Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
079797
Nº Convencional: JSTJ00009411
Relator: ALBUQUERQUE DE SOUSA
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
CONHECIMENTO NO SANEADOR
FUNDAMENTAÇÃO
DIVIDA DE CONJUGES
DIVIDA COMERCIAL
LETRA
LIVRANÇA
MUTUO
REFORMA DE LETRA
DESCONTO BANCARIO
Nº do Documento: SJ199105160797972
Data do Acordão: 05/16/1991
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N407 ANO1991 PAG420
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR COM - TIT CREDITO. DIR CIV - DIR FAM.
DIR PROC CIV - RECURSOS.
Legislação Nacional: CPC67 ARTIGO 498 N4 ARTIGO 510 N1 C ARTIGO 660 N2 ARTIGO 664 ARTIGO 668 N1 C ARTIGO 684 ARTIGO 690.
CCIV66 ARTIGO 1142 ARTIGO 1691 N1 C D.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1984/01/24 IN BMJ N333 PAG483.
ACÓRDÃO STJ DE 1985/12/05 IN BMJ N352 PAG389.
Sumário : I - As "questões" a que se alude nos artigos 660 e 668 n. 1, alinea d) não podem ser confundidas com os motivos, argumentos ou meios de que uma das partes se socorre ou para fazer valer a "causa debendi" ou para afastar essa causa, antes se caracterizam não so pelo pedido propriamente dito, mas tambem pela causa de pedir.
II - O banco que descontou letras e , alem de credor cambiario, tambem credor ordinario do reu que lhas apresentou a desconto e pode, por isso, invocar contra este, como causa de pedir, a relação subjacente de mutuo em que o desconto, antes de mais, se traduz, se não quiser ou não puder invocar a obrigação cambiaria.
III - No caso de as letras endossadas ao Banco, em operação de desconto, vierem a ser reformadas no interesse, por conveniencia e a pedido do descontario, como se verifica no caso sub judice, e obvio que subsiste a obrigação subjacente, que continua a existir o contrato de desconto e que não se operou uma substituição, pura e simples, das letras, iniciais (reformadas) por novas letras (letras de reforma).
IV - Provado que os reus são casados um com o outro segundo o regime de comunhão de adquiridos, que o reu marido e comerciante e administrador dos bens do casal, que este vive exclusivamente da sua actividade comercial, que os rendimentos dessa actividade aproveitam ao seu conjuge e a todo o agregado familiar, e que os descontos realizados se inseriam no exercicio da actividade comercial do reu, não pode deixar-se de considerar a mulher como co-responsavel de harmonia com o disposto no artigo 1691 n. 1, alineas c) e d) do Codigo Civil, pois se trata de dividas contraidas em proveito comum do casal e nos limites dos poderes de administração, e contraidas, alias, pelo marido no exercicio do comercio e em proveito comum.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Banco Totta & Açores, E. P., com sede em Lisboa, intentou, no 4 Juizo Civel de Lisboa, a presente acção com processo ordinario contra A e mulher, B, residentes em Zibreira - Torres Novas, pedindo que estes fossem condenados a pagar-lhe a soma de 1030680 escudos, equivalente a quatro letras e uma livrança que, no exercicio do seu comercio e a pedido dos reus descontou e de que e portador, precisamente, por as haver descontado, acrescida de juros moratorios, calculados a taxa anual de 24%, entretanto vencidos, no montante de 395586 escudos, e dos vincendos.
Defenderam-se os reus na forma da sua contestação de folhas 34. Houve, ainda, replica e treplica.
O Meretissimo Juiz da causa, considerando que o processo o habilitava a conhecer, desde logo, directamente do pedido, proferiu, a folhas 54 e seguintes, o despacho saneador, em que, conhecendo "de meritis", julgou a acção provada e procedente e, consequentemente, condenou os reus a pagar ao autor a quantia de 1030680 escudos, acrescida dos juros vencidos, no montante de 395586 escudos, e ainda nos juros vincendos, relativamente ao capital em divida e a taxa de 24% ao ano, desde 28-6-83 ate integral pagamento, e nas custas do processo.
Inconformados, os reus recorreram, da apelação, mas a Relação de Lisboa, em seu acordão de folhas 91-99, negou provimento a esse recurso, confirmando a decisão recorrida.
Desse acordão recorrem agora os reus para este Supremo Tribunal, na sua respectiva alegação pedindo que, concedendo-se a revista, se revoguem "as decisões das instancias" (sic), pelos fundamentos que resumem nas seguintes conclusões:-
1 - A reforma de uma letra não pode configurar-se como contrato de desconto;
2 - Materializa apenas um contrato de reforma;
3 - Não pode, por isso, entender-se subjacente um contrato de mutuo;
4 - E que não houve no caso entrega de dinheiro que o reu ficasse a poder dispor;
5 - Decidindo o contrario, houve violação do disposto no artigo 1142 do Codigo Civil;
6 - Por outro lado, confirmando a sentença da 1 instancia, acatou os fundamentos que a mesma utilizou para decidir;
7 - mantendo a condenação da re por fundamentos diversos dos da sentença, e manifesta a contradição dos julgados e nitida a oposição entre a confirmação daquela e os fundamentos de que o Acordão se serviu para decidir;
8 - Cometeu, assim, a nulidade prevista na alinea c) do n. 1 do artigo 668 do Codigo de Processo Civil, infringindo o disposto no artigo 660 do mesmo diploma."
Na sua contralegação, o Banco recorrido, sustenta os fundamentos do acordão recorrido, que pretende ver confirmado, pronunciando-se no sentido de se dever negar a revista.
O Ministerio Publico teve vista no processo e nada requereu.
Colhidos nos autos os vistos da lei, cumpre-nos decidir.
Começaremos pela indicação dos factos que pela Relação vem dados como assentes e que são os seguintes: a) O autor Banco Totta & Açores apresenta-se como portador das referidas quatro letras dos valores de 127000 escudos, 250880 escudos, 82000 escudos e 440000 escudos, que foram sacadas pelo reu A e aceites, as tres primeiras, por C, e a ultima por D, por lhe terem sido endossadas pelo sacador; b) As letras que vem de mencionar-se são reformas de letras anteriores descontadas, a primeira, de uma de 142000 escudos, a segunda, de uma de 358400 escudos, a terceira, de uma de 112000 escudos e, a ultima de uma de 543720 escudos, respectivamente; c) As importancias documentadas pelas letras que se indicam na antecedente alinea a) foram creditadas pelo autor ao reu marido na conta A. D. n. 3370318/001, de que o segundo e titular, por proposta deste; d) O autor apresenta-se tambem como portador da referida livrança do valor de 130000 escudos, a qual foi subscrita pelos reus, a favor do Banco Totta & Açores, por este ter procedido ao lançamento a credito do seu valor na conta D.O. do demandado, n. 3370318/001; e) Por virtude do não pagamento das importancias creditadas, o autor ficou com o direito de debitar as mesmas em conta, assim como outras despesas inerentes e juros de mora a taxa remuneratoria, acrescida de 2%; f) Os reus são casados, um com o outro, desde 4-4-81, segundo o regime de comunhão de adquiridos; g) O reu marido, que e comerciante e administrador dos bens do seu casal, vive exclusivamente da sua actividade mercantil, na qual se inseriram os descontos efectuados, e os seus rendimentos aproveitam ao seu conjuge e agregado familiar.
Posto isto, passemos seguidamente a apreciação das questões que pelos recorrentes nos são postas na sua alegação.
E deveremos começar por conhecer da "nulidade prevista na alinea c) do n. 1 do artigo 668 do Codigo de processo Civil", acusada pelos recorrentes, os quais, infundadamente, como de seguida se vera, sustentam que no acordão em apreço se cometeu essa nulidade - nulidade de sentença - por uma dupla ordem de razões, a saber: em primeiro lugar, porque, implicando a confirmação da sentença da 1 instancia a confirmação dos fundamentos em que aquele alicerçou a condenação da re - fundamentos esses que o acordão acatou -, e sendo certo que, não podendo esses fundamentos, por especificadamente impugnados na contestação, considerar-se assentes, a Relação, no acordão ora impugnado, alterando a fundamentação, indicou outras razões, mantendo a condenação da re por fundamentos diferentes dos da sentença, não podia o acordão da Relação confirmar a sentença apelada, e, confirmando-a sem restrições, aceitou os respectivos fundamentos, mas decidiu, quanto a re, por outros - diferentes - fundamentos, havendo, assim, "nitida contradição entre os fundamentos da sentença e os do acordão, relativamente a condenação da re, e "nitida oposição" entre a confirmação da sentença e os fundamentos de que o acordão se serviu; em 2 lugar, porque, desviando-se das questões que as partes controverterem nos respectivos articulados e a sentença da 1 instancia decidira" e fundando-se noutras razões,
"bem diferentes das que foram afloradas pela sentença que confirmou", o acordão recorrido infringiu o disposto no artigo 660 do Codigo de Processo Civil.
Este ultimo argumento e de arredar, desde logo, por manifestamente destituido de qualquer valor.
Antes de mais, seria de observar que a violação da regra da proibição do conhecimento extrapetição, estabelecida na 2 parte do n. 2 do artigo 660 daquele Codigo, segundo a qual o juiz não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras, importa, efectivamente, nulidade de sentença, mas a prevista na alinea d) do n. 1 do artigo 668 do mesmo Codigo, que pelos reus não foi arguida, e não a da alinea c) do mesmo preceito.
De observar seria, ainda, que as "questões" a que se alude nos citados artigos 660 e 668, n. 1, alinea d), não podem ser confundidas com os motivos, argumentos ou meios de que uma das partes se socorre, ou para fazer valer a "causa debendi", ou para afastar essa causa (da qual a outra parte faz derivar a sua pretensão).
Na verdade, não se pode confundir a causa de pedir das partes com os motivos ou razões de que estas se servem para a sustentar. (Sobre o que deve entender-se pelo vocabulo "questões", para os ditos efeitos, veja-se
J. A. Reis, "Codigo de Processo Civil Anotado", volume V, p.p. 48-58).
A questão a que aludem os atras citados preceitos caracteriza-se, efectivamente, não so pelo pedido, propriamente dito, mas tambem pela causa de pedir.
Convem, pois, ter bem presente o conceito de causa de pedir. (Conforme art 498, n. 4 do Codigo de Processo Civil). Importa, na verdade, atender a causa juridicamente relevante, que não se confunde com o facto positivo, natural, pura e simples, sendo constituida, antes, pelo facto ou complexo de factos idoneos para produzir efeitos juridicos. Como tambem não se podera confundir o acto ou facto, em si, com a qualificação ou o aspecto juridico sob o qual foi encarado.
E necessario, sem duvida, que haja identidade entre a "causa petendi" e a "causa judicandi". Ha que atender, portanto, ao estado da causa no momento em que e decidida a materia de facto, não podendo ja o litigio sofrer modificações, pelo que o juiz tem de reportar-se ao condicionalismo existente nesse momento, cumprindo-lhe resolver todas as questões então pendentes e so essas.
(Conforme Autos e obra citadas, pagina 53 e seguintes).
Quanto as questões a resolver pelos tribunais de recurso, as disposições conjugadas dos artigos 690 e 684 do Codigo de Processo Civil resulta que a actividade de conhecimento do tribunal de recurso e delimitada pelas conclusões da alegação do recorrente.
Vejamos agora o que sucede no caso dos autos.
O recurso de apelação não teve como fundamento qualquer das nulidades mencionadas nas alineas b) a e) do n. 1 do artigo 668 daquele citado Codigo, sendo certo que, em relação ao saneador - sentença, os reus se abstiveram de arguir alguma nulidade de sentença.
Todavia, o Meretissimo Juiz da 1 instancia omitiu ai, completamente, a indicação dos factos que considerou provados.
Não obstante a omissão da especificação dos fundamentos de facto, concluiu que, "não pagando, os reus constituiram-se em mora, ficando obrigados a indemnizar os prejuizos causados ao autor" (...), "nesses termos respondendo, pois, os reus", pelo que, julgando a acção procedente, condenou ambos os reus na forma ja atras referida.
Na alegação do recurso que dessa decisão interpuseram para a Relação, e no tocante a condenação da re, mulher, como co-responsavel pela divida exigida pelo autor, os reus alegaram que a re somente podia ser responsabilizada pela obrigação de pagar a livrança em causa (e não as letras), não podendo a sentença te-la condenado nos termos em que o fez, e que, alias, "os autos não contem os elementos necessarios para se proferir decisão de merito no despacho saneador"
(V. conclusões 1 e 5 da alegação de folha 79 e seguintes).
Contrariamente ao que os reus então sustentavam, a relação, no acordão em apreço, entendeu que se podia e devia conhecer directamente do pedido no despacho saneador, por o processo conter todos os elementos para uma decisão de merito, de harmonia com o disposto no artigo 510, n. 1 alinea c), do Codigo de Processo Civil.
Nesse acordão, a Relação indicou especificadamente os factos tidos como provados, estando aqui fora de discussão e de causa que este Supremo Tribunal não pode exercer censura quanto aos factos materiais fixados pela Relação, com base neles, pois, havendo de ser proferida a decisão de direito.
Ora, factos dados como provados são, designadamente, os seguintes: os reus são casados, um com o outro, segundo o regime da comunhão de adquiridos; o reu marido e comerciante e o administrador dos bens do seu casal; o reu vive exclusivamente da sua actividade mercantil; os rendimentos dessa actividade do reu aproveitam do seu conjuge e agregado familiar; os "descontos" efectuados inseriam-se no exercicio da actividade comercial do reu. Com base nestes factos e independentemente de o desconto se poder considerar ou não, como um contrato não formal, o acordão recorrido entendeu não se poder deixar de haver a re, mulher, como co-responsavel pelo pagamento das dividas contraidas pelo seu marido, dado o disposto no artigo 1691, n. 1 do C. C., "com saliencia para o que se preceitua nas suas alineas c) e d)", sendo certo que não se provou que a divida não foi contraida em proveito comum. Dai no mesmo acordão se ter concluido que, ao condenar a re com a amplitude com que o foi o marido, a sentença da 1 instancia não violou qualquer preceito.
Mostra-se, assim, o acordão recorrido, nesta parte, devidamente fundamentada, nenhuma oposição existindo entre os fundamentos e a decisão de negar provimento ao recurso, confirmando a sentença apelada.
Nas conclusões da sua alegação para a Relação, os reus - apelantes colocaram ao tribunal "ad quem" a questão de saber se a re somente podia ser responsabilizada pelo pagamento da livrança por ela subscrita e se, por isso, a sentença não podia te-la condenado nos termos (ou com a amplitude) em que o fez.
Sobre essa questão não podia o tribunal de recurso deixar de se pronunciar, e foi dela que, precisamente, conheceu nos termos atras indicados.
Ao tribunal, efectivamente, fora pelas partes posta a questão de saber se responsabilizavam, ou não, ambos os conjuges as dividas a que respeitavam as letras invocadas na petição inicial, dado que essas letras se mostravam assinadas pelo reu, marido, sacador delas, e não tambem pela re, mulher, e se mostrava controvertido o facto de o autor haver descontado tais letras a pedido de ambos os reus. Ora, se e certo que, no artigo 2 da petição inicial, o autor referiu ter efectuado os descontos, nas datas ai indicadas, "a pedido do reu marido e da mulher", "conforme se prova pelas respectivas propostas de desconto", a verdade e que, nos artigos 6 a 8 e 12 desse seu articulado, o autor alegou factos, que foram julgados assentes, demonstrativos de se tratar de dividas da responsabilidade de ambos os conjuges reus, de harmonia com o disposto no artigo 1691, n. 1, alineas c) e d), por haverem sido contraidas pelo conjuge administrador em proveito comum do casal e, alias, por serem dividas comerciais que o conjuge comerciante contraiu no exercicio do seu comercio e em proveito comum. Por isso mesmo, tendo por verificada a alegada comunicabilidade das dividas, pelas apontadas razões, a Relação entendeu não ter ja interesse a averiguação do facto de o desconto das letras haver sido, ou não, efectuado a pedido de ambos os conjuges, não sendo caso, portanto, de a acção dever prosseguir, mediante elaboração de especificação e questionario, a fim de se produzir prova sobre esse facto controvertido.
A Relação, portanto, não se "desviou", no acordão recorrido, das questões suscitadas pelas partes nos seus articulados e de que se conheceu na sentença da 1 instancia.
E, contrariamente ao que os recorrentes afirmam, tambem não e exacto que a Relação haja confirmado a sentença da 1 instancia por razões não afloradas no processo.
E certo que, segundo a regra do artigo 664 do Codigo de Processo Civil, o tribunal, que não esta sujeito as alegações das partes no tocante a indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, so pode, em principio, servir-se dos factos articulados pelas partes. Mas verdade e tambem, no caso em apreço o tribunal, precisamente, apenas se serviu de factos que foram articulados pelas partes e dados como provados. Note-se, alias, que os proprios recorrentes, na sua alegação de folhas 113 e seguintes, reconhecem que, para confirmar a sentença da 1 instancia, relativamente a co-responsabilização da re, mulher, o acordão da relação se fundou nas "razões que o Autor averbou nos artigos 6, 7, 8, e 12 da petição inicial".
Todo o raciocinio dos recorrentes, conducente a arguida nulidade de sentença, parece, com efeito, assentar numa falsa base, que não encontra apoio em qualquer disposição legal ou nalgum principio geral valido, a saber: que o tribunal "ad quem" so pode confirmar a decisão recorrida pelos proprios fundamentos em que esta se baseou, e não por outras, não podendo confirmar a decisão recorrida por fundamentos diferentes; e que se tem de presumir que, confirmando a decisão recorrida, o acordão da Relação tambem confirma, inteiramente, os fundamentos em que a sentença da 1 instancia alicerça a sua conclusão final, ou parte decisoria, acatando plenamente (e exclusivamente) esses fundamentos.
Do que atras fica dito resulta manifesto que não exista acusada "contradição de julgados" e que no acordão recorrido não existe tambem a alegada oposição entre os fundamentos e a decisão, não se verificando, pois, a arguida nulidade da alinea c) do n. 1 do artigo 668 do Codigo de Processo Civil.
Improcedentes se mostram, pois, as conclusões 6, 7 e 8 da alegação dos recorrentes.
Arrumada, como fica, a questão da acusada nulidade de sentença prevista na alinea c) do n. 1 do citado artigo 668 do Codigo de Processo Civil, ha que apreciar a questão de fundo, a qual, na versão dos recorrentes, se reconduz a não verificação da "causa petendi" alegada pelo autor, ja que, invocando este o desconto dos titulos cambiarios referidos no artigo 1 da petição inicial, como causa da qual faz derivar a sua pretensão, e estando assente que as letras ali invocadas são reformas de letras anteriores, não se pode entender, segundo a tese dos recorrentes, "como subjacente um contrato de mutuo", por isso que "a reforma duma letra não pode configurar-se como contrato de desconto e materializa apenas um contrato de reforma", não tendo havido no caso entrega de dinheiro de que o reu ficasse a poder dispor. Por isso os recorrentes sustentam que, decidindo o contrario, o acordão recorrido violou o disposto no artigo 1142 do Codigo Civil.
Em face da materia de facto fixada pela Relação, e, porem, manifesta a falta de razão dos recorrentes.
Conforme justamente se pondera no acordão em apreço, os reus, ao contestarem a acção, não o fizeram para negar que as importancias documentadas pelos titulos cambiarios referidos no artigo 1 da petição tivessem sido pelo autor creditadas na conta bancaria do reu, marido, e recebidas pelos demandados, mas para dizer que, por nenhuma importancia lhes ter sido efectivamente entregue por ocasião da subscrição das letras juntas aos autos, a acção não poderia ter-se como fundada nos invocados contratos de desconto, devendo, antes, considerar-se baseada nas proprias letras. Na verdade, nos respectivos articulados, os reus claramente revelaram ter fundamentalmente em vista acentuar que, por nada haverem recebido do autor, por emprestimo, quando foram reformadas as letras iniciais e tem lugar a subscrição das letras juntas aos autos, não podia o autor basear o pedido em qualquer contrato de desconto, mas, tão so, nas relações cambiarias resultantes da subscrição das letras apresentadas, pelo que a acção, baseando-se em "letras de reforma", era uma verdadeira "acção cambiaria e não causal".
Ora, esta neste momento fora de discussão que não se trata de uma acção cambiaria, não se fundando a presente acção nos titulos cambiarios a que se alude no artigo 1 da petição inicial.
O autor fundou o pedido nos contratos de desconto (4 letras e 1 livrança) que alegou.
E provou-se, efectivamente, que o Banco autor efectuou o desconto de quatro letras, das importancias, respectivamente, de 142000 escudos, de 358000 escudos, de 112000 escudos e de 543720 escudos, creditando essas importancias ao reu, marido, por proposta deste, na sua conta D.O. n. 3370318/001, de que o mesmo reu e titular, nessa mesma conta do reu havendo o autor lançado o credito mais a quantia de 130000 escudos, valor duma livrança subscrita por ambos os reus a favor do autor.
Mais se provou que, posteriormente, aquelas quatro referidas letras vieram a se reformadas, as reformas delas respeitando as quatro letras que o autor juntou, por fotocopias, com a petição inicial e a que se alude no artigo 1 desse articulado, dos valores respectivamente, de 127000 escudos, de 250880 escudos, de 82000 escudos e de 440000 escudos, as quais, sacadas pelo reu, marido, foram por este endossadas ao autor.
Duvidas não ha, portanto, sobre a existencia dos descontos das letras que foram reformadas.
Provado esta, na verdade, o invocado contrato de desconto, que corresponde, no essencial, a um contrato de mutuo, autonomo e independente da relação cambiaria que o titulo representa.
Conforme este Supremo Tribunal julgou em seu acordão de 24-1-84 (in Boletim do Ministerio da Justiça, n. 333, pagina 483) o Banco descontou as letras e, alem de credor cambiario, tambem credor ordinario do reu que lhas apresentou a desconto e pode, por isso, invocar contra este, como causa de pedir, a relação subjacente de mutuo em que o desconto, antes de mais, se traduz, se não quiser ou não puder invocar a obrigação cambiaria.
A obrigação subjacente subsiste a par da cambiaria, como e proprio da "datio pro solvendo" realizada mediante o endosso da letra ou livrança em operação de desconto bancario, podendo o credor optar por demandar o descontario com fundamento na obrigação subjacente,
(conforme, neste sentido, o acordão deste Supremo Tribunal, de 5-12-85, no Boletim do Ministerio da Justiça n. 352, pagina 389).
Na operação de desconto bancario, ao descontario (ao cliente do Banco) compete fazer entrega do titulo devidamente endossado, para, assim, facultar ao Banco um meio mais rapido e facil de reembolso da soma despendida ("mutuada") e a garantia de pagamento da letra no caso de o sacado se recusar a aceitar e a pagar.
E no caso de as letras assim endossadas ao Banco, em operação de desconto, virem a ser reformadas, no interesse por conveniencia e a pedido do descontario, como se verificou no caso "sub indice", e obvio que subsiste a obrigação subjacente, que continua a existir o contrato de desconto e que não se operou uma substituição, pura e simples, das letras iniciais (reformadas) por novas letras ("letras de reforma").
Alias, no caso dos autos, resulta manifesto que as "reformas" não se limitaram a substituição das letras, ja porque se inseriram num processo algo complexo, todo ele integrador dos contratos de desconto iniciais, como os proprios reus reconheceram, quer porque as letras juntas ao processo correspondem a reformas das letras iniciais, em que houve entregas de dinheiro, e atraves delas efectuou-se uma correspondente amortização das quantias tituladas pelas letras reformadas.
Deste modo, como se observa no acordão recorrido, "o produto de desconto realizado, quer enquanto considerado como documentado, ainda que so parcialmente, pelas letras iniciais, descontadas, quer enquanto considerado como documentado pelas letras de reforma das letras reformadas, não podia deixar de haver-se como efectivamente creditado a favor do titular da conta D.O. n. 3370318/001".
E "mal se compreenderia, de resto, que, não negando os reus o recebimento das importancias tituladas pelas letras iniciais, como letras descontadas, se houvessem como não recebidas por eles as quantias tituladas pelas letras de reforma, quando estas, em termos praticos, mais não titulam do que o saldo descontado ainda não pago, titulado pelas letras reformadas". "(...) Se o saldo em divida era de haver como descontado ou mutuado enquanto consideradas as primeiras letras, como descontado ou mutuado se tem de haver ele, enquanto consideradas as segundas. O desconto realizado atraves das letras iniciais não mudou de natureza pelo facto de no lugar das letras reformadas terem aparecido outras letras a documentar o que dele ainda esta por restituir".
Alias, no caso dos autos, as proprias "letras de reforma" não podem deixar de ter-se, em si mesmas, como respeitantes a verdadeiros descontos: o facto de haverem sido subscritas na sequencia das propostas de desconto que o reu marido assinou e disso prova concludente, conforme justamente se pondera no acordão recorrido.
Ora, assente que o autor entregou ao reu, marido, as importancias tituladas pelos titulos cambiarios descontados, tendo o reu, por virtude da operação efectuada de desconto bancario, feito entrega, ao autor das letras devidamente endossadas, assim facultando ao Banco descontante um meio mais facil e rapido de reembolso da soma despendida e a garantia de pagamento das letras no caso de estas virem a ser pagas pelos respectivos aceitantes, forçosamente tem de concluir-se que o reu assumiu a obrigação de restituir ao autor o que dele recebeu, com os acrescimos acordados, no caso de os obrigados cambiarios não honrarem as suas firmas.
Verificados estão, assim os descontos que o autor alegou como justificativos do seu pedido.
E, tendo-se, ainda, provado que os reus são casados, um com o outro, segundo o regime da comunhão de adquiridos, que o reu, marido, e comerciante e o administrador dos bens do seu casal, que este vive exclusivamente da sua actividade comercial, que os rendimentos resultantes desta actividade aproveitam ao seu conjuge e a todo o seu agregado familiar, e que os "descontos" realizados se inseriram no exercicio da actividade comercial do reu, não pode deixar de ter a re, mulher, como co-responsavel pelo pagamento das dividas contraidas pelo reu, marido, de harmonia com o disposto no artigo 1691, n. 1, alineas c) e d), do Codigo Civil, pois se trata de dividas contraidas na constancia do matrimonio pelo conjuge administrador, em proveito comum do casal e nos limites dos seus poderes de administração, e contraidas, alias, pelo marido no exercicio do comercio e em proveito comum.
Trata-se, efectivamente, de dividas que responsabilizam ambos os conjuges.
Dir-se-a, finalmente, não se ver em que e que no acordão em apreço se haja cometido violação da disposição do artigo 1142 do Codigo Civil.
Tambem improcedentes são, portanto, as conclusões 1 a
5 da alegação dos recorrentes.
Por tudo o exposto, nega-se a revista, com custas a cargo dos recorrentes.
Lisboa, 16 de Maio de 1991.
Albuquerque de Sousa,
Mario Noronha,
Pereira da Silva.