Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1977/09.6JAPRT.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: ARMINDO MONTEIRO
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
CORREIO DE DROGA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
CULPA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
DOLO DIRECTO
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
CONFISSÃO
ANTECEDENTES CRIMINAIS
ARREPENDIMENTO
RELATÓRIO SOCIAL
MEDIDA DA PENA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 09/15/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário : I -Na operação de fixação da medida concreta da pena, o juiz goza de uma certa margem de liberdade individual, não podendo, no entanto, esquecer-se que ela é, e nem podia deixar de o ser, estruturalmente aplicação do direito, devendo ter-se em apreço a culpabilidade do agente e os efeitos da pena sobre a sociedade e na vida do delinquente, por força do que dispõe o art. 40.º, n.º 1, do CP. Essa margem de discricionariedade, no que não se mostra positivado na lei, e por isso, não plenamente controlável de um modo racional, colhe justificação, já que se trata de converter a quantidade de culpabilidade e demais múltiplas vertentes da formação da pena em “magnitudes penais”, porém fora disso o direito penal moderno fornece regras centrais para a determinação da pena, funcionando a culpa, entre nós, como seu limite inultrapassável, devendo tomar-se em conta os seus efeitos sobre a pessoa do delinquente (prevenção especial) e sobre a sociedade em geral (prevenção geral) – arts. 40.º, n.ºs 1 e 2, e 71.º, do CP (cf. Jescheck, in Derecho Penal, Vol. II, pág. 1192).
II - Tal visão utilitarista da pena é reflectida, desde logo, na moldura penal abstracta típica, tomando o legislador como padrão, na definição dos seus limites, a importância e a gravidade da ofensa que àqueles é feita, de forma a que a concreta medida da pena exprima a medida ajustada da necessidade da tutela das expectativas da comunidade da validade e vigência da norma infringida.
III -Descendo, por isso, dos princípios programáticos, ao concretismo da situação, o art. 71.º do CP, em articulação com aquele art. 40.º, oferece os critérios para a determinação da medida concreta da pena, em função da culpa e prevenção, bem como das circunstâncias que não fazendo parte do tipo depõem contra ou a favor do arguido, contexto inabdicável, porque o crime é, salvo raras circunstâncias, fruto de circunstâncias concomitantes ou pré-existentes à sua prática.
IV -O dolo – art. 14.º, n.º 1, do CP –, assume aqui, por directo, uma manifestação muito intensa, sob o aspecto intelectual, enquanto conhecimento de tudo quanto era preciso para uma correcta orientação da consciência ética para o desvalor jurídico da acção, como volitivo, no sentido de querer realizar o facto criminoso.
V - A tal propósito, o arguido aceitou um transporte, que sabia proibido, de cocaína, a partir do Rio de Janeiro, por via aérea, a desembarcar no Aeroporto Sá Carneiro, com destino à Corunha, para cedência posterior, contra o pagamento, a final, de uma importância de € 4000. A cocaína estava impregnada e dispersa por sete mantas, três turcos, quatro t-shirts, uns calções, tudo com o peso líquido total de 1146,37 g, produto estupefaciente esse cujas características conhecia, acondicionado numa mala por si transportada.
VI -O arguido espelha a figura denominada e conhecida, com frequente origem nas cinturas humanas mais degradadas das grandes metrópoles sul americanas, mais tarde da Nigéria e de outros países do continente africano, de “correio”, que o STJ encara como também altamente responsável pela difusão de estupefacientes, e como tal peça fundamental no tráfico de estupefacientes, um seu comparticipante, desempenhando ali um papel fundamental, a justificar punição vigorosa, contradistinguindo-se do dominus negotii, por este se esconder, sendo o “correio” a sua face visível, sujeitando-se aos riscos do tráfico, a troco de uma compensação pecuniária pelo transporte, umas vezes por pura ganância outras por razões de sobrevivência.
VII - Os bens jurídicos a acautelar com a incriminação pelo tráfico de estupefacientes são a protecção da saúde individual, da liberdade individual do consumidor, da economia do Estado, porque o tráfico propicia economias paralelas, subterrâneas, de complexa sindicância, fazendo do tráfico um negócio temível e comunitariamente repugnante, fundamentalmente pela devastação física e psíquica do consumidor, geralmente as camadas mais jovens do tecido social, instabilidade e, na maior parte dos casos, a desgraça total do seu agregado familiar, censurável em alto grau no plano ético-jurídico, até pelos custos sociais a que conduz, relacionados com o absentismo laboral e a contracção de doenças transmissíveis.
VIII - A punição do narcotráfico, mais do que uma luta localizada, é um combate que se dirige a um flagelo à escala universal, conhecendo o consumo entre nós de heroína estabilização, o de cocaína um aumento ligeiro, tendo a nível do consumo de haxixe, como aliás a nível europeu, registado um acréscimo mais significativo sobretudo a nível das classes estudantis.
IX - Por isso importa pela via da medida concreta da pena actuar sobre o comum dos cidadãos, dissuadindo-os do cometimento de futuros crimes, que, pela sua reiteração, criam alarme, insegurança e descrença nos órgãos aplicadores da lei caso estes não atinjam um ponto óptimo capaz de assegurar uma tutela efectiva e consistente dos bens jurídicos, não descendo abaixo de um limiar mínimo abaixo do qual, comunitariamente, a punição não se conforma com as suas finalidades, o que vale por dizer que as necessidades de prevenção geral são muito sensíveis reclamando uma intervenção rigorosa ao nível punitivo (cf. Prof. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, § 306).
X - E no plano da intervenção sobre o próprio arguido, de sensibilização da sua personalidade futuramente ao direito, de forma a evitar a sua reincidência, também se justifica a asserção de que as necessidades de emenda cívica são prementes, mesmo que se invoque e prove que a mãe é pessoa doente, carece de intervenção cirúrgica e do seu auxílio, o pai se mostra, como ele, desempregado, e que o arguido carecia de rendimentos para fazer face às dificuldades por que o seu agregado familiar atravessava, bem como à grave situação económica que vivia – algo inconciliável com a deslocação e alojamento no Brasil – porque esse quadro de dificuldades se não resolve pela prática de tão grave crime, não sem que se anote que o arguido se mostra sensibilizado perante aquelas dificuldades familiares e pessoais, mas logo esquece a miséria, a desgraça alheia e o sofrimento para que concorreria, o que demonstra bem os sentimentos de que é portador (art. 71.º, n.º 2, al. c), do CP). Esse quadro familiar não diminui nem o juízo de culpa e nem a ilicitude.
XI - E essa necessidade de emenda não se esbate pelo facto de se propor trabalhar, no futuro, porque essa intenção não passa de uma promessa, insuficiente para justificar um juízo de prognose favorável, um juízo de condução em fidelidade ao direito, que o tribunal não pode confirmar por ser nacional de outro Estado.
XII - O facto de ter crescido no seio de uma família equilibrada e funcional justificaria, por isso mesmo, que não se lançasse no mundo do crime.
XIII - É certo que o arguido confessou os factos, mas essa confissão é de feição reduzida, porque foi detido em flagrante, não lhe restando muitas alternativas.
XIV - Não ser detentor de antecedentes criminais, segundo documento emanado do país de que é nacional, não se mostra que tenha bom comportamento anterior, não merecendo reparo a circunstância de se não dar como provado que o facto praticado é episódico, apesar de constar do relatório social, mero documento informativo – art. 1.º, al. g), do CPP –, prova de livre apreciação pelo tribunal, que para ele não é vinculativo.
XV - O Colectivo julgou com pendor atenuativo o arrependimento manifestado em julgamento, que, por vezes, não passa de uma estratégia de ocasião, para se conseguir uma mitigação da pena.
XVI - É certo que uma longa duração de pena, sobretudo em se tratando de jovens delinquentes (o arguido tinha 23 anos à data da prática dos factos), pode comprometer a sua reintegração futura no tecido social que ostracizou, efeito sempre de ponderar. Porém, a pena concretamente cominada ao aqui arguido – de 5 anos e 2 meses de prisão – não é longa e situa-se, vista a ampla moldura penal para o crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1, do Dec. Lei 15/93, de 22-01, de 4 a 12 anos de prisão, o que só significa a gravidade do delito aos olhos do julgador, próxima dos limites mínimos, excedendo-os em 14 meses, não se justificando a sua fixação no limite mínimo, visto o elevado grau de culpa, que é respeitado, bem como as demais vertentes da formação da pena observadas e enunciadas no art. 71.º, n.ºs 1 e 2, do CP.
Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça :

Em processo comum, sob o n.º 1977/09.6JAPRT.S1 , com intervenção do Tribunal Colectivo, no Tribunal Judicial da Maia -1.º Juízo de Competência Criminal , foi submetido a julgamento AA, vindo , a final , a ser condenado como autor material de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo art. 21º, nº 1, do D.L. 15/93 de 22/01, na pena de 5 (cinco) anos e 2 (dois) meses de prisão.

I . Inconformado com o teor da decisão proferida veio o arguido a interpor recurso directo para este STJ , apresentando na motivação as seguintes conclusões :

A pena aplicada peca por excessiva, e ultrapassa a culpa do mesmo evidenciada na prática dos factos.

A decisão recorrida, não valorou, nem ponderou convenientemente os seguintes factos:

Sempre procurou orientar a sua vida por padrões normativos, nunca se tendo envolvido em comportamentos desviantes;

No E.P. trabalha na cozinha evidencia um comportamento isento de reparos a nível disciplinar;

Na relação interpessoal com pares e funcionários é educado e cordial.

Vivencia com penosidade a privação da liberdade, pela ausência de contactos com a família que se vêem impossibilitados de o visitar com a regularidade desejável, pela distância e custos de deslocação ao E. P. do Porto.

Tem um passado com hábitos de trabalho.

E, em desacordo com o relatório social junto aos autos não ficou provado que o presente processo é um episódio isolado no seu percurso de vida relativamente ao qual emite um juízo de censura ajustado;

A privação da liberdade, o afastamento da família, são vivenciados com especial penosidade e intimidação, pelo que nos parece possuir competências pessoais para orientar no futuro a sua vida por padrões normativos e adoptar estratégias pessoais de evitamento de situações de risco.

Dos factos provados, consta:

O arguido praticou os factos acima descritos em virtude das dificuldades económico -financeiras que vivenciava à época.

O arguido mostrou-se arrependido dos factos praticados e confessou a totalidade da matéria de facto dada como provada.

O arguido teve uma infância equilibrada, junto do agregado familiar de origem.

Ingressou na escola em idade normal, revelando interesse e motivação pela aprendizagem, tendo concluído o grau correspondente ao 9.º ano.

Por essa altura, iniciou a vida profissional, apresentando uma trajectória profissional caracterizada pela manutenção de hábitos de trabalho regulares em vários sectores de actividade económica: restauração, hotelaria e construção civil, maioritariamente integrado em empresas de trabalho temporário.

As oportunidades de trabalho surgiram na Zona da Corunha e nas Ilhas Baleares até 2009, ano em que sentiu dificuldades em obter trabalho.

No período a que se reportam os factos constantes da acusação, o arguido vivia com os pais em apartamento próprio, adquirido com recurso ao crédito bancário, na Corunha.

A situação económica do agregado era carenciada pela sua situação de desemprego temporário e dos pais.

O seu pai, que sempre desenvolveu actividade profissional regular (auferindo um rendimento mensal de € 450.00), ficou desempregado à dois anos, beneficiando inicialmente do subsidio de desemprego e, mais recentemente, de uma prestação social correspondente ao Rendimento Social de Inserção, no valor de € 367,96 mensais.

A mãe padece, há cerca de 10 anos, de graves problemas de saúde: endrocrinologia, urticária crónica e depressão reactiva, recebendo uma reforma de invalidez, no valor de € 190.00.

É inválida desde 29/08/07, com um grau de invalidez de 57 % e tem deficiências motoras.

À data dos factos, a mãe do arguido necessitava de fazer uma intervenção cirúrgica, mas não dispunha de meios económicos suficientes para custear a intervenção.

Igualmente à data da prática dos factos, o arguido atravessava uma grave crise económico-financeira, não tendo emprego, nem meios económicos para auxiliar os seus pais, mormente a sua mãe nos seus problemas de saúde.

No Estabelecimento Prisional, o arguido encontra-se a trabalhar na cozinha, evidenciando um comportamento isento de reparos a nível disciplinar.

Pratica desporto nos seus tempos livres.

Tem apoio da família, que o ajudam e muito amam, recebendo algumas visitas no EP de alguns familiares e amigos, que lhe prestam apoio incondicional, apoio esse que se mostram dispostos a manter após a libertação do arguido.

O arguido, quanto restituído à liberdade, pretende recomeçar a trabalhar.

Á data dos factos, o arguido atravessava uma grave crise económico-finaceira, não dispondo de bens ou rendimentos que lhe permitissem suportar as suas necessidades mais básicas.

O arguido não tem antecedentes criminais conhecidos.

Deve, especialmente ponderar-se as situações pessoais e familiares do recorrente, a sua integração profissional, a sua inserção sócio familiar, as sua dificuldades económicas, o facto da prática do ilícito ocorrer porque o arguido necessitava de dinheiro para a cirurgia da mãe, que é inválida, o seu bom comportamento anterior e posterior aos factos ilícitos (não tem antecedentes criminais, nem processos pendentes), o teor apoio da família, para se inserir com êxito, ser estrangeiro, a jurisprudência deste STJ quanto a “correios de droga” que fixa as penas próximas do mínimo da moldura penal, o ter bom comportamento posterior aos factos, o estará laboralmente ocupado no E. P. , tendo bom comportamento apesar das dificuldades linguísticas e de integração.

Deve, em especial valorar-se a sua conduta processual, confissão, o que demonstra a interiorização do mal cometido, o seu arrependimento, a sua motivação, a unicidade da conduta, a sua juventude e um juízo de prognose favorável quando ao seu comportamento futuro, no sentido desta condenação ser intimidação suficiente (levando-o a “arrepiar caminho”) e conduzir a sua vida de modo licito.

Estamos perante uma situação muito especial, em que a ilicitude do facto se mostra acentuadamente diminuída e o sentimento de reprovação social esbatido.

Existe um quadro circunstancial particularmente favorável ao agente, que fundamenta um juízo de prognose consistente, sendo também muito diminutas as necessidades de prevenção especial, na sua vertente ressocializadora.

Assim, tudo ponderado, entende-se que pena não superior a 4 anos e 3 meses de prisão pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p., pelo art.º 21, n.º 1 do Dec. Lei n.º 15/93 de 22/091 é mais adequada à culpa do recorrente e às exigências de prevenção, quer geral, quer especial, sendo ainda suficiente para se atingir os fins insertos na norma incriminadora, contribuindo para a sua ressocialização.

A decisão recorrida, para além de outras normas e princípios violou os art.º 14, 40, 50, 53, 64, 71 e 71 todos do C.P., violou o art.º 21 do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

II . Da discussão da causa resultou provada a seguinte matéria de facto:

1) O arguido AA é cidadão espanhol, tendo apanhado, no dia 06 de Dezembro de 2009, avião no Rio de Janeiro, Brasil, com destino ao Aeroporto Francisco Sá Carneiro.
2) No dia 07 de Dezembro de 2009, cerca das 10 h. e 30 m., aquele desembarcou no Aeroporto Francisco Sá Carneiro, sito em Pedras Rubras, área da comarca da Maia, provindo do voo TP …, com origem no Rio de Janeiro, tendo, nessa altura, sido sujeito a controlo alfandegário levado a cabo pela Delegação Aduaneira desse mesmo Aeroporto.
3) No decurso desse controlo apurou-se que o arguido transportava consigo, numa sua mala:

- Sete (7) mantas impregnadas com cocaína, sendo o peso líquido desta de 801,60 gramas;

- Três (3) turcos impregnados com cocaína, sendo o peso líquido desta de 225,30 gramas;

- Quatro (4) T-shirts impregnadas com cocaína, sendo o peso líquido desta de 110,13 gramas;

- Uns calções impregnados com cocaína, sendo o peso líquido desta de 9,34 gramas

Com um peso líquido total de 1.146,37 gramas de cocaína, produto estupefaciente esse cujas características conhecia.

4) Aquela mala por si transportada vinha igualmente impregnada com cocaína, apresentando a mesma um peso bruto de 1.799,90 gramas, produto estupefaciente esse cujas características conhecia.
5) O arguido trazia consigo um telemóvel marca "Samsung", modelo E22108, de cor preta, com o IMEI … e um telemóvel marca "Nokia", modelo 1661-2, de cor preta e vermelha, com o IMEI ….
6) Caso não tivesse sido interceptado, o arguido devia prosseguir para a Corunha, Espanha.
7) O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo quais as características e natureza do produto estupefaciente que detinha e transportava e que a sua detenção e transporte com vista à cedência não lhe eram permitidos, o que quis.
8) Ao assim proceder, bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
9) O arguido viajou para o Brasil e, já neste país, foi contactado por indivíduos de identidade concreta não apurada, que lhe propuseram efectuar o transporte de cocaína até Espanha.
10) O arguido aceitou transportar a cocaína em causa, nas circunstâncias descritas, pelo preço de € 4.000,00 (quatro mil euros), os quais lhe seriam entregues a final, em Espanha.
11) O arguido praticou os factos acima descritos em virtude das dificuldades económico-financeira que vivenciava à época.
12) O arguido mostrou-se arrependido dos factos praticados e confessou a totalidade da matéria de facto dada como provada.

Mais se provou da discussão da causa:

13) O arguido teve uma infância equilibrada, junto do agregado familiar de origem.
14) Ingressou na escola em idade normal, revelando interesse e motivação pela aprendizagem, tendo concluído o grau correspondente ao 9º ano.
15) Por essa altura, iniciou a sua vida profissional, apresentando uma trajectória profissional caracterizada pela manutenção de hábitos de trabalho regulares em vários sectores de actividade económica: restauração, hotelaria e construção civil, maioritariamente integrado em empresas de trabalho temporário.
16) As oportunidades de trabalho surgiam na zona da Corunha e nas Ilhas Baleares até 2009, ano em que sentiu dificuldades em obter trabalho.
17) No período a que se reportam os factos constantes da acusação, o arguido vivia com os pais em apartamento próprio, adquirido com recurso a crédito bancário, na Corunha.
18) A situação económica do agregado era carenciada pela sua situação de desemprego temporário e dos pais.
19) O seu pai, que sempre desenvolveu actividade profissional regular (auferindo um vencimento mensal de € 450,00), ficou desempregado há dois anos, beneficiando inicialmente do subsídio de desemprego e, mais recentemente, de uma prestação social correspondente ao Rendimento Social de Inserção, no valor de € 367,96 mensais.
20) A mãe padece, há cerca de 10 anos, de graves problemas de saúde: endrocinologia, urticária crónica e depressão reactiva, recebendo uma reforma de invalidez, no valor de € 190,00 mensais.
21) É inválida desde 29/08/07, com um grau de invalidez de 57,00 % e tem deficiências motoras.
22) À data dos factos, a mãe do arguido necessitava de fazer uma intervenção cirúrgica, mas não dispunha de meios económicos suficientes para custear tal intervenção.
23) Igualmente à data dos factos, o arguido atravessava uma grave crise económico-financeira, não tendo emprego, nem meios económicos para auxiliar os seus pais, mormente a sua mãe nos seus problemas de saúde.
24) No Estabelecimento Prisional, o arguido encontra-se a trabalhar na cozinha, evidenciando um comportamento isento de reparos a nível disciplinar.
25) Pratica desporto nos seus tempos livres.
26) Tem o apoio da família, que o ajudam e muito o amam, recebendo algumas visitas no E.P. de alguns familiares e amigos, que lhe prestam apoio incondicional, apoio esse que se mostram dispostos a manter após a libertação do arguido.
27) O arguido, quando restituído à liberdade, pretende recomeçar a trabalhar.
28) À data dos factos, o arguido atravessava uma grave crise económico-financeira, não dispondo de bens ou rendimentos que lhe permitissem suportar as suas necessidades mais básicas.
29) O arguido não tem antecedentes criminais conhecidos.

III . Colhidos os legais vistos , cumpre decidir :

A controvérsia trazida ao recurso pelo arguido mostra-se restrita à medida concreta da pena , havida por excessiva , operação de fixação em que o juiz, escreve Iesheck , in Derecho Penal , pág. 1192 , Vol. II , goza na sua determinação de uma certa margem de liberdade individual , não podendo , no entanto , esquecer-se que ela é, e nem podia deixar de o ser , estruturalmente aplicação do direito , devendo ter-se em apreço a culpabilidade do agente e os efeitos da pena sobre a sociedade e na vida do delinquente , por força do que dispõe o art.º 40.º n.º 1 , do CP .

Essa margem de discricionaridade , escreve aquele penalista , op . e loc. citados, no que não se mostra positivado na lei , e por isso , não plenamente controlável de um modo racional, colhe justificação já que se trata de converter a quantidade de culpabilidade e demais múltiplas vertentes da formação da pena em “ magnitudes penais “, porém fora disso o direito penal moderno fornece regras centrais para a determinação da pena , funcionando a culpa , entre nós , como seu limite inultrapassável , devendo tomar-se em conta os seus efeitos sobre a pessoa do delinquente( prevenção especial ) e sobre a sociedade em geral ( prevenção geral) –art.ºs 40.º n.ºs 1 e 2 e 71.º , do CP.

A individualização das consequências do facto punível resulta da ponderação das exigências de prevenção de novos crimes , fim público da pena , e de prevenção da reincidência , seu fim particular , funcionando a culpa , num sistema pragmático da pena , como o vertido no art.º 40.º , do CP, não como fundamento da pena , mas como um limite , um “ antagonista “ aos fins de prevenção geral e especial.

Tal visão utilitarista da pena é reflectida , desde logo , na moldura penal abstracta típica tomando o legislador como padrão, na definição dos seus limites, a importância e a gravidade da ofensa que àqueles é feita, de forma a que concreta medida da pena exprima a medida ajustada da necessidade da tutela das expectativas da comunidade na manutenção da validade e vigência da norma infringida.

Descendo , por isso , dos princípios programáticos , ao concretismo da situação, o art.º 71.º , do CP , em articulação com aquele art.º 40.º, oferece os critérios para a determinação da medida concreta da pena , em função da culpa e prevenção , bem como das circunstâncias que não fazendo parte do tipo depõem contra ou a favor do arguido , contexto inabdicável , porque o crime é , salvo raras circunstâncias , fruto de circunstâncias concomitantes ou préxistentes à sua prática .

IV. O dolo-art.º 14.º n.º 1 , do CP - , assume , por directo , aqui uma manifestação muito intensa , sob o aspecto intelectual , enquanto conhecimento de tudo quanto era preciso para uma correcta orientação da consciência ética para o desvalor jurídico da acção, como volitivo, no sentido de querer realizar o facto criminoso

A tal propósito o arguido aceitou um transporte, que sabia proibido , de cocaína , a partir do Rio de Janeiro , por via aérea , a desembarcar no Aeroporto Sá Carneiro , comarca da Maia , com destino à Corunha , para cedência posterior , contra o pagamento , a final, de uma importância de 4.000 € .

A cocaína estava impregnada e dispersa por 7 mantas , com o peso líquido de 801,60 gramas; três (3) turcos com o peso líquido de 225,30 gramas; quatro (4) T-shirts com o peso líquido de 110,13 gramas, uns calções com o peso líquido desta de 9,34 gramas, tudo com um peso líquido total de 1.146,37 gramas , produto estupefaciente esse cujas características conhecia , acondicionado numa mala por si transportada .

O arguido espelha a figura denominada e conhecida , com frequente origem nas cinturas humanas mais degradadas das grandes metrópoles sul americanas , mais tarde da Nigéria e de outros países do continente africano, de “correio” , que este STJ encara como também altamente responsável pela difusão de estupefacientes , e como tal peça fundamental no tráfico de estupefacientes , um seu comparticipante , desempenhando ali um papel fundamental, a justificar punição vigorosa , contradistinguindo-se do “ dominus negotii “ por este se esconder, sendo o “ correio” a sua face visível, sujeitando-se aos riscos do tráfico , a troco de uma compensação pecuniária pelo transporte , umas por vezes por pura ganância outras por razões de sobrevivência .

A vontade criminosa do arguido desenha-se e está bem presente em todo o “ iter criminis “, ao assumir o transporte , a remunerar com 4.000 € , de cocaína, que , sem ser quantitativamente vultuoso era já significativo -1.146,37 grs – , um dos estupefacientes mais maléficos pela habituação a que conduz , características que não ignorava , destinado à cedência , proibida , como não desconhecia , se a operação de transporte fosse coroada de êxito , logrando iludir a vigilância da entidade de controle alfandegário , para o que não se inibiu de usar um processo engenhoso , sofisticado , pleno de audácia , mais parecendo de um experiente do que de um iniciado , pouco compatível com a condição de um trabalhador havido por habitual , que vindo do Brasil efectua aquele transporte a remunerar já no destino último .

O “ modus faciendi “ do transporte da cocaína , disseminada , impregnando mantas , toalhas , “ T shirts “ e até uns calções , acondicionadas na mala apreendida , esta também impregnada daquele estupefaciente . acentua o grau de desígnio criminoso e de violação de lei , ou seja ilicitude elevada , se se tiver , ainda , em apreço a perigosidade do produto e mais que a cocaína, uma vez introduzida no mercado, iria propiciar milhares de doses para consumo individual .

Os bens jurídicos a acautelar com a incriminação pelo tráfico de estupefacientes são a protecção da saúde individual , da liberdade individual do consumidor , da economia do Estado , porque o tráfico propicia economias paralelas , subterrâneas , de complexa sindicância , fazendo do tráfico um negócio temível e comunitariamente repugnante , fundamentalmente pela devastação física e psíquica do consumidor , geralmente as camadas mais jovens do tecido social , instabilidade e , na maior parte dos casos , a desgraça total do seu agregado familiar , censurável em alto grau no plano ético-jurídico , até pelos custos sociais a que conduz , relacionados com o absentismo laboral e a contracção de doenças transmissíveis .


Não admira que se tenha escrito que o tráfico de droga é mesmo objecto de forte reprovação ético –social , altamente criminógeno , apenas comparável aos crimes mais graves contra as pessoas ; as drogas são uma grave ameaça para a saúde e o bem estar de toda a humanidade , para a independência dos Estados , para a democracia , estabilidade dos países , estrutura de todas sociedades e para a esperança de milhões de pessoas e suas famílias , é assim que se lhes referiu a 20.ª Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações Unidas –cfr. Rui Pereira e Luís Bonina , in Problemas Jurídicos da Droga e da Toxicodependência ,RFDUL , págs.154 e 191 .
Traficar , é fazer conscientemente mal a outrém , acto dotado de ressonância ética, punível dentro de uma moldura penal de 4 a 12 anos de prisão , por aplicação do art.º 21.º n.º 1 , do Dec.º-Lei n.º 15/93 , de 22/1.

O crime em causa está, essencialmente , associado aos de roubo , porte ilegal de armas , violação , desobediência e condução ilegal de viaturas , donde, como se reconhece , o seu carácter altamente criminógeno

A punição do narcotráfico, mais do que uma luta localizada , é um combate que se dirige a um flagelo à escala universal , conhecendo o consumo entre nós de heroína estabilização , o de cocaína um aumento ligeiro , tendo a nível do consumo de haxixe , como aliás a nível europeu , registado um acréscimo mais significativo sobretudo a nível das classes estudantis .

Por isso importa pela via da medida concreta da pena actuar sobre o comum dos cidadãos , dissuadindo-os do cometimento de futuros crimes , que , pela sua reiteração , criam alarme , insegurança e descrença nos órgãos aplicadores da lei caso estes não atinjam um ponto óptimo capaz de assegurar uma tutela efectiva e consistente dos bens jurídicos , não descendo abaixo de um limiar mínimo abaixo do qual , comunitariamente , a punição – cfr. Prof. Figueiredo Dias , in Direito Penal Português –As Consequências Jurídicas do Crime , § 306.-não se conforma com as suas finalidades , o que vale por dizer que as necessidades de prevenção geral são muito sensíveis reclamando uma intervenção vigorosa ao nível punitivo .

E no plano da intervenção sobre o próprio arguido , de sensibilização da sua personalidade futuramente ao direito , de forma a evitar a sua reincidência , também se justifica a asserção de que as necessidades de emenda cívica são prementes , mesmo que se invoque e prove que a mãe é pessoa doente , carece de intervenção cirúrgica e do seu auxílio , o pai se mostra , como ele desempregado , e que o arguido carecia de rendimentos para fazer face às dificuldades por que o seu agregado familiar atravessava , bem como à grave situação económica que vivia –algo inconciliável com a deslocação e alojamento no Brasil –porque esse quadro de dificuldades se não resolve pela prática de tão grave crime , não sem que se anote que o arguido se mostra sensibilizado perante aquelas dificuldades familiares e pessoais , mas logo esquece a miséria , a desgraça alheia e o sofrimento para que concorreria, o que demonstra bem os sentimentos de que é portador ( art.º 71.º n.º 2 c) , do CP .
Esse quadro familiar não diminui nem o juízo de culpa e nem a ilicitude .
E essa necessidade de emenda não se esbate pelo facto de se propor trabalhar , no futuro , porque essa intenção não passa de uma promessa , insuficiente para justificar um juízo de prognose favorável , um juízo de condução em fidelidade ao direito , que o tribunal não pode confirmar por ser nacional de um outro Estado .
O facto de ter crescido no seio de uma família equilibrada e funcional justificaria , por isso mesmo , que se não lançasse no mundo do crime

É certo que o arguido confessou os factos , mas essa confissão é de feição reduzida , porque foi detido em flagrante , não lhe restando alternativas

Não detendo de antecedentes criminais , segundo documento emanado do país de que é nacional , não se mostra que tenha bom comportamento anterior, não merecendo reparo a circunstância de se não dar como provado que o facto praticado é episódico , apesar de constar do relatório social , mero documento informativo art.º 1.º g) , do CPP -, prova de livre apreciação pelo tribunal, que para ele não vinculativo .

O bom comportamento prisional de que lança mão em vista da redução ao limite mínimo da moldura ou sua proximidade não funciona com valor atenuativo porque traduz o mínimo exigível a qualquer recluso a quem incumbe a observância dos regulamentos prisionais

O Colectivo julgou com pendor atenuativo o arrependimento manifestado em julgamento , que , por vezes , não passa de uma estratégia de ocasião , para se conseguir uma mitigação da pena .

O arguido tinha 23 anos na data dos factos , não se mostrando abrangido pelo regime especial punitivo , de favor , para jovens de idade compreendida entre os 16 e os 21 anos , consagrado no Dec.º-Lei n.º 401/82 , de 23/9

V. É certo que uma longa duração da pena , sobretudo em se tratando de jovens delinquentes, pode comprometer a sua reintegração futura no tecido social que ostracizou , efeito sempre de ponderar , porém a concretamente cominada ao aqui arguido de 5 anos e 2 meses de prisão , nem é longa e situa-se , vista a ampla moldura legal para o crime de tráfico de estupefacientes , p .e p, pelo art.º 21.º n.º 1 , do Dec.º-Lei n.º 15/93 , de 22/1 , de 4 a 12 anos , o que só significa a sua gravidade do delito aos olhos do legislador , próxima dos limites mínimos , excedendo-os em 14 meses , não se justificando a sua fixação no limite mínimo , visto o elevado grau de culpa , que é respeitado , bem como as demais vertentes da formação da pena observadas e enunciadas no art.º 71.º n.ºs 1
e 2 , do CP .

VI. Termos em que se nega provimento ao recurso , confirmando-se o acórdão recorrido .


Taxa de justiça : 7 Uc,s .

Lisboa, 15 de Setembro de 2010

Armindo Monteiro (Relator)
Santos Cabral