercado da mesma fração autónoma, referindo que:

“Como ensina Menezes Cordeiro, em Tratado, Parte Geral, I, tomo I, páginas 211 e 212, “(…) a desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifico imposto pelo exercício a outrem, ultrapassados certos limites, é abusiva, defrontando a boa fé”. Mais refere que: “Trata-se de uma fórmula antiga e intuitiva de abuso de direito: mercê de conjunções extraordinárias, ocorre um exercício jurídico, aparentemente regular, mas que desencadeia resultados totalmente alheios ao que o sistema poderia admitir, em consequência do exercício.”

Neste sentido decidiu o douto Acórdão do Venerado Supremo Tribunal de Justiça de 04.03.1997, publicado no CJ (STJ), tomo I, pág. 122 -125, tendo o seu sumário sido superiormente transcrito e que aqui se dá por integralmente reproduzido”.

As instâncias consideraram que não se verificava o abuso de direito invocado.

Prescreve o artigo 334.º do Código Civil que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Para que haja abusa de direito não se exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abuso, basta que tenha a consciência de que, ao exercer o direito, está a exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo seu fim social ou económico, basta que objetivamente esses limites tenham sido excedidos de forma evidente; estaremos perante abuso de direito sempre que, atentas as circunstâncias concretas em que é formulada uma pretensão, se conclua que o atendimento desta se traduziria em manifesta injustiça.

No caso presente, os Autores têm o direito de preferência na venda da fração autónoma que habitam e procuram exercer esse direito.

Com esse fundamento os Autores podem preferir pagando o preço devido, isto é, o preço que o adquirente pagou por esse bem.

Os Autores indicaram que pagariam o preço declarado na escritura de compra e venda (e esse preço foi indicado pela adquirente e pelos alienantes); não se demonstrou qualquer outro valor como sendo o preço pago pelo adquirente.

Devendo os Autores suportar o pagamento do preço que o alienante pagou (provado nos autos), não se vislumbra qualquer conduta censurável por parte dos Autores.

Deste modo, não se pode concluir pela existência do abuso de direito.

Pelo exposto, o recurso deve proceder.

IV. Decisão

Posto o que precede, acorda-se em conceder a revista e, em consequência, repristina-se a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância (sendo o preço devido no montante de €87 515,38).

Custas pelos Recorridos.

Lisboa, 18 de junho de 2024


Pedro de Lima Gonçalves (Relator)

Maria João Vaz Tomé

António Magalhães