Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
Relator: | PAULO FERREIRA DA CUNHA | ||
Descritores: | RECURSO PENAL VÍCIOS DO ARTº 410.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO CONTRADIÇÃO MATÉRIA DE FACTO ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA CONTRADIÇÃO INSANÁVEL FUNDAMENTAÇÃO MEDIDA DA PENA IMPROCEDÊNCIA | ||
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Data do Acordão: | 05/31/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
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Sumário : | I. Pode (e deverá) o STJ apreciar os vícios do art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal quando tal se revele indispensável para proferir a decisão de direito (cf. o acórdão de fixação de jurisprudência 7/95, publicado no DR, I série A, n.º 298, de 28.12.1995). Ou seja, o direito que se quer justamente apurar clama pela justa apreciação do facto, não se podendo conformar com deficiências ou lacunas graves no seu apuramento. Mas só quando realmente haja de, por esse motivo superior, abdicar da regra geral da especialidade da função do STJ, que é de conhecimento de direito. II. Se, no acórdão recorrido, não se evidencia (e, em certos casos, nem sequer vislumbra) qualquer vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão, de contradição insanável da fundamentação, ou entre a fundamentação e a decisão, nem erro notório na apreciação da prova, suscetíveis de afetar a decisão de direito, e que por essa razão devesse este Tribunal conhecer, não há que o STJ internar-se pelos meandros factuais, para que não está vocacionado. III. Não se detetando no texto de um acórdão recorrido que tivessem sido dados como provados factos que notoriamente estejam errados e / ou sejam totalmente inverosímeis e contrários às regras comuns da lógica, da razão e da experiência, id est, que o aresto enferme do vício do erro notório na apreciação da prova invocado pelo recorrente, entende-se que o recurso não pode apreciar essas matérias. IV. Analisando as razões do Recorrente, e refazendo o percurso teórico e hipotético do Acórdão recorrido, conclui-se que será esta a situação, em apreço, de não contradição entre os factos provados (há que fazer o necessário distinguo, admitir matizes), e, pelo contrário, de completa irrazoabilidade e implausibilidade da versão do Recorrente. Pode haver ângulos diversos de interpretação do modus operandi do condenado, mas, bem ponderada a globalidade da situação, tal em nada muda o resultado, que é a morte de uma Pessoa, nem a intenção, que foi a determinação de a produzir. V. É taxativo e não oferece margem para dúvidas o artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. E apenas podem ser perscrutados eventuais vícios no texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Os vícios decisórios contemplados pelo referido normativo são vícios internos, estruturais, imanentes, ontológicos, no próprio cerne da sentença penal. Não epifenoménicos, adventícios, formais, etc. Essa é a ratio da estatuição do referido comando legal. Não há, aqui, nem insuficiência nem contradição. VI. O erro notório na apreciação da prova ocorre quando o tribunal a valoriza contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente. E de tal modo esse erro avulta e choque que qualquer cidadão comum o deteta, por ser grosseiro, ostensivo, evidente. Também uma das características deste vício é, pelo menos frequentemente, inverter a realidade: dando por provado precisamente o que não ocorreu, e por não provado o que teve lugar. O que nos remete para uma narrativa paralela. A narrativa do Recorrente, essa sim, é que parece próxima de uma inversão das coisas deste jaez, atenta a normalidade, id quod plerumque accidit, ou “ordem natural das coisas” (cf., v.g., Acórdão de 1998-10-14 (Processo nº 022751), de 14 de outubro, do Supremo Tribunal Administrativo). VIII. Não pode deixar de se ter em conta a personalidade e percurso do arguido, a sua vida relativamente sofrida, problemas de saúde graves (esclerose múltipla, desde logo), perfil psicológico, amargo sofrimento com o relacionamento extraconjugal que dará motivo ao crime, mas, ao mesmo tempo, também a impressão de que procura uma integração social, e familiar. E naturalmente sofre com os rumores sociais sobre aquela questão familiar. Poderá figurar-se hipoteticamente que, não fora a situação em causa, ou se soubesse moderar o ciúme, possivelmente não delinquiria. Mas também se dirá, por outro lado, que, se o fez uma vez, outros motivos, para além especificamente deste, poderão vir a suscitar novos atos criminosos. É complexa a prognose, mas tem de ser prudentíssima, para mais estando em caso o bem Vida, tão brutalmente violado. IX. A culpa do arguido é muito elevada, pelo desvalor das ações que quis empreender e concretizou e do desvalor dos resultados que procurou e conseguiu efetivar. O dolo direto e intenso. X. Tendo em atenção a moldura penal em concreto, a pena aplicada não se revela desproporcional nem contrária às regras da experiência, nem às exigências de prevenção e não excede a culpa do arguido, que é muito grave. XI. A moldura do concurso do cúmulo jurídico em apreço encontra-se entre uma pena mínima de 12 (doze) anos de prisão e uma pena máxima de 25 (vinte e cinco) anos de prisão. Foi fixada em 14 anos de prisão, abaixo do primeiro sexto da moldura abstrata aplicável. Esta pena encontra-se num nível bastante baixo das possibilidades de punição, tendo já levado em consideração os elementos que militam em favor do Recorrente: o seu caráter de delinquente primário, o seu percurso de vida integrado, a inexistência de reações sociais a ele contrárias, o decurso de oito anos desde a prática do crime, desde logo. E, ainda, as alterações da matéria de facto provada, introduzidas pelo Acórdão recorrido. XII. Decidiu-se assim negar provimento, na sua totalidade, ao recurso, confirmando integralmente o Acórdão recorrido que, como se disse, determinou uma pena de 14 anos de prisão.VII. Não colhendo o alegado, não se entende prudente nem parcimonioso, como o STJ tem de ser muito especialmente neste particular, vir a sindicar mais profundamente a matéria de facto, aceitando a globalidade dos factos provados e não provados pelo Acórdão recorrido. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I Relatório 1. AA, mais detidamente identificado nos autos, foi condenado, pelo tribunal coletivo do Juízo Central Criminal ..., pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea h), e 69.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal, na pena principal de 14 anos de prisão e na pena acessória de proibição de condução de veículos com motor pelo período de 2 anos.
2. Inconformado com esta decisão, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra.
3. Considerando uma alteração não substancial dos factos descritos no acórdão da 1.ª Instância, a Relação de Coimbra determinou a notificação do arguido para se pronunciar, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 424.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, o que veio a ocorrer.
4. Viria, em consequência, a ser proferido acórdão em que, após haver sido reformulado «o acervo fáctico provado e não provado», se concluiu não existir dúvida de que o arguido efetivamente cometeu o crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea h), do Código Penal, «porquanto matou outrem dolosamente, utilizando meio particularmente perigoso, circunstância esta reveladora de especial censurabilidade», negando-se, em consequência, provimento ao recurso interposto.
5. Ainda irresignado, o condenado recorre para o Supremo Tribunal de Justiça, sustentando, em síntese, que o acórdão da Relação de Coimbra enfermaria dos vícios formais da contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão, assim como de erro notório na apreciação da prova e ainda, subsidiariamente, que a medida concreta da pena deveria ser reduzida ao mínimo legal.
6. Foram as seguintes as Conclusões das suas alegações de recurso:
1ª Na comparação dos factos julgados provados no Acórdão de primeira instância com os considerados provados e não provados no Acórdão recorrido verificam-se alterações de monta que transformam por completo a realidade a considerar. 2ª O processado anterior move-se de uma realidade em que o arguido sabia previamente onde a vítima estava e se preparou para lhe tirar a vida, para uma outra, totalmente distinta, em que num espaço de tempo muito curto, o arguido foi acometido de uma vontade repentina de tirar uma vida. 3ª Numa circunstância de tempo e lugar em que nada parece indicar quaisquer dificuldades visuais e de perceção, para uma outra em que são provadas várias circunstâncias que não só são idóneas a limitar ou impedira visibilidade e a capacidade de apreensão, como ainda limitam no tempo e no espaço o intervalo de ação/reação. 4ª E, por último, muda-se de um embate direto do veículo pesado no corpo da vítima e no veículo para uma nova dinâmica, completamente antagónica, de um choque em cadeia com intervenção triangular de ambos os veículos e da vítima, em que o veículo pesado conduzido pelo arguido nunca atinge diretamente a vítima (cfr. facto não provado 17º). 5ª Com a consideração adicional, de extrema relevância, da factualidade provada no ponto 13 da matéria assente, de que o arguido, antes do embate no veículo ligeiro “efetuou uma travagem a fundo no veículo pesado por si conduzido (…), bloqueando as rodas do camião, em resultado do que perdeu o controlo direcional do veículo, e imprimiu rastos de travagem no pavimento”. Por isso, primeiramente, 6ª Ao dar como provada a matéria dos pontos 8, 11, 17, 18, 19, 20 e 21, que descrevem uma situação objetiva em que a visibilidade é comummente considerada difícil num dado local – noite, com fraca luminosidade, com obstáculos visuais decorrentes da configuração da própria via, e com chuva intensa ou “miúda” –, e como não provada a factualidade expressa no ponto 14º que “antes do embate, a visibilidade, no local, fosse difícil para o arguido”, considerando ainda a fundamentação avançada nesta matéria (pp. 152 a 158 do Acórdão recorrido), incorreu o Tribunal recorrido no vício de contradição insanável na própria fundamentação e entre esta e a decisão, vício previsto na alínea b) do nº 2 do art. 410º do CPP, que aqui expressamente se invoca, com as legais consequências.
Mas, com mais acuidade, 7ª Resultam absolutamente inconjugáveis a dinâmica concreta do embate, travagem a fundo e perda de controlo direcional julgadas provadas com a afirmação de uma vontade de matar, havendo uma notória contradição nos próprios termos quando se formula a afirmação da existência de desígnio criminoso e a simultânea afirmação de perda de controlo. 8ª Em verdade, analisando a coerência lógica e sistemática da decisão recorrida, logo da sua leitura emergem as seguintes interrogações: I. Se o Tribunal dá por provado que o arguido travou a fundo antes do embate, bloqueando das rodas e perdendo o controlo direcional do veículo, como se extrai deste dado intencionalidade de acertar na vítima? II. Se o Tribunal dá por provado que o veículo pesado conduzido pelo arguido embateu apenas no veículo ligeiro, e não no peão, como se extrai daí que quis matar? III. Se o Tribunal recorrido, enfim, conjuga as duas realidades (dinâmicae travagem com perda de controlo), como pode afirmar perentoriamente a intencionalidade correspondente ao tipo subjectivo do crime em que, a final, condena?
Assim, 9ª Ao fundamentar que o arguido terá travado a fundo para controlar melhor a trajetória do veículo pesado (cfr. pp. 194 e 195 do Acórdão recorrido) e, simultaneamente, dar por provado no ponto 13, de forma também fundamentada (cfr. pp. 177 a 179 do Acórdão recorrido), que o arguido, antes do embate, travou a fundo e perdeu o controlo da direção do veículo, o Tribunal a quo incorre em contradição insanável na fundamentação e entre esta e a matéria que julgou provada, vício de coerência interna do aresto decisório, que resulta textualmente notório e apreensível, previsto na alínea b) do nº 2 do art. 410º do CPP, e que aqui se invoca, com as legais consequências. 10ª Assim, a prova dos dados factuais dos pontos 12, 13 e 14 da matéria assente e a não prova dos pontos 15º a 17º do rol não assente – a existência de travagem a fundo imediatamente antes e durante o impacto, de onde resulta o bloqueio das rodas e a perda de controlo direcional, e a concreta dinâmica do embate tripartido julgada como provada, como se de uma “carambola” se tratasse –, conjugada com fundamentação transcrita (pp. 177 a 179 do Acórdão recorrido), é, como se constata, absolutamente incompatível com o dolo dado por provado nos pontos 11, 22, 23 e 24. 11ª Daqui, verifica-se que incorre também o Tribunal recorrido em contradição insanável na fundamentação e entre a própria matéria que julgou provada e não provada, vício de coerência interna do aresto decisório, que resulta textualmente notório e apreensível, previsto na alínea b) do nº 2 do art. 410º do CPP, e que aqui se invoca, com as legais consequências. É nítido que em toda a abordagem que faz no âmbito da constelação fáctica, determinando que, no momento posterior à impressão da travagem a fundo, o arguido tem o domínio do facto, estabelecendo um nexo de causalidade adequada, o Tribunal a quo incorre em erro notório na apreciação da prova, uma vez que deu ma travagem a fundo com perda de controlo direcional de um veículo não resulta, em termos de normal acontecer e experiência comum, que a trajetória seguida posteriormente à impressão da travagem e perda de direção tenha sido desejada ou controlada. 13ª Muito menos resultando esse desejo, controloou domínio da trajetória e dinâmica dada por provada, conforme constam nos pontos 11 a 14 da matéria provada e 4º a 6º e 17º da matéria não provada, após a impressão da travagem. 14ª Vício de coerência interna da decisão recorrida, resultante e apreensível de forma evidente do próprio texto do Acórdão em discussão, que redunda na previsão da alínea c) do nº 2 do art. 410º do CPP, e que se repercute – por se tratar de antecedente lógico e necessário – na consideração como provados dos pontos 11 e 22 a 24 constitutivos do elemento subjectivo do tipo criminal em que o recorrente foi condenado, assim o invocando aqui expressamente o recorrente, com as legais consequências.
Por fim e não concedendo,
15ª Deve ainda o arguido, a título subsidiário e por cautela, sublinhar que o Tribunal a quo não repercutiu na consideração da medida concreta da pena aplicada a substancial redução da intensidade do dolo que resulta necessariamente das alterações que realizou na factualidade provada, a que acresce ainda a ponderação do tempo decorrido desde os factos, 16ª Desta conjugação de dados a ponderar, e considerando que na primeira instância se determinou a condenação do arguido a uma pena de 14 anos de prisão efectiva, entende-se resultar que deverá, em consonância e proporção, ser reduzida a pena aplicada, fixando-se no mínimo legal de 12 anos de prisão, que aqui se requer subsidiariamente.
*** TERMOS EM QUE,
Deve o presente recurso ser julgado procedente, e, na procedência dos vícios e invalidades alegados e fundamentados na precedente motivação e conclusões, serem determinadas as legais consequências.
Subsidiariamente, sem prescindir, e por cautela de patrocínio,
Deve a medida concreta da pena aplicada ser reduzida com os fundamentos e nos termos precedentemente alegados.
7. Quer o Ministério Público quer a assistente responderam ao recurso defendo a sua completa improcedência.
8. Neste Supremo Tribunal de Justiça, num circunstanciado Parecer, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto igualmente se pronunciou no sentido da total improcedência do recurso.
9. Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não tendo havido qualquer reação.
Colhidos os vistos, e realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir. II Fundamentação de Facto Transcrição do segmento respetivo do Acórdão recorrido:
“1 – O arguido casou com BB em 4 de .../.../2001, tendo cessado o seu vínculo conjugal através de divórcio decretado em ... de novembro de 2014.
2 – Em maio de 2014, começou o arguido a receber, no seu telefone móvel, algumas mensagens anónimas de texto que se reportavam a uma relação extraconjugal da sua então mulher BB.
3 – Em data não concretamente apurada, mas durante o mês de junho de 2014, o arguido passou a ter conhecimento de que a sua então mulher, a referida BB, vinha mantendo uma relação extraconjugal com CC, seu colega de trabalho, funcionários da empresa “L..., S.A.”, com instalações na localidade de ..., freguesia ....
4 – Os colegas de trabalho do arguido comentavam entre si e na empresa onde este último exercia as funções de motorista de veículos pesados – “L..., U.C.R.L.”, com instalações sitas na Zona Industrial ... (empresa integrada no mesmo grupo empresarial da acima aludida “L..., S.A.”) – a relação extraconjugal entre os apontados CC e BB, facto que era conhecido do arguido.
5 – No Verão de 2014, o relacionamento extraconjugal do dito CC com a então mulher do arguido era também objeto de alguns comentários, nas zonas de residência do arguido, no ..., ..., mas também da vítima, em Volta da ..., constando, pois, do conhecimento de algumas pessoas não concretamente apuradas daquelas mesmas zonas.
6 – Mais exatamente durante o mês de junho de 2014, a mencionada BB confirmou ao arguido que mantinha uma relação extraconjugal com o CC;
7 – Após essa altura, em junho de 2014 (quando a sua então mulher lhe confirmou a existência da aludida relação), o arguido teve a noção de que o relacionamento extraconjugal em causa era também objeto de conhecimento público, não só na sua zona de trabalho, mas também nas zonas de residência atrás identificadas;
8 – No dia 17 de setembro de 2014, cerca das 4 horas, o arguido, conduzindo o seu veículo ligeiro de passageiros, deslocou-se da sua residência, situada na Rua ..., na localidade de ..., freguesia ..., até às instalações da empresa “L..., U.C.R.L.”, sitas na Zona Industrial ...;
9 - Após ter chegado, pelas 4 horas e 16 minutos, às Instalações da empresa «L..., U.C.R.L.», o arguido preparou o veículo pesado de mercadorias de matrícula ..-BF-.., propriedade daquela empresa, que naquela noite deveria conduzir até à localidade de ..., tendo abandonado as referidas instalações ao volante desse veículo pesado pelas 4 horas e 38 minutos.
10 – Depois, o arguido, conduzindo o descrito veículo pesado de mercadorias, alterou o trajeto que deveria fazer em direção à localidade de ... e decidiu deslocar-se utilizando a Rua dos ..., no sentido norte-sul, ou seja, no sentido T...-F....
11 – Cerca das 4 horas e 45 minutos dessa mesma madrugada, ao aproximar-se do local onde se encontrava apeado o mencionado CC, junto ao seu veículo automóvel, de marca Renault, modelo Megane, de matrícula ..-..-OC, o qual estava estacionado na berma direita, no sentido norte-sul, da apontada Rua dos ..., o arguido, conduzindo a uma velocidade de cerca de 45 quilómetros por hora, e apesar de ter a via de rodagem livre à sua frente, aproveitando o facto de o CC estar postado, descontraído e indefeso, guinou o volante do veículo pesado para a direita, atento o seu sentido de marcha.
12 – O arguido fez com que o pesado por ele conduzido invadisse a berma da estrada, onde se encontrava apeado CC, embatendo a uma velocidade de 34 quilómetros por hora, com a frente direita do pesado, no veículo automóvel de marca «Renault» e modelo «Megane» sofrendo o peão, sob o lado esquerdo, o impacto do veículo ligeiro.
13 – O arguido efetuou uma travagem a fundo no veículo pesado por si conduzido (tal levando à redução da velocidade descrita no ponto 11 para a redução da velocidade, referenciada no ponto 12), a que veio ocorrer o embate, bloqueando as rodas do camião, em resultado do que perdeu o controlo direcional do veículo, e imprimiu rastos de travagem no pavimento.
14 - Em consequência do embate, o CC após o impacto rolou para baixo do pesado conduzido pelo arguido e foi arrastado pelo pavimento que compunha a berma do passeio, em terra, durante cerca de 25 metros, desde o local onde ocorreu o embate até àquele onde ficou imobilizado.
15 – Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, o aludido CC sofreu, entre outras, as seguintes lesões:
- Fratura do corpo do esterno na sua porção proximal;
- Na clavícula, cartilagens e costelas direitas, infiltração sanguínea no terceiro arco costal anterior e infiltração sanguínea desde o primeiro ao sétimo arco costal posterior;
- Na clavícula, cartilagens e costelas esquerdas, fratura dos quatro e quinto arcos costais anteriores, fratura dos primeiro, segundo, terceiro, quarto, quinto, sexto, sétimo, oitavo e nono arcos médios e com infiltração sanguínea em todos, avulsão condro costal dos primeiro, segundo, terceiro, quarto, quinto, sexto e sétimo arcos posteriores;
- Na traqueia e brônquios, laceração da traqueia na sua porção posterior e proximal;
- Esfacelo total do baço;
- fratura e luxação da articulação sacroilíaca direita da bacia;
- luxação e fratura das vértebras e estruturas articulares C3 e C4;
16 – As lesões traumáticas torácico-abdominais e raqui-meningo-medulares cervicais acabadas de descrever foram causa direta e necessária da morte do apontado CC, a qual ocorreu nesse mesmo dia 17 de setembro de 2014, pelas 5 horas e 43 minutos;
17 – A Rua dos ..., local onde ocorreu o embate, é constituída por duas vias de trânsito, cada uma delas afeta a um sentido, sem linha divisória de separação das vias de trânsito;
18 – A faixa de rodagem, naquela zona, media 5,50 metros e o piso estava em regular estado de conservação, com bermas compostas por terra batida de largura não uniforme, a via sobe ligeiramente em direção ao cruzamento e depois desce ligeiramente em direção ao ponto de impacto.
19- A via onde o arguido conduzia o veículo pesado de mercadorias descreve, após o cruzamento, uma ligeira curva à esquerda, atento o sentido de marcha do mesmo, sendo ladeada esparsamente por pequenas edificações e vegetação, e sendo a velocidade máxima permitida para circulação desses veículos de 50 quilómetros por hora.
20 – O local onde ocorreu o embate tinha iluminação pública de 30 em 30 metros com fraca luminosidade; a cerca de 100 metros do cruzamento não é visível a estrada a seguir ao cruzamento, e a apenas a 25 metros deste se obtém uma visibilidade total da estrada.
21 – Na madrugada na qual se deu o embate chovia intensamente, com períodos intermitentes de chuva «miúda», e outros em que não chovia, encontrando-se o piso totalmente molhado e verificando-se a ocorrência de algumas poças de água nas oscilações do pavimento.
22 – Ao atuar do modo descrito e nas circunstâncias em que o fez, o arguido agiu com o propósito concretizado de tirar a vida ao referido CC, querendo utilizar, como utilizou, para atingir o seu desiderato, o veículo pesado de mercadorias, que sabia ser um meio capaz para obter esse objetivo;
23 – No percurso efetuado na Rua dos ..., após sair das instalações a L..., o arguido viu CC, e agiu movido pelos ciúmes, por suspeitar que este aguardava por BB, que se encontrava a realizar o turno das 21.00 às 5.00, para a interpelar, e determinado a impedir que CC pudesse continuar a relação extraconjugal com BB.
24 – O arguido atuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
25 – Natural de ..., país onde os seus progenitores foram emigrantes (o pai a laborar como pintor da construção civil e a mãe como empregada doméstica), o arguido contava seis anos de idade quando foi integrado no agregado dos avós maternos, em Portugal, no qual já se encontrava o irmão mais velho, com o objetivo de promover a união entre ambos;
26 – O arguido iniciou a escolaridade obrigatória na idade côngrua, em território português, experimentando diversas dificuldades de adaptação e aprendizagem, dado à época não dominar a língua portuguesa, tendo reprovado por quatro vezes (uma no segundo, uma no quinto e duas no sexto anos de escolaridade);
27 – Acabou por interromper os estudos aos 18 anos, após a conclusão do nono ano de escolaridade;
28 – Cumpriu, então, o serviço militar obrigatório e, volvidos quatro meses, começou o seu percurso laboral, no domínio da construção civil, como pintor, atividade que manteve até aos seus 22 anos de idade;
29 – Entretanto, habilitou-se com a carta de condução de veículos pesados e, em fevereiro de 2000, passou a trabalhar como motorista para a empresa “L..., U.C.R.L.”, atividade que manteve até à época do embate acima descrito;
30 – Após a ocorrência do apontado embate, o arguido esteve de baixa médica até janeiro de 2015, sendo acompanhado do ponto de vista psicológico e psiquiátrico;
31 – Em 2002, foi-lhe diagnosticada a doença autoimune de esclerose múltipla, sendo seguido medicamente, com regularidade, a tal doença;
32 – Do seu casamento com a acima identificada BB nasceram duas filhas gémeas, na atualidade com 10 anos de idade, que residem com a mãe, na ..., onde se encontram emigradas;
33 – Quando ocorreu o divórcio relativamente à mesma BB (em ... de novembro de 2014), já o arguido dela se encontrava separado de facto, a viver com os seus progenitores, e mantinha uma relação afetiva com DD;
34 – Em março de 2015, o arguido foi para ..., onde já residia a aludida DD, e com quem passou então a viver maritalmente, vindo depois a casar em agosto de 2018;
35 – Deste seu segundo casamento tem o arguido duas crianças, presentemente com quatro e dois anos de idade;
36 – Cerca de sete meses após o embate acima descrito, e já em ..., trabalhou, de modo algo intermitente, como motorista e também na área dos serviços de limpeza, passando depois, a partir de setembro de 2016, a laborar novamente como motorista de veículos pesados, por conta de uma empresa de transportes na qual ainda hoje se mantém;
37 – O arguido, a sua atual mulher e os filhos de ambos vivem em casa própria, suportando os encargos do crédito contraído para a aquisição de tal habitação;
38 – O arguido mantém laços afetivos estreitos com a sua atual mulher e filhos de ambos, assim como com os progenitores e demais familiares;
39 – O arguido passa um mês de férias, no Verão, com as suas filhas do primeiro casamento, estando também com elas, alternadamente, nas férias do Natal e da Páscoa;
40 – Junto das pessoas que com ele mais contactam quando se encontra em Portugal, designadamente familiares e amigos próximos, é o arguido visto como uma pessoa discreta, educada e trabalhadora;
41 – Não tem antecedentes criminais.”
Factos não provados:
Assim, e designadamente, não se apurou que:
- As mensagens escritas acima referidas no ponto 2 (da factualidade assente) houvessem sido enviadas pelo CC;
- Aquando do embate acima descrito, o arguido fosse funcionário da empresa “L..., S.A.”;
- Aquando da conversa acima mencionada no ponto 6 (da matéria assente), houvesse a BB assegurado ao arguido que pusera termo ao seu relacionamento extraconjugal com o CC, mas que este continuava a abordá-la para a interpelar sobre o términus da relação e a esperá-la no percurso que a mesma fazia para o trabalho e vice-versa;
- No percurso por si efetuado, e quando circulava na Rua dos ..., na localidade da ..., no sentido sul- norte, ou seja, no sentido F...-T..., em direção às mencionadas instalações da empresa “L..., U.C.R.L.”, o arguido viu que ali se encontrava o referido CC, parado junto à lateral esquerda do seu veículo automóvel, de matrícula ..-..-OC, o qual estava estacionado na berma da apontada Rua dos ..., no sentido oposto, atento o seu sentido de marcha, a uma distância da faixa de rodagem de 1,87 metros;
– Suspeitando (nesse percurso) que aquele CC esperava que a sua então mulher, BB, saísse do local de trabalho para a interpelar, porquanto estava a realizar o turno das 21 horas às 5 horas, o arguido formulou o propósito de lhe tirar a vida;
- O arguido saiu da L..., e na prossecução do seu desígnio de tirar a vida ao CC, deslocou-se à Rua dos ..., onde tinha visto o aludido CC apeado;
- O veículo pesado mercadorias de matrícula ..-BF-.. pertencesse à empresa “L..., S.A.”;
- Na situação acima descrita no ponto 6 (da factualidade assente), se houvesse o arguido dirigido às instalações da empresa “L..., S.A.”;
- O CC, aquando o embate descrito, estivesse de lado para a via onde circulava o arguido;
- O CC, aquando o embate descrito, estivesse de costas para a via onde circulava o arguido;
- A via, no local é uma reta em patamar;
- A via não tinha qualquer obstrução visual (para quem, como o arguido, conduzisse um veículo no sentido norte- sul, ou seja, na direção Tocha-Ferreira-a-Nova);
- (Não se provou apenas), que, «foi chovendo a espaços, existindo, nas proximidades da ocorrência do aludido embate, algumas zonas de piso molhadas e poças de água»;
- Antes do embate, a visibilidade, no local, fosse difícil para o arguido, pelo menos em termos tais que não se apercebesse de que o veículo e a pessoa do CC se encontravam na berma da estrada;
- Antes do referido embate, não houvesse o arguido acionado o sistema de travagem do veículo pesado por si conduzido;
- No local não houvessem sido deixadas marcas de travagem do veículo conduzido pelo arguido.
- O arguido fez com que o pesado embatesse com a frente direita do mesmo no corpo de CC.
- Após o embate, o corpo da vítima CC ficou imobilizado no solo, em posição sensivelmente paralela à parte da frente do veículo pesado, com a zona da cabeça tombada para o lado do volante de tal pesado.”
III
Fundamentação de Direito A Questões Processuais Prévias 1. Não se vislumbram quaisquer motivos que impeçam o conhecimento do recurso por este Supremo Tribunal de Justiça. 2. É consensual que, sem prejuízo do conhecimento oficioso de certas questões legalmente determinadas – arts. 379, n.º 2 e 410, n.º 2 e 3 do CPP – é pelas Conclusões apresentadas em recurso que se recorta ou delimita o âmbito ou objeto do mesmo (cf., v.g., art. 412, n.º 1, CPP; v. BMJ 473, p. 316; jurisprudência do STJ apud Ac. RC de 21/1/2009, Proc. 45/05.4TAFIG.C2, Relator: Conselheiro Gabriel Catarino; Acs. STJ de 25/3/2009, Proc. 09P0486, Relator: Conselheiro Fernando Fróis; de 23/11/2010, Proc. 93/10.2TCPRT.S1, Relator: Conselheiro Raul Borges; de 28/4/2016, Proc. 252/14.9JACBR., Relator: Conselheiro Manuel Augusto de Matos). 3. O thema decidendum no presente recurso é a verificação ou não de várias alegadas contradições factuais, algumas, pelo menos, alegadamente conduzindo a erro notório na apreciação da prova: contradição insanável na própria fundamentação e entre esta e a decisão; contradição insanável na fundamentação e entre esta e a matéria que julgou provada; contradição insanável na fundamentação e entre a própria matéria que julgou provada e não provada; e, subsidiariamente, a medida da pena. B Do Conhecimento pelo STJ, em Geral 1. Recorribilidade Segundo o artigo 432.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, pode-se recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça (inter alia, naturalmente, centrando-nos no que agora importa): “b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º”. Ora esse referido artigo 400.º, n.º 1, do Código de Processo Penal veda a recorribilidade para o STJ de decisões de dupla conformidade condenatória em que a pena aplicada não é superior a 8 anos de prisão, conforme refere a alínea f), preceituando a inadmissibilidade de recurso: “f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”. No caso vertente, porém, apesar de haver dupla conformidade, há possibilidade de recurso, pela referida alínea f), a contrario, já que foi aplicada pena superior a 8 anos de prisão. 2. Referência jurisprudencial Diz-se, com efeito, no Acórdão deste STJ, de 11.03.2020 (Relator: Conselheiro Nuno Gonçalves): “só é admissível recurso de decisão confirmatória da Relação quando a pena aplicada for superior a 8 anos de prisão, quer estejam em causa penas parcelares ou singulares, quer penas conjuntas ou únicas resultantes de cúmulo jurídico. Irrecorribilidade que é extensiva a todas as questões relativas à atividade decisória que subjaz e que conduziu à condenação, incluída a fixação da matéria de facto, nulidades, os vícios lógicos da decisão, o princípio in dúbio pro reo, a escolha das penas e a respetiva medida. Em suma, todas as questões subjacentes à decisão, submetidas a sindicância, sejam elas de constitucionalidade, substantivas ou processuais, referentes à matéria de facto ou à aplicação do direito, confirmadas pelo acórdão da Relação, conquanto a pena aplicada, parcelar ou conjunta, não seja superior a 8 anos de prisão. Trata-se de jurisprudência uniforme destes Supremo Tribunal, adotada e seguida no recente Ac. de 19/06/2019, desta mesma secção, onde se decidiu: “As questões subjacentes a essa irrecorribilidade, sejam elas de constitucionalidade, processuais e substantivas, enfim das questões referentes às razões de facto e direito assumidas, não poderá o Supremo conhecer, por não se situarem no círculo jurídico-penal legal do conhecimento processualmente admissível, delimitado pelos poderes de cognição do Supremo Tribunal”. E ainda se aduz no Acórdão deste STJ, de 16-03-2021 (Relator: Conselheiro Nuno Gonçalves): “I - A norma dos artigos 432.º, n.º 1, al. b) e 400.º, n.º 1, al. f) do CPP, consagra a irrecorribilidade de acórdãos da Relação que confirmem a decisão condenatória da 1.ª instância, contanto não tenha sido aplicada pena superior a 8 anos de prisão. II - Salvo disposição legal expressa, as mesmas questões já duplamente apreciadas e uniformemente decididas por tribunais de duas instâncias, não podem legitimar mais uma reapreciação em 2.º grau recurso, pelo STJ. III - Irrecorribilidade extensiva a todas as questões relativas à actividade decisória que subjaz e que conduziu à condenação, incluída a matéria de facto, nulidades, vícios lógicos da decisão, o princípio in dubio pro reo, a qualificação jurídica, a escolha das penas e a respectiva medida. Em suma, todas as questões subjacentes à decisão, submetidas a sindicância, sejam elas de constitucionalidade, substantivas ou processuais.”. Atente-se ainda no Acórdão deste STJ, de 11-03-2021, Relatora Conselheira Helena Moniz: “II - Tendo em conta o disposto no art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, onde se impede a possibilidade de recurso das decisões do Tribunal da Relação que apliquem pena de prisão não superior a 5 anos de prisão, e o disposto no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, onde apenas se admite (a contrario) o recurso de acórdãos da Relação que, confirmando decisão anterior, apliquem pena de prisão superior a 8 anos, e sabendo que, segundo a jurisprudência deste STJ, ainda que a pena única seja superior a 8 anos de prisão, se analisa a recorribilidade do acórdão relativamente a cada crime individualmente considerado, necessariamente temos que concluir não ser admissível o recurso das condenações relativas a cada crime, do Tribunal da Relação, quando seja aplicada pena não superior a 5 anos de prisão; e das condenações em pena de prisão superiores a 5 anos de prisão e não superiores a 8 anos de prisão, quando haja conformidade com o decidido na 1.ª instância.”. E finalmente analise-se o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 14.03.2018, proferido no Proc.º n.º 22/08.3JALRA.E1.S1 (Relator: Conselheiro Lopes da Mota), de que retomamos a seguinte passagem: “1. Só é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, limitado ao reexame de matéria de direito, de acórdãos das Relações proferidos em recurso que apliquem penas superiores a 8 anos de prisão ou que apliquem penas superiores a 5 anos e não superiores a 8 anos de prisão em caso de não confirmação da decisão da 1.ª instância. Esta regra é aplicável quer se trate de penas singulares, aplicadas em caso de prática de um único crime, quer se trate de penas que, em caso de concurso de crimes, sejam aplicadas a cada um dos crimes em concurso (penas parcelares) ou de penas conjuntas aplicadas aos crimes em concurso.(…)” 3. Da excecional possibilidade de o STJ conhecer de facto É também sobejamente sabido que a regra fundamental (dir-se-ia trave-mestra) do nosso sistema de recurso para o STJ é a do recurso da matéria de direito. Recorde-se o texto do artigo 434.º do Código de Processo Penal: “O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º”. Portanto, não está vedado a este Tribunal o conhecimento, em situações específicas, de matéria de facto. Com efeito, o conhecimento do recurso (em matéria penal) na parte em que é admissível acarreta que, no âmbito da sua competência, o STJ analise e delibere o pedido do recorrente, ou, oficiosamente, todas as questões de direito relacionadas com o objeto e âmbito do recurso, nessa parte, com vista à boa decisão destes. A delimitação fundamental do recurso ao reexame da matéria de direito não obsta a que o STJ, oficiosamente, conheça de eventuais vícios da decisão recorrida (n.º 2 do artigo 410.º do CPP), os quais devem emergir do texto da decisão recorrida, por si só ou em combinação com as regras da experiência, se a sua sanação se revelar necessária, no conhecimento do mérito do recurso. Trata-se de vícios da decisão, da elocução decisória em matéria de facto que se revelam no texto da decisão e se patenteiam a partir dele, de per si ou conjuntamente com as regras da experiência, não de erros de julgamento da matéria de facto, cujo conhecimento, da competência do tribunal da Relação (artigos 427.º e 428.º do CPP), se encontra subtraída ao STJ (cfr. acórdão deste STJ, de 02.10.2019, Proc. n.º 3622/17.7JAPRT-P1.S1, citando o acórdão de 15.12.2011, Proc. 17/09.0TELSB.L1.S1 (Relator: Conselheiro Raul Borges), e profusa jurisprudência neste referida. Em suma: pode (e deverá) o STJ apreciar os vícios do artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal quando tal se revele indispensável para proferir a decisão de direito (cf. o acórdão de fixação de jurisprudência 7/95, publicado no DR, I série A, n.º 298, de 28.12.1995). Ou seja, o direito que se quer justamente apurar clama pela justa apreciação do facto, não se podendo conformar com deficiências ou lacunas graves no seu apuramento. Mas só quando realmente haja de, por esse motivo superior, abdicar da regra geral da especialidade da função do STJ, que é de conhecimento de direito. Se, no acórdão recorrido, não se evidencia (e, em certos casos, nem sequer vislumbra) qualquer vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão, de contradição insanável da fundamentação, ou entre a fundamentação e a decisão, nem erro notório na apreciação da prova, suscetíveis de afetar a decisão de direito, e que por essa razão devesse este Tribunal conhecer, não há que o STJ internar-se pelos meandros factuais, para que não está vocacionado. Assim, não se detetando no texto de um acórdão recorrido que tivessem sido dados como provados factos que notoriamente estejam errados e / ou sejam totalmente inverosímeis e contrários às regras comuns da lógica, da razão e da experiência, id est, que o aresto enferme do vício do erro notório na apreciação da prova invocado pelo recorrente, entende-se que o recurso não pode apreciar essas matérias. É «oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fixação de jurisprudência n.º 7/95, Relator: Conselheiro Bernardo de Sá Nogueira, “Diário da República”, I Série-A, n.º 298, de 28 de dezembro de 1995). C Do Conhecimento, no caso 1. Resta saber se esse poder cognitivo excecional a usar ex officio pelo STJ pode, in casu, realmente ser exercido. O que decorre, concretamente, na questão sub judicio, apenas da evidência ou não da verificação de qualquer dos invocados pressupostos do artigo 410.º, n.º 2 do CPP. 2. Em síntese, alega o Recorrente: a) que os factos provados 8, 11 e 17 a 21 e o facto não provado 14.º, considerando ainda a respetiva fundamentação probatória, são insanavelmente contraditórios, «absolutamente inconjugáveis» (conclusões 6.ª a 8.ª); b) que o facto provado 13 contradiz a correspondente fundamentação probatória (conclusão 9.ª), c) que os factos provados 12, 13 e 14 e os factos não provados 15.º a 17.º, juntamente com a respetiva fundamentação, são incompatíveis com os factos provados 11, 22, 23 e 24 (conclusão 10.ª), d) e que o tribunal incorre em erro notório na apreciação da prova porquanto os factos provados 11 a 14 e os factos não provados 4.º a 6.º e 17.º, não permitem afirmar a intencionalidade de atropelar e de matar a vítima (conclusões 12.ª e 13.ª). 3. Analisando as razões do Recorrente com minúcia e escrúpulo, e refazendo o percurso teórico e hipotético do Acórdão recorrido, conclui-se que será esta a situação, em apreço, de não contradição entre os factos provados (há que fazer o necessário distinguo, admitir matizes – como, por exemplo, na questão do chover ou não chover…), e, pelo contrário, de completa irrazoabilidade e implausibilidade da versão do Recorrente. 4. Pode haver ângulos diversos de interpretação do modus operandi do condenado, mas, bem ponderada a globalidade da situação, tal em nada muda o resultado, que é a morte de uma Pessoa, nem a intenção, que foi a determinação de a produzir – como circunstanciadamente se viu, e no que foram conformes todos os posicionamentos produzidos, à exceção, naturalmente, da versão do Recorrente. É taxativo e não oferece margem para dúvidas o artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. E apenas podem ser perscrutados eventuais vícios no texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Recorde-se o que determina: “2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.” Só que a simples alegação, mesmo que desenvolvida, nem sempre, como é o caso, é apta à persuasão, à cabal demonstração da verdadeira ocorrência do(s) vício(s) alegado(s). E essa persuasão teria de estribar-se no “texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum”. Os vícios decisórios contemplados pelo referido normativo (artigo 410.º, n.º 2 do CPP), são vícios internos, estruturais, imanentes, ontológicos, no próprio cerne da sentença penal. Não epifenoménicos, adventícios, formais, etc. Essa é a ratio do estatuição do referido comando legal. Não há, aqui, nem insuficiência nem contradição. O erro notório na apreciação da prova ocorre quando o tribunal a valoriza contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente. E de tal modo esse erro avulta e choque que qualquer cidadão comum o deteta, por ser grosseiro, ostensivo, evidente (v. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª edição, p. 341). Também uma das características deste vício é, pelo menos frequentemente, inverter a realidade: dando por provado precisamente o que não ocorreu, e por não provado o que teve lugar. O que nos remete para uma narrativa paralela. A narrativa do Recorrente, essa sim, é que parece próxima de uma inversão das coisas deste jaez, atenta a normalidade, id quod plerumque accidit, ou “ordem natural das coisas” (cf., v.g., Acórdão de 1998-10-14 (Processo nº 022751), de 14 de outubro, do Supremo Tribunal Administrativo, relatado pelo Conselheiro Brandão de Pinho), outrora se diria, de forma mais essencialista, a própria natureza das coisas (natura rerum). 5. Não colhendo o alegado nesta matéria, não se entende prudente nem parcimonioso, como o STJ tem de ser muito especialmente neste particular, vir a sindicar mais profundamente a matéria de facto, aceitando a globalidade dos factos provados e não provados pelo Acórdão recorrido. D Da Pena e sua medida
1. Pressupostos Prévios É universalmente aceite na communis opinio que a intervenção do STJ na concretização da medida da pena, ou melhor, no controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, jamais ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”[1]. Assim, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem reiteradamente enfatizado que, na concretização da medida da pena, deve partir-se de uma moldura de prevenção geral, definindo-a, depois, em função das exigências de prevenção especial, sem ultrapassar a culpa do arguido. Como assinala Jorge de Figueiredo Dias, “(2) a pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; (3) Dentro deste limite, máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico”[2]. Atente-se ainda neste passo do Acórdão de 2010-09-2, proferido no Proc.º n.º 10/08.0GAMGL.C1.S1:
“Ou seja, devendo ter um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador, as penas são aplicadas com a finalidade primordial de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime, e, em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico-penal”[3]. Embora por vezes seja muito complexa, e quiçá um pouco formal, a distinção sobre a aplicação dos diversos fins das penas, não deverá custar admitir, como princípio fundamental, a primazia do fim último das penas, a proteção dos bens jurídicos, o qual, porém, crê-se que pelo menos as mais das vezes, só poderá concretamente atualizar-se, densificar-se, encarnar na realidade das coisas, através de formas que tenham em consideração os fins imediatos, ou seja, a prevenção geral e a prevenção especial. Dir-se-á que uma e outra são como que o corpo, ou a corporização, da intencionalidade que anima a alma e o espírito das penas, sendo complexa (se se admitir que é mesmo possível) uma decisão penal em comunicação direta com a simples questão do bem jurídico (salvo a reputação da gravidade da sua violação, por exemplo, o que é comum e correto fazer-se, obviamente) sem passar por muito concretas considerações de prevenção, geral e especial. Importará ainda reiterar que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça sublinha que a sua intervenção no controle da proporcionalidade com que há que pesar os crimes e as penas não é ilimitada e que o quantum da pena se deve manter quando se revele, em geral, o acerto dos vários enfoques analíticos e judicatórios em questão (v.g. Ac. STJ, Proc. n.º 14/15.6SULSB.L1.S1 - 3.ª Secção, 19-09-2019). Já Montesquieu advertia com diversos exemplos de direito comparado, para a necessidade da proporcionalidade da pena ao crime, e de como em vários países se não alcançava um resultado de prevenção geral pela falta de critério na avaliação (dir-se-ia “diferencial”) das diferentes infrações. Começava o Senhor de La Brède por afirmar, no capítulo respetivo do De l’Esprit des lois: “É essencial que as penas tenham harmonia entre si; porque é essencial que se evite antes de mais um grande crime que um menor; o que ataca mais a sociedade, que aquele que a choca menos”[4]. Não se pode deixar de ver aqui um fumus ao menos da preocupação diuturna do julgador em apreciar a coerência entre julgados, a medida da culpa e do dolo, e o alarme social (em sentido e grau) que um crime pode gerar. 2. Do geral ao concreto Há assim que considerar as necessidades de prevenção no caso em concreto (maiores ou menores), e o respetivo grau de culpa e de ilicitude (que também têm graduação). A pena de modo algum poderá exceder um quadro de razoabilidade e proporcionalidade e deve revelar-se como potencialmente adequada e necessária para se cumprirem as finalidades preventivas, enquadrando-se nos padrões admissíveis de justiça. A apreciação do STJ, parcimoniosa e prudente, como se disse, deve ponderar se a pena atribuída se conforma com estes parâmetros, ou se deles se aparta muito notoriamente, de forma a tornar-se irrazoável, desproporcionada (e não proporcional), pela sua severidade. Já que a indulgência ou magnanimidade não poderão ser corrigidas in pejus[5]. 3. Proporcionalidade A proporcionalidade tem raiz constitucional, devendo convocar-se a explicitação constitucional sobre as várias dimensões ou modalidades de que se reveste a proporcionalidade (designadamente nos Acórdãos nº 632/2008, n.º 187/2001 e Acórdão n.º 634/93 do Tribunal Constitucional). A lição de síntese do Acórdão do STJ de 19-01-2022, proferido no Proc.º n.º 327/17.2T9OBR.S1 (Relator: Conselheiro Nuno Gonçalves), pela sua clareza, merecerá ser recordada, pelo menos no início do Sumário: “I - No vigente regime penal, a função primordial do direito penal é a de tutelar os bens jurídicos tipificados, de modo a assegurar a paz jurídica dos cidadãos. II - A culpa na execução do facto, estabelece o limiar máximo acima do qual a pena aplicada é excessiva, subalternizando à «paz» comunitária a dignidade humana do agente. III - Entre aquele limiar mínimo e este limiar máximo, o modelo de individualização da pena judicial completa-se com a finalidade de prevenção especial de socialização (nota nossa:[6] ). (…)”. Convoque-se ainda nesta sede geral, brevitatis causa[7], Jürgen Schwabe[8]: “A aplicação do critério da proporcionalidade como limite dos limites não se confunde com uma ponderação de bens, interesses ou valores jurídicos, mas representa a busca ‘do’ meio necessário de intervenção, assim entendido ((como)) o meio adequado de intervenção (adequado ao propósito da intervenção) que seja, em face da liberdade atingida, o menos gravoso. Aplicar o critério da proporcionalidade significa, portanto, interpretar e analisar o propósito perseguido pelo Estado e o meio de intervenção em si, no que tange às suas admissibilidades e à relação entre os dois. Esta deve poder ser caracterizada como uma relação de adequação e necessidade, nos seus sentidos técnico-jurídicos.”. É, pois, num sentido técnico-jurídico rigoroso, já seguido pela jurisprudência e acolhido pela doutrina, que se encara a proporcionalidade. E Do Direito, do Geral ao Caso 1. O Acórdão recorrido evidencia uma argumentação consistente, com dados e referências significativas. Nomeadamente invocando pertinentes referências (não meramente adjacentes ou eruditas, mas com interesse prático e objetivo para a decisão da causa), explicitando convincentemente as razões da pena atribuída, com clareza, e evidenciando equilíbrio e prudência. A sentença proferida afigura-se, assim, justa, adequada, proporcional e necessária. Ressalta com cristalina evidência dos autos a gravidade dos factos e a personalidade do arguido, que necessitam, em prevenção especial, de uma censura não laxista, que o desmotive de voltar a delinquir no futuro, e de molde ainda a que a comunidade se não sinta ameaçada e descrente nas capacidades reconstitutivas da paz social do sistema jurídico (agora em prevenção geral). Particularmente impressionante parece(u) ser a frieza de ânimo de quem não chama sequer o 112 para socorrer a vítima. Evidentemente que se entrelaçam as duas prevenções e apontam ambas para uma punição que não contribua para a trivialização destas condutas. Crimes como o homicídio não só causam repulsa e alarme sociais profundos na comunidade circundante, como são potencialmente criadores, no conjunto da sociedade (que é também o destinatário se não mesmo partícipe da ordem jurídica), de sentimentos de anomia. Além disso, não se trata apenas de um sentimentos subjetivo ou de comoção de massas de algum modo superficial, mas, pelo contrário, estão em causa bens jurídicos valiosos, que constituem insofismavelmente pilares da ordem social e da consciência jurídica geral, tendo, assim, uma componente ético-social. São alguns dos mínimos do ordenamento jurídico de que fala Jorge de Figueiredo Dias (que também nos recorda a importância da culpa, outro relevante elemento ético-penal), neste passo aliás sempre habitualmente citado, mas que de novo se deve recordar: “(2) a pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; (3) Dentro deste limite, máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico” (Direito Penal, vol. I, p. 84 e Direito Penal, vol. II, pp. 227-228” . Mas importa matizar as questões. Não pode deixar de se ter em conta a personalidade e percurso do arguido, a sua vida relativamente sofrida, problemas de saúde graves (esclerose múltipla, desde logo), perfil psicológico, amargo sofrimento com o relacionamento extraconjugal que dará motivo ao crime, mas, ao mesmo tempo, também a impressão de que procura uma integração social, e familiar. E naturalmente sofre com os rumores sociais sobre aquela questão familiar. Poderá figurar-se hipoteticamente que, não fora a situação em causa, ou se soubesse moderar o ciúme, possivelmente não delinquiria. Mas também se dirá, por outro lado, que, se o fez uma vez, outros motivos, para além especificamente deste, poderão vir a suscitar novos atos criminosos. É complexa a prognose, mas tem de ser prudentíssima, para mais estando em caso o bem Vida, tão brutalmente violado. Como tem assinalado Claus Roxin, entre outros, o que não deixa de ser recordado, entre nós por Figueiredo Dias, há também uma compreensão social de situações de diminuição da culpa, e a aceitabilidade comunitária de que possa existir uma menor exigibilidade, em certos casos, da tutela de bens jurídicos[9]. Parece ser exatamente o que ocorre neste caso. Mas nunca poderá estar em causa (em nenhum crime grave, ou, pelo menos de uma certa gravidade, a ponderar com bem calibrada balança) cogitar-se a aplicação de uma pena única que pudesse vir a ser tão baixa que colocasse em risco os limites mínimos de prevenção. 2. Ao procurar identificar-se e ponderar-se a personalidade do arguido expressa nos factos, são factos gerais de vida a ter em conta: trata-se de atentar num complexo processo de socialização e de inserção (criação de uma personalidade normativa), ou, pelo contrário, de uma Rechtsfeindschaft, de inimizade pelo Direito, com marginalidade mais ou menos ativa, inadequação e repúdio pelas normas da comunidade (cf. Ac. STJ de 09-01-2008, proferido no Proc. nº 3177/07). A personalidade do arguido não se analisa apenas no percurso de vida, mas também como que “exala” dos próprios factos criminosos cometidos, em apreciação nos autos. Por exemplo, circunstâncias, modus operandi, são elementos que parecem modular um vulto da personagem que se vai tornando clara, nítida, com a junção de elementos que se vão acumulando. A personalidade do arguido não é de molde a plenamente tranquilizar a comunidade quanto ao seu comportamento futuro (que, obviamente, se deseja venha a ser normativo, aproveitando da possibilidade de “repensar a sua vida”, em reclusão, normalmente), reclamando-se quer em prevenção especial quer em prevenção geral, e não ultrapassando a sua culpa, uma pena não abaixo do razoável para manter as expetativas sociais de defesa da legalidade. A culpa do arguido é muito elevada, pelo desvalor das ações que quis empreender e concretizou e do desvalor dos resultados que procurou e conseguiu efetivar. O dolo direto e intenso. Enfim, tendo em atenção a moldura penal em concreto, a pena aplicada não se revela desproporcional nem contrária às regras da experiência, nem às exigências de prevenção e não excede a culpa do arguido, que é muito grave. Em concreto, a moldura do concurso do cúmulo jurídico em apreço encontra-se no seguinte intervalo abstrato: entre uma pena mínima de 12 (doze) anos de prisão e uma pena máxima de 25 (vinte e cinco) anos de prisão. Ou seja, foi arbitrada em 14 anos de prisão, abaixo do primeiro sexto da moldura abstrata aplicável. Embora haja critérios matemáticos (até em direito comparado) ancilares da decisão, a verdade é que não se encontram legalmente determinadas entre nós penas tarifadas ou algoritmos determinados legalmente, avultando não um prudencialismo subjetivista (eufemisticamente apresentado, outrora sobretudo, como “arte de julgar”), mas o evidenciar de uma crença do Direito, e especificamente da Lei, nas capacidades humanas de autonomamente ponderar, com critérios nem sempre explícitos ou facilmente explicitáveis no seu pormenor ou na sua génese (designadamente a genealogia por vezes sinuosa da formação da convicção), porque holísticos, e fazendo intervir elementos quantitativos e qualitativos. E, contudo, critérios absolutamente sindicáveis na sua enunciação. Parâmetros que apontam para esse holismo que se fundamenta em factos (de diverso tipo) e não em subjetividades, mas também não meramente em fórmulas abstratas, são os que se recordam nomeadamente no Acórdão deste STJ proferido no Proc.º n.º 537/17.2 GACSC. S1 (Relatora: Conselheira Conceição Gomes), ou no Acórdão do STJ de 27JAN16, em que foi relator o Conselheiro Santos Cabral, ou ainda o Acórdão do STJ de 12FEV14, em que foi relator o Conselheiro Pires da Graça. A medição ao milímetro da “bondade”, com que se identificaria a Justiça, como terá dito uma pintora e poeta ucraniana contemporânea, não possui todavia instrumentos de medição taxativos nem de precisão tão exigente, e ao mesmo tempo tão formal(ista). Não prescindindo do rigor, prefere-se a metáfora de uma proporção geométrica e a velha régua de Lesbos do Estagirita, que se afeiçoa ao objeto medido[10]. O objeto (seja o quid factual, seja a pessoa do agente) não é indiferente ao sujeito cognoscente e decisor, muito pelo contrário. Temos ademais intramuros remissões da Justiça para outros vetores como brandura, suavidade, afabilidade, caridade, misericórdia e até amor. Todos eles se encontram, por exemplo, no séc. XVI, em Amador Arrais[11]. E já em António de Lisboa, e mais perto de nós, v.g. em Sampaio Bruno e Teixeira de Pascoaes; no estrangeiro, entre muitos, em Raissa Maritain e Luigi Lombardi Vallauri[12]. Porém, o caminho que vai dessas altas associações ao direito concreto e aplicável, passa pela mediação da Lei, e da jurisprudência, não sendo legítimo ao julgador, porque não comunga ou contacta diretamente com tais essências (nem possui uma ciência infusa medieval), julgar por aplicação direta de qualquer delas, o que seria uma forma de subjetividade, perigosíssima. Por isso, aliás, nem sequer o direito natural é recomendado ao comum dos juristas por um expoente contemporâneo do jusnaturalismo como Michel Villey[13]. 3. Descendo assim ao concreto. Trata-se de um homicídio qualificado, que se analisa no facto de alguém matar outra pessoa em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade. A moldura penal vai de 12 a 25 anos de prisão, como é sabido. Ora, a pena de 14 anos de prisão encontra-se já num nível bastante baixo das possibilidades de punição, tendo já levado em consideração os elementos que militam em favor do Recorrente: o seu caráter de delinquente primário, o seu percurso de vida integrado, a inexistência de reações sociais a ele contrárias, o decurso de oito anos desde a prática do crime, desde logo. E, ainda, as alterações da matéria de facto provada, introduzidas pelo Acórdão recorrido, com a eliminação do rol dos factos provados dos que agora integram os factos não provados seguintes: “- No percurso por si efetuado, e quando circulava na Rua dos ..., na localidade da ..., no sentido sul-norte, ou seja, no sentido F...-T..., em direção às mencionadas instalações da empresa “L..., U.C.R.L.”, o arguido viu que ali se encontrava o referido CC, parado junto à lateral esquerda do seu veículo automóvel, de matrícula ..-..-OC, o qual estava estacionado na berma da apontada Rua dos ..., no sentido oposto, atento o seu sentido de marcha, a uma distância da faixa de rodagem de 1,87 metros;
- Suspeitando (nesse percurso) que aquele CC esperava que a sua então mulher, BB, saísse do local de trabalho para a interpelar, porquanto estava a realizar o turno das 21 horas às 5 horas, o arguido formulou o propósito de lhe tirar a vida” O que pode apontar, como foi reconhecido pelo Ministério Público neste STJ, para uma menor intensidade do dolo, que considera, porém, que, “à vista da extrema gravidade objetiva do crime e da impetuosidade com que foi cometido, não cremos que tais circunstâncias tenham peso bastante para fazer pender a balança no sentido da almejada redução da pena.”. Em suma, as finalidades da pena (proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, atendendo às necessidades de prevenção geral e prevenção especial) mostram-se asseguradas, e não se ultrapassa a medida da culpa (artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal). Procedeu-se à avaliação da personalidade do arguido aos factos por ele praticados. Foram valoradas todas as circunstâncias de prognose do comportamento do arguido, atendendo às razões da prevenção especial e nomeadamente os aspetos que depõem em seu favor. Está assim a pena adequada aos critérios ínsitos nos artigos 40.º e 71.º do Código Penal. De tudo se concluindo que a pena é ajustada, necessária, proporcional e justa, e devidamente ponderada e justificada. Assim se devendo manter o Acórdão recorrido. IV Dispositivo Termos em que, decidindo em conferência, na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça se acorda em negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido. Custas pelo Recorrente. Tributação para efeitos do art. 420, n.º 3: 3UC. Taxa de Justiça: 7 UCs Supremo Tribunal de Justiça, 31 de maio de 2023 Dr. Paulo Ferreira da Cunha (Relator) Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira Adjunta) Dr. Sénio Alves (Juiz Conselheiro Adjunto) ____ [1] cf. Acs. de 09-11-2000, Proc. n.º 2693/00 - 5.ª; de 23-11-2000, Proc. n.º 2766/00 - 5.ª; de 30-11-2000, Proc. n.º 2808/00 - 5.ª; de 28-06-2001, Procs. n.ºs 1674/01 - 5.ª, 1169/01 - 5.ª e 1552/01 - 5.ª; de 30-08-2001, Proc. n.º 2806/01 - 5.ª; de 15-11-2001, Proc. n.º 2622/01 - 5.ª; de 06-12-2001, Proc. n.º 3340/01 - 5.ª; de 17-01-2002, Proc. n.º 2132/01 - 5.ª; de 09-05-2002, Proc. n.º 628/02 - 5.ª, CJSTJ 2002, tomo 2, pág. 193; de 16-05-2002, Proc. n.º 585/02 - 5.ª; de 23-05-2002, Proc. n.º 1205/02 - 5.ª; de 26-09-2002, Proc. n.º 2360/02 - 5.ª; de 14-11-2002, Proc. n.º 3316/02 - 5.ª; de 30-10-2003, CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 208; de 11-12-2003, Proc. n.º 3399/03 - 5.ª; de 04-03-2004, Proc. n.º 456/04 - 5.ª, in CJSTJ 2004, tomo 1, pág. 220; de 11-11-2004, Proc. n.º 3182/04 - 5.ª; de 23-06-2005, Proc. n.º 2047/05 - 5.ª; de 12-07-2005, Proc. n.º 2521/05 - 5.ª; de 03-11-2005, Proc. n.º 2993/05 - 5ª; de 07-12-2005 e de 15-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, págs. 229 e 235; de 29-03-2006, CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 225; de 15-11-2006, Proc. n.º 2555/06 - 3.ª; de 14-02-2007, Proc. n.º 249/07 - 3.ª; de 08-03-2007, Proc. n.º 4590/06 - 5.ª; de 12-04-2007, Proc. n.º 1228/07 - 5.ª; de 19-04-2007, Proc. n.º 445/07 - 5.ª; de 10-05-2007, Proc. n.º 1500/07 - 5.ª; de 14-06-2007, Proc. n.º 1580/07 - 5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 220; de 04-07-2007, Proc. n.º 1775/07 - 3.ª; de 05-07-2007, Proc. n.º 1766/07 - 5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 242; de 17-10-2007, Proc. n.º 3321/07 - 3.ª; de 10-01-2008, Proc. n.º 907/07 - 5.ª; de 16-01-2008, Proc. n.º 4571/07 - 3.ª; de 20-02-2008, Procs. n.ºs 4639/07 - 3.ª e 4832/07 - 3.ª; de 05-03-2008, Proc. n.º 437/08 - 3.ª; de 02-04-2008, Proc. n.º 4730/07 - 3.ª; de 03-04-2008, Proc. n.º 3228/07 - 5.ª; de 09-04-2008, Proc. n.º 1491/07 - 5.ª e Proc. n.º 999/08 - 3.ª; de 17-04-2008, Procs. n.ºs 677/08 e 1013/08, ambos desta secção; de 30-04-2008, Proc. n.º 4723/07 - 3.ª; de 21-05-2008, Procs. n.ºs 414/08 e 1224/08, da 5.ª secção; de 29-05-2008, Proc. n.º 1001/08 - 5.ª; de 03-09-2008, no Proc. n.º 3982/07 - 3.ª; de 10-09-2008, Proc. n.º 2506/08 - 3.ª; de 08-10-2008, nos Procs. n.ºs 2878/08, 3068/08 e 3174/08, todos da 3.ª secção; de 15-10-2008, Proc. n.º 1964/08 - 3.ª; de 29-10-2008, Proc. n.º 1309/08 - 3.ª; de 21-01-2009, Proc. n.º 2387/08 - 3.ª; de 27-05-2009, Proc. n.º 484/09 - 3.ª; de 18-06-2009, Proc. n.º 8523/06.1TDLSB - 3.ª; de 01-10-2009, Proc. n.º 185/06.2SULSB.L1.S1 - 3.ª; de 25-11-2009, Proc. n.º 220/02.3GCSJM.P1.S1 - 3.ª; de 03-12-2009, Proc. n.º 136/08.0TBBGC.P1.S1 - 3.ª; e de 28-04-2010, Proc. n.º 126/07.0PCPRT.S1” (cf. Acórdão deste STJ de 2010-09-23, proferido no Proc.º n.º 10/08.0GAMGL.C1.S1). |