Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3146/20.5T8VFX-B.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: QUALIFICAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
PRESSUPOSTOS
LISTA DE CRÉDITOS RECONHECIDOS E NÃO RECONHECIDOS
MASSA INSOLVENTE
CREDOR
CREDITO LABORAL
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 12/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :

O art.189º, n.2, alínea e) do CIRE, conjugado com o n.4 deste artigo, não prevê uma responsabilização automática dos sujeitos afetados pela qualificação da insolvência culposa determinante do pagamento da totalidade dos créditos reconhecidos para serem pagos pela (insuficiente) massa insolvente. Tal norma não estabelece uma responsabilidade contratual sucedânea desses sujeitos pelas dívidas da insolvente. Trata-se, antes, de uma responsabilidade extracontratual, a apurar na medida da verificação dos respetivos pressupostos gerais, cujo montante tem como limite máximo o valor dos créditos graduados.

Decisão Texto Integral:

Processo n. 3146/20.5T8VFX-B.L1.S1


Recorrentes: “J. .. ...... .........., Ldª”


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. RELATÓRIO


1. Decretada a insolvência da sociedade “M..... ...... .. .... .., Ldª”, os credores “J. .. ...... .........., Ldª” e “C..... ........ . ......, Ldª” requereram a abertura de incidente para qualificação dessa insolvência como culposa.


Fundaram tal pretensão no art. 186º, nº 2, als. a), d), f), g) e h) e nº 3, als. a) e b) CIRE, requerendo que a qualificação da insolvência afetasse os seguintes sujeitos: AA, BB, CC e DD; os primeiros na qualidade de gerentes de direito e os segundos na qualidade de gerentes de facto da insolvente.


2. A Administradora da Insolvência apresentou parecer, no qual concluiu pela qualificação da insolvência como culposa, com fundamento no art. 186º, nº 2, alíneas a) e d), e nº 3, alínea b), com afetação dos sujeitos indicados pelos credores.


3. O Ministério Público acompanhou o parecer da administradora da insolvência e concluiu pela qualificação da insolvência como culposa, com fundamento no art. 186º, nº 1, nº 2, alíneas a) e d) e nº 3, alínea b) do CIRE, indicando os gerentes da insolvente como pessoas a afetar pela qualificação.


4. Os requeridos CC e DD deduziram oposição conjunta, alegando, além do mais, que nunca tinham sido gerentes de facto; e pediram a sua não afetação e a absolvição de qualquer responsabilidade.


5. Os gerentes AA e BB deduziram oposição conjunta, pedindo a qualificação da insolvência como fortuita; ou, caso assim não se entendesse, a sua não afetação pela qualificação da insolvência como dolosa.


6. A primeira instância julgou o incidente improcedente, por não provado, e qualificou a insolvência como fortuita.


7. Contra tal decisão, os credores requerentes interpuseram recurso de apelação, tendo o TRL, depois de proceder à alteração da matéria de facto, proferido decisão com o seguinte dispositivo:


«Por todo o exposto, acordam as juízas que integram a 1ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa em julgar a apelação parcialmente procedente e, consequentemente, na revogação da decisão recorrida, que se substitui por outra a:


a) Qualificar a insolvência de M..... ...... .. .... .., Ldª como culposa;


b) Declarar afetados pela qualificação os recorridos AA e BB;


c) Declarar os recorridos AA e BB inibidos pelo período de três anos para a administração de patrimónios de terceiros, para o exercício do comércio, e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação, fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;


e) Condenar os recorridos AA e BB a indemnizar cada um dos titulares de créditos de natureza laboral (originários ou sub-rogado) reconhecidos nos autos pelo montante não satisfeito pela massa insolvente.»


8. O credor “J. .. ...... .........., Ldª” (requerente do incidente de qualificação da insolvência) interpôs recurso de revista, tendo, nas suas alegações, apresentado as seguintes conclusões:


«1. Porque os Recorrentes apresentaram recurso de apelação , arguindo (i) a nulidade da sentença com fundamento legal no art. 615.º, nº 1, al. b) e c) do CPC, (ii) o erro de julgamento de facto (itens 39, 42, 43 e 53 dos factos provados, bem como que as alíneas b), c) e d) dos factos não provados do segmento da decisão passassem, ao invés, a constar da matéria de facto dada como provada), (iii) a ampliação à matéria de facto assente, (iv) erro no julgamento de direito e, por fim, (v) a qualificação da insolvência como culposa, com as consequências legais previstas pelo art. 189.º, nº 2 (inibição e indemnização);


2. Porque o Tribunal considerou, em síntese, (i) a qualificação da insolvência de M..... ...... .. .... .., Ldª como culposa, (ii) declarar afectados pela qualificação os recorridos AA e BB, (iii) Declarar os recorridos AA e BB inibidos pelo período de três anos para a administração de patrimónios de terceiros, para o exercício do comércio, e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação, fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa e, (iv) Condenar os recorridos AA e BB a indemnizar cada um dos titulares de créditos de natureza laboral (originários ou sub-rogado) reconhecidos nos autos pelo montante não satisfeito pela massa insolvente;


3. Porque o Tribunal sustentou a decisão com base na circunstância do prejuízo sofrido pelos credores ter resultado «verificado na medida dos créditos laborais, sendo abrangidos e beneficiados pela obrigação de indemnização que recai sobre os recorridos AA os remanescentes dos créditos que dessa natureza (originários ou por sub-rogação/habilitação) constem reconhecidos nos autos», nesse sentido rejeitando a consequência legal indemnizatória prevista no nº 2 do artigo 189.º do CIRE, por não condenar os Recorridos a indemnizar a aqui Recorrente, credora e requerente do incidente, no montante do crédito não satisfeito;


4. Porque a admissibilidade do recurso fundamenta-se na existência de um conflito jurisprudencial entre o Acórdão revidendo e duas outras Decisões, uma proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 06-09-2022 no âmbito do processo n.º 291/18.0T8PRG-C.G2.S1 cuja cópia se junta), e outra proferida pelo Tribunal da Relação do Porto em 11-05-2020 no âmbito do processo n.º 1205/16.8T8AMT-B.P2, sendo portanto admissível ao abrigo da 2ª parte do artigo 14.º do CIRE;


5. Porque o presente recurso tem, por isso, como objecto a matéria de Direito do Acórdão proferida nos presentes autos;


6. Porque o Acórdão revidendo está em contradição com o Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça que entende que a indemnização devida aos credores do devedor declarado insolvente deverá, em princípio e tendencialmente corresponder à diferença entre o valor global do passivo e o que o ativo que compõe a massa insolvente logrou cobrir, pois é essa diferença que representa o prejuízo dos credores.


7. Porque, ademais, está em contradição com o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto que entende que a indemnização devida aos credores do devedor declarado insolvente não é bem da insolvente à data da declaração da insolvência, pelo que a indemnização que se arbitre no incidente de qualificação da insolvência é directamente fixada a favor dos credores cujos créditos ficaram por satisfazer na insolvência, sem distinção entre eles.


8. Porque, efectivamente, o Tribunal a quo apenas deveria ter fixado um montante indemnizatório inferior ao montante dos créditos reconhecidos em face de circunstâncias especiais que demonstrem uma atenuação do grau de culpa do afectado e que resulte da prova que houvesse sido produzida.


9. Porque, ademais, o Tribunal a quo deveria ter atribuído a indemnização em benefício de todos os credores cujos créditos ficaram por satisfazer na insolvência.


10. Porque, o Tribunal a quo, ao decidir conforme decidiu fez uma interpretação extensiva do normativo legal, interpretou erradamente o normativo legal, porquanto diferenciou, ao contrário do legislador e, consequentemente, do seu espírito, os credores do devedor declarado insolvente.


11. Porque o Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, violou ainda as normas contidas violou o disposto na alínea e) do nº 2 do artigo 189.º do CIRE, preceito este que deveria ter sido interpretado no sentido de que a indemnização devida aos credores a cargo do afetado pela insolvência culposa deverá, em princípio e tendencialmente, corresponder à diferença entre o valor global do passivo e o que o ativo que compõe a massa insolvente logrou cobrir;


12. Porque o Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, violou ainda as normas contidas violou o disposto na alínea e) do nº 2 do artigo 189.º do CIRE, preceito este que deveria ter sido interpretado no sentido de que a indemnização que se arbitre no incidente de qualificação da insolvência é directamente fixada a favor dos credores cujos créditos ficaram por satisfazer na insolvência, sem distinção entre eles;


13. Porque a interpretação exposta, no douto Acórdão revidendo, no sentido das alterações consagradas na Lei n.º 9/2022 de 11.01 determinarem que, no caso concreto dos autos recorridos, a indemnização proveniente da responsabilidade pessoal ou própria dos afectados se verifica de acordo com a graduação legal dos reconhecidos, padece de inconstitucionalidade, preceito este que deveria ter sido interpretado no sentido de que, sendo explicitamente destinatários de tal indemnização aqueles credores e naqueles termos e, não sendo tal indemnização integrante da massa insolvente, devem todos aqueles credores, em sede de critério para a distribuição da respectiva quantia, ser considerados como comuns e entre eles ser feito o respectivo rateio a indemnização devida aos credores a cargo do afetado pela insolvência culposa e que deverá, em princípio e tendencialmente, corresponder à diferença entre o valor global do passivo e o que o ativo que compõe a massa insolvente logrou cobrir.


Termos em que se requer a V. Exa. se digne a conceder a revista e revogar o Acórdão revidendo, substituindo-o por outro que condene os Recorridos a indemnizar os credores cujos créditos ficaram por satisfazer na insolvência.»


Cabe apreciar.


*


II. FUNDAMENTOS


1. Admissibilidade e objeto do recurso


Embora o incidente a que respeita a presente ação corresponda a matéria de natureza insolvencial, não tem aplicação o regime específico de revista previsto no art.14º do CIRE, como decorre da formulação literal dessa norma (porque não se trata de decisão proferida no processo de insolvência) e como a jurisprudência do STJ tem reiteradamente entendido (não sendo necessária a junção de acórdão fundamento).


Aplicam-se ao presente caso as regras gerais dos recursos, e concretamente o disposto no art.671º, n.1 do CC, porquanto o acórdão recorrido, apesar de ter sido favorável ao agora recorrente no que respeita à qualificação da insolvência como culposa, não atendeu a sua pretensão de ser indemnizado pelos sujeitos afetados pela insolvência.


Assim, sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, nos termos do art.635º, n.4 do CPC, a questão a apreciar no presente recurso consiste em saber se a decisão recorrida fez errada aplicação da lei quando não condenou os sujeitos afetados pela qualificação da insolvência a indemnizarem pessoalmente o credor agora recorrente. Quanto às demais questões respeitantes à qualificação da insolvência, o agora recorrente não teria legitimidade para recorrer, dado que a decisão lhe foi favorável nessas matérias.


O recorrente também não tem legitimidade para formular o pedido de revogação do acórdão nos termos amplos em que o faz, ou seja, pedindo a condenação dos recorridos “a indemnizar os credores cujos créditos ficaram por satisfazer na insolvência”. A sua legitimidade limita-se, obviamente, à satisfação dos seus próprios créditos.


Por outro lado, invoca o recorrente a inconstitucionalidade da interpretação que o acórdão recorrido fez do disposto na alínea e) do nº 2 do artigo 189.º do CIRE.


*


2. A factualidade assente


Depois de proceder a alterações da matéria de facto, a segunda instância deu como assente a seguinte factualidade [da qual aqui se não se reproduzem as partes que são irrelevantes para a apreciação da questão que constitui o objeto do presente recurso]:


«1. A Devedora sociedade M..... ...... .. .... .., LDA, pessoa coletiva n.º .......44, com sede no Mercado Abastecedor da Região ..., foi constituída em 8 de abril de 2011.


2. Desde então, tem o capital social de € 5.000,00.


3. Sempre foram sócios: i) com quota no valor nominal € 1.000,00 (mil euros), a sociedade comercial anónima M..... ...... .. .... S.A.; ii) com uma quota no valor nominal de € 2.000,00 (dois mil euros), AA; e, iii) uma quota no valor nominal de € 2.000,00 (dois mil euros), BB.


4. A sociedade tem por objeto a comercialização por grosso, importação e exportação de frutas e outros produtos alimentares, minimercado, charcutaria e padaria, comércio a retalho de frutas e produtos hortícolas, fornecimento e distribuição a estabelecimentos de restauração e hotelaria.


5. Obriga-se com a intervenção de um gerente.


6. São gerentes registados: AA, contribuinte fiscal n.º .......17; BB, contribuinte fiscal n.º .......54; ambos residentes na Rua ....


7. Nas últimas contas depositadas, reportadas ao ano de 2018, a devedora declarou resultado líquido de € 18.208,14, ativo de € 1.855.017,64 e passivo de € 1.638.996,96.


8. Em 19-11-2020, a sociedade N... ...... . ........... ............... .............., Lda. instaurou a ação de insolvência.


12. Em 17-03-2021 foi proferida sentença de declaração de insolvência da devedora.


13. Requerente N... ...... e Devedora acordaram na prestação de serviços de contabilidade e, por carta de 10.07.2020, aquela comunicou à devedora a rescisão, com efeitos imediatos, daquele contrato e, para além da exposição das causas da rescisão, mais comunicou que “As n/obrigações encontram-se cumpridas até ao final do mês de Junho, restando apenas a entrega do Modelo 22, em que a data limite para a sua entrega é 31/07/2020, carecendo da análise do Revisor Oficial de Contas.”.


14. Com fundamento no contrato, a Requerente instaurou, a 13-05-2020, injunção, pelo montante de € 15.475.20.


15. A mora no pagamento da retribuição teve início em 2 de dezembro de 2019.


16. Em 16-11-2020, por sentença proferida no âmbito do processo n.º 2102/20.8..., Tribunal Judicial da Comarca de ..., Juízo de Comércio de ... – Juiz ..., foi declarada a insolvência da sócia AA


17. Os Requeridos AA e BB exerciam as funções de administradores da M.. SA, desde cerca de 2003.


18. A Devedora apresentou-se à insolvência em 08-01-2021 (processo nº 98/21.8... do juízo de comércio de ...).


19. A Devedora apresentou relação de bens:


“1. Veículo automóvel com a matrícula ..-..-HI da propriedade da sociedade Requerente, cujo respectivo paradeiro é desconhecido pelos seus sócios gerentes de direito;


2. Fotocopiadora da marca Sharp modelo MX-2651N, sob locação pela sociedade Requerente junto da G..... ......., S.A.,, que se encontra no Complexo Industrial ....”


20. Foram inventariados bens móveis, entre os quais:


- Veículo com a matrícula ..-..-HI, marca Toyota, modelo Dyna 150. Os gerentes da Devedora declararam desconhecer o seu paradeiro, esclarecendo que o veículo terá sido entregue na oficina C........ ...... . ....., Lda. O Sr. Administrador da Insolvência notificou aquela sociedade para confirmar tal informação.


- Conta de títulos n.º .............-9, no Banco Montepio, com saldo de 1960 Ações Agrogarante;


- Conta de Fundos n.º .............-5, no Banco Montepio, com saldo de 118 UP do Fundo Valor Prime, no montante aproximado de € 1.061,41;


- Cheque n.º ........03, do Citibank Europ PLC, no montante de € 23,27 (vinte e três euros e vinte e sete cêntimos), emitido pela Mapfre Seguros Gerais, S.A., a favor da insolvente;


- Fotocopiadora da marca Sharp modelo MX-2651N, alvo de locação financeira.


21. Pende ação para impugnação de resolução em benefício da Massa Insolvente da transmissão de quatro veículos, ..-..-TA, ..-EP-.., ..-..-TZ, ..-IM-.., 3 câmaras frigoríficas, 1 empilhador, 6 bancadas inox, 1 móvel de lavagem de verduras, 4 balanças 150 kg, 8 cacifos, 1 chafariz, 5 PCs e écrans, 3 secretárias e 5 cadeiras e 3 carros de transporte de CX.


22. São créditos verificados [*Não se transcreve a longa lista por ser irrelevante para a decisão do objeto do recurso].


23. O Fundo de Garantia Salarial apresentou requerimento de sub-rogação relativamente a créditos laborais.


24. Transferências da conta bancária da devedora no BCP Millenium para AA em 31.07.2020, de € 1.500,00.


25 - Transferência de conta bancária da devedora no BPI para AA em 05.08.2020, do montante de € 4.000,00.


26. Transferência da conta bancária da devedora no BPI para N...... em 05.08.20202, no montante de € 5.000,00.


27. Transferências da conta bancária da devedora no Montepio para AA, em 2020: 01.07 - € 445; 04.08 - € 5.000; 04.08 - € 5.000; 05.08 - € 650; 10.08 - € 445; 19.08- € 644,43; 02.09 - € 445,00.


28. Transferências da conta bancária de AA para a referida conta da devedora no Montepio, em 2020:04.08 - € 1.000; 05.08 - € 500.


29. Transferências da conta bancária da devedora no Montepio para EE:03.07 - € 2.256,48; 12.08 - € 2.883,40; 13.08 - € 3.095,87; 14.08 - € 4.342,20; 19.08 - € 2.446,95; 20.08 - € 5.000,67; 22.08 - € 5.049,32; 26.08 - € 4.975,63; 02.09 - € 3.099,67; 04.09 - € 7.447,89; 08.09 - € 8.774,25; 10.09 - € 5.199,41; 14.09 - € 7.380,46; 21.09 - € 7.524,14.


30. Transferências da sociedade W..... ...... para a conta bancária da devedora no Montepio, em 2020: 11.08 - € 2.952,00; 13.08 - € 3.075,00; 14.08 - € 4.428,00; 17.08 - € 92,55; 17.08 - € 1.524,40; 20.08 - € 5.000,00; 21.08 - € 5.000,00; 24.08 - € 6. 390,94; 24.08 - € 5.000,00; 31.08 - € 3.000,00; 03.09 - € 7.500,00; 10.09 - € 5.259,05; 10.09 - € 7.500,00; 16.09 - € 7.590,00; 25.09 - € 7.007,85; 04.11 - € 127,54; 11.11 - € 4.458,75.


31. Transferências da dita conta bancária da devedora no Montepio para sociedade W..... ......, em 2020:10.11 - € 471,93; 10.11 - € 769,35; 10.11 - € 288,14; 10.11 - € 294,24.


32. Transferência da conta bancária da devedora no Montepio, em 26.08.2020 para pagamento Leasing, de € 61.904,82.


33. Transferências da conta bancária de FF para a conta da devedora no Montepio, em 27.08.2020, de € 4.244,40.


34. A Devedora fornecia hotéis e restauração de luxo, área da experiência dos 3.º e 4.º Requeridos, que detinham carteira de clientes, fornecedores e funcionários.


35. Os 1ª e 2º Requeridos não tinham experiência na área.


36. A Devedora fornecia-se na sua sócia M.., SA, entre outros.


37. Por decisão dos 1.ª e 2.º Requeridos, a Devedora cessou a laboração em agosto de 2020.


38. Assim ocorreu na sequência da cessação da intervenção dos 3.º e 4.º Requeridos, em 12 de julho de 2020.


39. Eliminado


40. Os 1.ª e 2.º Requeridos eram os titulares das contas bancárias da Devedora.


41. As contas bancárias eram movimentadas pela Requerida AA. Designadamente, procedendo ao pagamento a fornecedores e trabalhadores.


42º. Os 1º e 2º requeridos constituíram a devedora para trabalhar com os 3º e 4º requeridos no modelo de negócio descrito em 34. que por estes lhes foi proposto desenvolver - aproveitando o status da M.., SA e o crédito e ‘rappel’ por esta detido junto dos respetivos fornecedores -, tendo a requerida AA apresentado a devedora a pelo menos alguns dos fornecedores da SA informando-os que ia começar a comprar (também) pela devedora e que os 3º e 4º requeridos eram os encarregados das compras.


43. Com a criação da devedora os 1º e 2º requeridos reservaram para si a gestão e controlo financeiro da devedora e confiaram aos 3º e 4º requeridos a gestão operacional daquela atividade, atinente com as compras, as vendas, e a angariação e chefia dos funcionários afetos ao armazém, ‘picking’36 e distribuição/entregas aos clientes.


44º. No âmbito da atividade exercida pelos 3º e 4º requeridos estes estavam presentes com regularidade nas instalações da devedora, e eram eles quem em representação da devedora contactavam e lidavam com os clientes e fornecedores desta para, nas relações com estes estabelecida em nome da devedora, decidir o que comprar e o que vender, a quem, e a que preço, efetuando os correspondentes pedidos de fornecimento/encomendas aos fornecedores, incluindo à M.., SA, e a subsequente distribuição dos produtos aos clientes, que era por eles programada; davam as necessárias ordens/instruções aos trabalhadores da devedora em funções no armazém, no ‘picking’ e na distribuição (motoristas), e decidiam com eles os períodos de gozo de férias; informavam os primeiros requeridos da necessidade de contratação de trabalhador – quer para substituição de outro que tivesse cessado contrato, quer por ocasião de aumento da atividade - , e do equipamento necessário adquirir para a atividade da devedora, designadamente, veículos, e mais angariavam e indicavam os trabalhadores a contratar e, para efeito de processamento contabilístico e oportuno pagamento pela recorrida AA, mais comunicavam a esta os valores devidos aos trabalhadores em função das faltas por estes dadas, das férias, e dos prémios de produtividade que por eles (CC) era decidido atribuir.


45. No âmbito da atividade exercida na devedora pelos 1º e 2º requeridos, era estes quem detinham acesso e controlo exclusivo das contas bancárias da devedora e respetivos extratos, assumiam responsabilidade nos bancos, avalizavam letras para garantia de pagamento, negociavam acordos de pagamento de dívidas com os fornecedores, decidiam os pagamentos que eram feitos pela devedora e procediam aos mesmos, diretamente por transferência bancária ou através da emissão de cheques que entregavam aos 3º e 4º requeridos para pagamento; recebiam do 3º requerido e/ou das funcionárias administrativas da devedora a documentação desta sujeita a tratamento contabilístico (controlo das mercadorias recebidas, das vendas realizadas, dos serviços, dos funcionários contratados e da assiduidade destes ao trabalho), remetiam esta informação ao contabilista certificado da devedora, com o qual contactavam e pelo qual eram diretamente contactados, tinham acesso à informação contabilística, designadamente aos saldos de clientes e de fornecedores; contratavam junto dos fornecedores/vendedores a aquisição de equipamento que os 3º e 4º requeridos lhes indicassem como sendo necessário à atividade da devedora, designadamente, veículos; assinavam os contratos de trabalho dos colaboradores angariados pelos 3º e 4º requeridos e por estes indicados como necessários à atividade da devedora, e prestavam à contabilidade as informações necessárias ao processamento das respetivas remunerações.


46º - Os 3º e 4º requeridos não acediam ou movimentavam as contas bancárias da devedora e, quando necessitavam de fazer pagamentos através do caixa, solicitavam-no à requerida AA, que entregava os meios para o efeito (dinheiro ou cheque).


47. Por terem dívidas, os 3.º e 4.º Requeridos pretendiam evitar a titularidade de bens, rendimentos ou património.


48. As suas filhas FF e GG recebiam salários contrapartida da atividade dos 3.º e 4.º Requeridos


49. As filhas dos 3.º e 4.º Requeridos, FF e GG, foram sócias fundadoras da W..... ......, com quotas minoritárias, sociedade constituída em 15-06-2020 com HH e II, estes sócios maioritários, com sede na Rua ..., pessoa coletiva n.º .......56.


50. Após a cessação de funções na Requerente, os 3.º 4.º Requeridos passaram a exercer idênticas funções na W..... .......


51. Consigo levaram clientes, fornecedores e trabalhadores.


52. Os 1.ª e 2.º Requeridos venderam as viaturas e outros equipamentos utilizados pela devedora à sociedade W..... ...... e relativamente aos quais aquela emitiu fatura de 28.07.2020 no valor de €2.952,00 e recibo de 12.08.2020, fatura de 28.07.2020 no valor de €4.526,40 e recibo de 14.08.2020, fatura no valor de €5.658,00 e recibo de 21.08.2020, fatura no valor de € 8.856,00 e recibo de 20.08.2020, fatura de 28.07.2020 no valor de €33.000 + IVA (€40.590,00, referente às câmaras frigoríficas), fatura de 28.07.2020 no valor de € 6.100 + IVA (€ 7.503,00, referente ao empilhador), e fatura de 28.07.2020 no valor de € 3.625,00 +IVA (€ 4.458,75, referente a bancadas secretárias, carros transporte e outros).


53. Na sequência das transferências bancárias a crédito de conta bancária da devedora realizadas por W..... ...... para pagamento dos bens por esta adquiridos, no mesmo dia ou no dia seguinte a recorrida AA procedia a transferência de valor igual ou de valor aproximado (para mais ou para menos) em benefício de II para pagamento de faturas por este emitidas sobre a devedora com vencimento em 2019.


53A. Para além das transferências de W..... ...... em benefício da devedora e das realizadas por esta em benefício de II, entre julho e novembro de 2020 a conta bancária da devedora na Caixa Económica do Montepio Geral foi sendo creditada com pagamentos de clientes e outras transferências e a recorrida AA foi realizando pagamentos a outros fornecedores, incluindo ao contabilista certificado em 05.08.2020 pelo montante de € 5.000,00, e a trabalhadores, em 01 de julho, 03 de agosto e 02 de setembro de 2020, pelos montantes de cerca de € 10.000,00, € 1.430,00 e € 6.500,00, respetivamente. Em outubro de 2020 foram creditadas quantias na conta bancária da devedora naquela instituição no montante total de cerca de €56.500,00 com origem em conta bancária de M.., SA, valor que foi imediatamente esgotado com transferência para pagamento de DUC’s e de contribuições à segurança social (TSU).


54. Em 06-08-2020, a Devedora, representada pelos 1.ª e 2.º Requeridos, declarou o exercício da opção de compra e antecipação cumprimento da locação dos veículos ..-XC-.. e ..-XC-.. e, para o efeito, pagou a quantia de € 61.904,82 aludida em 32 que, para o efeito, lhe foi previamente disponibilizada por W..... ...... através da transferência bancária aludida em 30.


55. Estes veículos foram vendidos à W..... ...... e sucessivamente incritos no registo em benefício da devedora e em benefício daquela em 11.09.2020.


56. Foi emitido escrito intitulado “Balancete Geral Acumulado Exercício 2019”, relativamente à Devedora.»


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3. O direito aplicável


3.1. A problemática em análise é a de saber se o acórdão recorrido fez a correta aplicação do disposto na alínea e) do nº 2 do artigo 189.º do CIRE, quando entendeu que os sujeitos afetados pela qualificação da insolvência não devem ser automaticamente responsabilizados por todos os créditos não satisfeitos pela massa insolvente, tendo, antes, apreciado a respetiva responsabilidade segundo as regras gerais; e quando entendeu que o montante indemnizatório, em concreto apurado, devia ser destinado à satisfação dos créditos laborais.


A questão das consequências da qualificação da insolvência, no que agora interessa ao presente recurso, ou seja, a medida da indemnização a cargo dos afetados pela qualificação da insolvência, integrou o objeto da apelação e foi, efetivamente, apreciada pelo acórdão recorrido, o qual estabeleceu a responsabilidade civil daqueles sujeitos apenas quanto aos créditos de natureza laboral.


A decisão recorrida não procede a uma exclusão explícita da indemnização a favor dos recorrentes (ou dos demais credores que viram os respetivos créditos reconhecidos), ao limitar a responsabilização pessoal dos afetados ao pagamento dos créditos laborais. Apenas elegeu um critério de atribuição do montante indemnizatório, dado que tal montante não é suficiente para a indemnização de todos os credores que viram os respetivos créditos reconhecidos.


3.2. A norma cuja aplicação está em causa no presente recurso tem o seguinte teor (no que ao caso concreto interessa):


«Artigo 189.º (Sentença de qualificação)


1 - A sentença qualifica a insolvência como culposa ou como fortuita.


2 - Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:


(…)


e) Condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respetivos patrimónios, sendo tal responsabilidade solidária entre todos os afetados.


3 – (…)


4 - Ao aplicar o disposto na alínea e) do n.º 2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença.


O acórdão recorrido fundamentou a decisão nos termos que, de seguida, se extratam.


Concretamente sobre a interpretação do art.189º, n.2, alínea e) escreveu-se que essa norma:


«(…) desde a sua introdução pela Lei nº 16/2012 de 20.04, foi e permanece objeto de acesa discussão doutrinária e jurisprudencial pelas várias interpretações dos pressupostos e âmbito da condenação na indemnização ali prevista, dissenso que as alterações introduzidas pela Lei nº 9/2022 de 11.01 não auguram sanar, ainda que, em função da interpretação que fazemos da anterior redação, tendam para esse resultado.


Relativamente à alteração introduzida à redação da al. e) – para passar a constar “Condenar as pessoas afetadas a indemnizarem (…) até ao montante dos créditos não satisfeitos” onde constava “Condenar as pessoas afetadas a indemnizarem (…) no montante dos créditos não satisfeitos” – somos de entender que a Lei nº 9/2022 é de natureza interpretativa, por reclamada pela discussão gerada com a incompatibilidade da literalidade da sua anterior redação com as especificações previstas pelo nº 4 – “Ao aplicar o disposto na alínea e) do n.º 2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença.” –, e no sentido de consagrar a fórmula e solução legal que em 2012 foi ab initio pretendida prever para a responsabilização insolvencial, enquanto modalidade específica da responsabilidade civil que, como tal, não prescinde da verificação dos respetivos pressupostos legais gerais. Com efeito, sendo o nº 4 uma especificação dos termos da aplicação do efeito previsto pela al. e) do nº 2, em nome da coerência e consistência paradigmática da terminologia do sistema jurídico como um todo e, em particular, dos institutos jurídicos de natureza eminentemente civil, essencial à sua teorização e compreensão geral e abstrata, a construção das referidas normas por recurso aos vocábulos e segmentos ‘indemnizarem’, ‘valor das indemnizações devidas’, ‘calcular o montante dos prejuízos sofridos’, e ‘critérios para a sua quantificação’, não permite imputar ao legislador de 2012 mais do que a intenção de consagrar a responsabilização do afetado pela insolvência de acordo com os pressupostos gerais da responsabilidade civil, de natureza ressarcitória, ainda que limitada pelo montante máximo dos créditos não satisfeitos por respeito processual ao objeto e funcionalidades práticas do processo de insolvência, mas com o aproveitamento, em benefício dos credores, da qualificação e declaração judicial da natureza ilícita e culposa das condutas dos afetados pela qualificação operada em sede de processo de insolvência e da facilitação, por essa via, da imputação dos danos. Da imposição da fixação do concreto valor das indemnizações devidas ou (em alternativa à dita fixação por ausência de elementos necessários para a respetiva quantificação) de fixação/indicação dos critérios a utilizar para o efeito, resulta que o legislador não previu uma responsabilização civil genérica e/ou universal, no sentido de, por força única e exclusivamente da qualificação da insolvência, abranger a totalidade dos créditos sobre a insolvência não satisfeitos pelas forças da massa da devedora, pois que se essa fosse a intenção do legislador bastaria remeter para a lista de créditos reconhecidos e/ou verificados.»


E acrescentou-se, no acórdão recorrido:


«Somos assim de entender que a responsabilização civil dos afetados pela qualificação, e como se nos afigura não poder deixar de ser no contexto dos princípios que informam o sistema jurídico privado do nosso ordenamento jurídico, exige a verificação dos pressupostos gerais do instituto da responsabilidade civil. Ora, o exercício de qualquer pretensão indemnizatória depende da verificação dos fundamentos legalmente exigidos para fazer de alguém um responsável em sentido jurídico - não se tratando de responsabilidade objetiva ou pelo risco, nos termos gerais da responsabilidade civil previstos pelo art. 483º do Código Civil, sempre que os danos sofridos em concreto pelo lesado constituam consequência adequada de um facto voluntário, ilícito e subjetivamente imputável ao lesante a título de culpa, residindo a causa da deslocação do dano da esfera jurídica do prejudicado para o lesante justamente num juízo de censurabilidade que, para além da natureza essencialmente reparadora, atribui natureza sancionatória ao instituto da responsabilidade civil por ilícitos.


(…)


De resto, ainda que por apelo a princípios de proporcionalidade ou de proibição de excessos, já na vigência da redação inicial da al. e) a jurisprudência maioritária rejeitava a condenação ‘automática’ dos afetados pelo montante dos créditos não satisfeitos, pugnando pela fixação da indemnização após prévia apreciação e por referência, no essencial, à conduta da pessoa afetada, ainda que na perspetiva do seu contributo para a criação ou agravamento da insolvência, que será o mesmo que dizer, por referência ao perigo abstrato tutelado pela norma fundamento da qualificação da insolvência preenchida pela conduta do afetado.


Revertendo ao caso, surpreende-se aqui a coincidência - já acima enunciada - entre a causa fundamentadora da responsabilidade e a causa ‘preenchedora’ dessa responsabilidade ou, dito de outra forma, entre o perigo de dano (presumido pela norma fundamento da qualificação) e o dano concretamente causado – entre o agravamento da situação patrimonial emergente da diminuição da garantia patrimonial dos créditos da insolvente pela venda dos seus bens e pela retirada de quantias pecuniárias para a esfera jurídica da sua gerente e, como efeito desta venda, a indisponibilidade do seu produto para, no âmbito do processo de insolvência, dar satisfação aos créditos que por ele seriam pagos de acordo com a graduação legal dos reconhecidos.


Considerando o montante do produto da venda que, deduzido do IVA devido entregar ao Estado, corresponde a cerca de €57.500,00, e o montante que a recorrida AA retirou e não repôs na conta da devedora (cerca de € 16.200,00), descontadas as custas prováveis, a remuneração fixa e a remuneração variável do AI e outros encargos do processo (que se estima não superar o total de cerca de € 8.500,00), seria possível satisfazer integralmente os créditos laborais reconhecidos nos autos, que ascendem ao montante de cerca € 65.000,00. Anota-se que na grelha para pagamento dos créditos seguir-se-iam os créditos do Estado reconhecidos com privilégio creditório, e que estes, assim como os créditos comuns do Estado, beneficiam da responsabilidade subsidiária dos gerentes.


Concedendo que a afetação pela qualificação da insolvência contém em si mesma a demonstração e verificação da ilicitude do facto fundamento da qualificação, bem como do juízo de censurabilidade que pelo mesmo é passível de ser dirigido ao afetado, o nexo de causalidade entre a concreta atuação que determinou e/ou fundamentou a qualificação da insolvência como culposa e o prejuízo sofrido pelos credores da insolvência resulta assim verificado na medida dos créditos laborais, sendo abrangidos e beneficiados pela obrigação de indemnização que recai sobre os recorridos AA os remanescentes dos créditos que dessa natureza (originários ou por sub-rogação/habilitação) constem reconhecidos nos autos.»


Concorda-se com a fundamentação do acórdão recorrido, cuja completude torna desnecessário um particular desenvolvimento argumentativo da presente decisão.


A linha normativa seguida pelo acórdão recorrido é aquela que procede à correta interpretação das disposições conjugadas do disposto na alínea e) do n.2 do art.189º e no n.4 deste artigo, encontrando-se em harmonia com a jurisprudência dominante.


Efetivamente, as pessoas afetadas pela qualificação da insolvência não assumem automaticamente e sucedaneamente a responsabilidade contratual que cabia à sociedade declarada insolvente. Daí que não se possa afirmar que essas pessoas passam a ser diretamente responsáveis pela totalidade dos créditos reclamados e não satisfeitos pela massa. Não se pode deixar de ter presente que quem incorreu em incumprimento contratual para com os credores foi a sociedade declarada insolvente.


Os seus gerentes são responsabilizados extracontratualmente, nos termos do artigo 483º do Código Civil (ex vi do art.17º do CIRE), pois não eram contraparte nos contratos incumpridos que originaram os créditos reclamados. Nestes termos, respondem pelos danos que os credores sofreram (ao não verem os respetivos créditos ressarcidos pela massa insolvente) e que não teriam sofrido se os gerentes não tivessem tido comportamentos que culposamente determinaram a insuficiência do património da sociedade insolvente.


A tese sustentada pelos recorrentes quanto ao alcance do art.189º, n.2, alínea e) do CIRE tornaria o n.4 do art.189º em letra morta, pois não se compreenderia a hipótese, aí prevista, de “o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos” (hipótese em que remete para a liquidação de sentença). Efetivamente, se os prejuízos pelos quais os afetados pela qualificação da insolvência são responsáveis correspondessem automaticamente ao montante do crédito reconhecido não teria qualquer sentido normativamente útil prever a hipótese de o tribunal não conhecer o montante dos prejuízos.


No caso concreto entendeu-se que os sujeitos afetados pela qualificação da insolvência teriam causado à massa prejuízos correspondentes às seguintes verbas: €57.500,00 mais € 16.200,00 (num total de € 73.700,00). E tal montante foi destinado ao pagamento dos encargos do processo e aos créditos laborais reconhecidos (no valor de € 65.000,00).


Não se encontram nos autos factos concretos que permitam estabelecer um nexo de causalidade entre o comportamento dos sujeitos afetados pela qualificação da insolvência e a produção de outros danos, nem se encontram demonstradas quais “as forças dos respetivos patrimónios”, como exige o art.189º, n.2, alínea e), para se poder proceder ao cálculo de outros danos.


Assim, rejeitando-se a aplicação do critério defendido pelo recorrente, ou seja, o da responsabilização automática dos gerentes da insolvente pelo pagamento de todos os créditos reconhecidos, entendendo-se, antes, que o art.189º, n.2, alínea e), conjugado com o n.4, do CIRE consagra uma hipótese de responsabilidade extracontratual, os pressupostos cumulativos deste tipo de responsabilidade têm de se encontrar concretamente demonstrados. E, no caso em apreço, tal não se verifica em modo diverso daquele que foi decidido pelo acórdão recorrido, pelo que esta decisão não merece censura.


3.3. A recorrente afirma que o acórdão recorrido, na interpretação que faz do art.189º, n.2, alínea e) do CIRE, está em oposição com o decidido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 06.09.2022, no processo n.º 291/18.0T8PRG-C.G2.S1 (relator José Rainho). Embora, como já se referiu, a oposição de acórdão não releve para efeitos de admissibilidade do presente recurso, sempre se pode afirmar que, contrariamente ao entendimento do recorrente, o decidido no referido acórdão do STJ não se encontra em oposição com o decidido no acórdão recorrido, no que respeita à aplicação do artigo 189º, n.2, alínea e) e n.4 do CIRE. Efetivamente, não se afirma nesse acórdão de 06.09.2022 (no qual a agora relatora foi segunda adjunta) que os sujeitos afetados pela qualificação da insolvência serão sempre pessoalmente responsáveis pelo pagamento de todos os créditos não satisfeitos pela massa insolvente. O que aí se entendeu (em concordância com a fundamentação do acórdão recorrido nesse processo) foi que existia uma relação de causalidade entre o comportamento culposo dos sujeitos em causa (assente na factualidade provada) e o montante indemnizatório, estando, assim, presente um critério de proporcionalidade. E foi pelo facto de o comportamento dos sujeitos desse caso ser particularmente censurável e causador dos vastos danos comprovados pelas instâncias que aí se entendeu que o respetivo grau de responsabilização seria tendencialmente correspondente ao montante dos créditos não satisfeitos.


A situação fáctica a que respeitava esse acórdão e a situação fáctica subjacente aos presentes autos são significativamente diversas (como o próprio recorrente reconhece, no ponto n.28 das suas alegações de recurso), pelo que o que ali se afirmou sobre a extensão da responsabilidade dos afetados pela qualificação da insolvência (em face da concreta factualidade desse caso) não pode ser generalizável nem transposto acriticamente para a apreciação do presente caso.


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3.5. Quanto à segunda parte da questão, ou seja, a de saber se o acórdão recorrido podia ter destinado o montante indemnizatório ao ressarcimento dos créditos laborais, em vez de ter rateado esse montante por todos os credores, como pretende o recorrente, também não vemos razão para discordar do acórdão recorrido.


Na realidade, o recorrente não indica nenhuma norma legal que sustente a tese do rateamento entre credores como se todos fossem credores comuns. E, contrariamente, ao defendido pelo recorrente, a letra do art.189º, n.2, alínea e) do CIRE não permite sustentar minimamente tal interpretação, pois dela não se pode extrair qualquer argumento nesse sentido. Tal norma nada diz quanto à ordem pela qual os credores devem ser indemnizados.


A responsabilidade dos sujeitos afetados pela qualificação da insolvência, ainda que, na essência, determinada segundo as regras gerais, previstas no artigo 483º do CC, não deixa de ser uma responsabilidade apurada no quadro de um processo insolvencial. E é inequívoco que o CIRE não trata todos os credores ao mesmo nível (como se todos fossem titulares de créditos comuns), antes pelo contrário, estabelece diferenciação de categorias e hierarquização de créditos para efeitos do respetivo pagamento (art.47º). Contrariamente ao entendimento do recorrente, não existe fundamento legal para se afirmar que essa hierarquização vale exclusivamente para a distribuição da massa insolvente. Cumprindo a responsabilização dos afetados pela insolvência uma função que, em certa medida, ainda apresenta caráter ressarcitório ou compensatório do que não foi possível receber através da massa insolvente (por culpa dos sujeitos afetados), nada de estranho existe na utilização de um critério equivalente ao legalmente fixado para a graduação dos créditos a pagar pela massa, procedendo-se, portanto, a uma aplicação analógica desse critério legal.


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3.6. Afirma, ainda, o recorrente que a interpretação que a decisão recorrida fez do estatuído na alínea e) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE, ao determinar que a indemnização proveniente da responsabilidade pessoal dos afetados se verifica de acordo com a graduação legal dos créditos reconhecidos, padece de inconstitucionalidade por violação dos artigos 13.º, 20.º, 58.º, e 61.º da CRP.


Entende o recorrente, para justificar a alegada inconstitucionalidade, que aquele preceito deveria ter sido interpretado no sentido de que, não sendo tal indemnização integrante da massa insolvente, devem todos os credores ser considerados como comuns e entre eles ser feito o respetivo rateio da indemnização devida aos credores a cargo dos afetados pela insolvência culposa.


Ora tal argumento não se apresenta como suficientemente demonstrador da existência de violação das invocadas normas constitucionais. É apenas percetível que o recorrente se queixa de uma falta de tratamento igualitário entre os credores.


Ora, o acórdão recorrido, ao destinar o montante da indemnização ao pagamento dos créditos laborais, não afirma que os demais credores não têm direito a ser indemnizados (como o recorrente parece ter entendido), nem se baseia em qualquer critério violador das regras de igualdade entre credores tal como elas surgem formuladas no CIRE, sendo certo que este diploma estabelece uma hierarquia em função da natureza dos credores e dos créditos reconhecidos.


Tendo-se entendido que a responsabilidade dos afetados pela qualificação da insolvência não podia estender-se à satisfação de todos os créditos reclamados, havia que eleger um critério de atribuição do montante indemnizatório pelo qual esses sujeitos foram considerados responsáveis. E o critério foi aquele que, como supra se referiu, a lei consagra para a hierarquização dos credores na insolvência, não havendo fundamento legal para se aplicar o critério do rateio igualitário defendido pelo recorrente. Não se identifica, portanto, que a aplicação da lei feita pelo acórdão recorrido sofra de qualquer inconstitucionalidade.


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DECISÃO: Pelo exposto, julga-se a revista improcedente e confirma-se o acórdão recorrido.


Custas: pelo recorrente.


Lisboa, 12.12.2023


Maria Olinda Garcia (Relatora)


Ana Resende


Ricardo Costa