Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
Relator: | ROSA TCHING | ||
Descritores: | NULIDADE DE ACÓRDÃO FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO REFORMA DE ACÓRDÃO ERRO DE JULGAMENTO ERRO GROSSEIRO | ||
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Data do Acordão: | 03/31/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | RECLAMAÇÃO INDEFERIDA | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
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Sumário : | I. Uma decisão padece do vício de falta de fundamentação de direito quando não revela qualquer enquadramento jurídico ainda que implícito, tornando ininteligível os fundamentos da decisão. II. A reforma da decisão destina-se a corrigir um erro de julgamento resultante de um erro grosseiro, um evidente engano, um desacerto total no regime jurídico aplicável à situação ou na omissão ostensiva de observação dos elementos dos autos, não podendo ser usado para as partes manifestarem discordância do julgado ou tentarem demostrar “error in judicando”. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA 2ª SECÇÃO CÍVEL *** I. Relatório 1. O Banco Espírito Santo, S. A. deduziu contra Habiportela – Cooperativa de Habitação e Construção CRL ação executiva para pagamento de quantia certa, que corre termos sob o número 3413/03..... Por requerimento de 20 de Abril de 2009, AA requereu, nos termos do art. 869º, n.º 1 do Código de Processo Civil de 19611, a suspensão da graduação dos créditos até que obtivesse título executivo contra a executada. Em 6 de Janeiro de 2010 foi proferida decisão que julgou extemporâneo o requerimento de suspensão da graduação dos créditos. 2. Inconformado com esta decisão, o AA dela interpôs recurso de agravo para o Tribunal da Relação ... que, por acórdão proferido em 1 de Julho de 2010, julgou improcedente o recurso e manteve a decisão recorrida. Em 7 de Setembro de 2010, o agravante apresentou requerimento, nos termos do art.º 669º, n.ºs 1, a) e 2 do CPC de 1961, em que solicitou a reforma do acórdão proferido em 1 de Julho de 2010 e reclamou, nos termos do art. 668º, n.º 1, c) do referido diploma legal, pugnando pela revogação do despacho agravado e pelo reconhecimento de que já se formara nos autos título exequível, devendo, por isso, o seu crédito ser graduado e o agravante admitido a concorrer à venda em condições de igualdade com os demais credores. Em 14 de Dezembro de 2010 foi proferido acórdão, em conferência, que indeferiu o pedido de reforma do acórdão. O agravante formulou posteriormente sucessivos pedidos de reforma do acórdão, que foram sendo sucessivamente julgados improcedentes, até que em 23 de Fevereiro de 2012 foi proferido acórdão, em conferência, que, considerando que a parte vinha atravessando nos autos reclamações sucessivas ao acórdão publicado em 1 de Julho de 2010, obstando, deste modo, ao seu trânsito em julgado e que esta situação enquadrava-se na previsão do art. 720º, n.ºs 1 e 2 do CPC de 1961, determinou que o incidente prosseguisse em separado e ordenou a extração de traslado. 3. Os autos baixaram à 1ª instância e aí prosseguiu termos a execução. 4. Os presentes autos subiram ao Tribunal da Relação ... na sequência do requerimento formulado pelo agravante AA, em 4 de Julho de 2019, após a contagem do processo e pagamento das custas, para efeitos de ser julgado o traslado. 5. Em 5 de Março de 2021 foi proferida decisão sumária pela Senhora Desembargadora relatora que, considerando que todas as questões contendentes com os pedidos de esclarecimento/reforma dos diversos acórdãos prolatados pela Relação já tinham sido apreciadas e que o pedido de reforma do despacho proferido em 29 de Março de 2012 perdeu utilidade, uma vez que, estando certificado nos autos que não existiu citação dos credores desconhecidos, nos termos do art. 864º, n.º 1, d) do CPC de 1961, na redação anterior ao DL n.º 38/2003, de 8 de Março, por esta norma, à data da instauração da execução, em 27 de Novembro de 2013, já estar revogada, não era possível emitir uma certidão de um edital que não existiu, decidiu, ao abrigo do disposto no art.º 652º, n.º 1, h) do CPC, não tomar conhecimento da única questão não apreciada no traslado atinente ao pedido de reforma do despacho proferido em 29 de Março de 2012, julgando extinta, por inutilidade, a instância incidental. 6. Notificado desta decisão, em 18 de Março de 2021, veio o agravante, ao abrigo do disposto no art. 652.º, n.º 3, do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013 de 26 de Junho, requerer que sobre a matéria daquele despacho recaísse acórdão. 7. O recorrido, notificado da reclamação, nada disse. 8. Por acórdão proferido em 27.04.2021 decidiu o Tribunal da Relação ... desatender a reclamação apresentada pelo agravante AA contra o despacho proferido pela relatora, datado de 5 de Março de 2021, mantendo-o na íntegra. 9. Inconformado, de novo, com esta decisão o reclamante dela interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça. 10. O recorrido não respondeu.
11. Com vista a assegurar o princípio do contraditório estabelecido no art. 3º, nº 3 do CPC, foi proferido despacho a determinar a notificação do recorrente para, querendo, pronunciar-se sobre a inadmissibilidade do recurso de revista por ele interposto, o que a recorrente fez, sustentando a admissibilidade do recurso em causa com o fundamento de que o acórdão recorrido conhece de uma questão processada como incidente autónomo do processo executivo e com natureza declarativa e põe termo ao processo de incidente de demoras abusivas previsto no art. 670º do CPC. 12. Em 04.12.2021, foi proferido, pela ora relatora, o despacho de não admissão do recurso de revista, que aqui se transcreve: « (…) Nesta matéria, dispõe o art. 852º, do CPC, que «aos recursos (…) de revista de decisões proferidas no processo executivo são aplicáveis as disposições reguladoras do processo de declaração e o disposto nos artigos seguintes». Estabelece o art. 854º, do mesmo código que «Sem prejuízo dos casos em que é sempre admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apenas cabe revista, nos termos gerais, dos acórdãos da Relação proferidos em recurso nos procedimentos de liquidação não dependentes de simples cálculo aritmético, de verificação e graduação de créditos e de oposição deduzida contra a execução». E, por sua vez, prescreve o art. 671º, nº 1, do CPC, que «Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça (…) que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos». Em causa está o recurso do acórdão proferido no âmbito de incidente de defesa contra demoras abusivas, previsto no art. 670º do CPC que decidiu, ao abrigo do disposto no art.º 652º, n.º 1, h) do CPC, não tomar conhecimento da única questão não apreciada no traslado atinente ao pedido de reforma do despacho proferido em 29 de Março de 2012, julgando extinta, por inutilidade, a instância incidental. Trata-se, por isso, de uma decisão que não cabe na previsão do n.º 1 do artigo 671.º do CPC, porquanto não constitui decisão final que conheça do mérito da causa ou ponha termo ao processo mediante a absolvição do réu da instância ou por forma a esta equiparada, nem se enquadra em nenhuma das situações expressamente previstas no art. 854º, do mesmo código. Assim sendo e porque também não estamos perante algum dos casos em que é sempre admissível recurso de revista, nos termos do disposto nos arts. 671, nº 2, als. a) e b) e 629º, nº 2. al. d), ambos do CPC, evidente se torna não ser a decisão em causa suscetível de recurso de revista.
*** III. Nestes termos e pelos fundamentos expostos, não se admite o recurso de revista interposto. Custa pelo recorrente. Notifique.»
13. O recorrente reclamou deste despacho para a conferência, ao abrigo do disposto no art. 652º, nº 3 do CPC, persistindo na defesa da admissibilidade do recurso em causa, uma vez que o acórdão recorrido conhece de uma questão processada como incidente autónomo do processo executivo e com natureza declarativa e põe termo ao processo de incidente de demoras abusivas previsto no art. 670º do CPC. 14. Por acórdão proferido em 10 de fevereiro de 2022, decidiu este Supremo Tribunal julgar improcedente a presente reclamação, confirmando-se a decisão da relatora de não admissão do recurso de revista interposto e supra transcrita no nº 12, com base na seguinte fundamentação que se transcreve: « A questão a dirimir na presente reclamação prende-se com a admissibilidade, ou não, do recurso de revista do acórdão proferido no âmbito de incidente de defesa contra demoras abusivas, previsto no art. 670º do CPC, que confirmou a decisão sumária proferida pela Senhora Juíza relatora que, considerando que todas as questões contendentes com os pedidos de esclarecimento/reforma dos diversos acórdãos prolatados pela Relação já tinham sido apreciadas e que o pedido de reforma do despacho proferido em 29 de Março de 2012 perdeu utilidade, uma vez que, estando certificado nos autos que não existiu citação dos credores desconhecidos, nos termos do art. 864º, n.º 1, d) do CPC de 1961, na redação anterior ao DL n.º 38/2003, de 8 de Março, por esta norma, à data da instauração da execução, em 27 de Novembro de 2013, já estar revogada, não era possível emitir uma certidão de um edital que não existiu, decidiu, ao abrigo do disposto no art.º 652º, n.º 1, h) do CPC, não tomar conhecimento da única questão não apreciada no traslado atinente ao pedido de reforma do despacho proferido em 29 de Março de 2012 e julgou extinta, por inutilidade, a instância incidental. Ora, analisada por este coletivo toda a fundamentação do despacho reclamado, não vemos motivos para dela discordar, pelo que mantém-se integralmente essa fundamentação, nada mais havendo que acrescentar ao aí referido» . 15. Notificado deste último acórdão, veio o AA arguir a nulidade deste mesmo acórdão, nos termos do art. 615º, nº 1, als. b) e d), aplicável ex vi arts 666º, nº 1 e 685º, todos do C.P. Civil e requerer a sua reforma. 16. O recorrido não respondeu. 17. Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir. *** II. Fundamentação As questões a decidir consistem em saber se o acórdão proferido nos presentes autos por este Supremo Tribunal, em 10 de fevereiro de 2022, padece das nulidades previstas no art. 615º, nº 1, als. b) e d), aplicável ex vi arts 666º, nº 1 e 685º, todos do C.P. Civil e se existe fundamento para determinar a sua reforma. 2.1. Nulidades do acórdão Sustenta o reclamante enfermar o referido acórdão da nulidade prevista na alínea b) do nº1 do citado art. 615º, por falta de fundamentação, pois dele não resulta indiciado que a conferência tenha considerado, analisado e avaliado as razões por ele aduzidas para sustentar a admissibilidade da revista. Segundo a al. b), do citado art. 615º, aplicável aos acórdãos da Relação por via da norma remissiva do n.º 1 do art.º 666.º do mesmo Código, é nula a sentença «quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão». Trata-se de um vício, que corresponde à omissão de cumprimento do dever contido no art. 205º, nº 1 da CRP que impende sobre o juiz de indicar as razões de facto e de direito que sustentam a sua decisão. E, tal como é jurisprudência pacífica[1], traduz-se na falta absoluta de motivação, quando haja total omissão dos fundamentos de facto ou de direito em que assenta a decisão, e não na motivação deficiente, medíocre ou errada. Assim, ocorre falta de fundamentação de direito quando não se revela qualquer enquadramento jurídico ainda que implícito, de forma a deixar, no mínimo, ininteligível os fundamentos da decisão. Conforme se deixou dito no acórdão ora sob censura e resulta do disposto no art. 652º, nº 3, do CPC, a questão a dirimir no âmbito da reclamação para a conferência prendia-se com a manutenção, ou não, do despacho proferido pela ora relatora que não admitiu o recurso de revista interposto pelo ora reclamante do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação no âmbito de incidente de defesa contra demoras abusivas, previsto no art. 670º do CPC, que julgou extinta, por inutilidade, a instância incidental. E o que se decidiu a este respeito foi que, uma vez analisada por este coletivo toda a fundamentação do despacho reclamado supra transcrito e não se vendo motivos para dela discordar, mantinha-se integralmente essa fundamentação, nada mais havendo que acrescentar ao aí referido. Vale tudo isto por dizer que considerou-se não ser a decisão em causa suscetível de recurso de revista visto estar «em causa uma decisão que não cabe na previsão do n.º 1 do artigo 671.º do CPC, porquanto não constitui decisão final que conheça do mérito da causa ou ponha termo ao processo mediante a absolvição do réu da instância ou por forma a esta equiparada, nem se enquadra em nenhuma das situações expressamente previstas no art. 854º, do mesmo código» e porque também não se está «perante algum dos casos em que é sempre admissível recurso de revista, nos termos do disposto nos arts. 671, nº 2, als. a) e b) e 629º, nº 2. al. d), ambos do CPC». Mas sendo assim, evidente se torna não se verificar a invocada falta de fundamentação. * Sustenta ainda o reclamante que o acórdão proferido por este Tribunal padece da nulidade prevista na alínea d) do nº 1 do citado art. 615º, por omissão de pronúncia sobre o mérito da pretensão do recorrente e sobre as razões por este alegadas para remover os obstáculos que têm sido sistematicamente criados ao conhecimento do mérito bem como para justificar o dever de pronúncia. Mas, em nosso entender continua a carecer de razão, pois o conhecimento do mérito da pretensão do recorrente só poderia ter lugar, caso o recurso por ele interposto fosse admitido, o que não aconteceu. Termos em que por todo o exposto seja de concluir não ter a recorrente caracterizado qualquer situação evidenciadora das nulidades previstas nas als. b) e d), do nº 1 do citado art. 615º, carecendo, por isso, de qualquer fundamento as apontadas nulidades. * 2.2. Reforma do acórdão ora reclamado. Finalmente, requer o reclamante a reforma do acórdão, devendo ser proferido novo acórdão que decida a reclamação para a conferência, conhecendo expressamente da pretensão deduzida pelo recorrente. Mais requer que a taxa de justiça de aplicável seja reduzida ao mínimo legal. * Sobre a reforma do acórdão e na parte que aqui interessa analisar, dispõe o nº 2 do art. 616º, nº 2, ex vi arts. 666º e 685º, todos do CPC, que é lícito « a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz: a) Tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos; b) Constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, por si só, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida». Trata-se, no dizer do Acórdão do STJ, de 12.02.2009 (processo nº 08A2680), de uma faculdade excecional que «deve conter-se nos apertados limites definidos pela expressão “manifesto lapso”, reportada à determinação da norma aplicável, à qualificação jurídica dos factos ou à desconsideração de elementos de prova conducentes a solução diversa», não devendo, por isso, o incidente da reforma «ser usado para manifestar discordância do julgado ou tentar demonstrar “error in judicando” (que é fundamento de recurso) mas apenas perante erro grosseiro e patente, ou “aberratio legis”, causado por desconhecimento, ou má compreensão, do regime legal». No mesmo sentido, afirma o Acórdão do STJ, de 04.05.2010 (processo nº 361/04.4TBPVC.C1.S1), que «a reforma da decisão não é, nem pode coincidir, com um recurso, pelo que não poderá servir para manifestar discordância do julgado, mas apenas tentar suprir uma eficiência notória ou clara». « É uma forma de se corrigir, no fundo, um erro de julgamento, correcção que só será possível se ocorrer um erro resultante de um “lapso manifesto”. E lapso manifesto será o erro grosseiro, um evidente engano, um desacerto total no regime jurídico aplicável à situação ou na omissão ostensiva de observação dos elementos dos autos». Por tudo isto e porque o incidente de reforma da decisão não se destina a ser usado para as partes manifestarem discordância do julgado ou tentarem demostrar “error in judicando”, impõe-se indeferir o pedido de reforma formulado pelo requerente. E o mesmo vale dizer quanto à pretendida redução da taxa de justiça ao mínimo legal, atenta a conduta processual do reclamante que persiste em deduzir pretensões cuja falta de fundamento é manifesta. *** III – Decisão Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em julgar improcedentes as invocadas nulidades bem como o pedido de reforma formulado. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC. Notifique. *** Supremo Tribunal de Justiça, 31 de março de 2022
Maria Rosa Oliveira Tching (relatora)
Catarina Serra Paulo Rijo Ferreira ______ [1] Neste sentido, vide, entre muitos outros, Acórdão do STJ, de 10.5.1973, in, BMJ, n.º 228º, pág. 259 e de 15.3.1974, in, BMJ, n.º 235, pág. 152. |