Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2009/08.7TBALM-A.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: NUNO ATAÍDE DAS NEVES
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
FALTA DE CONTESTAÇÃO
PODERES DO JUIZ
INTERPRETAÇÃO DA LEI
CONCEITO INDETERMINADO
PROVA PERICIAL
ABUSO DO DIREITO
BOA FÉ
EQUILÍBRIO DAS PRESTAÇÕES
Data do Acordão: 05/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I - O julgamento das contas segundo o prudente arbítrio do juiz, nos termos do art. 943º nº 2 do CPC, é o que resulta de uma actuação judicial segundo critérios de  ponderação cautelosa e razoável, abstraído das regras do ónus da prova, informada pelas regras da experiência, podendo e devendo o juiz, tendo em vista suprir eventuais lacunas ou dificuldades probatórias, ordenar oficiosamente as diligências probatórias que entenda adequadas, procurando obter um valor que, com forte e séria probabilidade, envolvendo a menor margem de erro e sem correr  riscos expressivos, constitua o valor mais aproximado da realidade, assim se evitando um “non liquet”.

II - Não se confundindo a actividade decisória do juiz, balizada no art. 943º nº 2 do CPC, com o poder discricionário a que se refere o art. 679.º do CPC, nem com ponderação arbitrária, o conceito de “prudente arbítrio”, embora concedendo ao juiz alargados poderes de indagação dos factos, sem visar a “certeza absoluta” no julgamento das contas, não abdica de fundadamente ser encontrado o valor que traduza proximidade com a realidade das contas - a realidade que é possível alcançar, de forma cuidada, crítica e inteligente,  com base em elementos que o juiz entendeu confiáveis e dotados de relativa segurança e “certeza relativa”.

III - O afastamento da cominação prevista no Código de Processo Civil de 1876, com a condenação do réu que não apresentasse contas no pagamento das contas que o autor viesse a apresentar, procurou afastar situações em que tal condenação, por ser “manifestamente exorbitante e excessiva”, se viria a configurar como uma situação de abuso de direito (art. 334º do CC), na óptica de desequilíbrio no exercício jurídico e flagrante desproporcionalidade entre a vantagem de uma das partes e a desvantagem da outra.

IV – O art. 943º nº 2 do CPC, que determina que o juiz deve julgar as contas segundo o seu prudente arbítrio, inscreve-se no ordenamento jurídico em plena harmonia com o art. 334º do CC, pelo que, concluindo-se que a decisão se compagina perfeitamente com aquela regra de actuação decisória, pela mesma ordem de razões se deverá concluir que dessa decisão não resulta abuso de direito.

Decisão Texto Integral:

I Relatório

AA intentou acção especial de prestação de contas contra BB (falecido na pendência desta), enquanto cabeça de casal na herança de CC, falecida em .../.../1991, visando a prestação de contas, por este, dos anos de 1992 a 2010.

O réu foi citado para os termos da acção.

Não tendo o réu contestado a obrigação de prestar contas, também não as apresentou no prazo que lhe foi concedido, pelo que por despacho de 20/5/2010, foi determinado: «por não ter o réu procedido à apresentação das contas, concedo à autora o prazo de 30 (trinta) dias para apresentar as respectivas contas, nos termos previstos no art. 1015°, n° 1 CPC» (então em vigor).

A autora apresentou as contas que constam de fls. 36 a 39.

Por despacho de 14/12/2010 determinou-se a realização de perícia, de forma a apreciar as contas apresentadas pela autora.

Nomeado perito, o mesmo apresentou nos autos o relatório pericial que consta de fls. 300 e seg. dos autos, os quais foram objecto de contraditório pelas partes.

Falecido o cabeça de casal, no âmbito dos autos de inventário foram habilitados os seus herdeiros.

No articulado que apresentou, o chamado DD, além de ter contestado as contas apresentadas, requereu a realização de determinadas diligências probatórias, reputadas de impertinentes, dado que a aprovação das contas estava dependente da junção de documentos por parte do cabeça de casal.

Foi proferida decisão que, julgando que as contas da autora não foram validamente prestadas, recusou a aprovação das mesmas.

Inconformada com tal decisão veio a Autora interpor recurso de apelação, tendo apresentado as suas alegações, com as seguintes conclusões:

«1 - 0 Juiz deve resolver todas as questões que as Partes tenham submetido à sua apreciação (art.° 608° n° 2, C. P. C).

2 - Por requerimento de 10/01/2018, a Autora suscitou a questão da litigância de má-fé do Réu BB, e do seu Ilustre Mandatário, Sr. Dr. EE.

3  - Esta questão deveria ter sido decidida na sentença final, pois foi o primeiro despacho após a apresentação do requerimento requerido.

4  - Não se tendo pronunciado sobre o requerimento da Autora, a sentença recorrida enferma de omissão de pronúncia, o que provoca a sua nulidade, como estabelece o art.° 615° n° 1 ai. d) e n° 4, do C. P. C.

5  - Existe insuficiência da matéria de facto provada pelo que, face aos elementos constantes dos autos e atento o disposto no art.° 607° n°s 3 e 4, pelo que se impugna a decisão sobre a matéria de facto, ao abrigo do disposto no art.° 640° n° 1 b), do C. P. C.

6  - Os elementos constantes dos autos impõem que se considerem provados os seguintes factos, que devem ser aditados:

3 - O Réu, devidamente citado, não apresentou as contas da administração.

4 - Em 27/09/2010, a Autora presentou as contas de administração da herança que constam de fls. 36 e seguintes, instruídas com diversos documentos, apresentando um saldo de € 779.495,08, até 31/08/2010.

5 - Em 14/09/2011, o Perito nomeado apresentou o Relatório Pericial de fls. 300 e seguintes, o qual apresenta um saldo de € 385.253,46, até à data de 31/08/2010.

6 - A Autora expressamente aceitou o parecer do Sr. Perito, declarando nada ter a reclamar quanto ao mesmo - requerimento de 30/10/2011.

7 - Os factos referidos estão provados documentalmente, e são essenciais para a boa decisão da causa.

8 - No Processo Especial de Prestação de Contas, não tendo o Réu cumprido o dever de as apresentar tem o Autor a faculdade de o fazer, não podendo estas ser contestadas pelo Réu.

9 - As contas apresentadas pelo Autor são julgadas segundo o prudente arbítrio do julgador (art.° 943° C. P. C).

10 - A apresentação de contas pela Autora esteve sujeita a diversos condicionalismos: grande número de bens; falta de qualquer informação sobre a administração da herança, incluindo a falta de obtenção do número de contribuinte da herança; falta de documentos, pois nunca lhe foram entregues pelo Réu; as contas respeitavam a um período muito longo - quase vinte anos.

11 - Como se afirma em acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, «o tribunal não pode ter as mesmas exigências de rigor que teria nas que fossem apresentadas pelo devedor, pois o requerente da prestação forçada de contas, na maior parte dos casos, não disporá nem conseguirá obter os documentos comprovativos das receitas e despesas realizadas por outrem durante um período de tempo mais ou menos longo.»

12 - E no mesmo aresto, e no que tange ao conceito de prudente arbítrio, o mesmo aresto entende que o «prudente arbítrio inscreve-se na apresentação das provas pelo juiz, devendo este utilizar dados da experiência comum, permitindo-lhe valorar a prova trazida para os autos em termos bastante mais flexíveis do que numa mera análise mais estrita da prova, segundo os critérios de certeza judicial.»

13 - As contas apresentadas pela Autora rodearam-se do esforço de as sustentar e fundamentar na documentação possível, bem como em critérios legais, designadamente quanto aos rendimentos de rendas.

14 - 0 autor num processo de prestação de contas não tem os documentos que comprovam as receitas e despesas da administração, ou poderá tê-los em número irrelevante, pois é isso que justifica o seu pedido de prestação de contas.

15 - Foi realizada uma perícia às verbas apresentadas pela Autora, que não questionou as verbas indicadas pela Autora nas suas contas, mas defendeu que deveriam «ser efectuadas algumas correcções na parte da receita».

16 - A Recorrente aceitou o Relatório e as suas conclusões.

17 - 0 objectivo principal da Acção de Prestação de Contas é a condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.

18 - Tendo aceitado o Relatório Pericial, a Recorrente aceitou tacitamente o saldo apresentado pelo Sr. Perito.

19 - A perícia destina-se a auxiliar o julgador na percepção de factos a que deva ser aplicado o direito, quando a análise desses factos exija conhecimentos especiais.

20 - No Acórdão da Relação de Coimbra a que atrás se fez referência afirma-se, relativamente às conclusões periciais: «só será caso de afastá-las quando haja desacordo entre as premissas e as conclusões, ou se devam colocarem crise os dados que as fundamentam».

21 - Na sentença recorrida não é feita uma análise critica do Relatório Pericial, designadamente não é apontado qualquer desacordo ou contradição entre as premissas e as conclusões.

22 - Afirma-se na sentença recorrida que o apuramento do saldo das contas não se compadece com o recurso a valores estimados, com escasso suporte documental.

23 - É inquestionável que a falta de documentos só pode ser imputada ao Réu e Cabeça-de-Casal, que não apresentou contas nem forneceu documentos que permitissem a sua elaboração.

24 - 0 Relatório Pericial recorre às características dos terrenos e nos rendimentos que poderão advir do seu arrendamento, ou da sua exploração, designadamente pela venda de cortiça.

25-0 Relatório pericial socorre-se dos diversos diplomas que fixam os valores do arrendamento rural, bem como de tabelas de produção e estatísticas, no que se refere à venda da cortiça.

26 - Em situação idêntica à dos autos, o acórdão da Relação de Coimbra que temos vindo a referir, debruçando-se sobre um Relatório Pericial elaborado com os métodos utilizados na Perícia dos autos, conclui: «Não tendo qualquer uma das verbas suporte documental apresenta-se-nos, dentro de um juízo de prudente arbítrio, razoável alterar o valor das mesmas para aquele a que chegou o autor do relatório pericial, valor esse que, apesar de se basear em probabilidades é aquele que apresenta mais garantias de fidedignidade, dada a especificidade das matérias em causa e conhecimentos revelados na execução desse relatório».

27 - É este entendimento que se considera ser o que melhor concretiza a noção de prudente arbítrio, ínsita no art.° 943° n° 2.

28  - Do Relatório Pericial resulta um saldo - não posto em causa pela Autora - que deve ser aceite, através da aprovação das contas.

29 - Tal entendimento foi também sufragado em Acórdão da Relação do Porto, já anteriormente citado: «E a questão que deve colocar-se, parece-nos, não passa pela rejeição, em absoluto, das contas; na medida em que as dificuldades encontradas resultam, em parte substancial, da falta de documentação, imputável em grande medida à Ré, aquela rejeição constituiria, como afirma a Recorrente, num claro benefício ao infractor.

O que pode ponderar-se é se os elementos dos autos permitem, no critério largo admitido pelo legislador, a fixação com razoabilidade de um montante líquido de saldo.»

30 - O prudente arbítrio do julgador não se destina a permitir que este não aprove as contas forçadas apresentadas pelo autor, apenas por falta de documentos.

31 - O prudente arbítrio destina-se a permitir ao julgador a aprovação das contas e a fixar um saldo, sem estar sujeito ao rigor da apreciação da prova numa análise mais restrita.

32 - A posição defendida na sentença do Juízo Local Cível ..., a prevalecer, levaria, em última análise, à impossibilidade prática de o autor ver aprovadas as suas contas, pois o normal da situação é ele não ter os documentos que as comprovam.

32 - Ficaria posta em causa a garantia jurisdicional do direito do autor de ver aprovadas as contas.

33 - E isto seria um prémio para o obrigado a prestar contas, pois poderia sempre evitar que elas viessem a ser validamente prestadas, não se apurando assim qualquer saldo a pagar.

35 - 0 resultado a que se chegou nas contas apresentadas nos autos, com as correcções introduzidas pelo relatório Pericial, permite fixar um saldo de € 385.253,46, que se encontra sustentado nos métodos utilizados na Perícia.

Nestes termos, e no mais que for doutamente suprido por Vossas Excelências, deve ser revogada a sentença do Juízo Local Cível ..., e proferido acórdão que aprove as contas apresentadas, com as correcções introduzidas pela Relatório Pericial, condenando-se no pagamento do saldo de € 385.253,46, o que será de JUSTIÇA!»

Não foram apresentadas contra-alegações.

Veio a ser proferido Acórdão que julgou a apelação procedente, revogando a sentença recorrida e, consequentemente, julgou acção procedente “assim aprovando as contas apresentadas pela Autora com as correcções introduzidas pelo Relatório Pericial, fixando o saldo devedor das contas relativas aos anos de 1992 a 2010, respeitantes à herança aberta por óbito de CC, e administrada pelo então cabeça de casal, BB, no valor total de 385.253,46 € (trezentos e oitenta e cinco mil duzentos e cinquenta e três euros e quarenta e seis cêntimos), de que o mesmo foi responsável, de acordo com o relatório pericial constante dos autos a fls. 300 e sgts., de onde constam os valores parciais respeitantes a cada um dos indicados anos. Valor esse a considerar no processo de inventário a que estes autos se encontram apensos.”

Inconformada, veio a cabeça-de-casal interpor recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, oferecendo as suas alegações, que terminam com as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso de revista interposto do Acórdão que “… revogando a sentença recorrida – julgou a acção procedente assim aprovando as contas apresentadas pela Autora com as correções introduzidas pelo Relatório Pericial, fixando o saldo devedor das contas relativas aos anos de 1992 a 2010, respeitantes à herança aberta por óbito de CC, e administrada pelo então cabeça de casal, BB, no valor total de 385.253,46 € (trezentos e oitenta e cinco mil duzentos e cinquenta e três euros e quarenta e seis cêntimos), de que o mesmo foi responsável, de acordo com o relatório pericial constante dos autos a fls. 300 e segs., de onde constam os valores parciais respeitantes a cada um dos indicados anos. Valor esse a considerar no processo de inventário a que estes autos se encontram apensos”, condenando em custas o apelado.

2. Entende a recorrente, presentemente cabeça de casal no processo em epígrafe, após o decesso de seu Pai, BB que a decisão em crise não fez uma correcta interpretação e aplicação da lei à factualidade dos autos pelo que, deve ser revogada, com as legais consequências.

3. Na verdade, a revista ora interposta ex vi do artº 671º nº 1 do C.P. Civil, tem como fundamento, nos termos do artº 674º nº 1 al. a) do C.P.C., a violação de lei substantiva, consistindo tal violação no erro de interpretação e de aplicação da lei, designadamente, do disposto no art. 943º nº 2 do mesmo compêndio legal que assim foi desrespeitado.

4. Com efeito, o que está em causa é a interpretação e aplicação do previsto nesse normativo legal, no que toca ao “prudente arbítrio do julgador”, o qual, foi entendido de forma diversa, para não dizer mesmo oposta, pelo julgador da primeira instância e o julgador da segunda instância.

5. Na verdade, a sentença proferida no tribunal comarcão decidiu que “… as contas da Autora não foram validamente prestadas, recusando-se a aprovação das mesmas”.

6. Estamos pois perante duas decisões judiciais de conteúdo diametralmente oposto e fundando-se, ambas, no que entenderam ser a correcta e adequada interpretação e aplicação da lei ao caso dos autos.

7. A recorrente entende que o erro de direito em causa deve ser assacado ao julgador da segunda instância.

8. Assim, foram juntos documentos relativos aos IMI’s pagos entre Outubro de 1992 e 31 de Dezembro de 2007, relativos aos imóveis identificados nas verbas nº 7, 8, 9, 10, 12, 13 e 14 da Relação de Bens apresentada no processo de inventário a que estes autos estão apensos.

9. De igual modo e, por exemplo, dois “contratos de arrendamento rural a agricultor autónomo”, relativos ao prédio rústico denominado “M...”, celebrado em 8/11/1991 e, o relativo a dez hectares do prédio rústico denominado “C....”, ambos com assinaturas reconhecidas notarialmente, com duração de dez anos, além de documentos respeitantes a pagamentos recebidos pelo cabeça de casal, nesse lapso de tempo, relativos, designadamente, a bens imóveis que integram a herança indivisa, nomeadamente, os prédios rústicos denominados “ M...”, “C....” – cerca de dez hectares – e “T...”, 37 recibos, anos de 1992 e 2008.

10. Além de dois contratos de arrendamento rural, em fotocópia, celebrados em 8/11/1991 em ..., pelo cabeça de casal falecido, com FF, respeitante a cerca de 233 hectares dos prédios rústicos denominados “Herdade ...”, “R...” e “L...”, sitos na freguesia ..., concelho ..., entre outros.

11. Sublinhe-se também a junção aos autos de 1 documento manuscrito, com várias folhas e diversas indicações e anotações, juntos pelo então cabeça de casal e por ele elaborados, a fls. 812 a 815, a partir do falecimento de sua mulher, até 2008, com a indicação das receitas, despesas e dívidas à herança e também de uma Declaração de 24.11.2017, de GG, arrendatário de alguns dos prédios rústicos supra identificados, v.g. os prédios “M...” e “C....”.

12. O Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 27.03.2014, recorrentemente convocado nas decisões de primeira e segunda instância “1. A prestação de contas destina-se a apurar e a provar as receitas obtidas e as despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se”. E, continua no seu nº 2: “O apuramento do saldo das contas não se compadece com uma apreciação com recuso a valores estimados;”.

13. E, finalmente no nº 3, do sumário do Acórdão em apreço: “A falta de apresentação de contas pelos réus não tem o efeito de validar as contas que sejam apresentadas pelas autoras, independentemente da sua apreciação, nesse sentido se podendo afirmar que aquela omissão não tem efeito cominatório”.

14. É que, a decisão recorrida, configura um verdadeiro abuso de direito, atento o disposto no artº 334º do Código Civil, o que desde já se invoca, considerando-se eivada de tal vício a decisão em crise.

15. O artº 389º do C. Civil dispõe que “a força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal”.

16. No caso vertente, o julgador da 1ª instância, no seu prudente arbítrio entendeu que as contas da autora não foram validamente prestadas, todavia, o julgador na 2ª instância, entendeu o contrário, parece resultar um verdadeiro efeito cominatório, traduzido na fundamentação e decisão recorrida.

17. Aliás, como bem se diz na sentença da lª instância “ a pouca colaboração do falecido cabeça de casal na junção de documentos relevantes para perceber as receitas e despesas da herança não pode ter por consequência a aprovação de contas, apresentadas pela requerente, grandemente sustentadas em estimativas e extrapolações, além de que, não podemos esquecer, não estamos no domínio de uma acção declarativa, mas sim no âmbito de um processo em que, por força do artº 943º nº 2 do C.P. C., cabe ao julgador a última palavra na aprovação das contas, ao qual compete julgar tais contas segundo um prudente arbítrio, (sublinhado nosso), prudente arbítrio este que não se compadece com a aprovação de contas alicerçadas no modo já descrito”.

18. Não parecem ter razão, os Senhores Desembargadores quando afirmam que “… na situação sub judice não encontramos qualquer fundamento ou razão válida que não nos permita aceitar como válido o trabalho do técnico que apreciou as contas apresentadas pela autora face à omissão do réu”.

19. Contudo, também ali afirmam a pág. 12: “O Relatório aponta alguns dados que considera que poderão não corresponder inteiramente à realidade, mas supera tal deficiência (proveniente do facto de não deter todos os elementos documentais que o habilitassem a ser mais exacto), com valores resultantes da lei e da sua experiência de perito”.

20. Ora, é o próprio senhor perito, designadamente a fls. 302 que escreve: “fez-se uma apreciação das contas apresentadas, considerando que durante o período de administração existiram condições normais de exploração nos locais onde se inserem os prédios e pressupondo que os prédios foram utilizados de forma regular durante o período considerado”.

21. E acrescenta: “Por fim, refere-se algumas deficiências nas cotas apresentadas não permitindo apurar de forma mais real as receitas ocorridas, fazendo referência à necessidade fazer prova de existência de área de montando na verba 8 e 9 e a necessidade de conhecimento dos contratos d arrendamento das verbas inscritas que não estão presentes nos autos”.

22. Finalmente, junta como anexo, a fls. 315 e seguintes um trabalho sob a epígrafe “A economia do sector da cortiça em Portugal. Evolução das actividades de produção e de transformação ao longo dos séculos XIX e XX (documento de trabalho)” da autoria de Amério M.S. Carvalho Mendes.

23. Cumpre assim dizer que o próprio senhor perito tem dúvidas acerca dos elementos que utilizou para elaboração do Relatório Pericial, a sentença de 1ª instância firma terem-se verificado extrapolações e as regras da experiência comum que tantos os julgados na 1ª como na 2ª instância invocas e consideram possuir, não permitem num dos casos aprovar as contas da A., enquanto que no outro o fazem, fundando-se na probabilidade séria como afirmam a pág. 13, de constituírem os valores recebidos e suportados pelo então R.

24. Por tudo isto, não pode nem deve o prudente arbítrio do julgador ínsito no art. 943º nº 2 do C.P.C., de que todos os julgadores se socorrem e a que se arrimam, ter resultado tão oposto, in casu, baseando-se em trabalho de natureza académica e em elementos pretensamente de facto que o então cabeça de casal dos documentos que juntou, v.g. a Declaração do arrendatário Evaristo Pereira e quando se diz aí quanto à natureza do Contrato de Arrendamento, seu valor de renda, duração e não existência de cortiça na quantidade e qualidade que a A. e depois o senhor perito, embora com algum cuidado afirmaram existir, como a natureza da cultura agrícola nesses prédios rústicos realizada, que não permite atingir os valores estimados, em estatísticas, falhas de comprovação com a realidade dos factos.

Termos em que, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o Acórdão recorrido, por incorrecta interpretação e aplicação da lei, designadamente do art. 943º nº 2 do C.P.C. e art. 334º do C. Civil, com as legais consequências.”


O Autor recorrido contra-alegou, sustentando a inadmissibilidade da revista, face ao valor da acção, no mais pugnando pela improcedência do recurso e confirmação do Acórdão recorrido.


Cumpre decidir, tendo presente que são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o objeto do recurso, estando vedado ao tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, com excepção daquelas que são de conhecimento oficioso (cfr. art. 635º nº 4, 639º nº 1, 608º nº 2, ex vi art.  679º, todos do CPC).


    Da admissibilidade do recurso:

A cabeça de casal, ré na ação, veio apresentar o presente recurso de revista nos termos do artigo 671.º, n.º 1 do CPC.

Tendo em conta o valor da causa (€ 387.552,13), a legitimidade da recorrente e o teor do acórdão recorrido, conclui-se pela admissibilidade do presente recurso de revista quanto ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos do disposto nos artigos 629º nº 1, 631º nº1, 671º nº 1 e 674º nº 1 al. a) e c) do CPC.


Questões a decidir:

Na presente ação especial de prestação de contas, o Tribunal de 1ª instância julgou que as contas da autora não haviam sido validamente prestadas, pelo que, consequentemente, recusou a aprovação das mesmas.

Por seu turno, no Acórdão de 4-11-2021, a Relação de Lisboa julgou o recurso de apelação procedente e revogou a sentença recorrida, decidindo nos seguintes termos:

“… julgam a acção procedente assim aprovando as contas apresentadas pela Autora com as correcções introduzidas pelo Relatório Pericial, fixando o saldo devedor das contas relativas aos anos de 1992 a 2010, respeitantes à herança aberta por óbito de CC, e administrada pelo então cabeça de casal, BB, no valor total de 385.253,46 € (trezentos e oitenta e cinco mil duzentos e cinquenta e três euros e quarenta e seis cêntimos), de que o mesmo foi responsável, de acordo com o relatório pericial constante dos autos a fls. 300 e sgts., de onde constam os valores parciais respeitantes a cada um dos indicados anos. Valor esse a considerar no processo de inventário a que estes autos se encontram apensos.”.

Inconformada com a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, a cabeça de casal HH veio reagir através da presente revista questionando a correção da interpretação e aplicação, por parte do tribunal recorrido, do critério decisório previsto no artigo 943.º, n.º 2 do CPC relativo ao “prudente arbítrio do julgador”.

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Antes do mais, deixe-se registado que, estando vedado ao STJ conhecer de eventual erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, apenas lhe sendo permitido sindicar a actuação da Relação nos casos da designada prova vinculada ou tarifada, ou seja quando está em causa um erro de direito (arts. 674.º, n.º 3, e 682.º, nº 2)[1], inscreve-se a presente revista na dimensão jurídica da causa, qual seja, como se disse, a interpretação e aplicação do conceito “prudente arbítrio” inscrito no art. 943º nº 2 do CPC, cumprindo-nos aferir da conformidade do Acórdão recorrido com tal conceito, de harmonia com os termos em que o legislador o configurou e também com os contornos que a jurisprudência e também a doutrina o foram densificando, para, ante tal análise, ponderarmos se o acórdão recorrido, ao julgar validamente prestadas as contas apresentadas pela autora, violou a lei substantiva aplicável, máxime as disposições legais que a recorrente chama à colação, o art. 334º do CC e o art. 943º nº 2 do CPC, para fundamentar a ocorrência de erro de direito.


Renovemos aqui o acervo fáctico que as instâncias julgaram provado:

1 - BB e até à data da sua morte (24/1/2018) exerceu as funções cabeça de casal na herança de CC, falecida em .../.../1991.

2 - Os presentes autos encontram-se apensados ao proc. de inventário por óbito de CC, no qual se encontram relacionados os bens que foram objecto da administração que ora se discute.

3 - O Réu, devidamente citado, não apresentou as contas da administração.

4 - Em 27/09/2010, a Autora apresentou as contas de administração da herança que constam de fls. 36 e seguintes, instruídas com diversos documentos, tudo aqui dado por reproduzido, apresentando um saldo de € 779.495,08, até 31/08/2010.

5 - Em 14/09/2011, o Perito nomeado apresentou o Relatório Pericial de fls. 300 e seguintes, aqui dado por reproduzido, o qual apresenta um saldo de € 385.253,46, até à data de 31/08/2010.

6 - A Autora expressamente aceitou o parecer do Sr. Perito, declarando nada ter a reclamar quanto ao mesmo - requerimento de 30/10/2011.


Entendeu-se na sentença da 1ª instância que “o apuramento do saldo das contas efetuada pela autora e, em parte sufragado pelo relatório pericial, não se compadece com uma apreciação com recurso a valores estimados, com escasso suporte documental, método que não podemos sufragar.”. Acrescenta que “os documentos juntos pelo falecido cabeça de casal são escassos e também não permitem uma apreensão global e rigorosa das receitas e despesas que a herança teve nos anos aqui em causa, de forma a apurar um determinado saldo. Essa escassez é notória quanto às receitas dos contratos de arrendamento e da extração de cortiça.”.

Conclui, por sua vez, que “a pouca colaboração do falecido cabeça de casal na junção de documentos relevantes para perceber as receitas e despesas da herança não pode ter por consequência a aprovação de contas, apresentadas pela requerente, grandemente sustentadas em estimativas e extrapolações, além de que, não podemos esquecer, não estamos no domínio de uma ação declarativa, mas sim no âmbito de um processo em que por força do art. 943.º, n.º 2 do CPC, cabe ao julgador a última palavra na aprovação das contas, ao qual compete julgar tais contas segundo um prudente arbítrio, prudente arbítrio este que não se compadece com a aprovação das contas alicerçadas no modo já descrito.”.


Por seu turno, o Acórdão recorrido, face à omissão do Réu, considerou ser de atender ao resultado da perícia realizada nos autos, por se revelar “suficientemente elucidativa e reveladora do que poderão ter sido as contas no período em questão”.

Sustentou ainda que “dificilmente se conseguiria alcançar um valor aproximado da realidade mais fidedigno, menos parcial, do que aquele que foi apresentado pelo Exmo. Senhor Perito.

Assim, “usando do prudente arbítrio a que alude o n.° 2 do art. 943.º do CPC, e de acordo com a experiência comum por nós assumida enquanto julgadores e que se mostra também reflectida na perícia realizada”, o Acórdão recorrido considerou justificadas as verbas vertidas no apontado relatório pericial, “atenta a probabilidade séria de constituírem os valores recebidos e suportados na administração dos bens por parte do Réu, no período compreendido entre os anos de 1992 e 2010.”


Analisada a fundamentação exarada no acórdão recorrido e os princípios que nortearam a decisão aí proferida, consideramos, desde já adiantamos, que a solução aí propugnada se compagina inteiramente com o critério decisório que o legislador estabeleceu para estas acções especiais de prestação de contas, ínsito no conceito de direito “prudente arbítrio” vertido no art. 943º nº 2 do CPC.

         

Vejamos:

Como ficou dito, o Réu foi citado para apresentar contas e não o fez.

Reza o art. 943º do CPC:

1 – Quando o réu não apresente as contas dentro do prazo devido, pode o autor apresentá-las, sob a forma de conta corrente, nos 30 dias subsequentes à notificação da falta de apresentação, ou requerer prorrogação do prazo para as apresentar.

2 – O réu não é admitido a contestar as contas apresentadas, que são julgadas segundo o prudente arbítrio do julgador, depois de obtidas as informações e feitas as averiguações convenientes, podendo ser incumbida pessoa idónea de dar parecer sobre todas ou parte das verbas inscritas pelo autor.

3

4…”

Como resulta dos dois números transcritos (os demais não têm para aqui qualquer interesse), o legislador não configurou qualquer efeito cominatório à falta de apresentação de contas por parte do Réu, apenas fazendo transferir para o autor a possibilidade de ser ele a realizar tal apresentação.

Porém, no caso de o autor apresentar as contas, já o Réu que as não apresentou no prazo que para tanto lhe fora concedido, não poderá contestar aquelas, verificando-se assim, diremos, um efeito cominatório mediato, de índole meramente procedimental, sem efeitos substantivos.

A este respeito se pronunciou Alberto dos Reis (Processos especiais, vol. I, com a indicação de que se trata de Obra póstuma, Coimbra Editora, Coimbra, 1982 (reimpressão), pág. 322), explicando que “o Código de Processo Civil de 1876 cominava como sanção para o não cumprimento da obrigação de prestar as contas dentro do prazo devido a condenação do réu nas contas que o autor apresentasse; em contraste com o código de 1876, o Código de Processo Civil de 1939 e, subsequentemente, os Códigos de Processo Civil de 1961 e de 2013 alteraram a cominação do Código de 1876, de forma a que “a única sanção que o réu sofre é esta: não poder contestar as contas do autor”.

         

Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (“Código de Processo Civil anotado”, anotação ao art. 943º, vol. II, Almedina, pag. 393), “a restrição ao contraditório traduzida na inadmissibilidade legal de o réu contestar as contas apresentadas pelo autor só surge depois de já ter sido conferida oportunidade ao réu de apresentar as contas, oportunidade que este não aproveitou, de modo que este desvio ao princípio do contraditório não atenta contra as exigências de um processo equitativo, já que se apresenta racionalmente justificado, tanto mais que o réu será, em regra, a parte em melhor posição para prestar as contas”.

Não podendo o réu contestar as contas apresentadas pelo autor, não fica também o juiz condicionado com a necessária aprovação destas, impondo-se-lhe sempre a ponderação das mesmas a fim de as julgar “segundo o seu prudente arbítrio”.

         

Nesse contexto de ponderação cautelosa e prudente, procurando suprir eventuais lacunas ou dificuldades probatórias, e abstraído das regras do ónus da prova, pode o juiz ordenar oficiosamente não só a correcção de eventuais irregularidades formais das contas apresentadas pelo autor como também ordenar a junção de suporte documental para comprovação destas, assim como fazer uso dos poderes-deveres que lhe são conferidos pelo nº 2 do normativo transcrito, reveladores da “preocupação legal de que as contas sejam julgadas com base em elementos dotados de um mínimo de “certeza”, sob pena de não haver lugar a tal tipo de julgamento, apelando mais a um juízo em que se ponderem, com razoabilidade, todos os elementos disponíveis, procurando obter um valor que, com forte probabilidade, envolva a menor margem de erro”. (Abrantes Geraldes, …, ob. cit., pag. 394).

O conceito de “prudente arbítrio”, cuja ratio é evitar um “non liquet”, tem vindo, como dissemos, a ser densificado pela jurisprudência, designadamente em diversos Acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça, designadamente no Ac. STJ de 18-01-2011 (revista n.º 954/03.5TBMAI.P1.S1), segundo o qual “Se os réus obrigados à prestação das contas as não apresentarem, as mesmas são apresentadas pelos autores, ficando os réus impedidos de as contestar. A impossibilidade de os réus as contestar não tem a consequência de serem aprovadas quaisquer contas que os autores apresentem, como era regra na vigência do CPC de 1876 (arts. 611.º, § 1.º, e 612.º, § 1.º). As contas apresentadas pelos autores são julgadas segundo o prudente arbítrio do julgador, depois de obtidas as informações e feitas as averiguações convenientes, podendo ser incumbida pessoa idónea de dar parecer sobre todas ou parte das verbas inscritas pelos autores (art. 1015.º do CPC). O prudente arbítrio referido não se confunde com o poder discricionário a que se refere o art. 679.º do CPC. Este conceito exige que o juiz justifique e fundamente a sua decisão, recolhendo as informações, ordenando averiguações e obtendo pareceres de pessoa idónea e tendo de acolher o resultado dessas diligências, apenas se movendo com grande liberdade e largueza, no seu julgamento."

Assim como no Ac. STJ de 06-07-2006 (revista n.º 1870/06), segundo o qual quando as contas são apresentadas pelo Autor, impende sobre o julgador, não só a realização das diligências que considere indispensáveis, como também a utilização dos dados da experiência comum, como factores conducentes à formulação do juízo relativo ao prudente arbítrio de que o juiz deve lançar mão para o apuramento do saldo que considere ser devido - art. 1015.º, n.º 2, do CPC.”

Também no Ac. STJ de 07-03-2019 (Revista n.º 3520/06.0TVLSB.L3.S1) se afirma que “Na acção de prestação provocada de contas, entrando o réu em revelia, compete ao autor apresentar as contas, as quais não podem ser contestadas, sendo as mesmas julgadas segundo o prudente arbítrio do julgador, depois de obtidas os elementos probatórios convenientes. O “prudente arbítrio” do julgador pressupõe uma apreciação jurisdicional necessariamente “não arbitrária”, efectuada segundo critérios de ponderação e razoabilidade, que oriente os critérios de conveniência e oportunidade que estão na sua base sempre em função da realização dos fins do processo, a partir dos factos que considere provados.”

Por fim, refira-se o Ac. de 30/11/2021, no revista nº 1120/09.1TMLSB-C.L2.S1, segundo o qual “ a circunstância de o legislador ter elegido o prudente arbítrio como critério decisório nesta matéria não equivale à consagração de uma derrogação ao princípio do dispositivo no que toca à alegação de factos que integram a causa de pedir. O legislador visou apenas afastar a ideia de “certeza” no julgamento das contas, introduzindo uma nota de ductilidade através do apelo “a um juízo em que se ponderem com razoabilidade, todos os elementos disponíveis, procurando obter um valor que, com forte probabilidade, envolva a menor margem de erro.” 

De referir também a jurisprudência das Relações, designadamente o Ac. Relação de Coimbra de 12-02-2019 (Apelação n.º 309/15.9T8FND.C1), segundo o qual “O prudente arbítrio do tribunal (referido no art. 943.º/2 do CPC), a ser usado – quando o R., não tendo contestado a obrigação de prestar contas, as não apresentou – no julgamento das contas apresentadas pelo A., “serve” para o juiz, valorando a prova em termos mais flexíveis, considerar justificadas, sem documentos, verbas de receita ou de despesa (em que não é costume exigi-los) inscritas nas contas apresentadas pelo A., mas não “serve” para o próprio juiz criar novas verbas da receita ou da despesa e muito menos impõe ao juiz o dever de obter as informações necessárias a perceber se todas as despesas e receitas foram incluídas nas contas apresentadas pelo A.”

E o Ac. Relação de Lisboa de 6-10-2016 (apelação nº 5533-03.4TBALM.L2-2), onde se dita que “Quando no art. 943, nº 2, do CPC a lei fala em “prudente arbítrio do julgador” não se refere ao exercício de um poder discricionário, sendo, antes, dado ao juiz um poder latitudinário, havendo aquele que ser entendido como pressupondo uma apreciação jurisdicional necessariamente “não arbitrária”, efectuada segundo critérios de ponderação e razoabilidade. A referida disposição legal não impõe obrigatoriamente, quaisquer que sejam as circunstâncias, a obtenção de informações, a realização de averiguações, ou a nomeação de pessoa para dar parecer, o que dependerá do caso concreto.”

E ainda o Ac. da Relação de Lisboa de 13-09-2012 (apelação nº 723/11.9TVLSB.L1-2), segundo o qual “a utilização da expressão prudente arbítrio quer dizer que a decisão do juiz depende apenas da própria vontade, não sendo determinada por quaisquer normas, regras ou leis, embora seja dirigida pela sua inteligência, reflexão ou siso.

Como a lei não diz que a vontade é discricionária, daqui decorre, tendo em conta, a contrario, o disposto no art. 679 do CPC, que esta decisão é recorrível. Mas isto apenas vai implicar o seguinte: ao prudente arbítrio do juiz recorrido, sucede-se o prudente arbítrio dos juízes do tribunal do recurso (Alberto dos Reis, Processos especiais, vol. I, Coimbra Editora, 1982, págs. 323), que, entre o mais, começarão por ver se o juiz recorrido agiu ou não com prudente arbítrio.

O que não pode fazer esquecer que, apesar disso, continua a ser uma decisão tomada com o prudente arbítrio do julgador, enformado este pelo seu saber e experiência jurídicos.

Em suma, as contas devem ser decididas pelo juiz com dependência apenas da própria vontade, dirigida esta pela sua inteligência de pessoa ponderada e com saber e experiência jurídicos.”

Assumiu o tribunal recorrido que “dificilmente se conseguiria alcançar um valor aproximado da realidade, mais fidedigno, menos parcial, do que aquele que foi apresentado pelo Exmo. Senhor Perito”, e considerando “a probabilidade séria de constituírem os valores recebidos e suportados na administração dos bens por parte do Réu, no período compreendido entre os anos de 1992 e 2010.”

No caso vertente, como já ficou dito, por falta de apresentação das contas pelo Réu, que fora citado para o efeito e se reduziu ao silêncio, fora devolvido à Autora tal ónus de apresentação das contas, o que esta veio a fazer, apresentando as mesmas nos termos que constam de fls. 36 a 39 dos autos, instruídas com diversos documentos (que o tribunal da Relação deu como reproduzidos na decisão recorrida), apresentando um saldo de € 779.495,08, até 31/08/2010.

Cabendo ao juiz apreciar e julgar tais contas, segundo o seu prudente arbítrio, entendeu o mesmo oportuno e adequado incumbir pessoa idónea para emitir parecer sobre tais contas apresentadas pela Autora, determinando, por despacho de 14/12/2010, a realização de perícia para o efeito.

Vindo o perito, cuja nomeação não foi posta em causa pela Autora apresentante das contas, a apresentar, em 14/09/2011, o Relatório Pericial de fls. 300 e seguintes (que o tribunal recorrido também deu como reproduzido na sua decisão), do qual resulta o saldo de € 385.253,46, até à data de 31/08/2010.

Como também ficou apurado, a Autora aceitou o parecer do Sr. Perito, declarando expressamente nada ter a reclamar quanto ao mesmo - requerimento de 30/10/2011, nem solicitando qualquer esclarecimento, para já não se colocar a hipótese de requerer uma segunda peritagem.

Seguramente que terá tido como bom o trabalho do Sr. Perito, pois se assim não fosse reagiria, como vem agora fazer através da presente revista.

A propósito da perícia consignada na motivação da decisão de facto, registemos algumas breves notas, no sentido de podermos concluir que inexiste qualquer razão para questionar os resultados apresentados na enunciada perícia, resultados que, repetimos, não foram postos em causa pela ora recorrente quando fora notificada para sobre os mesmos se pronunciar, e vieram a ser sufragados pelo Tribunal recorrido.

Tendo presente que no caso vertente a intervenção pericial foi determinada oficiosamente, no âmbito do art. 943º nº 2 in fine do CPC, teve a diligência probatória em apreço o apuramento da realidade dos factos da causa, quer os principais, quer os instrumentais, incumbindo ao juiz, sem prejuízo da possibilidade das partes poderem  fazer sugestões, dirigir activamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adoptar mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável, conforme prevenido no nº. 1 do artº. 6º do Código Processo Civil.

A actividade probatória inicial ou preparatória ocorre na denominada fase da instrução, com vista a coligir, no processo, os meios de prova a utilizar e preparar a sua utilização, tendo por objecto os temas da prova enunciados ou, quando não haja lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova, nos termos do art. 410º do Código Processo Civil.

Esta actividade probatória a contemplar na enunciada fase da instrução tem, na sua essência, o princípio da cooperação intersubjectiva, enquanto princípio instrumental que procura optimizar os resultados do processo.

A actuação do Tribunal manifesta–se, não só na discricionariedade do juiz em deferir ou indeferir o pedido de uma diligência de prova, mas também em ordenar, por sua iniciativa, como foi no caso vertente, a realização do exame pericial.

A este propósito, sustenta Teixeira de Sousa (in Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, página 323) que “a instrução comporta poderes instrutórios do Tribunal que podem recair sobre factos essenciais, complementares e instrumentais e justificam-se pela necessidade de evitar que, pela falta de prova, a decisão da causa seja imposta pelo “non liquet“ (art. 516°, do Código Processo Civil e art. 346°, do Código Civil) e não pela realidade das coisas averiguada em juízo. Nenhum facto relevante para a decisão da causa deve ficar por esclarecer”.

Interiorizada, em termos gerais, a atitude que o Tribunal deve adoptar perante a instrução, e revertendo ao caso “sub iudice”, verificamos que o questionamento feito pela recorrente ao Acórdão recorrido incide fundamentalmente sobre a motivação da decisão de facto alcançada pelo Tribunal recorrido, que remeteu, no essencial, para a perícia realizada.

A prova pericial destina-se, como qualquer outra prova, a demonstrar a realidade dos factos decisivos para a decisãoda causa, tal como esta fora enunciada pelas partes (art. 341º do CC), no caso pela Autora que demanda o Réu a prestar contas do seu exercício como cabeça-de-casal.

Aquilo que singulariza a prova pericial é o seu peculiar objeto, conforme definido na lei substantiva civil, “A prova pericial tem por fim a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuam, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial” (art. 388º do CC).

A perícia é um meio de prova a que a parte ou/e o tribunal podem lançar mão quando se revele necessário recorrer ao conhecimento técnico de outrem, os peritos, os quais pronunciando-se sobre a questão solicitada expõem as suas observações e as suas impressões pessoais sobre os factos presenciados, retirando conclusões objetivas dos factos observados e daqueles que se lhes ofereçam como existentes, concorrendo, deste modo, positiva ou negativamente, para formar a convicção do Tribunal para dirimir as questões de facto essenciais para a decisão da causa, sabendo nós que o juiz não está adstrito na apreciação da prova, a critérios ou normas jurídicas predeterminadas, antes avalia e sopesa as provas em inteira liberdade, segundo a sua consciência ou o seu próprio juízo.

A este respeito, a nossa Doutrina e Jurisprudência vem defendendo que esta prova “traduz-se na perceção por meio de pessoas idóneas para tal efeito designadas, de quaisquer factos presentes, quando não possa ser direta e exclusivamente realizada pelo juiz, por necessitar de conhecimentos científicos ou técnicos especiais, ou por motivos de decoro ou de respeito pela sensibilidade (legítima suscetibilidade) das pessoas em quem se verificam tais factos; ou na apreciação de quaisquer factos (na determinação das ilações que deles se possam tirar acerca doutros factos), caso dependa de conhecimentos daquela ordem, isto é, de regras de experiência que não fazem parte da cultura geral ou experiência comum que pode e deve presumir-se no juiz, como na generalidade das pessoas instruídas e experimentadas” (neste sentido, por todos, Professor MANUEL DE ANDRADE, in Noções Elementares de Processo Civil, página 135 e Acórdão do Venerando Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Setembro de 2009 (Processo 161/05.2TBVLG.S1), no qual divisamos o registo de que “a prova pericial caracteriza-se por uma entidade, técnica ou cientificamente habilitada em determinada área, transmitir ao juiz uma informação de facto a que ele, em regra, não pode aceder apenas com os seus conhecimentos e que, por isso, encarregou o perito de investigar para o esclarecer”.

Acentuamos que é ao juiz que compete não só dar o valor adequado ao trabalho resultante da perícia, como decidir da pertinência da mesma, fixar o seu objeto, tendo sempre em vista o quadro factual apresentado pelas partes e que lhe cumpre decidir, bem como, definir os termos da sua realização, atendendo sempre aos respetivos ditames legais, com vista ao apuramento da verdade, sendo este o fim último a atingir.

No que ao caso “sub iudice” respeita, temos por adquirido os factos provados sob o nº 5 do Acórdão recorrido, os quais reproduzem o conteúdo da perícia realizada, pronunciando-se o perito sobre a questão solicitada, expondo as suas observações e as suas impressões pessoais sobre as contas em discussão, analisando as contas apresentadas pela Autora e sopesando estas de forma articulada com o trabalho desenvolvido e apresentado pelo Sr. Perito, retirando conclusões objetivas dos elementos de prova observados e daqueles que se lhe ofereceram como existentes, aditando estudos pertinentes com a cultura do montado e da cortiça, assim como imprimindo no contexto global que expõe, a sua experiência pessoal, como engenheiro técnico, concorrendo, deste modo articulado e coerente, de forma positiva, para formar a convicção do Tribunal para dirimir a questão de facto essencial para a decisão da causa.

Feio o cotejo da decisão proferida, e na decorrência do enquadramento jurídico perfilhado, uma vez interiorizada a facticidade apurada, concluímos que a decisão recorrida não merece censura, e, na sua consequência, não reconhecemos à argumentação aduzida pela Recorrente virtualidade bastante no sentido de alterar o destino traçado no Acórdão da Relação.

Na verdade, a motivação plasmada pelo Tribunal “a quo” ao remeter para a perícia realizada, revela ter extraído daquele meio de prova enunciado a fundamentação para as respostas que importam ao esclarecimento do objeto da causa, e, nesta medida, reconhecemos ter-lhe atribuído capacidade de demonstração da factualidade pertinente, constituindo a enunciada motivação a fundamenta­ção da decisão de facto.

Assim, confirmamos que a fundamentação apresentada encerra um grau de concretização suficiente para que os destinatários possam conhecer, na íntegra, o processo lógico da decisão do Tribunal “a quo”.

Com efeito, ante a impugnação da decisão da matéria de facto formulada pela autora na sua apelação, nada impedindo que a Relação formulasse a sua própria convicção em face do exame crítico dos meios de prova que teve à sua disposição[2], como assim acabou por formular, julgando provados os factos acima descritos, depois de apreciar criticamente a factualidade provada.

Ora, nesse exercício de avaliação da factualidade apurada, entendeu o tribunal da Relação por bem, embora consciente de que os autos careciam de elementos alargados ou abundantes para tal ponderação, fundar a sua convicção no relatório apresentado pelo perito nomeado, valorizando este como suficientemente esclarecedor, para se arrimar, de forma prudente, cuidada, crítica e inteligente, a uma conclusão que se lhe configurou como equilibrada, acreditando na justeza dos elementos consignados e vertidos naquele relatório, no fundo confiando neste, e julgando em conformidade.

Chamado este Tribunal a pronunciar-se sobre a adequação do procedimento assumido pelo Tribunal da Relação, afigura-se-nos que, nunca tendo sido posta em causa a honorabilidade do perito fazedor do relatório em apreço, nem tendo a Autora formulado qualquer perplexidade ou reclamação após tal relatório lhe ter sido dado a conhecer, sendo certo que poderia pedir esclarecimentos ou apresentar reclamação (art. 485º do CPC), assim como poderia requerer uma segunda perícia (art. 487º do CC), antes sim declarando expressamente aceitar o resultado da mesma e não ter qualquer reclamação a apresentar (facto 6), procedimento ou conduta que de alguma forma revela conformação com aquele resultado pericial.

Tudo concorrendo no sentido de o Tribunal da Relação recorrido, também interpretando positivamente aquele mesmo relatório pericial, e valorando também as contas apresentadas pela Autora, julgar as contas com o “prudente arbítrio” determinado no art. 943º nº 2 do CPC, acatando o resultado do parecer pericial.

O relatório finaliza com a conclusão de que “O resultado do saldo apurado pelo perito após análise e revisão das contas da administração da herança, desde Outubro de 1992 até 31 de Agosto de 20210 é de 385.253,46 €, valor inferior em 394.241,62€ ao apresentado pela requerente nos autos de prestação de contas.”

Mas a circunstância de se verificar uma relevante discrepância entre o saldo final que foi apresentado pela Autora (Receitas: 781.793,75€; Despesas: 2.298,67€ e Saldo: 779.495,08€), e o que foi apresentado pelo Exmo. Senhor Perito (Receitas: 387.552,13€; Despesas: 2.298,67€ e Saldo: 385.253,46€), sendo este saldo menor que aquele em 394.241,62 €, nada impedia, como não impediu, a Relação, no pleno exercício do livre exame dos meios de prova e fazendo jus à sua livre convicção, de concluir no sentido da justeza do relatório pericial e do saldo final das contas por este indicado.

Note-se que o saldo das contas apresentadas pela autora corresponde, no fundo, ao pedido por esta formulado nos autos, pedido este que acaba por proceder parcialmente, depois de realizada pelo tribunal o exame crítico de todos os meios de prova disponíveis, levado a efeito com o dito “prudente arbítrio”.

Ora, o argumento da discrepância de valores entre o saldo das contas apresentadas pela autora e o saldo final das contas constante do relatório pericial não pode proceder como argumento minimamente válido para que o tribunal não possa sufragar como bom este relatório pericial.

Tal equivaleria a que, em qualquer acção em que o Autor começa por pedir muito e acaba por receber muito menos, pouco ou mesmo nada, se pudesse afirmar que o tribunal não julgou conscienciosamente.

Pode suceder, como sabemos, mas não foi este o caso.

Ou seja, o tribunal recorrido concluiu de forma ponderada, cautelosa e cuidada, com base em elementos que entendeu confiáveis e dotados de relativa segurança e certeza, com razoabilidade e sem discricionariedade, ponderando todos os elementos probatórios fornecidos pelas partes (aqui imperando o princípio do dispositivo) e constantes do processo, incluindo os que o tribunal conseguiu por sua própria iniciativa (aqui valendo o princípio do inquisitório), valorando o contexto global probatório em termos flexíveis mas sempre justificados, alcançando um valor que entendeu muito provavelmente tradutor da realidade que é possível alcançar, sem com isso correr  riscos expressivos, também informado pelas regras da sua experiência, como cidadãos e como juristas que são os Senhores Juízes Desembargadores que proferiram o Acórdão recorrido, assumindo que “dificilmente se conseguiria alcançar um valor aproximado da realidade, mais fidedigno, menos parcial, do que aquele que foi apresentado pelo Exmo. Senhor Perito”, e considerando “a probabilidade séria de constituírem os valores recebidos e suportados na administração dos bens por parte do Réu, no período compreendido entre os anos de 1992 e 2010.”

Aqui chegados, inscrevendo-se a presente revista na dimensão jurídica da causa, qual seja, como se disse, a interpretação e aplicação do conceito “prudente arbítrio” inscrito no art. 943º nº 2 do CPC, cumprindo a este Supremo Tribunal aferir da conformidade do Acórdão recorrido com tal conceito de direito, nos termos que acima ficaram explícitos, dever-se-á concluir que a Relação procedeu correctamente, respeitando os termos e os limites em que o legislador configurou aquele mesmo conceito e também os contornos com que a jurisprudência e também a doutrina o vêm densificando, não se verificando, como tal, o invocado erro de direito.

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Sustenta ainda a recorrente que a decisão recorrida, configura um verdadeiro abuso de direito, atento o disposto no art. 334º do Código Civil, devendo considerar-se eivada de tal vício.

Estipula o artigo 334.º do Código Civil: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Como refere o Professor ANTUNES VARELA (Revista de Legislação e de Jurisprudência, 128º, 241), este instituto é uma das válvulas de segurança mais úteis do sistema, que, ao lado da “correcção do enriquecimento sem causa”, da redução equitativa da cláusula penal excessiva e de outras soluções afins, melhor garantem a sobrevivência de inúmeros “direitos subjectivos”, “não obstante o seu carácter essencialmente formal, perante o sentimento implacável da justiça que habita permanentemente no espírito do homem de recta consciência”.

Escreve o citado Professor que o artigo 334.º “aponta de modo inequívoco para as situações concretas em que é clamorosa, sensível, evidente, a divergência entre o resultado da aplicação do direito subjectivo, de carga essencialmente formal, e alguns dos valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou, pelo menos, dos direitos de certo tipo”.

A teoria do abuso do direito serve de válvula de segurança para os casos de pressão violenta da nossa consciência jurídica ante a rígida estruturação, geral e abstracta, das normas legais, obstando a injustiças clamorosas que o próprio legislador não hesitaria em repudiar se as tivesse vislumbrado (Cfr. M. Andrade, RLJ, Ano 87, pg. 307 e Vaz Serra, BMJ 85/326).

Refere-se no acórdão do STJ, de 18.12.2012 (Processo n.º 5608/05.5TBVNG.P1.S1, acessível no site da DGSI) que “no abuso de direito não há falta ou ausência de direito, tratando-se do exercício de um direito conferido pela ordem jurídica, a priori legítimo, tornando-se ilegítimo se for exercido de forma que ofenda manifestamente a boa-fé, os bons costumes ou o seu fim social ou económico, em suma, o sentimento jurídico socialmente dominante, daí advindo a paralisação dos respetivos efeitos, tudo se passando como se aquele direito não existisse na esfera patrimonial do titular (na realidade, a sua existência será tão-só aparente)”.

Para que se possa invocar abuso de direito, por ofensa dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes, ou pelo fim social ou económico do direito, não basta que se excedam esses limites, tornando-se necessário que tal excesso se configure de forma manifesta, ou seja, que haja uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante.

Como refere Tatiana Guerra de Almeida (in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Portuguesa, 2014, em anotação ao art. 334º, pag.788), “o instituto de abuso de direito arranca da constatação de que há certas situações em que o exercício formalmente correcto das faculdades contidas em certa esfera ou posição podem determinar uma solução jurídica que concretamente contraria os limites do seu reconhecimento e tutela”.

Olhando o caso vertente, diremos que o invocado abuso de direito se entrecruza com a questão anterior, ou seja, com a correcta interpretação e aplicação do “prudente arbítrio”.

Considerará a recorrente que o Acórdão recorrido atinge um resultado decisório que é ofensivo dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes, ou pelo fim social ou económico do direito que o art. 943º nº 2 do CPC visa proteger.

Na apreciação desta questão, vamo-nos socorrer do Acórdão deste Supremo Tribunal de 14-09-21, proferido na revista n.º 768/15.0T8MCN.P2.S1, dada o paralelismo das questões ora sob análise.

Consta de tal aresto o seguinte:

“Embora o Réu, agora Recorrente, chame ao caso duas disposições legais — o art. 334.º do Código Civil e o art. 943.º, n.º 2, do Código de Processo Civil —, o critério de decisão de cada uma é em tudo semelhante” [daí o dito paralelismo com o nosso caso].

“O art. 334.º do Código Civil, através da remissão para a boa fé, contém uma proibição de desequilíbrio no exercício jurídico. Entre os casos de desequilíbrio no exercício jurídico encontra-se o exercício inútil danoso, “a conjunção de situações implicada no brocardo dolo agit qui petit quod statim redditurus est” e o exercício (útil) desproporcionado”. (António Menezes Cordeiro, Da boa fé no direito civil, cit., págs. 853 e segs).

Em consonância com o art. 334.º, o prudente arbítrio do art. 943.º, n.º 2, do Código de Processo Civil evita (destina-se a evitar) casos de desequilíbrio, de desproporcionalidade entre a vantagem de uma das partes e a desvantagem da outra, ou de exercício de direitos subjectivos “com lesão intolerável de outras pessoas”.

E explica o Acordão:

O facto deixa-se demonstrar através da história do art. 943.º, nº 2:

O Código de Processo Civil de 1876 cominava como sanção para o não cumprimento da obrigação de prestar as contas dentro do prazo devido a condenação do réu nas contas que o autor apresentasse; em contraste com o código de 1876, o Código de Processo Civil de 1939 e, subsequentemente, os Códigos de Processo Civil de 1961 e de 2013 alteraram a cominação do código de 1876, de forma a que “a única sanção que o réu sofre é esta: não poder contestar as contas do autor” (José Alberto dos Reis, Processos especiais, vol. I, com a indicação de que se trata de Obra póstuma, Coimbra Editora, Coimbra, 1982 (reimpressão), pág. 322).

Explicando-o, José Alberto dos Reis dizia que “a cominação do Código de Processo Civil de 1876 era manifestamente exorbitante e excessiva. O réu ficava de todo em todo à mercê do autor; por mais escandalosamente exagerado que fosse o saldo acusado pelas contas, por mais evidente e palpável que fosse o abuso praticado pelo autor na organização das contas, o juiz tinha de cobrir o abuso com a sua autoridade! Tinha de aprovar contas leoninas, contas que oferecessem nitidamente os aspecto duma extorsão! Se ao autor aprouvesse inscrever nas contas verbas fantásticas de receitas imaginárias e reduzir as despesas a proporções mesquinhas, de forma a arranjar, a seu favor, um saldo flagrantemente monstruoso, o juiz nada podia fazer: tinha de homologar”.

Em lugar da cominação “manifestamente exorbitante e excessiva” de tão antigo código, o art. 943.º, n.º 2, do actual Código de Processo Civil contém uma cominação equilibrada — ainda que “o réu não seja admitido a contestar as contas apresentadas”, as contas “são devem ser julgadas segundo o prudente arbítrio do julgador”.

Entre as condições para um arbítrio prudente está o de que o julgador disponha de um adequado conhecimento das circunstâncias do caso — e, para que o julgador disponha de um adequado conhecimento das circunstâncias do caso, poderá colher as informações que considere convenientes, poderá fazer as averiguações que entenda oportunas e úteis e/ou poderá incumbir pessoa idónea “de dar parecer sobre todas ou parte das verbas inscritas pelo autor”.

“O poder de decidir de acordo com o prudente arbítrio é de quando em quando descrito como “um poder latitudinário, mas não discricionário”:

“No julgamento das contas, o juiz move-se com grande liberdade e largueza; mas não pode emitir a decisão que lhe apetecer; há-de lavrar a sentença que, em seu prudente arbítrio, corresponder ao estado dos autos; e a sentença fica sujeita, mediante recurso, à censura da Relação que, usando por sua vez de prudente arbítrio, pode revogá-la ou alterá-la” (José Alberto dos Reis, Processos especiais, vol. I, cit., pág. 323).

E continua:

“Em diferentes palavras, ainda que insistindo em igual pensamento: O prudente arbítrio não pressupõe ‘certeza’, sob pena de não haver lugar a um tal tipo de julgamento, apelando mais a um juízo em que se ponderem, com razoabilidade, todos os elementos disponíveis, procurando obter um valor que, com forte probabilidade, envolva a menor margem de erro” (António Santos Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Filipe Pires de Sousa, anotação ao art. 943.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. II — Processo de execução, processos especiais e processo de inventário judicial (arts. 703.º a 1139.º), Livraria Almedina, Coimbra, 2020, págs. 392-396).

Aqui chegados, diremos, sem hesitações, que o afastamento da cominação prevista no Código de Processo Civil de 1876 (a condenação do réu que não apresentasse contas no pagamento das contas que o autor viesse a apresentar), procurou exactamente afastar situações em que tal condenação se viria a configurar uma situação de abuso de direito, porque tal cominação acabava por ser “manifestamente exorbitante e excessiva”, poupando o juiz à homologação cega e de preceito das contas apresentadas pelo autor, porventura abusivas e distanciadas da realidade, porventura “contas leoninas”, por mais evidente que fosse o abuso praticado pelo apresentante.

E no lugar daquela cominação abusiva, o legislador o Código de Processo Civil de 1939 e, subsequentemente, dos Códigos de Processo Civil de 1961 e de 2013, previram como única sanção do Réu (que não apresenta contas) não poder contestar as contas do autor.

Ou seja, como se disse no aresto de que nos apropriámos, “Em lugar da cominação “manifestamente exorbitante e excessiva” do Código de 1876, o art. 943.º, n.º 2” do actual Código de Processo Civil contém uma cominação equilibrada — ainda que “o réu não seja admitido a contestar as contas apresentadas”, as contas “são devem ser julgadas segundo o prudente arbítrio do julgador”.

Assim se pondo cobro a situações de clamorosamente ofensivas do sentimento jurídico socialmente dominante que resultariam daquele efeito cominatório, tornando o direito de apresentação de contas pela autora, se tal efeito se mantivesse, manifestamente ofensivo dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, evitando, assim, situações de manifesto abuso de direito (art. 334º do CC).

Quer isto dizer que o art. 943º nº 2 do CPC, que determina que o juiz deve julgar as contas segundo o seu prudente arbítrio, se inscreve no ordenamento jurídico em plena harmonia com o art. 334º do CC, pelo que, tendo-se concluído, como concluímos, que a decisão recorrida se compaginou perfeitamente com aquela regra de actuação decisória, pela ordem de razões que acima ficaram expressas, por essa mesma ordem de razões diremos que não se verifica in casu o abuso de direito invocado pela recorrente.

Também nesta parte improcedendo a revista.


DECISÃO

Por todo o exposto, Acordam os Juízes que integram a 7ª Secção deste Supremo Tribunal de Justiça em julgar a revista improcedente e confirmar o Acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.

Registe e notifique.


Lisboa, 24 de Maio de 2022


Relator: Nuno Ataíde das Neves

1ª Juíza Adjunta: Senhora Conselheira Maria dos Prazeres Beleza

2ª Juíza Adjunta: Senhora Conselheira Fátima Gomes