Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6409/22.1JAPRT.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: RECURSO PER SALTUM
PERÍCIA PSIQUIÁTRICA
INIMPUTABILIDADE
IMPUTABILIDADE DIMINUIDA
NULIDADE
OMISSÃO DE FORMALIDADES
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Data do Acordão: 05/02/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. Do modelo do recurso-remédio consagrado no Código de Processo Penal resulta que os recursos são sempre e só remédios jurídicos, e não são a renovação de fases processuais anteriores, mormente a repetição ou a continuação da audiência de julgamento.

II. Assim, o recurso não serve para ensaiar vias de defesa diversas das apresentadas em julgamento, e não cumpre encarar o recurso como se de uma (nova) contestação se tratasse, já que o momento da contestação e do julgamento findou.

III. Por isso, não cumpre examinar o acórdão à luz de circunstâncias novas, diversas ou a acrescer àquelas que estiveram em discussão na audiência de julgamento, sobre as quais o arguido se pôde pronunciar, e seguramente não foi impedido de discutir ou ali trazer à discussão.

IV. Cumpre sindicar o acórdão na vertente da atenção dispensada pelo tribunal de julgamento à contestação e a toda a defesa efectivamente exercida em julgamento, no asseguramento do processo justo e equitativo, centrando a observação na detecção do vício invocado, de acordo com as soluções que à partida se perspectivavam e deviam ter perspectivado, em julgamento.

V. Se do acórdão resulta que a decisão se firmou em resultado de total respeito pelos princípios do contraditório (art. 327.º do CPP e art. 32.º, n.º 5 CRP) e da investigação; se todos os meios de prova apresentados no decurso da audiência foram submetidos ao escrutínio e discussão; se acusação e defesa puderam oferecer as suas provas, controlar as provas contra si oferecidas e discutir o valor e o resultado de todas elas; se o arguido ofereceu as provas que quis, no momento processual próprio, as quais foram produzidas em julgamento e aí amplamente debatidas; se interveio irrestritamente na discussão das provas indicadas pelos demais sujeitos processuais; se foi exaustivamente ouvido em declarações sobre toda a matéria objecto da acusação e sobre a sua condição e situação pessoal; se nem na contestação, nem em momento algum do julgamento, sempre devidamente assistido pelo seu mandatário, requereu a realização de perícia psiquiátrica ou suscitou a questão da imputabilidade; se no relatório psiquiátrico que o próprio juntou com a contestação pode ler-se: “ao longo deste acompanhamento tem tido uma evolução francamente positiva, com análise e reflexão acerca do seu percurso pessoal, social e académico, com melhoria em termos de humor, sem ideação suicida e/ou homicida e mostrando um grande arrependimento pelo sucedido”, mais se afirmando que “não apresenta antecedentes psiquiátricos familiares ou história pessoal de doença mental”; se o médico psiquiatra subscritor do documento foi ouvido em audiência de julgamento; se a matéria de facto não foi não impugnada em recurso, encontrando-se toda a decisão sobre a matéria de facto em consonância com a sua justificação com base nas provas, resta consignar a ausência do invocado vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão.

VI. Se o arguido não recorreu da matéria de facto pela via ampla ou alargada (art. 412.º, n.º 3, do CPP), o que podia ter feito, e se não ocorre vício do art. 410.º, n.º 2 do CPP, a decisão sobre a matéria de facto será então de considerar como definitivamente estabilizada.

VII. Não ocorre igualmente nulidade do acórdão por omissão de pronúncia (arts. 379.º, n.º 1, al. c) e 410.º, n.º 3 do CPP) alegadamente por falta de ponderação da aplicação do regime instituído no art. 104.º, n.º 1, do CP, pois tal invocação pressuporia um quadro factual diverso daquele que resultou provado em julgamento e é agora de considerar como definitivamente estabilizado.

VIII. O crime de homicídio (art.º 131.º do CP) será qualificado quando a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade (art.º 132.º, n.º 1, do CP), sendo suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente praticar o facto contra pessoa com quem mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro (art. 132.º, n.º 2, al. b), do CP).

IX. A qualificação afirmada no acórdão assentou em circunstâncias realmente encontradas nos factos provados que integram, positivamente, a cláusula geral de agravação constante do n.º 1 do art. 132.º do CP e, simultaneamente, o exemplo-padrão previstos na al. b) do n.º 2 do art. 132.º do CP, o que traduz o reconhecimento da especial censurabilidade ou perversidade do agente pela positiva, a par da identificação da alínea do n.º 2 do art. 132.º.

X. O arguido visou tirar a vida da pessoa com quem manteve durante cinco meses uma relação afectiva de proximidade especial, relação que em concreto releva para o tipo qualificador, pois o legislador equiparou a relação de namoro actual à pretérita, não distinguindo os níveis de protecção; e é de confirmar o acórdão em que se objectivou suficientemente o grau mais grave de ilícito, decorrente da comprovada circunstância que, em concreto, pesou realmente na censurabilidade ou perversidade do agente.

XI. A pena de 8 anos de prisão aplicada pelo crime de homicídio qualificado tentado não justifica a intervenção correctiva do Supremo, tendo em conta que o peso do conjunto das circunstâncias agravantes excedeu em muito o das circunstâncias atenuantes, que sobretudo as razões de prevenção geral são elevadíssimas, com elas confluindo exigências de prevenção especial, embora em grau não tão elevado, e não ficando o grau de culpa do arguido aquém da pena aplicada.

XII. É igualmente de confirmar a indemnização de € 30.000,00 arbitrada a título de danos não patrimoniais ao abrigo do disposto no art. 82.º-A, n.º 1, do CPP, a vítima que sofreu, em todo o contexto de horror vivenciado na execução do crime, ferida cortante linear irregular, disposta horizontalmente, localizada na face anterior, lateral direita e esquerda da região cervical com 13 cm de comprimento total, com esfacelo cervical, atingimento e laceração completa das veias jugulares externas anteriores, atingimento dos músculos pré tiroideus e laceração parcial da porção medial do músculo esternocleidomastoideu, sendo a cicatriz na face anterior do pescoço causa de desfiguração grave e permanente e causa de alteração a nível funcional e situacional tendo em conta a alteração na mobilidade do segmento cervical.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 6409/22.1JAPRT.S1

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

1. Relatório

1.1. No Processo Comum Colectivo n.º 6409/22.1JAPRT do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, foi proferido acórdão a condenar AA, como autor de um crime de homicídio qualificado tentado, dos arts. 14.º, n.º 1, 22.º, n.º 1, n.º 2, al. b), 23.º, n.º 1, n.º 2, 26.º, 73.º, n.º 1, als. a) e b), 131.º, n.º 1, 132.º, n.º 1, n.º 2, als. b) e j), do CP, na pena de 8 (oito) anos de prisão. Mais foi condenado no pagamento a BB da quantia de € 30 000,00 (trinta mil euros) a título de reparação pelos prejuízos que lhe foram causados.

Inconformado com o decidido, interpôs o arguido recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo:

“1. O presente recurso tem por objecto a decisão de declarar o arguido culpado da prática de um crime de homicídio tentado qualificado, de lhe aplicar uma pena de prisão de 8 anos, de ordenar a detenção e condução a estabelecimento prisional ao arrepio do previsto no art. 104.º, n.º 1, do CP e de o condenar no pagamento de indemnização de 30.000,00 €.

2. Versa ainda, antes de mais, sobre vício de insuficiência da matéria de facto provada (art. 410.º/2/a) do CPP), por não ter sido realizada perícia psiquiátrica legalmente imposta (art. 351.º do CPP).

3. Resulta do texto do Acórdão recorrido que uma das questões sobre as quais a audiência de julgamento incidiu, como thema probandum, foi a existência ou não de uma “depressão severa” que afectasse o arguido no momento em que tentou matar a ofendida BB – “depressão severa” que o Tribunal a quo deu como não provada (facto não provado 15.) e sobre a qual discorreu na sua fundamentação (p. 25 a 27).

4. É o próprio texto do Acórdão recorrido que dá a perceber que, em audiência, se discutiu se o arguido sofreria de uma depressão severa e se por força dela estava notoriamente perturbado e instável emocionalmente (facto não provado n.º 15) e actuou fortemente afectado pela sua instabilidade emocional (facto não provado n.º 16); e ainda que, na mesma altura, em que fez pesquisas na internet acerca de armas e outros objectos perigosos fez também pesquisas dirigidas à concretização de suicídio (p. 25 do Acórdão).

5. E o texto do Acórdão dá também a saber que, a partir do mês imediatamente subsequente à tentativa de homicídio, passou a ser acompanhado pelo médico psiquiatra Dr. CC e que este, em 07.06.2023, elaborou relatório médico que dá conta de que não padecendo o arguido de histórico de doença mental, “após o termo da relação de namoro com BB, teria desenvolvido sintomatologia ansiosa e depressiva, da qual se destaca ideação suicida e sentimentos de culpa” (p. 26 do Acórdão).

6. A depressão é uma anomalia psíquica, que integra a categoria das reacções psicogénicas anormais (Maria João Antunes), também designadas reacções vivenciais anormais (João Curado Neves).

7. Como anomalia psíquica que é, a depressão pode relevar em múltiplos e diferenciados sentidos jurídico-penais: para a exclusão da culpa por declaração de inimputabilidade em virtude de anomalia psíquica (art. 20.º/1 do CP); para a exclusão da culpa por declaração de inimputabilidade em virtude de imputabilidade diminuída (art. 20.º/2 do CP); como obstáculo ao enquadramento do ilícito-típico de homicídio doloso no âmbito do crime de homicídio qualificado (art. 132.º do CP); como circunstância de atenuação especial da pena fundada numa diminuição acentuada da culpa (art. 72.º/1 do CP); como factor de redução da medida concreta da pena (art. 71.º do CP); para a definição do regime de execução da pena de prisão (art. 104.º do CP).

8. Estando em causa e tendo sido fundadamente suscitada na fase de julgamento a verificação de uma anomalia psíquica, impunha-se a realização de uma perícia sobre tal questão, não sendo admissível uma resolução do problema fundada apenas na intuição do Tribunal a quo.

9. Com efeito, situações há em que a perícia é legalmente exigível, como sucede no caso do artigo 351.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, isto é, quando na audiência se suscite fundadamente a questão da inimputabilidade do arguido ou da sua imputabilidade diminuída.

10. Ora, in casu, revela-se seguro que os factos imputados ao arguido no despacho de acusação (para o qual remeteu a decisão de pronúncia), vistos na sua globalidade complexiva, permitem inferir, com base num raciocínio lógico assente nas regras da experiência comum e no saber do homem médio, que um jovem de 22 anos, sem passado de doenças ou perturbações psíquicas, no uso das suas normais faculdades mentais, não planeia matar a ex-namorada com uma faca para de seguida se atirar de uma ponte, assim pondo termo à sua vida, só porque ela “terminou com ele”.

11. O texto do Acórdão recorrido revela que há um juízo de um médico psiquiatra que acompanhou o arguido nos meses que se seguiram aos factos, de acordo com o qual não detectou qualquer história de doença prévia à ruptura da relação de namoro do arguido com a BB e que lhe diagnosticou sintomas próprios de uma depressão, com destaque para ideação suicida e sentimentos de culpa, subsequentes a essa ruptura.

12. Um diagnóstico que é corroborado por factos a que o próprio Acórdão alude, como as pesquisas para cometimento de suicídio, prévias à prática do facto, e a deambulação junto a duas pontes do Porto logo após a sua prática, para concretizar o suicídio.

13. Em suma, como se depreende do próprio texto do Acórdão recorrido, na audiência suscitou-se fundadamente a existência de uma depressão que afectava o arguido aquando do cometimento do facto e que foi dele determinante; a depressão é uma anomalia psíquica; e pode por isso, como anomalia psíquica que é, relevar penalmente em diversos sentidos.

14. Como tal, era legalmente obrigatória a realização de perícia psiquiátrica ao arguido que avaliasse a sua saúde e estado mentais aquando da prática do facto.

15. A falta de realização da perícia psiquiátrica ao arguido consubstancia a preterição de uma diligência indispensável à descoberta da verdade, e até, mais do que isso, implica a omissão, por parte do Tribunal, da obrigação de averiguação dos factos, que, por força das disposições conjugadas dos artigos 20.º, n.ºs 1 e 2, do CP, e 351.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, se impunha que averiguasse.

16. Motivo pelo qual a sua preterição deverá ser resolvida através do reenvio do processo para novo julgamento, em virtude da verificação do vício previsto no art. 410.º/2/a) do CPP (neste sentido, por outros, Ac. TRE, de 22/11/2018, Proc. n.º 11/17.7PESTR.E1; e num caso paralelo, de infanticídio vs. homicídio qualificado, o Ac. de 19.04.2018, Proc. 533/16.7PBSTR.E1.S1, rel. Helena Moniz).

17. No caso, verifica-se, pois, uma omissão de diligência essencial que determina uma insuficiência da matéria de facto para a decisão, o que constitui o vício previsto na al. a) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, determinante de um reenvio do processo ao Tribunal a quo, para que seja sanado.

18. Pelo que se impõe ordenar o reenvio do processo, importando que o Tribunal a quo promova, ao abrigo do disposto nos arts. 151.º, 351.º/1/2 e 340.º/1 do CPP, a produção de prova pericial quanto à questão de saber se, no momento da prática do facto, o arguido era portador de anomalia psíquica, com possível significado para determinar uma declaração de inimputabilidade (cf. art. 20.º/1 do CP) ou um juízo de imputabilidade diminuída com relevo para o disposto nos artigos 20.º/2, 71.º/1, 72.º/1 e 132.º, todos do CP.

Sem prescindir, subsidiariamente,

19. Ainda que se entenda que o reenvio do processo à 1.ª Instância para realização de uma perícia psiquiátrica não se justifica do ponto de vista da determinação da culpabilidade do arguido ou da determinação da medida da pena, sempre se deverá convir que essa perícia psiquiátrica será imprescindível à luz do determinado pelo art. 104.º/1 do CP.

20. Revelando o Acórdão recorrido que se constatou que o arguido poderia, à data dos factos, padecer de anomalia psíquica, com ideação suicida, e que após o crime passou a ser regularmente acompanhado por médico psiquiatra, impunha-se, até para protecção do arguido contra si mesmo, quanto mais não fosse para prevenir possíveis recidivas suicidas, que se ponderasse uma futura execução da pena de prisão aplicada internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis, nos termos do mencionado art. 104.º/1 do CP.

21. Donde, a falta de ponderação de uma eventual aplicação do regime instituído no art. 104.º/1 do CP implica a nulidade do Acórdão por omissão de pronúncia, que se argui (cf. arts. 379.º/1/c) e 410.º/3 do CPP – cf. o citado Ac. do STJ de 23.03.2017, Rel. Helena Moniz, 826/14.8PVLSB.L1 – que desde já se argui.

22. Sem prejuízo do que se deixa dito, o arguido impugna ainda a integração da factualidade provada no crime de homicídio qualificado (art. 132.º do CP), discorda-se do Acórdão recorrido na concreta recondução dos factos ao crime de homicídio qualificado simplesmente com base na relação de namoro que uniu o arguido e a ofendida.

23. É certo que o legislador integrou a relação de namoro, presente ou passada, entre agente e vítima como circunstância qualificadora do crime de homicídio, colocando-as no mesmo pé das relações, presentes ou passadas, conjugais ou análogas.

24. Todavia, considerar-se que os deveres de solidariedade próprios de uma relação conjugal ou análoga presente, fundamentadores da qualificação do conjugicídio, são transponíveis para os casos de pessoas que no passado tiveram uma relação de namoro é um passo que não tem adesão na consciência jurídica comunitária.

25. Há consenso doutrinal e jurisprudencial em torno da ideia de que o justifica a qualificação do homicídio de um cônjuge, parceiro ou namorado sobre o outro é a quebra do especial dever de solidariedade que os une, mas já não é, porém, pacífico que tais especiais deveres persistam depois do fim da relação conjugal ou análoga.

26. Referimo-nos aos particulares deveres recíprocos de solidariedade e protecção emergentes da existência de uma relação amorosa presente e não, obviamente, aos deveres gerais de respeito pela vida e pela integridade do outro (seja ele cônjuge, companheiro, namorado, ex-cônjuge, ex-companheiro, ex-namorado ou mesmo um completo estranho), fundados na normas de proibição constantes, entre outros, dos arts. 131.º, 143.º, 144.º do CP.

27. A atribuição ao crime de homicídio qualificado da lógica político-criminal do crime de violência doméstica, operante no âmbito da ilicitude-típica e não da culpa, impulsionada pelo legislador em 2018, exige particular cautela na avaliação da especial censurabilidade ou perversidade características da culpa agravada própria daquele quando se pondere proceder à qualificação somente com base na existência de uma pretérita relação de namoro.

28. Não se podendo dela retirar deveres acrescidos entre os sujeitos (ativo e passivo) do homicídio que transcendam o normal e geral dever de respeito pela vida do outro que emana do crime de homicídio (art. 131.º do CP), algum plus de culpa face ao que é típico desta incriminação se há de, em concreto, descortinar que permita dar o “salto” qualitativo para a figura do homicídio qualificado.

29. Ora, a justificação que o Tribunal a quo avançou para, em concreto, sustentar uma qualificação do homicídio suportada numa anterior relação de namoro assentou numa transposição do dever de solidariedade entre cônjuges (ou parceiros actuais) para o plano das ex-relações de namoro, ao que se crê sem amparo na valoração social que a comunidade atribui a cada um dos destes tipos de relacionamento.

30. Partindo desta premissa equivocada de que o dever de solidariedade entre ex-namorados é o mesmo que o dever de solidariedade que intercede entre cônjuges, o Tribunal a quo afirmou a necessidade de qualificação com base na inexistência, do lado da ofendida, de comportamentos que a fizessem desmerecedora desse (putativo) particular dever de solidariedade.

31. Não se discute ou põe em causa aqui o dever de respeito pela sua vida de que a ofendida era obviamente “credora”, o qual tinha como contraponto, para o arguido, um dever de abstenção de condutas idóneas a tirar-lhe a vida, mas põe-se em crise a existência de um qualquer dever ou solidariedade adicionais susceptíveis de gerar uma reprovação acrescida para além daquela é que característica do crime de homicídio previsto no art. 131.º do CP.

32. O Tribunal a quo não logrou, pois, justificar cabalmente a razão pela qual o simples facto de arguido e ofendida terem sido namorados por um curto período de 5 meses é motivo bastante para que se accione a cláusula de especial censurabilidade ou perversidade típica do homicídio qualificado.

33. Porque, não obstante a relação de namoro que existiu, a imagem global do facto não é uma tal que leve a que esse ex-relacionamento reclame, por si só, uma censura particularmente agravada, uma justa punição do arguido bastar-se-á com uma recondução da factualidade provada ao crime de homicídio simples (art. 131.º do CP), na forma tentada, com todas as legais consequências, o que desde já se requer.

34. A pena de prisão de 8 anos aplicada ao arguido é excessiva e desajustada às necessidades preventivas que o caso reclama, não podendo, de maneira alguma, colher o juízo realizado pelo Tribunal a quo sobre as finalidades de prevenção geral e especial que aqui se impõem.

35. Não existe, in casu, nenhuma tendência para delinquir ou “carreira criminosa” que radique na personalidade do agente, tendo-se tratado de um acto isolado motivado por um contexto muito específico, constituindo uma ocorrência excepcional na vida do arguido, um jovem de 23 anos que não tem averbada qualquer condenação no seu registo criminal

36. Encontra-se integrado no sistema de ensino superior, frequentando o curso de engenharia de ciências e computadores na Universidade do Porto, com um processo educativo desenvolvido unicamente junto da mãe; doente oncológica, com quem mantém uma forte vinculação afectiva, sendo o seu principal cuidador, ao ponto de ter interrompido a frequência do seu curso universitário para lhe prestar assistência quando ela foi sujeita a tratamentos/consultas de oncologia.

37. A verdade é que, a pena de 8 anos em que acabou condenado o arguido é manifestamente excessiva sobretudo quando comparada com aquela que vem sendo a bitola firmada pela jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça em casos de homicídio tentado qualificado com base em relação conjugal ou análoga – cf. Acs. de 23.02.2023 (redução de pena de prisão de 8 anos para 6 anos), de 17.12.2020 (reduçãodepenadeprisãode6 anos e 6 meses para5 anos, substituída por pena de suspensão de execução da pena de prisão) e de 15.12.2012 (redução de pena de prisão de 7 anos para 6 anos).

38. Pelo que se impõe concluir pela inegável necessidade de redução substancial da pena de prisão aplicada, substituindo-se por outra que permita a suspensão da sua execução, o que, desde já, se requer.

39. Acresce que, não pode o arguido conformar-se com o quantum indemnizatório arbitrado pelo Tribunal a quo à vítima a título de danos não patrimoniais, já que, ainda que in casu os danos não patrimoniais sejam tomados como relevantes e carentes de ser minimizados com o pagamento de uma indemnização, o que é certo é que uma indemnização, no valor de € 30.000,00, como a arbitrada pelo Tribunal a quo é manifestamente desproporcional e injusta.

40. Como resulta dos factos dados como provados no acórdão recorrido, a subsistência da família do arguido (a sua mãe e ele) assenta na pensão de reforma auferida pela mãe no valor de € 560,00 por mês, rondando as despesas de carácter fixo mais relevante cerca de € 165,00 por mês (facto 25.), dependendo o arguido da assistência da mãe para subsistir, não lhe sendo conhecidos bens de qualquer natureza, bem como qualquer vencimento.

41. A flagrante falta de recursos económicos do arguido para fazer face a tamanho montante pecuniário – circunstância que não foi devidamente tida em conta pelo Tribunal a quo como se impunha – impõe uma substancial redução da indemnização arbitrada à vítima, em termos tais que se torne possível o seu efectivo pagamento.

Termos em que se requer a V. Exas se dignem admitir o presente recurso e, em consequência:

a) Requer-se seja reconhecido e declarado o vício previsto na al. a) do n.º 2do art. 410.º do CPP, atenta a omissão de diligência essencial que determina uma insuficiência da matéria de facto para a decisão nos termos melhor alegados supra em § 2; e, nessa senda, seja ordenado o reenvio do processo ao Tribunal a quo por forma a que este promova, ao abrigo do disposto nos arts. 151.º, 351.º/1/2 e 340.º/1 do CPP, a produção de prova pericial quanto à questão de saber se, no momento da prática do facto, o arguido era portador de anomalia psíquica, com possível significado para determinar uma declaração de inimputabilidade (cf. art. 20.º/1 do CP) ou um juízo de imputabilidade diminuída com relevo para o disposto nos artigos 20.º/2, 71.º/1, 72.º/1 e 132.º, todos do CP.

b) Requer-se seja declarada a nulidade do Acórdão por omissão de pronúncia (cf. arts. 379.º/1/c) e 410.º/3 do CPP) por falta de ponderação de uma eventual aplicação do regime instituído no art. 104.º/1 do CP;

Novamente sem prescindir,

c) Deverá proceder-se à alteração da qualificação jurídica, reconduzindo a factualidade provada ao crime de homicídio simples (art. 131.º do CP), na forma tentada, com todas as legais consequências, designadamente em termos de redução da pena concreta aplicada, o que se requer.

Subsidiariamente,

d) Requer-se seja dada sem efeito a pena de prisão de 8 anos de imposta, aplicando-se outra de medida substancialmente inferior, designadamente, uma compatível com a aplicação da pena de substituição de execução da pena de prisão, que também se requer.

e) Concomitantemente, requer-se a redução do quantum da indemnização arbitrada à vítima a título de danos não patrimoniais atenta a falta de recursos económicos do arguido para fazer face a uma condenação de tamanha magnitude.”

O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo:

“1 – A questão da inimputabilidade ou imputabilidade diminuída do arguido, ora, recorrente, não se suscitou nem na audiência de julgamento nem em qualquer outra fase preliminar do processo.

Não se suscitando essa questão em audiência de julgamento e considerando o disposto no art. 351.º do CPP o tribunal a quo não teria qualquer obrigatoriedade de ordenar perícia psiquiátrica ao arguido pelo que não se verifica qualquer vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

2 – Não tendo sido suscitada a questão da inimputabilidade ou imputabilidade diminuída do arguido, ora, recorrente, nem na audiência de julgamento nem em qualquer outra fase preliminar do processo não existiu qualquer nulidade por omissão de pronúncia necessária a ponderar a aplicação do disposto no art. 104.º, n.º 1, do CP;

3 – Os factos considerados como provados configuram, sem dúvida, a prática, na forma tentada, do crime de homicídio qualificado p. e p. pelo art. 132.º, n.ºs 1 e 2, al. b) e j), do CP;

4 – Considerando a gravidade dos factos dados como provados a pena de 8 anos de prisão aplicada ao arguido, ora recorrente, revela-se adequada e proporcional;

5 – Ainda considerando a gravidade dos factos dados como provados e as consequências da prática dos mesmos para a vítima e as condições socioeconómicas do arguido e da ofendida a fixação do quantum indemnizatório em € 30.000,00 nada tem de excessivo.”

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu desenvolvido e bem fundamentado parecer, referindo, designadamente:

“4.2. Enquadramento jurídico e análise:

4.2.1. Quanto ao erro–vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão e à nulidade por omissão de pronúncia, nos termos invocados pelo recorrente:

A fundamentação do recurso interposto parte de uma realidade alternativa para sustentar o vício e nulidade que invoca e, para mais – ou precisamente por isso –, parte, para o efeito, da matéria de facto não provada, mas que uma análise e leitura minimamente atenta dos autos revela ser manifestamente infundada.

Na fundamentação da matéria de facto, o tribunal a quo, com o benefício da imediação e oralidade inerentes ao julgamento ocorrido, deu como não provado que “15. O arguido sofresse então de uma depressão severa, que ignorava, que não foi tempestivamente diagnosticada e, portanto, não tratada, sendo que por força dela estava notoriamente perturbado, instável emocionalmente, com perturbação cognitiva e incapaz de qualquer premeditação séria e consciente ou de elaborar um plano consciente e premeditado (cfr. 27., 37., 38. e 64. da contestação)”.

É certo que a perícia para aferir da imputabilidade ou inimputabilidade do arguido pode ser ordenada oficiosamente ou a requerimento no decurso da audiência de julgamento, nos termos do artigo 351.º, do Código de Processo Penal.

Porém, servindo para aferir se o arguido sofre de alguma anomalia psíquica que possa justificar o juízo de inimputabilidade, nos termos do artigo. 20.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, ou para justificar o juízo de imputabilidade diminuída, nos termos do artigo 351.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a perícia em causa e com esse propósito só é imposta por lei e só deve ser realizada quando, em audiência, se suscitar fundadamente a questão da inimputabilidade ou da imputabilidade diminuída do arguido, conforme decorre do disposto no artigo 351.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal.

Para se considerar que a questão (da capacidade do arguido para se determinar livremente e avaliar criticamente os seus atos e respetivas consequência jurídico–penais) tenha sido fundadamente suscitada, ela teria de colher apoio e justificação em elementos probatórios existentes que originassem a plausibilidade da sua consideração, designadamente em razão dos depoimentos, documentos e declarações ou perícias que disso dessem sinal.

Ora, o que dos autos resulta, e que teve tradução na fundamentação exposta, é exatamente a inexistência de fundamento para aferir da (in)capacidade do arguido para avaliar as consequências ético-jurídicas dos seus atos e decidir-se livre e responsavelmente de acordo com a ordem jurídica, tendo o acórdão recorrido evidenciado precisamente essa falta de fundamento ao considerar “Por fim, saliente-se que não foi apresentado qualquer meio de prova de acordo com o qual o arguido padecesse, à data, de uma qualquer anomalia psíquica. Do relatório médico (psiquiatria) de 07-06-2023 (cfr. Doc. 4 de ref.ª ......87 de 02-10-2023) resulta até que o arguido não padece de qualquer história de doença mental. Por outro lado, deste relatório, não resulta que o arguido padecesse à data de uma “depressão severa”. É certo que aí consta que o arguido, após o termo da relação de namoro com BB, teria desenvolvido sintomatologia ansiosa e depressiva, da qual se destaca ideação suicida e sentimentos de culpa. Contudo, conforme foi salientado por CC, subscritor do dito relatório, este foi baseado unicamente no que lhe foi transmitido pelo próprio arguido, que recorreu àquele só em janeiro de 2023 após a rutura da relação de namoro com BB, que ocorreu em início de novembro de 2022, depois dos factos aqui em causa terem ocorrido, sendo que estes tiveram lugar em 23-12-2022, bem como após ser detido, submetido a interrogatório judicial e confinado à sua habitação e, assim, na pendência deste processo. Para além de ser, assim, emitido a pedido do arguido, o certo é que as premissas em que se baseiam nem sequer foram confirmadas pelo arguido em audiência de julgamento. Na verdade, o mesmo afirmou então que só no dia 23-12-2022, após ter abandonado o prédio onde residia BB, é que teria começado a pensar matar-se, negando ter feito alguns dos atos que BB lhe imputou e que a levaram a terminar a relação de namoro. Por fim, como é evidente, não se trata de uma perícia sobre o estado psíquico do arguido.

Seja como for, o arguido, no que relato que sempre fez do que aconteceu ao longo deste processo, não apresentou qualquer sinal de possuir, à data dos factos, qualquer limitação na capacidade de distinguir o bem do mal, o certo do errado e o lícito do ilícito, ou qualquer limitação na capacidade de se determinar de acordo com essa avaliação.”

Daqui resultam duas consequências para a improcedência do erro–vício e da nulidade invocados.

Por um lado:

Quanto ao erro–vício invocado, por expressa imposição do artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, só é possível uma sindicância mais superficial, por ter por princípio e limite o texto e contexto da decisão recorrida, conjugado com as regras de experiência comum, sendo estas relativas às boas razões e à legitimação racional, explicativa e com sentido do que é normal (id quod plerumque accidit), típico, plausível, intersubjetivamente compreensível, credível ou verosímil do acontecer empírico e do conhecimento partilhado, do modo de existir ou da condição da experiência comum, com implicação ou ressonância no facto e na sua autocoerência ou adequação explicativa; em suma, com afinidade válida e objetiva com o que é imparcialmente julgado como a verdade processual.

Não cabe nesse erro-vício, nem com ele se confunde, uma valoração da prova produzida que seja admissível, por ser possível, por ser aceitável, plausível, provável ou razoável, i.e., o eventual erro de julgamento, como reiteradamente tem entendido o Supremo Tribunal de Justiça.

Ora, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada “reside em se não terem considerado provados factos, imprescindíveis para serem preenchidos todos os elementos do tipo legal de crime, ou para se considerarem verificados outros fatores que moldaram a condenação» , consiste numa «lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher. (…), só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final”2 .

Como reiteradamente tem sido afirmado pela jurisprudência, está em causa, neste erro-vício, uma falha grosseira, por manifesta ou ostensiva, na fixação dos factos provados relevantes, ao arrepio dos axiomas da lógica jurídica e mesmo da lógica elementar (correção formal do discurso sobre a realidade pensada, segundo os princípios da identidade, da não contradição e do terceiro excluído, e correção informal que justifica a decisão, apoiada em factos, princípios, tópicos ou valores admitidos, resolve a controvérsia e decide com razoabilidade), facilmente identificável como insuficiente ou falaciosa, por não permitir integrar todos os elementos materiais de um tipo de crime ou porque são omitidos segmentos essenciais à determinação da ilicitude, da culpa ou necessários para a fixação da medida da pena.

É erro–vício que tem de ser objetivamente avaliado perante as soluções possíveis e plausíveis dentro do objeto do processo, e não na perspetiva subjetiva do recorrente. Limitando-se o tribunal ad quem a aferir o processo de fundamentação e motivação da decisão em matéria de facto e a sua conformidade com as regras referidas, desde que não se imponha decisão diversa e oposta à que foi adotada e desde que não seja obtida através de provas ilegais ou proibidas, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova ou, então, quando afronte, de forma manifesta, as regras da experiência comum ou da lógica, designadamente da não contradição, a crítica à fundamentação e à convicção do tribunal a quo não pode, nem deve, ter sucesso, pois que não é pela mera divergência de entendimento ou pelos argumentos adversariais usados no recurso que se evidenciam o erro–vício invocado.

Sendo os erros–vícios, do artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, vícios da sentença final relativos à matéria de facto e que têm que resultar do respetivo texto, seja ele sentença ou acórdão,onde o silogismo dedutivo assenta na inferência lógica das premissas de facto e de direito, então, não havendo premissa fática ou de juízo crítico com a validade e relevância inerentes para que fosse suscitada fundamente a questão da inimputabilidade ou da imputabilidade diminuída (pois então assentaria em erro–vício), não há como identificar “o texto” a que o artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal se refere e que o pressupõe como fundamento onde qualquer dos erros–vícios têm que residir.

Por fim, sempre o invocado erro–vício, assente no alínea a) do n.º 2, do artigo 410.º do Código de Processo Penal nunca seria vício a averiguar na decisão recorrida, que não tendo sido objeto de impugnação ampla da matéria de facto, nos termos do artigo 412.º do Código de Processo Penal, não pode ter por objeto matéria de facto considerada não provada.

Por outro lado:

Quanto à omissão de pronúncia por não aplicação do artigo 104.º, n.º 1, do Código Penal, e consequente nulidade, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c) e 410.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, essa invocação só se compreende no mesmo contexto da verdade alternativa a que o recorrente apela.

O artigo 104.º do Código Penal dispõe, sob a epígrafe “anomalia psíquica anterior”, que: “1 - Quando o agente não for declarado inimputável e for condenado em prisão, mas se mostrar que, por virtude de anomalia psíquica de que sofria já ao tempo do crime, o regime dos estabelecimentos comuns lhe será prejudicial, ou que ele perturbará seriamente esse regime, o tribunal ordena o seu internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena. 2 - O internamento previsto no número anterior não impede a concessão de liberdade condicional nos termos do artigo 61º, nem a colocação do delinquente em estabelecimento comum, pelo tempo de privação da liberdade que lhe faltar cumprir, logo que cessar a causa determinante do internamento.”.

Significando a omissão de pronúncia – não os argumentos invocados pelo recorrente, que não vinculam – a ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre questões que a lei imponha que sobre elas o juiz tome posição expressa, quer por lhe terem sido submetidas pelos sujeitos processuais interessados, quer as que sejam conhecimento oficioso e independentes de alegação, já vimos que não só a questão da (in)capacidade do arguido para se determinar livremente e avaliar criticamente os seus atos e respetivas consequência jurídico–penais não se colocava de modo fundado e relevante para determinar a realização da perícia, que o recorrente viu omissa, como sobre ela se pronunciou, de modo expresso e categórico, o tribunal a quo, quer ao dar por não provados os factos que poderiam justificar a invocação dessa omissão, quer ao ter fundamentado por que os deu por não provados.

Tanto basta para que o recurso improceda nesta parte, não se encontrando razão, fundamento ou remição para enunciar com nova roupagem semântica o que foi decidido e os termos em que o foi, pois não há discordância que possa relevar e que já não esteja traduzida na fundamentação da decisão recorrida, que é a suficiente e adequada.

4.2.2. Quanto à subsunção jurídica pelo crime de homicídio qualificado, na forma tentada, nos termos dos artigos 14.º, n.º 1, 22.º, n.º 1, n.º 2, al. b), 23.º, n.º 1, n.º 2, 26.º, 73.º, n.º 1, al. a) e b), 131.º, n.º 1, 132.º, n.º 1, n.º 2, al. b) , do Código Penal:

A afirmação da presença de uma das circunstâncias do n.º 2, do artigo 132.º, do Código Penal, indicia positivamente a existência de uma especial censurabilidade ou perversidade, que fundamenta a agravação da moldura abstrata da pena; indícios substantivos que apenas se afastam em situações de homicídio simples ou qualificado atípicos.

Assim, verificada uma ou mais do que uma das circunstâncias exemplificativas previstas no n.º 2, do artigo 132.º, do Código Penal, desencadeia-se afirmativamente o denominado “efeito-padrão”, que sem ser mecânico, resulta depois de ser complementado com a ponderação global do facto e do seu autor (especial censurabilidade ou perversidade, enquanto fatores normativos corretores).

Estamos então, predominantemente, perante fatores que se referem à culpa, enquanto juízo de censurabilidade do agente pelo facto cometido, conforme entendimento seguido no Supremo Tribunal de Justiça (cf. ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 17-4-2013, processo n.º 237/11.7JASTB.L1.S1), identificando–se vozes que se referem à agravação da ilicitude ou desvalor da ação e do resultado, havendo também quem defenda que são apenas circunstâncias determinantes da medida da pena. Em qualquer caso, sempre a inerente agravação da culpa pelo facto, em que assenta a especial censurabilidade ou perversidade, não pode deixar de ser suportada pela correspondente ilicitude ou desvalor da ação, segundo Figueiredo Dias – cf. Comentário Conimbricense do Código Penal, vol. I, p. 27.

Crivados os exemplos-padrão mencionados na alínea b) e j) do n.º 2 do artigo 132.º, do Código Penal, pelos fatos dados como provados, resulta estarem evidenciadas e justificadas as efetivas circunstâncias que supõem especial censurabilidade ou perversidade, pois, por um lado, os laços de intimidade (atuais ou pretéritos) inerentes ao namoro constituem fatores inibitórios acrescidos, de respeito e afeto, que não devem ser, por via disso, vencidos por uma energia criminosa suplementar em desacordo com o contexto inter-relacional onde a tolerância à violência nunca deve ser consentida; e, por outro lado, o agir com frieza, reflexão sobre os meios empregues ou ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas têm o efeito indiciador, por si mesmos, de uma ponderação, preparação e disposição pessoal para matar outrem, de forma controlada, sem remorso ou emoção, que se identificam com uma especial censurabilidade e perversidade3.

Portanto, são fatores que, provados, implicam e demonstram um maior grau de culpa e não deixam de revelar um desvalor significativo na conduta, tanto em termos de representar uma maior censurabilidade, quanto em termos de demonstrar uma maior perversidade, com base em critérios de eticidade pré–jurídica ou de danosidade social.

Ainda que o recorrente sustente que não podia ter sido condenado pelo crime de homicídio tentado qualificado, essa conclusão não colhe qualquer leitura nos factos, tendo o tribunal a quo ponderado e concluído devida e justificadamente:

“No presente caso, resulta da matéria de facto provada que foi praticado pelo arguido uma conduta absolutamente idónea a causar a morte de BB, pessoa com quem tinha mantido uma relação de namoro, resultado típico do crime de homicídio, seja ele simples ou qualificado.

Uma relação de namoro é uma relação sentimental, afetiva, íntima e tendencialmente estável ou duradoura, que ultrapassa a mera amizade ou uma relação fortuita, embora não se exija, todavia, um projeto futuro de vida em comum, na medida em que as relações de namoro não têm, em princípio, a pretensão de preencher todas as características associadas à conjugalidade, como seja o futuro de vida em comum (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 26-07-2018, processo n.º 9/17.5GBABF.E1, in www.dgsi.pt).

O efeito qualificador conferido à circunstância de a vítima manter ou ter mantido uma relação de namoro com o agente, decorre de uma exigência intensificada de respeito pela vida do outro com quem se manteve uma relação de proximidade existencial e afetiva de relevo. A morte dolosa da vítima que mantinha ou manteve uma relação de namoro com o agente comporta também, em regra, uma quebra radical da solidariedade que é, em princípio, devida pelo agente à vítima, o que normalmente será suscetível de indiciar uma especial perversidade, fundada num pesado desvalor de atitude revelado por esta perversão da relação dialógica do “ser-com-o-outro” e do “ser-para-o-outro” (cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo/BRANDÃO, Nuno, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, pág. 59).

Ora, no presente caso, pela imagem global do facto praticado, tendo o arguido mantido com BB uma relação de namoro durante 5 meses e que havia terminado há quase dois meses, estando os factos praticados intimamente ligados à relação que os uniu, não tendo presidido à conduta do arguido razões de solidariedade ou de compaixão, nem se tendo demonstrado que a vítima tudo fez para desmerecer a solidariedade do arguido, sujeitando-a com regularidade a maus tratos ou humilhações, não foi derrogada a força qualificadora de tal exemplo-padrão.

Desta forma verifica-se a circunstância qualificativa de o agente ter mantido com a vítima uma relação de namoro (cfr. 132.º, n.º 2, al. b), do C.P.).”

[…]

“Uma outra circunstância qualificativa do crime de homicídio reside no facto de o agente ter agido com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregues ou ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas.

Na verdade, o facto de o agente agir com firmeza, tenacidade, irrevogabilidade de uma resolução tomada, denotando uma reflexão sobre os meios empregados, que precede ou acompanha a execução dos factos, ou persistindo na intenção de matar durante um apreciável lapso de tempo é reveladora não só de uma forte intensidade da vontade criminosa, como também de acrescida perigosidade (cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo/BRANDÃO, Nuno, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, pág. 70 e 71).

Ora, dos factos demonstrados resulta que o arguido, dias antes e não no próprio dia, de forma refletida e ponderada, cuidadosamente planeou a sua atuação em ordem a assegurar a morte de BB sem falência, escolhendo os instrumentos a utilizar, o local para atuar, separado por várias dezenas de quilómetros da sua residência, e tomando opção pelas demais circunstâncias envolventes, o que executou de forma fria e calculada. Tal denota uma forte intensidade da vontade criminosa, e acrescida perigosidade, dado que o arguido teve, ao longo desses dias e na própria noite em causa, diversas oportunidades, que não aproveitou, para se deixar penetrar pelos contra motivos sociais e ético-jurídicos de forma a desistir do seu desígnio, revelando uma personalidade marcadamente mais desviada dos padrões supostos pela ordem jurídica. Assim, a força da vontade criminosa foi de tal maneira intensa que o arguido executou o seu plano sem qualquer hesitação, que só não teve um resultado letal por motivos a si alheios, pelo que se verificam as referidas circunstâncias qualificativas que terão de ser valoradas em sede de medida da pena (cfr. al. j), do n.º 2, do art.º 132.º, do C.P.).”.

Tanto basta para se não encontrar razão – também aqui – para enunciar nova roupagem semântica ao que foi decidido e aos termos da valoração jurídica em que assentou a condenação, pois não há discordância que possa ou deva sobrepor–se à que foi traduzida na fundamentação da decisão recorrida, que é a suficiente e adequada.

Julgamos, pois, que nenhuma censura merece o acórdão quanto à qualificação jurídica dos factos e à imputação ao recorrente do crime pelo qual foi condenado, devendo, assim, improceder também o recurso nesta parte.

4.2.3. Quanto à determinação concreta da pena aplicada ao crime de homicídio qualificado: reprovabilidade do facto típico-ilícito e demonstrar uma censura adequada por condutas reprováveis e, no caso do homicídio qualificado agravado, especialmente reprováveis.

Dessa forma se garante uma compatibilidade normativa e axiológica com a Constituição e com a justificação de que um Estado social e democrático de Direito só tem legitimidade para administrar a justiça penal se for estritamente necessário para a defesa da sociedade e dos bens jurídico–penais que estruturam a convivência comum, com limites impostos pela autonomia, dignidade e humanidade de quem é agente (e vítima) do crime (prevenção geral positiva e negativa e prevenção especial), ajudando, quem “caiu”, a “levantar–se”, a corrigir caminho e a seguir em frente.

O artigo 71.º do Código Penal estabelece, no seu n.º 1, a orientação base para a determinação da medida da pena a aplicar: “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, cabendo à medida da culpa (pelo facto e pela personalidade) a função de fundamento e limite máximo da punição através da pena concreta (artigo 40.º, n.º 2, do Código Penal).

No n.º 2 do mesmo preceito faz-se referência a “todas as circunstâncias [gerais ou comuns, não modificativas] que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor do agente ou contra ele”, enunciando critérios de ponderação da culpa que não façam parte do tipo legal de crime, designadamente:

O recorrente invoca um genérico excesso ou desproporcionalidade da pena de prisão de 8 anos aplicada ao crime de homicídio qualificado na forma tentada, resumidamente entendendo que não é consentida por razões de prevenção especial.

Resolvida a questão da qualificação jurídica dos factos, o crime pelo qual o arguido foi condenado é o de homicídio qualificado, na forma tentada, a que corresponde uma moldura abstrata da pena de 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses de prisão.

Em termos gerais, determinada a moldura legal ou abstrata da pena, para a qual relevam essencialmente exigências de prevenção geral de integração (as penas devem contribuir para um reforço da confiança na vigência e validade do Direito), a determinação concreta da pena – e a sua escolha, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e não privativa de liberdade (artigo 70.º, do Código Penal) –, obedece a um método ou procedimento ponderativo, que segue critérios legais e judiciais, orientados pela proteção e promoção de bens jurídicos e pelo sentido não dessocializador do agente (prevenção geral e especial, esta como corolário do princípio da intervenção mínima), que devem presidir à aplicação e execução das reações penais (artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal).

Ainda em termos gerais, a par com as exigências de prevenção geral e especial, é importante também fazer passar a ponderação da medida concreta da pena pelo crivo do princípio da proporcionalidade entre a pena e a gravidade social do facto4, que ajuda a esclarecer significados e combinações entre a prevenção geral e especial e serve como critério de interpretação e aplicação na determinação da medida concreta da pena.

Para ser proporcional, a pena deve ser idónea, necessária e proporcional, em sentido estrito, (proporção entre a gravidade do crime e a gravidade da pena) e justificada pela proteção de bens jurídico-penais, que constitui a sua principal função de tutela.

O direito penal não pode ser inútil e incapaz de proteger bens jurídicos e de prevenir a criminalidade, ainda que seja o último recurso, mas deve servir, através da pena, para clarificar a ⎯ Quanto ao facto objetivo e subjetivo (ilicitude e culpa): o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste, a gravidade das consequências do facto, o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a Intensidade ou grau do dolo ou da negligência.

⎯ Quanto ao agente e à personalidade revelada no facto (culpa pela personalidade e influência da pena): os sentimentos manifestados no facto, os motivos e os fins que o determinaram, as condições pessoais do agente e a sua situação económica, a conduta anterior ao facto e a posterior, especialmente se destinada a reparar as consequências do crime, com eventual ponderação atenuativa da sua conduta processual,

Censura pela falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando deva ser censurada pela aplicação de uma pena (culpa ético–social, enquanto exteriorização da formação da personalidade pela violação objetiva de deveres e valores sociais, constitucional e legalmente consagrados, aliada à liberdade de determinação do agente segundo esses valores), ajustando as exigências de prevenção de futuros crimes.

O n.º 3 do artigo 71.º, do Código Penal, por último, obriga a explicitar na sentença os fundamentos da medida da pena que se elegeu, regra com implicações substantivas ou de direito, que permite a sua apreciação pelos tribunais superiores.

Posto isto, diremos que a confluência entre os fins das penas, a escolha e a sua determinação concreta encontram-se precisamente na transição entre os princípios e o seu exercício pragmático, com incidência formal e real na concretização judicial da punição.

Neste contexto, ao operacionalizar os critérios definidos pelo legislador, espera–se do julgador não tanto uma convicção pessoal – enquanto razão privada – que pode envolver o risco de confundir intuição, discricionariedade ou orientações morais do julgador quando recorre a fórmulas estereotipadas que apenas reproduzem os critérios legais, mas, em vez disso, o que se espera é que a decisão seja baseada numa razão pública ou numa racionalidade partilhada pela comunidade, com base na legalidade, nos factos e na culpa. São fatores que devem funcionar de forma interativa tanto ao determinar a gravidade da pena quando ao escolher a forma do seu cumprimento.

Em razão dessa racionalidade partilhada, a graduação da pena deverá ter fundamentos explícitos que possibilitem a discussão racional e o controlo da decisão em limites compatíveis com o Estado de Direito, pois é aí que reside a legitimidade da sentença penal condenatória.

Determinar uma pena concreta não é outra coisa senão quantificar a culpa numa pena justa; culpa que tanto é constitutiva da pena como é um conceito graduável. É nessa graduação que se encontra parte da complexidade, principalmente quando se têm de identificar os parâmetros concretos – (quase sempre valorativos e de contornos difusos) – e saber quanto valem, para depois determinar qual a pena que, quanto ao limite mínimo, já é adequada à culpa e aquela que, quanto ao máximo, ainda é adequada à culpa, no confronto entre a culpa, a gravidade do facto e os fins preventivos da pena.

É por isso importante saber explicitar os fatores que se valoram contra e a favor do arguido. Não é uma tarefa isenta de complexidade, pois trata–se de saber onde situar o ponto seguro a partir do qual se valora a favor ou contra (o mais e o menos, que expressam uma grandeza aritmética, onde só parece ser possível uma ponderação aproximada).

É nesse contexto explicativo que o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que, em matéria de revista sobre a medida concreta da pena, a sindicabilidade a efetuar sobre a correção das operações de determinação ou do procedimento recai ora sobre a indicação de fatores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, ora sobre a falta de indicação de fatores relevantes, ou ainda sobre o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação, mas já não deve incidir sobre a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado, salvo perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efetuada – cf. acórdão de 29–3–2007, no processo n.º 07P9025.

A solução, devendo ser a mais exata possível, será tanto mais exata quanto estiver plenamente justificada, sem contradições, na avaliação dos diversos fatores, sempre apoiada no ordenamento jurídico e nas valorações normativas, conjugando também as regras de experiência comum, cujo significado e relevância já acima explicámos.

São essas as razões pelas quais é decisiva a motivação, que permite valorar, controlar e modificar. As decisões dos tribunais superiores são muito claras, quanto à necessidade de os acórdãos ou sentenças recorridos fundamentarem, sempre, a opção pela pena privativa ou não privativa de liberdade e a sua determinação concreta, sob pena de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do art.º 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal.

Para a operacionalização dessa metodologia ponderativa, na lição há muito conhecida de Figueiredo Dias6, a medida concreta da pena será o resultado das exigências de prevenção geral, que constituem o limite mínimo da medida concreta, e o resultado da culpa, que limita a moldura punitiva no seu máximo, inscrevendo-se nesse intervalo as considerações de prevenção especial de ressocialização do agente e circunstâncias que, extravasando do tipo, concorrem para mitigar ou agravar a responsabilidade do arguido.

Também o Professor Taipa de Carvalho identifica a mesma metodologia na determinação da medida concreta da pena: “…este critério da prevenção especial não é absoluto, mas antes duplamente condicionado e limitado: pela culpa e pela prevenção geral. Condicionado pela culpa, no sentido de que nunca o limite máximo da pena pode ser superior à medida da culpa, por maiores que sejam as exigências preventivo-especiais (…). Condicionado pela prevenção geral, no sentido de que nunca o limite mínimo da pena (ou a escolha de uma pena não detentiva) pode ser inferior à medida da pena tida por indispensável para garantir a manutenção da confiança da comunidade na ordem dos valores jurídico-penais violados e a correspondente paz jurídico-social, bem como para produzir nos potenciais infratores uma dissuasão mínima. Em síntese: a prevenção geral constitui o limite mínimo da pena determinada pelo critério da prevenção especial.”7.

Assim, a ponderação da medida concreta da pena é mais geométrica do que aritmética. Numa representação metafórica, essa ponderação traduzir–se–à num segmento de reta vertical, limitado por dois pontos distantes, representando na extremidade inferior a pena mínima da moldura abstrata e na extremidade superior a pena máxima abstrata. Dentro desses limites, definir–se–á um novo segmento, no qual a extremidade inferior corresponderá à pena mínima relativa às exigências de prevenção geral e a extremidade superior haverá de corresponder à culpa no facto, que não pode ser ultrapassada. Dentro deste novo segmento, definir–se–à um outro que numa extremidade continuará a corresponder às exigências de prevenção geral e que terá como ponto ótimo, sempre aquém do limite da culpa, o que for fixado pelas exigências de prevenção especial de reintegração do agente, correspondendo ao quantum concreto da pena a aplicar, e que terá, em última análise, correspondência proporcional concreta à prevenção geral positiva, i.e., a de evitar que crimes de igual gravidade se cometam no futuro.

Ponderando, então, a pena concreta aplicada no caso:

Vista a moldura penal abstrata a considerar, em concreto, tendo em conta a finalidade das penas, há que atender e ponderar a proteção do bem jurídico defendido pela norma de comportamento que prevê a punição do homicídio qualificado – nos termos sobreditos – e que, no caso, se trata da vida humana, tendo na devida conta que a norma que no Código Penal pune o crime de homicídio pressupõe, como fundamento, o princípio que proíbe dispor da vida humana de outrem, suportando-se este princípio na justificação da vida humana como o valor primordial, com a máxima dignidade constitucional (artigo 24.º da Constituição da República Portuguesa) e coerentemente tutelado pela lei (Código Penal); portanto com validade ética material essencial, enquanto suporte da correspondente validade jurídica.

Todo esse quadro de tutela jurídica subjacente ao crime de homicídio qualificado exige que, na determinação da medida concreta da pena a aplicar, dentro da moldura abstrata prevista, se devam considerar o grau da lesão da integridade vital da vítima, com relevo para o desvalor da ação e do resultado e respetivos reflexos no juízo de culpa ou reprovabilidade da conduta em concreto, bem como no entendimento da personalidade do agente revelada no facto.

O nível de motivação do arguido perante o bem jurídico-penal protegido não só foi insuficiente (o arguido não se motivou a agir de modo normativamente adequado em obediência à proibição de matar e à inviolabilidade da vida humana), como também as razões para o homicídio e as circunstâncias em que foi cometido sugerem que a motivação insuficiente emerge como resultado de algum estado de anomia ou falta de ressonância emocional quanto ao valor e significado social da vida humana, à proibição de matar e à desvinculação ao inerente dever-ser, como se a proibição de matar não o vinculasse e como se desse a si próprio a liberdade de matar, pondo acima desses limites a sua necessidade egocêntrica, possessiva e retaliadora de fazer pagar com a vida e o sangue da vítima o repúdio que sentiu ao não “encaixar” o fim da relação de namoro.

O arguido teria o direito e a liberdade de gerir de forma autojustificada o ressentimento que a vítima lhe causou e causava. Porém, impunha–se–lhe o dever de, no exercício dessa liberdade, não causar dano aos outros, como veio a causar, para mais de forma deliberada, injustificável, desproporcionada e com a especial gravidade que o quadro jurídico–penal assinala aos crimes especialmente violentos, como é o caso do homicídio qualificado, ainda que tentado.

Há que ponderar que a prevenção geral corporizada na ameaça de uma pena de 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses de prisão não funcionou e, seguindo-se a condenação do arguido pelo crime de homicídio qualificado na forma tentada, teremos de avaliar a sua culpa para individualizar a pena concreta dentro daquela moldura legal, que será o seu limite também concreto, e ter ainda em conta as exigências de prevenção geral positiva na execução da pena.

Centrando-nos na culpa, cujo conceito ou definição não se encontra positivada no Código Penal, ela traduz-se na reprovabilidade da conduta que recai sobre o agente por não ter agido conforme ao direito (infidelidade ao direito), sendo conceito há muito pacificamente consensual na jurisprudência, que o tem esclarecido enquanto juízo de censura dirigido ao arguido, porquanto pressupõe no agente – neste arguido em concreto – a liberdade necessária para se determinar de acordo com a proibição legal do crime de homicídio e que, mesmo assim, agiu contra a proibição legal, em moldes que reclamam um juízo severo de censura, por via dos seguintes fatores:

- o desvalor da ação, com reflexos ponderativos tanto na ilicitude, como na culpa e na personalidade revelada no facto (lado objetivo e subjetivo do facto), é bastante elevado por o arguido ter agido com o firme propósito de matar, com frieza, tenacidade, irrevogabilidade, reflexão sobre os meios empregues, persistência na intenção de matar, esfaqueando a vítima no pescoço, depois de a tentar esfaquear no abdómen, ato previamente planeado quanto ao tempo e ao modo de o executar, aproveitando ocasião em que a vítima chegava a casa, vulnerável por abstraída do momento fatal que iria enfrentar, garantindo a eficácia do atentado fatal através da específica seleção dos meios de agressão (navalha e outros), surpreendendo a vítima, manietando–a e procedendo à tentativa de a executar sumariamente, primeiro dirigindo a navalha ao abdómen e depois ao pescoço, onde a golpeou, denotando cálculo, frieza e eficácia na consecução dos seus propósitos, comportamento que, no seu modo de execução, traduz uma forma violenta e cruel de matar, sem hesitações, dirigida a garantir o efetivo resultado, consciente e voluntariamente visado, abandonando a vítima para morrer que, inocente do ardil preparado pelo arguido, desconhecia que ia ao encontro da morte.

- O desvalor do resultado, também com reflexos ponderativos tanto na ilicitude, como na culpa e na personalidade revelada no facto (lado objetivo e subjetivo do facto), igualmente se mostra muito elevado, pois a vítima sofreu agressões de violência intensa no processo do assassinato tentado, que se traduziu, contemporaneamente, numa eficaz neutralização da sua capacidade de defesa por via dos golpes insistentes e sucessivos, o primeiro dirigido ao abdómen, de que ainda se defendeu, e depois no pescoço, com a hemorragia sequente, agressões que lhe provocaram, no pescoço, ferida cortante linear irregular, disposta horizontalmente, localizada na face anterior, lateral direita e esquerda da região cervical com 13 cm de comprimento total, com esfacelo cervical, atingimento e laceração completa das veias jugulares externas anteriores, atingimento dos músculos pré tiroideus e laceração parcial da porção medial do músculo esternocleidomastóideo; na mão esquerda: ferida cortante na face dorsal da base de D1 disposta obliquamente ao longo eixo do dedo com 2 cm de comprimento e ferida cortante na fase dorsal do 3.º espaço intermetacárpico com 0, 5 cm e polpa de D2 com 0, 5 cm; Lesões dirigidas a fazer perigar a sua vida e apenas debeladas por cirurgia de urgência, que lhe provocaram dores e, certamente, aflição de agonia, a par com os 52 dias de doença sofridos, ficando desfigurada e funcionalmente limitada no segmento cervical.

São circunstâncias que acentuam tanto a ilicitude, quanto não podem deixar de se refletir no elevado juízo de censurabilidade e reprovação, pois o arguido, quis garantir, no seu defeituoso quadro valorativo, o devido castigo pela eliminação da vítima e, assim, consumar o efetivo resultado dos seus propósitos criminosos, que só circunstâncias alheias à sua vontade evitaram.

Ainda no âmbito da culpa, o dolo é direto e os sentimentos manifestados na prática do homicídio revelam o completo desprezo pelo valor da vida humana, acentuada, quanto ao recorrente, pelos motivos que resultam da interpretação dos factos provados: fazer com que a vítima “pagasse” com avida a recusa em reatar a relação de namoro e o ressentimento que o fim da relação de namoro lhe causou.

No contexto acabado de referir, a culpa é elevada e impõe um limite que está bem para lá dos 8 anos aplicados, por estar patente tanto o dolo muito intenso, a consciência plena, planeada e executada da ilicitude da sua conduta e dos meios usados para a levar a cabo, e bem assim dos resultados de dano voluntariamente pretendidos, com os concretos contornos referidos.

Por outro lado, o crime de homicídio qualificado, ainda que na forma tentada, cometido nestas circunstâncias, é um dos crimes que maior abominação, alarme e insegurança causam, impondo-se um efetivo e significativo reforço da validade das normas violadas aos olhos da comunidade, para mais quando ocorreu em espaço residencial, de recato, privacidade, onde é suposto haver convívio solidário e de respeito mútuo, além de se enquadrar num tipo de criminalidade que hoje é socialmente intolerável e altamente censurada e que tem justificado opções de política–criminal crescentemente severas para a combater.

É um crime considerado, normativamente, como integrante do conceito de criminalidade especialmente violenta – artigo 1.º alínea l) do Código de Processo Penal –, o que leva à qualificação das vítimas desse tipo de crime como “vítimas especialmente vulneráveis” – artigo 67.º-A n.º 3 do Código de Processo Penal, aos quais a nossa ordem jurídica deve conceder especial proteção devido às consequências devastadoras que advêm para as suas vidas em resultado desse tipo de crime.

São, pois, muito elevadas as exigências de prevenção geral, que no caso em apreço justificam plenamente que o limite correspondente da pena concreta aplicar fique bem além dos 2 anos, 4 meses e 24 dias de prisão previstos como mínimo da moldura da pena aplicável e bem além, também, da pena de prisão que o recorrente sugere e está subentendida na possibilidade de ser suspensa.

No que respeita às exigências de prevenção especial (que devem então fazer coincidir todos os fatores já enunciados com as exigências de que a condenação, mormente em pena de prisão, tenha como objetivo a reintegração do delinquente na vida em sociedade sem cometer mais crimes), dever-se-ão considerar os seguintes fatores, tidos por relevantes no acórdão recorrido: A modalidade mais intensa do dolo. A frieza de ânimo, reflexão sobre os meios empregues e persistência na intenção de matar. A infração perversa do respeito e do relacionamento saudável que devia estar subjacente à relação pretérita ou atual de namoro. O modo de execução do crime e a elevada ilicitude associada a fatores que o acórdão destaca: noite, no prédio onde residia a vítima, o que necessariamente lhe conferia uma falsa sensação de segurança, o numero de instrumentos cortoperfurantes de que se socorreu, o número de golpes desferidos e as zonas atingidas, bem como a já considerável violência física que foi necessário empregar, o sofrimento físico, a angústia, o desespero e o pânico que o arguido forçosamente causou à vítima, sendo que não só foram graves as lesões físicas que lhe foram causadas, como daí resultaram consequências permanentes.

Os motivos: o arguido agiu por repúdio à decisão da vítima de pôr termo à relação de namoro que os unia. Contudo, tendo o arguido praticado os factos quando estavam quase volvidos dois meses sobre a data em que tal ocorreu, o cometimento dos factos por tal motivo releva uma personalidade possessiva e, assim, altamente desvaliosa, o que terá de militar contra si.

Milita a seu favor a sua idade e a sua boa integração, bem como o facto de lhe não serem conhecidos antecedentes criminais.

O arguido apenas admitiu aquilo que não podia negar e, ainda assim, sempre minimizando a sua conduta e imputando responsabilidade à vítima por atos por si desencadeados e/ou apenas a si imputáveis. Procurou convencer que nem sequer representou como possível que do facto pudesse advir a morte de BB, resultado que referiu nunca ter desejado. Não obstante, declarou-se arrependido.

Porém o acórdão considerou que no presente caso, a admissão parcial que fez dos factos que ficaram demonstrados não ocorreu com a plenitude que seria exigível para se poder afirmar que houve interiorização do desvalor da conduta, pelo que não se vislumbra qualquer facto concreto e objetivo demonstrativo de um arrependimento sincero.

Do que fica dito, resulta que, dentro das submoldura a ponderar entre o limite da culpa e as exigências de prevenção geral, as exigências de prevenção especial não consentem – dadas as necessidades de prevenção geral e especial e as agravantes concretas que importa considerar e a que se aludiu, respeitantes ao modo como o crime foi praticado pelo arguido, com necessários reflexos no grau elevado da ilicitude e da culpa, a ponderação de circunstâncias anteriores e posteriores ao crime, etc. – que a pena concreta seja outra que não a de 8 anos de prisão, aplicada pelo tribunal recorrido, e que deve ser mantida, também por respeito à proibição da reformatio in pejus.

Tal pena respeita os princípios constitucionais da intervenção mínima, da proporcionalidade das penas e da igualdade, e sobretudo o princípio da culpa, pois a realização da justiça penal num Estado de Direito democrático tanto se alcança na proibição da punição sem culpa ou para além da culpa (nulla poena sine culpa), como se cumpre por meio de uma punição adequada dos culpados, quando necessária for para salvaguarda do interesse púbico subjacente ao respeito pelo Direito do próprio Estado (nulla culpa sine poena); ou seja, a adequada proteção de bens jurídicos, enquanto finalidade principal das penas, deve estar alinhada com a reintegração tão rápida quanto possível do arguido em sociedade.

Neste caso, a reintegração ocorrerá através do cumprimento efetivo da pena aplicada, que não é excessiva, mas antes adequada à enérgica reação penal que o caso justifica.

Afigura-se-nos, assim que, de forma suficiente, na determinação da medida da pena, o tribunal a quo alicerçou-se corretamente na consideração da culpa e da prevenção como princípios regulativos dessa medida, e foi fiel à medida da necessidade de tutela de bens jurídicos face ao caso concreto.

Acompanham-se, deste modo, as alegações do Ministério Público na 1.ª instância, não se encontrando, a nosso juízo, fundamentos para atender o recurso..”.

O arguido respondeu ao parecer, nos seguintes termos:

“(…) 4. Ora, sem prejuízo de tudo quanto se deixou dito no recurso apresentado aos autos relativamente à errada qualificação jurídica operada pelo Tribunal de 1.ª Instância

– que condenou o arguido pela prática, em autoria imediata e sob a forma tentada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 22.º, n.º 1, n.º 2, al. b), 23.º, n.º 1, 26.º, 131.º, e 132.º, n.º 1, e n.º 2, al. b), do C.P., quando estamos, na verdade, perante um crime de homicídio simples na forma tentada – e que nesta sede se renova,

5. importará refutar a argumentação vertida no Parecer exarado quanto à (pretensa) integração da factualidade provada no crime de homicídio qualificado com base no disposto na alínea j) do n.º 1 do art. 132.º do CP.

6. Note-se que, no recurso interposto discute-se e rebate-se apenas a qualificação do crime de homicídio com base na alínea b) do art. 132.º, do CP, por ter sido essa a única circunstância qualificadora na qual o Tribunal a quo fundamentou a condenação.

7. Com efeito, e como aliás o Exmo Sr. Procurador-Geral Adjunto reconhece em nota de rodapé constante da página 16 do Parecer em resposta, a propósito do enquadramento jurídico-penal dos factos consignou o Tribunal a quo (unicamente) que:

“ao arguido é objetiva e subjetivamente imputável a prática, em autoria imediata e sob a forma tentada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 22.º, n.º 1, n.º 2, al. b), 23.º, n.º 1, 26.º, 131.º, e 132.º, n.º 1, e n.º 2, al. b), do C.P.” (p. 35, negritos nossos)

8. Resulta assim, inequivocamente, que a qualificação jurídica do crime cometido por AA assentou única e exclusivamente na alínea b) do art. 132.º, n.º 1 do CP.

9. Tendo o exemplo-padrão elencado na alínea j) daquele preceito sido chamado à colação unicamente a propósito da determinação da concreta medida da pena.

10. E nem poderia ter sido de outra maneira pois a qualificação do crime com base no disposto na alínea j) do art. 132.º, n.º 1 do CP sempre implicaria uma alteração substancial dos factos, não admissível.

11. É que, cumpre não esquecer, que o facto relativo à actuação do arguido “com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou com persistência na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas” só foi introduzido na fase de julgamento,

12. nada tendo sido levado ao despacho de acusação sobre essa circunstância.

13. Pelo que, afastando-se a qualificação jurídica operada pela al. b), não poderá, sob pena de alteração substancial dos factos legalmente proibida, admitir-se a sua integração (alternativa) na al. j),

14. antes havendo de concluir que uma justa punição do arguido bastar-se-á com uma recondução da factualidade provada ao crime de homicídio simples na forma tentada,

15. conforme melhor pugnado no recurso apresentado aos autos, o qual deverá ter-se por totalmente procedente.”

O processo foi aos vistos e teve lugar a conferência.

1.2. O acórdão recorrido, na parte que releva para o recurso, tem o seguinte teor:

“I. Factos provados:

1. AA, aqui arguido, e BB, em data não concretamente apurada de junho de 2022, iniciaram uma relação de namoro que durou cerca de cinco meses.

2. Em data não concretamente apurada, mas situada no início de novembro de 2022, BB pôs termo à relação por o arguido lhe ter controlado duas vezes o seu telemóvel e em outubro de 2022 a ter perseguido.

3. O termo do relacionamento não foi bem aceite pelo arguido que, por várias vezes insistiu junto de BB pelo reatar da relação, o que foi sempre recusado por esta, e perseguiu-a.

4. No dia 22-12-2022, a hora não concretamente apurada, mas anterior às 21h47min, o arguido saiu da sua residência, sita na ..., em direção a esta cidade do..., levando consigo:

- Nove abraçadeiras de cor preta, para imobilizar BB;

- Um rolo largo de fita adesiva de cor cinzenta, para tapar a boca de BB;

- Uma navalha dobrável com cerca de 20 cm de comprimento, da marca Quechua, com cabo de cor azul e uma faca com cerca de 20 cm de comprimento, com cabo branco, para com tais instrumentos desferir golpes no corpo de BB.

5. Chegado a esta cidade do Porto, o arguido deslocou-se ao restaurante “...”, situado na Rua ..., nesta cidade, local onde BB era empregada de mesa.

6. Após se certificar que BB aí se encontrava a trabalhar, o arguido dirigiu-se ao prédio onde aquela residia, sito na Rua ..., nesta cidade do ..., onde chegou a hora não concretamente apurada, mas, pelo menos, às 01h do dia 23-12-2022.

7. A dado passo, o arguido introduziu-se no interior do referido prédio, subiu até ao 4.º andar onde se situava o apartamento onde residia BB e permaneceu junto do elevador principal.

8. BB introduziu-se no interior do referido prédio e utilizando o elevador principal subiu até ao 4.º andar onde chegou por volta das 02h.

9. Assim que BB saiu do referido elevador, o arguido com as suas mãos agarrou-a pelos braços, ordenou-lhe que não gritasse, puxou-a até ao interior do elevador de carga e, uma vez no interior deste, estando o arguido de costas para a porta do referido elevador e BB de frente para o arguido, largou-a e acionou o elevador até ao 9.º andar.

10. No interior daquele elevador, o arguido ordenou a BB que ela lhe entregasse o telemóvel, o que a mesma recusou fazer.

11. De seguida, empunhando a dita navalha, o arguido dirigiu a lâmina de tal instrumento na direção do abdómen de BB que, por seu turno, empurrou e afastou o arguido com as suas mãos, conseguindo evitar que aquela lhe fosse espetada.

12. De seguida, empunhando a dita faca, o arguido desferiu com ela um golpe, da direita para a esquerda, na zona anterior do pescoço de BB.

13. Após, o arguido saiu daquele elevador e abandonou o edifício, ali deixando a BB entregue à sua sorte.

14. Contudo, BB conseguiu descer no referido elevador até ao 4.º andar e entrar na sua residência, tendo aí sido prontamente socorrida pelos seus tios, que lhe prestaram os primeiros socorros, tentando estancar a hemorragia com uma toalha, e acionaram o INEM.

15. BB foi, entretanto, transportada para o Hospital São João, onde deu entrada pelas 03h02min do dia 23-12-2022, tendo sido submetida a uma cirurgia de urgência.

16. Em consequência direta e necessária da atuação do arguido, BB sofreu dores e lesões nas zonas atingidas, designadamente:

- No pescoço: ferida cortante linear irregular, disposta horizontalmente, localizada na face anterior, lateral direita e esquerda da região cervical com 13 cm de comprimento total, com esfacelo cervical, atingimento e laceração completa das veias jugulares externas anteriores, atingimento dos músculos pré tiroideus e laceração parcial da porção medial do músculo esternocleidomastoideu;

- Na mão esquerda: ferida cortante na face dorsal da base de D1 disposta obliquamente ao longo eixo do dedo com 2 cm de comprimento e ferida cortante na fase dorsal do 3.º espaço intermetacárpico com 0, 5 cm e polpa de D2 com 0, 5 cm;

que foram causa direta e necessária de 52 dias para a consolidação médico-legal, com afetação da capacidade de trabalho geral durante 33 dias e com afetação da capacidade de trabalho profissional durante 42 dias, bem como, como consequências permanentes anatómicas:

- No pescoço: cicatriz linear irregular, disposta horizontalmente, com reação quelóide associada e aderente aos planos subjacentes localizada na face anterior, lateral direita e esquerda da região cervical com 13 cm de comprimento total, com área cicatricial nacarada que se dirige para cima e para a direita (1 cm) aderente planos subjacentes na zona mediana desta cicatriz, causando dor, disestesia e ainda sensação de repuxamento associada à mobilidade cervical, sendo que tal cicatriz é causa de limitação na mobilidade articular do segmento cervical nos movimentos de rotação para a direita (++) e esquerda (+++);

- Na mão esquerda: cicatriz irregular rosada aproximadamente quadrangular (0.5 cm de lado) localizada na face dorsal do 3.º espaço intermetacárpico, e cicatriz na face dorsal da base de D1 disposta obliquamente ao longo eixo do dedo com 2 cm de comprimento, com vestígios cicatriciais de pontos de sutura, sem queixas subjetivas associadas e que não causam atingimento da mobilidade dos dedos da mão.

17. A cicatriz na face anterior do pescoço é causa de desfiguração grave e permanente e causa de alteração a nível funcional e situacional tendo em conta a alteração na mobilidade do segmento cervical.

18. BB só não morreu porque foi imediatamente socorrida, primeiro pelos seus tios que procuraram estancar a hemorragia e providenciaram pelo seu rápido transporte para uma unidade hospitalar e, depois, pela assistência que lhe foi prestada no Hospital de São João, nesta cidade do Porto, para onde foi transportada, e onde, para além da restante assistência médica e medicamentosa, foi submetida a cirurgia de urgência.

19. O arguido ficou cortado no polegar da mão esquerda.

20. O arguido agiu sabendo e querendo tirar a vida a BB, com quem tinha mantido uma relação de namoro, por esta se ter recusado a reatar tal relação, com elaboração mental, reflexão e tenacidade, após ponderar, escolher e munir-se dos objetos idóneos a tal, em conformidade com o plano que tinha previamente arquitetado dias antes, persistindo na intenção de a matar por mais de 24 horas, revelando uma personalidade profundamente distanciada dos valores aceites pela comunidade, sendo que a morte daquela apenas não aconteceu por circunstâncias estranhas à vontade do arguido.

21. O arguido conhecia as características da navalha e da faca que utilizou na prática dos factos, bem sabendo da sua idoneidade para causar ferimentos profundos e mortais, o que quis e representou.

22. Agiu livre e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

23. À data dos factos, o arguido AA integrava, tal como agora, o agregado de origem, constituído por si e pela mãe, residindo num apartamento arrendado com razoáveis condições de habitabilidade, de construção antiga, edificado em local central da ....

24. A subsistência familiar assentava na pensão de reforma auferida pela mãe, no valor de 560 EUR por mês, sendo as despesas com carácter fixo mais relevantes as relativas à manutenção da habitação (energia elétrica e água), rondando cerca de 165 EUR por mês.

25. O arguido encontrava-se integrado no sistema de ensino superior, matriculado no curso de ..., na Universidade do Porto.

26. Nos tempos livres AA privilegiava a companhia do agregado de origem e o convívio com os seus familiares e amigos.

27. AA nasceu na ..., sendo fruto de uma relação de namoro da mãe, tendo o pai terminado a relação quando o arguido tinha um ano e meio de idade, não estabelecendo com o arguido quaisquer outros contactos após essa altura.

28. O processo educativo do arguido decorreu unicamente junto da mãe, verificando-se a existência de laços afetivos e forte vinculação do arguido à sua mãe. Esta encontra-se reformada desde 2013 tendo-se confrontado, em 2018, com um problema de saúde do foro oncológico sendo acompanhada no Instituto de Oncológico do Porto, tendo sido intervencionada cirurgicamente em 24-05-2019.

29. AA frequentou o sistema de ensino em idade normal tendo efetuado um trajeto normativo e ingressado no ensino superior, no ano letivo de 2018/2019, no Curso de Engenharia Informática, no Instituto Superior do Porto.

30. Interrompeu a frequência do ensino superior para dispensar apoio à mãe, nos tratamentos/consultas no Instituto de Oncológico do Porto. Na verdade, o arguido era o único familiar que prestava assistência inadiável e imprescindível à sua mãe. O arguido retomou os estudos no ano letivo seguinte, desta feita no curso de ..., encontrando-se a frequentar o 3.º ano.

31. O arguido AA solicitou, por iniciativa própria, acompanhamento na área da psiquiatria, em médico particular (Clínica G........) na ..., onde é acompanhado em consultas regulares desde janeiro de 2023 com prescrição medicamentosa, acompanhamento que mantém.

32. Atualmente, dispõe do apoio da mãe, com quem mantém forte vinculação afetiva e uma dinâmica relacional marcada pela solidariedade e entreajuda, bem como da família alargada.

33. Em termos sociais constata-se uma inserção adequada, não existindo sentimentos de rejeição à sua presença.

34. Como perspetivas futuras, o arguido pretende dar continuidade aos estudos até à conclusão dos mesmos e manter-se integrado no agregado familiar de origem.

35. É tido como inteligente, reservado, introvertido e tímido e fechado em si.

36. Por decisão de 24-12-2022, no âmbito deste processo, foi aplicada ao arguido a medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, tendo sido conduzido à sua habitação nesse dia, sendo os tais meios instalados em 26-12-2022, em cumulação com as obrigações decorrentes do termo de identidade e residência e a proibição de contactos com BB.

37. No dia 31-10-2023, das 22h33min às 23h03min, foi reportada pelo sistema de vigilância eletrónica a perda da monitorização eletrónica compatível com a saída não autorizada do arguido do espaço habitacional monitorizado.

38. De imediato foram efectuadas por parte dos serviços de reinserção social tentativas de contacto telefónico com o arguido, designadamente para o equipamento de vigilância eletrónica existente na sua habitação bem como para o seu telemóvel pessoal, sem sucesso.

39. Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido.

(…)

Por fim, saliente-se que não foi apresentado qualquer meio de prova de acordo com o qual o arguido padecesse, à data, de uma qualquer anomalia psíquica. Do relatório médico (psiquiatria) de 07-06-2023 (cfr. Doc. 4 de ref.ª ......87 de 02-10-2023) resulta até que o arguido não padece de qualquer história de doença mental. Por outro lado, deste relatório, não resulta que o arguido padecesse à data de uma “depressão severa”. É certo que aí consta que o arguido, após o termo da relação de namoro com BB, teria desenvolvido sintomatologia ansiosa e depressiva, da qual se destaca ideação suicida e sentimentos de culpa. Contudo, conforme foi salientado por CC, subscritor do dito relatório, este foi baseado unicamente no que lhe foi transmitido pelo próprio arguido, que recorreu àquele só em janeiro de 2023 após a rutura da relação de namoro com BB, que ocorreu em início de novembro de 2022, depois dos factos aqui em causa terem ocorrido, sendo que estes tiveram lugar em 23-12-2022, bem como após ser detido, submetido a interrogatório judicial e confinado à sua habitação e, assim, na pendência deste processo. Para além de ser, assim, emitido a pedido do arguido, o certo é que as premissas em que se baseiam nem sequer foram confirmadas pelo arguido em audiência de julgamento. Na verdade, o mesmo afirmou então que só no dia 23-12-2022, após ter abandonado o prédio onde residia BB, é que teria começado a pensar matar-se, negando ter feito alguns dos atos que BB lhe imputou e que a levaram a terminar a relação de namoro. Por fim, como é evidente, não se trata de uma perícia sobre o estado psíquico do arguido.

Seja como for, o arguido, no que relato que sempre fez do que aconteceu ao longo deste processo, não apresentou qualquer sinal de possuir, à data dos factos, qualquer limitação na capacidade de distinguir o bem do mal, o certo do errado e o lícito do ilícito, ou qualquer limitação na capacidade de se determinar de acordo com essa avaliação.

(…)

No presente caso, resulta da matéria de facto provada que foi praticado pelo arguido uma conduta absolutamente idónea a causar a morte de BB, pessoa com quem tinha mantido uma relação de namoro, resultado típico do crime de homicídio, seja ele simples ou qualificado.

Uma relação de namoro é uma relação sentimental, afetiva, íntima e tendencialmente estável ou duradoura, que ultrapassa a mera amizade ou uma relação fortuita, embora não se exija, todavia, um projeto futuro de vida em comum, na medida em que as relações de namoro não têm, em princípio, a pretensão de preencher todas as características associadas à conjugalidade, como seja o futuro de vida em comum (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 26-07-2018, processo n.º 9/17.5GBABF.E1, in www.dgsi.pt).

O efeito qualificador conferido à circunstância de a vítima manter ou ter mantido uma relação de namoro com o agente, decorre de uma exigência intensificada de respeito pela vida do outro com quem se manteve uma relação de proximidade existencial e afetiva de relevo. A morte dolosa da vítima que mantinha ou manteve uma relação de namoro com o agente comporta também, em regra, uma quebra radical da solidariedade que é, em princípio, devida pelo agente à vítima, o que normalmente será suscetível de indiciar uma especial perversidade, fundada num pesado desvalor de atitude revelado por esta perversão da relação dialógica do “ser-com-o-outro” e do “ser-para-o-outro” (cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo/BRANDÃO, Nuno, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, pág. 59).

Ora, no presente caso, pela imagem global do facto praticado, tendo o arguido mantido com BB uma relação de namoro durante 5 meses e que havia terminado há quase dois meses, estando os factos praticados intimamente ligados à relação que os uniu, não tendo presidido à conduta do arguido razões de solidariedade ou de compaixão, nem se tendo demonstrado que a vítima tudo fez para desmerecer a solidariedade do arguido, sujeitando-a com regularidade a maus tratos ou humilhações, não foi derrogada a força qualificadora de tal exemplo-padrão.

Desta forma verifica-se a circunstância qualificativa de o agente ter mantido com a vítima uma relação de namoro (cfr. 132.º, n.º 2, al. b), do C.P.).

Ser determinado a matar por avidez, significa a pulsão para satisfazer um desejo ilimitado de lucro à custa de uma desconsideração brutal da vida de outrem, ou seja, quem age por ganância ou desejo de obter vantagens materiais (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09-10-2019, processo n.º 24/17.9JAPTM.E1.S1, in www.dgsi.pt).

Ora, da matéria de facto provada não resulta que o arguido tivesse atuado assim determinado.

Ser determinado pelo prazer de matar ou de causar sofrimento significa que a morte é motivada pelo gosto ou a alegria sentidos com o aniquilamento de uma vida humana ou com o sofrimento infligido à vítima que, com aquela, o agente visa satisfazer, sem que todavia a situação se reconduza a uma anomalia psíquica nos termos e para os efeitos do art.º 20.º do C.P. (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29-10-2015, processo n.º 461/14.0PEVR.E1.S1, in www.dgsi.pt).

Cumpre salientar que matar é um ato ao qual é conatural e indissociável o sofrimento da vítima, por menor que possa ser. Por outro lado, matar pelo prazer de causar sofrimento não corresponde ao ser indiferente ao sofrimento da vítima.

Seja como for, da matéria de facto provada não resulta que o arguido visasse satisfazer semelhante prazer.

Matar alguém para excitação ou para satisfação do instinto sexual significa que a motivação requerida se verifica não apenas quando a morte da vítima visa determinar a libertação do agente da pulsão sexual, mas também sempre que aquela serve a prática de atos necrófilos ou simplesmente visa o despertar do instinto sexual (cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo/BRANDÃO, Nuno, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, pág. 62).

Ora, da matéria de facto provada não resulta ter sido essa a motivação do arguido.

O motivo da atuação será torpe ou fútil quando o mesmo, avaliado segundo as conceções éticas e morais ancoradas na comunidade, deva ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito, de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pela vida humana. Contudo, a inexistência de motivo não equivale a motivo fútil, uma vez que só há motivo, ainda que fútil, se existir, sob pena de todo o homicídio envolver sempre um motivo fútil, desde que inexistisse motivo (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31-01-2012, processo n.º 894/09.4PBBRR.S1, in www.dgsi.pt).

No entanto, não só não se demonstrou que o comportamento do arguido tivesse sido motivado por ciúmes, como a ação motivada por repúdio à rejeição e, assim, por razões passionais, é a expressão de sentimentos profundos e complexos, determinados pela perda da pessoa a quem o agente se encontra afetivamente ligado, estado pois em causa um estado envolvendo emoções, reações e comportamentos muito diversos, que não podem, em si mesmo, qualificar-se como expressão de mera futilidade (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02-02-2022, processo n.º 74/21.0GBRMZ.S1, in www.dgsi.pt).

Deste modo, não se verificaram no caso as referidas circunstâncias qualificativas (cfr. art.º 132.º, n.º 2, al. e), do C.P.).

Tendo o arguido atuado sozinho, não poderá considerar-se verificada a circunstância qualificativa de ter praticado o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas (cfr. art.º 132.º, n.º 2, al. h), 1.ª parte, do C.P.).

Utilizar meio particularmente perigoso é servir-se para matar de um instrumento, de um método ou de um processo que dificultem significativamente a defesa da vítima e que criem ou sejam suscetíveis de criar perigo de lesão de outros bens jurídicos importantes. Ora, a generalidade dos meios usados para matar são perigosos e mesmo muito perigosos. Contudo, exigindo a lei que eles sejam particularmente perigosos, é necessário que o meio utilizado revele uma perigosidade muito superior à normal dos meios usados para matar, sendo indispensável determinar, com particular exigência e severidade, se da natureza do meio utilizado, e não já de quaisquer outras circunstâncias acompanhantes, resulta já uma especial censurabilidade ou perversidade do agente (cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo/BRANDÃO, Nuno, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, págs. 67 e 68).

Assim, terá de ser usado um instrumento invulgarmente perigoso, que, pelas suas características, se traduza num perigo acentuado, qualitativamente superior ao perigo inerente a qualquer meio usado para causar a morte de outrem, acarretando dificuldades acrescidas para a defesa da vítima e que, além disso, constitui perigo para outros bens jurídicos pessoais (cfr. Acórdão do Supremo tribunal de Justiça, de 23-02-2012, processo n.º 123/11.0JAAVR.S1, in www.dgsi.pt).

Nessa perspetiva, embora perigosos, não são particularmente perigosos, no sentido, exposto as facas ou vulgares instrumentos contundentes, instrumentos normalmente utilizados para matar (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11-01-2018, processo n.º 89/14.5SHLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt).

Crimes de perigo são os constantes dos arts. 272.º a 286.º do C.P., sendo certo que a ligação entre este exemplo-padrão e o tipo de culpa agravado deve fazer-se através da falta de escrúpulo em princípio revelada pela utilização de um meio adequado à criação ou produção de um perigo comum.

No presente caso, não foi utilizado meio que se traduzisse na prática de um crime desse género.

Deste modo, não se verificaram no caso as referidas circunstâncias qualificativas (cfr. art.º 132.º, n.º 2, al. h), do C.P.).

Nas circunstâncias demonstradas, ao prever e desejar a morte daquela BB, com quem tinha mantido uma relação de namoro, decidindo-se pela prática dos factos adequados a provocá-la, o arguido agiu com dolo direto (cfr. art.º 14.º, n 1, do C.P.), demonstrando uma atitude que, sendo contrária relativamente ao dever ser jurídico-penal, já que podia e devia ter agido de outro modo, se pauta por uma maior desconformidade com tal dever-ser do que aquela que está subjacente à prática do crime de homicídio simples.

Contudo, a morte da referida BB não ocorreu, pelo que o crime de homicídio qualificado não chegou a consumar-se (cfr. art.º 22.º, n.º 1, do C.P.), embora tenham sido praticadas condutas idóneas a produzir a morte daquela (cfr. art.º 22.º, n.º 2, al. b), do C.P.) e, assim, o resultado típico do crime de homicídio qualificado, estando-se, pois, no domínio da tentativa.

Ora, o arguido possuía exclusivamente o domínio da ação, na medida em que o mesmo realizou ele próprio a ação típica, tomando assim a execução nas suas próprias mãos, de tal modo que dele dependeu decisivamente o se e o como da realização típica, pelo que se constituiu como autor imediato (cfr. primeira alternativa do art.º 26.º do C.P.).

Assim, ao arguido é objetiva e subjetivamente imputável a prática, em autoria imediata e sob a forma tentada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 22.º, n.º 1, n.º 2, al. b), 23.º, n.º 1, 26.º, 131.º, e 132.º, n.º 1, e n.º 2, al. b), do C.P.

ESCOLHA E MEDIDA DA SANÇÃO:

O crime de homicídio qualificado, quando consumado, é punido com uma pena de 12 a 25 anos de prisão (cfr. art.º 132.º, n.º 2, do C.P.), sendo que, no caso da tentativa, o limite mínimo é reduzido a 1/5 e o limite máximo de 1/3 (cfr. art.º 73.º, n.º 1, als. a) e b), do C.P.).

Desta forma, o crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 22.º, n.º 1, n.º 2, al. b), 23.º, n.º 1, n.º 2, 73.º, n.º 1, als. a) e b), 131.º, e 132.º, n.º 1, e n.º 2, al. b), do C.P., é punido com uma pena de 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses de prisão.

A determinação da medida da pena tem como critérios a culpa do agente e as exigências de prevenção, sendo a função desempenhada por cada um destes critérios definida de acordo com a chamada teoria da moldura da prevenção ou da defesa do ordenamento jurídico (cfr. art.º 71.º, n.º 1, do C.P. e ANTUNES, Maria João, in Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2013, pág. 41 e segs.).

Deste modo, a prevenção geral de integração está incumbida de fornecer o limite mínimo, que tem como fasquia superior o ponto ótimo de proteção dos bens jurídicos e inferior o ponto abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr em causa a sua função tutelar (cfr. art.º 40.º, n.º 1, do C.P.).

Por seu turno, a culpa, entendida em sentido material e referida à personalidade do agente expressa no facto, surge como limite inultrapassável de toda e qualquer consideração preventiva (cfr. art.º 40.º, n.º 2, do C.P.).

Ora, dentro desses limites cabe à prevenção especial a determinação da medida concreta da pena, sendo de atender à socialização do agente.

Assim, na determinação da medida da pena, o tribunal encontra-se vinculado à observância de três proposições político-criminais:

- O direito penal é um direito de proteção de bens jurídicos;

- A culpa é tão-só limite da pena, mas não seu fundamento; e

- A socialização é a finalidade da aplicação da pena (cfr. RODRIGUES, Anabela Miranda, in “Medida da pena de prisão – desafios na era da inteligência artificial”, Revista de Legislação e Jurisprudência, n.º 4021, Ano 149.º, março-abril de 2020, pág. 260).

Assim, importa ter em conta, dentro dos limites abstratos definidos pela lei, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, deponham a favor ou contra o arguido, na medida em que se mostrem relevantes para a culpa ou para exigências preventivas.

São elevadíssimas as exigências de prevenção geral face ao grande e crescente impacto na comunidade dos crimes que envolvem violência contra pessoas com quem se mantém ou manteve uma relação de namoro em virtude da consciencialização comunitária de tais fenómenos e da ressonância fortemente negativa que adquiriram. Saliente-se que a criminalidade em causa, lesiva do bem mais essencial, é geradora de alarme social e repúdio geral, face à enorme intranquilidade que gera no tecido social, sendo, pois, muito elevadas as exigências de reafirmação da norma violada. A estabilização contrafática das expectativas comunitárias na afirmação do direito reclama uma forte reação do sistema formal de administração de justiça, traduzida na aplicação de penas capazes de restabelecer a paz jurídica abalada pelos crimes e de assegurar a confiança da comunidade na prevalência do direito, pelo que se impõem penas com efeito dissuasor.

O arguido agiu com a modalidade mais intensa de dolo, que se mostra direto, pelo que, sendo a forma mais gravosa de dolo, representa maior desvalor.

Uma outra circunstância qualificativa do crime de homicídio reside no facto de o agente ter agido com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregues ou ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas.

Na verdade, o facto de o agente agir com firmeza, tenacidade, irrevogabilidade de uma resolução tomada, denotando uma reflexão sobre os meios empregados, que precede ou acompanha a execução dos factos, ou persistindo na intenção de matar durante um apreciável lapso de tempo é reveladora não só de uma forte intensidade da vontade criminosa, como também de acrescida perigosidade (cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo/BRANDÃO, Nuno, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, pág. 70 e 71).

Ora, dos factos demonstrados resulta que o arguido, dias antes e não no próprio dia, de forma refletida e ponderada, cuidadosamente planeou a sua atuação em ordem a assegurar a morte de BB sem falência, escolhendo os instrumentos a utilizar, o local para atuar, separado por várias dezenas de quilómetros da sua residência, e tomando opção pelas demais circunstâncias envolventes, o que executou de forma fria e calculada. Tal denota uma forte intensidade da vontade criminosa, e acrescida perigosidade, dado que o arguido teve, ao longo desses dias e na própria noite em causa, diversas oportunidades, que não aproveitou, para se deixar penetrar pelos contra-motivos sociais e ético-jurídicos de forma a desistir do seu desígnio, revelando uma personalidade marcadamente mais desviada dos padrões supostos pela ordem jurídica. Assim, a força da vontade criminosa foi de tal maneira intensa que o arguido executou o seu plano sem qualquer hesitação, que só não teve um resultado letal por motivos a si alheios, pelo que se verificam as referidas circunstâncias qualificativas que terão que ser valoradas em sede de medida da pena (cfr. al. j), do n.º 2, do art.º 132.º, do C.P.).

Milita ainda contra o arguido o modo de execução do crime que é muito grave e denota elevada ilicitude, tendo em conta, desde logo, o facto de ter praticado os factos de noite e no prédio onde residia a vítima, o que necessariamente lhe conferia uma falsa sensação de segurança, o numero de instrumentos cortoperfurantes de que se socorreu, o número de golpes desferidos e as zonas atingidas, bem como a já considerável violência física que foi necessário empregar, o sofrimento físico, a angústia, o desespero e o pânico que o arguido forçosamente causou à vítima, sendo que não só foram graves as lesões físicas que lhe foram causadas, como daí resultaram consequências permanentes.

O arguido agiu por repúdio à decisão da vítima de pôr termo à relação de namoro que os unia. Contudo, tendo o arguido praticado os factos quando estavam quase volvidos dois meses sobre a data em que tal ocorreu, o cometimento dos factos por tal motivo releva uma personalidade possessiva e, assim, altamente desvaliosa, o que terá que militar contra si.

Milita a seu favor a sua idade e a sua boa integração, bem como o facto de lhe não serem conhecidos antecedentes criminais.

O arguido apenas admitiu aquilo que não podia negar e, ainda assim, sempre minimizando a sua conduta e imputando responsabilidade à vítima por atos por si desencadeados e/ou apenas a si imputáveis. Procurou convencer que nem sequer representou como possível que do facto pudesse advir a morte de BB, resultado que referiu nunca ter desejado. Não obstante, declarou-se arrependido.

O C.P. inclui o arrependimento sincero nas circunstâncias modificativas atenuantes gerais (cfr. art.º 72.º, n.º 2, al. c), do C.P.). Contudo, conforme resulta da lei penal, o arrependimento sincero tem que ser objetivado em atos dele demonstrativos (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 4 de junho de 1992, processo n.º 42510), não bastando para tal sequer uma mera declaração de arrependimento (cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 24-11-1993, processo n.º 45742, de 09-12-1993, processo n.º 045255, de 16-02-2000, processo n.º 99P1189, de 06-06-2007, processo n.º 07P1603).

É certo que a confissão pode constituir um dos elementos objetivos do arrependimento (cfr. CORREIA, Eduardo, in Direito Criminal, Tomo II, pág. 329), embora, mesmo no caso da confissão e colaboração do arguido não resulta natural e irrecusavelmente o arrependimento (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21-06-2007, processo n.º 07P2042, in www.dgsi.pt).

Contudo, no presente caso, face ao exposto, é evidente que a admissão parcial que fez dos factos que ficaram demonstrados não ocorreu com a plenitude que seria exigível para se poder afirmar que houve interiorização do desvalor da conduta, pelo que não se vislumbra qualquer facto concreto e objetivo demonstrativo de um arrependimento sincero.

Tudo ponderado, afigura-se adequada às circunstâncias do caso a pena de 8 anos de prisão.

De acordo com a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos aplicadas por ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19-06-2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto (cfr. arts. 2.º, n.º 1, e 3.º, n.º 1, da dita Lei). Acresce que, em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única (cfr. art.º 3.º, n.º 4, da dita Lei).

Contudo, foram elencadas exceções que afastam o perdão de penas (cfr. art.º 7.º da dita Lei). O elenco das exceções é feito em função dos crimes em causa (cfr. art.º 7.º, n.º 1, als. a) a f), da dita Lei) ou, independentemente dos concretos crimes, das respetivas vítimas (cfr. art.º 7.º, n.º 1, al. g), e n.º 2), da dita lei) de determinadas qualidades ou características do agente (cfr. art.º 7.º, n.º 1, n.º 1, als. h), k) e l), da dita Lei), da pena aplicada (cfr. art.º 7.º, n.º 1, al. i), da dita Lei) ou da verificação de determinada agravante geral (cfr. art.º 7.º, n.º 1, al. j), da dita Lei).

Os diversos números e alíneas referem-se a tipos legais de crimes, estando abrangidas as diversas formas do seu cometimento e, assim, também a tentativa.

No presente caso, foi aplicada pena de prisão não superior a 8 anos, por crime praticado antes das 00:00 horas de 19-06-2023, quando o agente tinha entre 16 e 30 anos de idade.

Contudo, o crime em causa determina a exclusão do referido perdão (cfr. art.º 7.º, n.º 1, al. a)-i, da dita Lei).

Deste modo, o arguido não beneficia do perdão de penas estabelecido pela Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.

DO DIREITO À INDEMNIZAÇÃO:

Segundo o disposto no art.º 82.º-A, n.º 1, do C.P.P. “não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos arts. 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de proteção da vítima o imponham”.

Acrescenta o n.º 2 do citado preceito legal que “no caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório”.

Por fim, dispõe o n.º 3 do mesmo artigo que “a quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em ação que venha a conhecer de pedido civil de indemnização”.

Ora, de acordo com o n.º 1, do art.º 16.º do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro, “à vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão relativa a indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável”, acrescentando o n.º 2 que “há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal em relação a vítimas especialmente vulneráveis, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser”.

Ora, de acordo com o disposto no art.º 67.º-A, n.º 1, als. a) e b), do C.P.P. são vítimas especialmente vulneráveis as pessoas singulares que sofreram um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou um dano patrimonial, diretamente causado por ação ou omissão, no âmbito da prática de um crime sua vítimas cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social.

Acresce que as vítimas de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis (cfr. art.º 67.º-A, n.º 3, do C.P.P.).

Ora, de acordo com o disposto no art.º 1.º, al. j), do C.P.P. por criminalidade violenta considera-se as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos e, de acordo com o disposto no art.º 1.º, al. l), do C.P.P., criminalidade especialmente violenta as condutas previstas na alínea anterior puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 8 anos.

No presente caso, BB nunca se opôs expressamente a que lhe fosse arbitrada quantia reparadora e face aos danos e consequências causados julga-se adequado que seja a mesma arbitrada.

Na verdade, perscrutando a matéria considerada provada dúvidas não existem de que o arguido praticou por ação factos que constituem um crime que é punido com pena de prisão de máximo igual ou superior a 8 anos de prisão. Para além disso, todos esses factos cometidos foram voluntários, já que eram passíveis de controlo por parte do mesmo, sendo antijurídicos ou contrários ao direito, porque violadores de direitos individuais de outrem e, assim, ilícitos.

Ora, uma vez que o arguido podia e devia ter agido de outra forma, a sua conduta é ético-juridicamente censurável e, assim, culposa, tendo atuado com dolo direto, tendo a sua conduta causado, face às várias condutas praticadas e motivação, de forma grave, danos de natureza não patrimonial suficientemente graves para justificarem a fixação de uma compensação (cfr. art.º 496.º do C.C.) a BB, vítima especialmente vulnerável.

Deste modo, atendendo às consequências da conduta do arguido, ao contexto em causa e às condições socioeconómicas do arguido e daquela BB, considera-se ajustada para compensar dos danos não patrimoniais que sofreu em consequência da conduta do arguido a quantia de 30 000 EUR.”

2. Fundamentação

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas respectivas conclusões (art. 412.º, n.º 1, do CPP), as questões a apreciar respeitam a:

(a) Insuficiência da matéria de facto provada para a decisão (vício do art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP) decorrente da omissão de diligência probatória essencial (perícia psiquiátrica);

(b) Nulidade do acórdão por omissão de pronúncia (arts. 379.º, n.º 1, al. c) e 410.º, n.º 3, do CPP) consistente na falta de ponderação da aplicação do art. 104.º, n.º 1 do CP;

(c) Erro de subsunção por enquadramento indevido dos factos provados no tipo qualificado;

(d) Medida da pena de prisão e sua redução para medida compatível com a aplicação da pena de substituição;

(e) Montante indemnizatório e redução do quantum da indemnização arbitrada a título de danos não patrimoniais.

2.(a) Da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, decorrente da omissão de diligência probatória essencial (perícia psiquiátrica)

O recorrente começa por invocar o vício do art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP), de que afirma padecer o acórdão, o qual decorreria da circunstância de o tribunal ter omitido a realização de “perícia psiquiátrica legalmente imposta”.

Argumenta que do próprio texto do acórdão resulta que em audiência se discutiu se o arguido sofria de uma depressão e se actuou fortemente afectado por instabilidade emocional (facto não provado n.º 16); que posteriormente aos factos passou a ser acompanhado por médico psiquiatra; que padecia de depressão, que é uma anomalia psíquica; que tendo sido fundadamente suscitada na fase de julgamento a verificação de anomalia psíquica se impunha a realização de perícia, legalmente exigível por força do art. 351.º, n.ºs 1 e 2, do CPP; que a falta de realização de perícia psiquiátrica ao arguido consubstancia a preterição de uma diligência indispensável à descoberta da verdade e a omissão da obrigação de averiguação dos factos, preterição que deverá ser resolvida através do reenvio do processo para novo julgamento, em virtude do vício do art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP.

O Ministério Público, na 1.ª instância e no Supremo, pronunciou-se desenvolvidamente no sentido da inexistência de vícios do acórdão.

Como primeira nota, recorda-se que do modelo do recurso-remédio consagrado no Código de Processo Penal resulta que os recursos são sempre e só remédios jurídicos, que visam detectar e corrigir erros de julgamento e de decisão; e não são a renovação de fases processuais anteriores, mormente a repetição ou a continuação da audiência de julgamento.

Assim, por um lado, o recurso não serve para ensaiar, e não pode viabilizar, vias de defesa diversas das apresentadas em julgamento, e, pelo outro, não cumpre encarar o recurso como se de uma (nova) contestação se tratasse, já que o momento da contestação e do julgamento findou.

Em suma, não cumpre agora examinar o acórdão à luz de circunstâncias novas, diversas ou a acrescer àquelas que estiveram em discussão na audiência de julgamento, sobre as quais o arguido se pôde pronunciar, e seguramente não foi impedido de discutir ou ali trazer à discussão.

Em julgamento, no mais amplo espaço de produção e de debate das provas, em contraditório, foi assegurada ao arguido a oportunidade do exercício pleno da defesa, de modo a viabilizar a mais correcta decisão em 1.ª instância. Pois o julgamento em 1.ª instância é o momento ideal do processo para averiguação e descrição da acção humana penalmente relevante, e é no julgamento que melhor se discute a causa penal, numa oportunidade que não se repetirá no processo.

Como segunda nota, regista-se que o arguido não recorreu da matéria de facto pela via ampla ou alargada (art. 412.º, n.º 3, do CPP), o que podia ter feito, pelo que, não ocorrendo vício do art. 410.º, n.º 2 do CPP, a decisão sobre a matéria de facto será de considerar como definitivamente estabilizada.

Como terceira nota, lembra-se que “qualquer decisão (…) contém um efeito de vinculação processual” (in O Caso Julgado Parcial, Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção num Processo de Estrutura Acusatória, 2002, p 144). E “os mesmos conceitos podem ser utilizados para além da categoria do procedimento, portanto, para além do exercício interno da função jurisdicional, em relação aos poderes dos sujeitos processuais (das “partes”, utilizando uma expressão do processo civil) durante o processo.” (itálico nosso)

Nesta perspectiva, já não da mera “dimensão do procedimento”, mas da dimensão “do processo”, abarca-se “o modo e a forma por que o procedimento jurisdicional deve progredir”, ou seja, “o modo como os sujeitos processuais devem fazer actuar e fazer progredir o procedimento jurisdicional. Neste âmbito, também as partes estão sujeitas aos mesmos princípios que vimos estarem subjacentes ao exercício da função jurisdicional” (loc. cit. p. 148, itálico nosso).

Damião da Cunha fala numa congruência entre o exercício da função jurisdicional e a actuação dos sujeitos processuais, no sentido de que “cada resultado «adquirido», legítimo e incontestado, não só vincularia o tribunal, como vincularia, outrossim, os restantes sujeitos processuais” (loc. cit., p. 148/9).

Assim, cumpre sindicar o acórdão também na vertente da atenção dispensada pelo tribunal de julgamento à contestação e a toda a defesa efectivamente exercida em julgamento, no asseguramento total do processo justo e equitativo, centrando agora a observação na detecção do vício invocado, de acordo com as soluções que à partida se perspectivavam e deviam ter perspectivado, em julgamento.

Como resulta da literalidade da norma e é pacificamente entendido pela jurisprudência, os vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP são os que se detectam no próprio texto da decisão, “por si só ou conjugado com as regras da experiência comum”. O leitor deve retirar da análise do texto, sem recurso a outros elementos do processo, a detecção de qualquer uma das três anomalias previstas na norma: a insuficiência da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão, e o erro notório na apreciação da prova.

O vício invocado, da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, ocorre quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a decisão de direito e existe sempre que o tribunal deixa de investigar o que devia e podia, tornando a matéria de facto insusceptível de adequada subsunção jurídica, concluindo-se pela existência de factos não apurados que seriam relevantes para a decisão da causa. Mas da leitura do acórdão resulta claro que inexiste o vício invocado (ou qualquer um dos demais previstos no art. 410.º do CPP).

Na verdade, do acórdão resulta que a decisão se firmou em resultado de total respeito pelos princípios do contraditório (art. 327.º do CPP e art. 32.º, n.º 5 CRP) e, adite-se, da investigação. Todos os meios de prova apresentados no decurso da audiência foram submetidos ao escrutínio e discussão, abrangendo a contraditoriedade a produção e a valoração de todas as provas. Acusação e defesa puderam oferecer as suas provas, controlar as provas contra si oferecidas e discutir o valor e o resultado de todas elas.

Assim, o arguido ofereceu as provas que quis, no momento processual próprio, as quais foram produzidas em julgamento e aí amplamente debatidas; interveio irrestritamente na discussão das provas indicadas pelos demais sujeitos processuais; foi exaustivamente ouvido em declarações sobre toda a matéria objecto da acusação e sobre a sua condição e situação pessoal.

E sabendo-se que recai sobre o julgador o encargo de investigar e esclarecer oficiosamente o facto submetido a julgamento, não estando a actividade investigatória do tribunal limitada pela contribuição das partes (art. 340.º do CPP) a eventual violação do princípio da investigação sempre seria uma ilegalidade que poderia ser oficiosamente conhecida. Mas, em concreto, claramente não ocorre.

Na verdade, nem na contestação, nem em momento algum do julgamento, o arguido, sempre devidamente assistido pelo seu mandatário, requereu a realização de perícia psiquiátrica ou suscitou a questão da imputabilidade.

E no relatório psiquiátrico que o próprio juntou com a contestação pode ler-se: “ao longo deste acompanhamento tem tido uma evolução francamente positiva, com análise e reflexão acerca do seu percurso pessoal, social e académico, com melhoria em termos de humor, sem ideação suicida e/ou homicida e mostrando um grande arrependimento pelo sucedido”. Mais se afirma que “não apresenta antecedentes psiquiátricos familiares ou história pessoal de doença mental”. (itálicos nossos)

Este documento foi junto com a contestação, repete-se, não foi requerida perícia psiquiátrica, e o médico psiquiatra subscritor do documento foi ouvido em audiência de julgamento.

Daí que, justificadamente, o tribunal tenha considerado como provados todos os factos que interessam ao dolo (do tipo e da culpa). E tenha consignado nos factos não provados do acórdão que “15. O arguido sofresse então de uma depressão severa, que ignorava, que não foi tempestivamente diagnosticada e, portanto, não tratada, sendo que por força dela estava notoriamente perturbado, instável emocionalmente, com perturbação cognitiva e incapaz de qualquer premeditação séria e consciente ou de elaborar um plano consciente e premeditado (cfr. 27., 37., 38. e 64. da contestação)”.

Matéria de facto que, repete-se, o arguido não impugnou em recurso.

E toda a decisão sobre a matéria de facto se encontra em consonância com a sua justificação com base nas provas, como resulta designadamente do excerto seguinte do acórdão:

“Por fim, saliente-se que não foi apresentado qualquer meio de prova de acordo com o qual o arguido padecesse, à data, de uma qualquer anomalia psíquica. Do relatório médico (psiquiatria) de 07-06-2023 resulta até que o arguido não padece de qualquer história de doença mental. Por outro lado, deste relatório, não resulta que o arguido padecesse à data de uma “depressão severa”. É certo que aí consta que o arguido, após o termo da relação de namoro com BB, teria desenvolvido sintomatologia ansiosa e depressiva, da qual se destaca ideação suicida e sentimentos de culpa. Contudo, conforme foi salientado por CC, subscritor do dito relatório, este foi baseado unicamente no que lhe foi transmitido pelo próprio arguido, que recorreu àquele só em janeiro de 2023 após a rutura da relação de namoro com BB, que ocorreu em início de novembro de 2022, depois dos factos aqui em causa terem ocorrido, sendo que estes tiveram lugar em 23-12-2022, bem como após ser detido, submetido a interrogatório judicial e confinado à sua habitação e, assim, na pendência deste processo. Para além de ser, assim, emitido a pedido do arguido, o certo é que as premissas em que se baseiam nem sequer foram confirmadas pelo arguido em audiência de julgamento. Na verdade, o mesmo afirmou então que só no dia 23-12-2022, após ter abandonado o prédio onde residia BB, é que teria começado a pensar matar-se, negando ter feito alguns dos atos que BB lhe imputou e que a levaram a terminar a relação de namoro. Por fim, como é evidente, não se trata de uma perícia sobre o estado psíquico do arguido.

Seja como for, o arguido, no que relato que sempre fez do que aconteceu ao longo deste processo, não apresentou qualquer sinal de possuir, à data dos factos, qualquer limitação na capacidade de distinguir o bem do mal, o certo do errado e o lícito do ilícito, ou qualquer limitação na capacidade de se determinar de acordo com essa avaliação.”

Neste quadro de decisão, e tendo em conta os parâmetros enunciados nas três notas iniciais, resta consignar a ausência do invocado vício, não se detectando violação dos princípios do contraditório e da investigação, tendo o tribunal apurado tudo o que podia e devia, dotando o acórdão de toda a matéria de facto pertinente e necessária para a decisão, de acordo com as soluções jurídicas que se perspectivaram e deviam ter perspectivado em julgamento.

Uma nota final sobre a jurisprudência invocada no recurso a este propósito. O citado acórdão do TRE de 22/11/2018, rel. João Amaro, parte de premissa diversa da que ocorre aqui, como resulta da simples leitura do sumário - “I - A falta de realização da perícia psiquiátrica ao arguido, por este requerida, consubstancia a preterição de uma diligência indispensável à descoberta da verdade (…)”. E da fundamentação resulta que “o tribunal a quo, ao indeferir a perícia médico-psiquiátrica oportunamente por si requerida, cometeu a nulidade prevista no artigo 120º, nº 2, al. d), do C. P. Penal, sendo certo que tal nulidade foi, logo, suscitada na audiência de discussão e julgamento”, e que “o arguido, no decurso da audiência de discussão e julgamento, requereu a realização de perícia médico-psiquiátrica, por, em seu entender, se suscitar, fundadamente, a questão da sua inimputabilidade (ou da sua imputabilidade diminuída)”.

Também do acórdão do STJ de 19.04.2018, rel. Helena Moniz, resulta a ausência de homologia entre as situações apreciadas nos dois processos, já que o Supremo conclui ali pela existência de vício do art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP, constatando que “na matéria de facto provada, nada se refere quanto a este ponto e que também não existe matéria de facto não provada no sentido de (…) e também não há na fundamentação da matéria de facto qualquer descrição de um possível relatório pericial sobre o estado da arguida, entende-se que não existe matéria de facto provada suficiente para que possamos concluir pela ocorrência (ou não) de um crime de infanticídio”. Ou seja, a matéria em causa não foi sequer objecto de apreciação e discussão, estando totalmente omissa da decisão sobre a matéria de facto do acórdão. O que, como se viu, não sucede aqui.

2. (b) Da nulidade do acórdão por omissão de pronúncia (arts. 379.º, n.º 1, al. c) e 410.º, n.º 3, do CPP) e da ponderação da aplicação do art. 104.º, n.º 1 do CP

Insiste o recorrente pela necessidade de perícia psiquiátrica, imprescindível agora à luz do determinado pelo art. 104.º, n.º 1, do CP.

Argumenta que o acórdão revela que o arguido poderia padecer à data dos factos de anomalia psíquica com ideação suicida, que após o crime passou a ser regularmente acompanhado por médico psiquiatra, e que se impunha que se ponderasse uma futura execução da pena de prisão aplicada internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis, nos termos do mencionado art. 104.º, n.º 1 do CP.

Conclui que a falta de ponderação da aplicação do regime instituído no art. 104.º, n.º 1, do CP implica a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia dos arts. 379.º, n.º 1, al. c) e 410.º, n.º 3 do CPP .

Como o Senhor Procurador-geral Adjunto bem nota no parecer, a invocação da nulidade “só se compreende no mesmo contexto da verdade alternativa a que o recorrente apela”.

E é igualmente de acompanhar o Ministério Público quando prossegue que “significando a omissão de pronúncia – não os argumentos invocados pelo recorrente, que não vinculam – a ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre questões que a lei imponha que sobre elas o juiz tome posição expressa, quer por lhe terem sido submetidas pelos sujeitos processuais interessados, quer as que sejam conhecimento oficioso e independentes de alegação, já vimos que não só a questão da (in)capacidade do arguido para se determinar livremente e avaliar criticamente os seus atos e respetivas consequência jurídico–penais não se colocava de modo fundado e relevante para determinar a realização da perícia, que o recorrente viu omissa, como sobre ela se pronunciou, de modo expresso e categórico, o tribunal a quo, quer ao dar por não provados os factos que poderiam justificar a invocação dessa omissão, quer ao ter fundamentado por que os deu por não provados.

Tanto basta para que o recurso improceda nesta parte, não se encontrando razão, fundamento ou remição para enunciar com nova roupagem semântica o que foi decidido e os termos em que o foi, pois não há discordância que possa relevar e que já não esteja traduzida na fundamentação da decisão recorrida, que é a suficiente e adequada.”

Que acrescentar? Tudo o que se disse no ponto anterior, mutatis mutandis vale também aqui.

Da matéria de facto provada do acórdão, e de toda decisão na sua globalidade, nada resulta no sentido de o tribunal ter impropriamente descurado ou indevidamente omitido a apreciação do problema ora nomeado.

A norma em causa pressupunha uma base factual que não resultou demonstrada. Ou seja, pressupunha a comprovação de que o arguido “por virtude de anomalia psíquica de que sofria já ao tempo do crime, o regime dos estabelecimentos comuns lhe será prejudicial, ou que ele perturbará seriamente esse regime”, caso em que, então sim, o tribunal “ordena o seu internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena.”

E também mais uma vez a jurisprudência citada no recurso não consente a transposição para o caso presente, por ausência de homologia na base factual que a sustentou.

Na verdade, o acórdão do STJ de 23.03.2017, rel. Helena Moniz, incidiu sobre matéria de facto provada que incluía a seguinte: “à altura dos factos o arguido apresentava um quadro mental de Psicose devida a Álcool e Cannabis (…) a perturbação mental é grave porque distorce a avaliação da realidade, interna e externa, e induz comportamentos de acordo com essa avaliação”. (itálicos nossos)

E ali se observou que, nesse quadro, o acórdão recorrido era omisso quanto à possibilidade (ou não) de aplicação do disposto no art. 104.º, do CP , análise que se considerou premente tendo em conta que fora dado como provado que o “arguido encontra-se em regime de segurança máxima no estabelecimento Prisional de ..., sendo que veio transferido do Hospital ..., por actos cometidos contra a sua pessoa, ocorrência durante a sua permanência no estabelecimento prisional de Lisboa, onde nesse contexto ocorreram actos de gravidade para com terceiro”, concluindo-se ser de “averiguar se o internamento em estabelecimento distinto dos estabelecimentos comuns não será de molde a evitar novas ocorrências, contra si e contra terceiros, como as que já se verificaram”. (itálicos nossos)

No caso sub judice, pelo contrário, o acórdão revela que toda a matéria de facto relevante para a decisão foi discutida em julgamento, ela integra os factos provados e os não provados, e da matéria de facto provada nada resulta no sentido de se mostrar justificada a ponderação da aplicação do art. 104.º, n.º 1, do CP.

2. (c) Do erro de subsunção por enquadramento dos factos no tipo qualificado e da qualificação do homicídio com base na relação de namoro

O arguido encontra-se condenado como autor de um crime de homicídio qualificado tentado dos arts. 131.º, n.º 1 e 132.º, n.º 1, n.º 2, al. b), do CP.

O crime de homicídio (art.º 131.º do CP) será qualificado quando a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade (art.º 132.º, n.º 1, do CP), sendo suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade, ao que ora releva, a circunstância de o agente praticar o facto contra pessoa com quem mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro (art. 132.º, n.º 2, al. b), do CP).

O arguido impugna o enquadramento dos factos provados no tipo qualificado, argumentando haver “consenso doutrinal e jurisprudencial em torno da ideia de que o que justifica a qualificação do homicídio de um cônjuge, parceiro ou namorado sobre o outro é a quebra do especial dever de solidariedade que os une, mas já não é pacífico que tais especiais deveres persistam depois do fim da relação conjugal ou análoga”; que a “atribuição ao crime de homicídio qualificado da lógica político-criminal do crime de violência doméstica, operante no âmbito da ilicitude-típica e não da culpa, impulsionada pelo legislador em 2018, exige particular cautela na avaliação da especial censurabilidade ou perversidade características da culpa agravada própria daquele quando se pondere proceder à qualificação somente com base na existência de uma pretérita relação de namoro”, “não se podendo dela retirar deveres acrescidos entre os sujeitos (ativo e passivo) do homicídio que transcendam o normal e geral dever de respeito pela vida do outro que emana do crime de homicídio (art. 131.º do CP); que a justificação que o Tribunal avançou para, em concreto, sustentar uma qualificação do homicídio suportada numa anterior relação de namoro assentou numa transposição do dever de solidariedade entre cônjuges (ou parceiros actuais) para o plano das ex-relações de namoro, sem amparo na valoração social que a comunidade atribui a cada um dos destes tipos de relacionamento; que “o Tribunal não logrou justificar a razão pela qual o simples facto de arguido e ofendida terem sido namorados por um curto período de cinco meses é motivo bastante para que se accione a cláusula de especial censurabilidade ou perversidade típica do homicídio qualificado”.

Conclui peticionando a “recondução da factualidade provada ao crime tentado de homicídio simples (art. 131.º do CP)”.

O Ministério Público, na resposta ao recurso e no parecer, pronunciou-se, uma vez mais, no sentido da confirmação do acórdão.

No acórdão justificou-se o enquadramento jurídico impugnado, do modo seguinte:

“(…) resulta da matéria de facto provada que foi praticado pelo arguido uma conduta absolutamente idónea a causar a morte de BB, pessoa com quem tinha mantido uma relação de namoro, resultado típico do crime de homicídio, seja ele simples ou qualificado.

Uma relação de namoro é uma relação sentimental, afetiva, íntima e tendencialmente estável ou duradoura, que ultrapassa a mera amizade ou uma relação fortuita, embora não se exija, todavia, um projeto futuro de vida em comum, na medida em que as relações de namoro não têm, em princípio, a pretensão de preencher todas as características associadas à conjugalidade, como seja o futuro de vida em comum (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 26-07-2018, processo n.º 9/17.5GBABF.E1, in www.dgsi.pt).

O efeito qualificador conferido à circunstância de a vítima manter ou ter mantido uma relação de namoro com o agente, decorre de uma exigência intensificada de respeito pela vida do outro com quem se manteve uma relação de proximidade existencial e afetiva de relevo. A morte dolosa da vítima que mantinha ou manteve uma relação de namoro com o agente comporta também, em regra, uma quebra radical da solidariedade que é, em princípio, devida pelo agente à vítima, o que normalmente será suscetível de indiciar uma especial perversidade, fundada num pesado desvalor de atitude revelado por esta perversão da relação dialógica do “ser-com-o-outro” e do “ser-para-o-outro” (cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo/BRANDÃO, Nuno, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, pág. 59).

Ora, no presente caso, pela imagem global do facto praticado, tendo o arguido mantido com BB uma relação de namoro durante 5 meses e que havia terminado há quase dois meses, estando os factos praticados intimamente ligados à relação que os uniu, não tendo presidido à conduta do arguido razões de solidariedade ou de compaixão, nem se tendo demonstrado que a vítima tudo fez para desmerecer a solidariedade do arguido, sujeitando-a com regularidade a maus tratos ou humilhações, não foi derrogada a força qualificadora de tal exemplo-padrão.

Desta forma verifica-se a circunstância qualificativa de o agente ter mantido com a vítima uma relação de namoro (cfr. 132.º, n.º 2, al. b), do CP).”

A decisão mostra-se acertada e a fundamentação do acórdão é de acompanhar.

Na verdade, a qualificação afirmada no acórdão assentou em circunstâncias encontradas nos factos provados que integram, positivamente, a cláusula geral de agravação constante do n.º 1 do art. 132.º do CP e, simultaneamente, o exemplo-padrão previstos na al. b) do n.º 2 do art. 132.º do CP. O que traduz o reconhecimento da especial censurabilidade ou perversidade do agente pela positiva, a par da identificação da alínea do n.º 2 do art. 132.º.

Existe controvérsia sobre o fundamento da revelação da especial censurabilidade ou perversidade, que, segundo uns, assentará no tipo de ilícito e, de acordo com outros, no tipo de culpa. Figueiredo Dias pronuncia-se no sentido de os exemplos-padrão constituírem elementos do tipo de culpa, mas concluindo não haver “objecções de princípio a que se defenda que a agravação da culpa é em todos os casos suportada por (ou se reflecte necessariamente em) uma correspondente agravação (gradual-quantitativa) do conteúdo de ilícito” (Comentário Conimbricense do Código Penal, I, p. 27).

Já Fernanda Palma distingue nas circunstâncias do n.º 2 do art. 132º duas espécies: “circunstâncias relativas ao modo de ser objectivo da acção e circunstâncias relativas à implicação pessoal do agente da acção” e conclui que, também nesta segunda espécie de circunstâncias, “embora o íntimo do agente surja em primeiro plano como objecto de valoração, também o desvalor por elas indiciado é directamente desvalor da acção”.

Para Fernanda Palma, o conjunto das circunstâncias previstas no n.º 2 do art. 132.º é, todo ele, definidor de um grau mais grave de ilícito. Mas, no sentido em que essas circunstâncias terão que “pesar na censurabilidade ou perversidade do agente” é que se podem considerar como relativas à culpa, sendo a gravidade da culpa o fundamento da agravação (loc. cit. pp. 43-45).

A especial censurabilidade e perversidade do arguido, retirada dos factos e revelada nos factos que cometeu, resulta da circunstância de ter atentado contra o bem jurídico vida visando matar pessoa que nele especialmente confiou. Pessoa com quem manteve essa ligação existencial especial, própria do namoro, como resulta dos factos provados.

O arguido visou tirar a vida da pessoa com quem manteve durante cinco meses uma relação afectiva de proximidade especial, relação que em concreto deve relevar e releva para o tipo qualificador. Pois o legislador equiparou a relação de namoro actual à pretérita, não distinguindo os níveis de protecção.

Aliás, demonstra a experiência que essa necessidade de protecção se continua a justificar uma vez finda a relação, adensando-se até após o termo da relação afectiva.

Também aqui resultou provado, além do mais, que a vítima “pôs termo à relação por o arguido lhe ter controlado duas vezes o seu telemóvel e em outubro de 2022 a ter perseguido” e que “o termo do relacionamento não foi bem aceite pelo arguido que, por várias vezes insistiu junto de BB pelo reatar da relação, o que foi sempre recusado por esta, e perseguiu-a”.

No quadro legal e constitucional, sendo este que releva, mas também no quadro das percepções sociais a que o recorrente faz referência, não tem sentido a argumentação de que a qualificativa não deverá operar uma vez finda a relação de namoro. Ou, pelo menos, a de que deveria impor-se um crivo mais exigente na avaliação da especial censurabilidade no caso das relações pretéritas.

A lei é clara ao estipular a agravação quando “o agente praticar o facto contra pessoa com quem mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro”, o que não dispensa´, é certo, a avaliação dos factos provados e a ponderação da qualificativa, sempre em concreto e como sempre sucede.

Numa sociedade democrática, livre, aberta e em evolução, carece de sentido uma pré-determinação de um conceito penal de namoro e cabe ao tribunal avaliar e perceber as situações e os episódios de vida que aprecia, decidindo casuisticamente do seu sentido e relevância normativos. Fazendo apelo ao bem jurídico que se quer proteger, aferindo se esse bem jurídico se encontra efectivamente lesado, se essa lesão é significante e em que grau de intensidade, a tudo procedendo tendo em conta o referente jurisprudencial e a reflexão doutrinária. Assim, e no caso, compete ao julgador diagnosticar se se está, ou não, em presença da “existência de um qualquer dever ou solidariedade adicionais susceptíveis de gerar uma reprovação acrescida para além daquela é que característica do crime de homicídio previsto no art. 131.º do CP”, utilizando a expressão do recorrente.

A exigência normativa de uma relação de namoro afasta, em princípio, os encontros amorosos pontuais e fortuitos, e, no reverso, deixará também de fora as relações estáveis e duradouras, mas não amorosas, como as relações de amizade (desenvolvido em Ana Barata Brito, “A relação de namoro como elemento do tipo de crime violência doméstica”, Estudos em Homenagem ao Juiz Conselheiro António Henriques Gaspar, Coimbra: Almedina, 2019, pp 43-54).

No caso presente ficou provado que a relação de namoro entre o arguido e a vítima perdurou por cinco meses, acrescendo que do recurso resulta também que o arguido não impugnou, nem de facto nem de direito, a qualidade e natureza da relação. Relação que, por tudo, é de considerar como sendo uma relação de namoro, no sentido que releva para o direito penal.

Questionou sim o arguido o enquadramento jurídico dos factos na qualificativa especial, apelando sobretudo à circunstância, também comprovada, do terminus da relação. Sucede que dessa invocada circunstância - o termo da relação -, pelas razões expostas, mas também porque a argumentação desenvolvida pelo recorrente se situou sobretudo no plano de iure condendo e não de iure condito - e é a este que o princípio da legalidade obriga a atender -, não resulta que o tribunal tenha incorrido em erro de subsunção.

Em suma, no acórdão objectivou-se e concretizou-se suficientemente o grau mais grave de ilícito, decorrente da comprovada circunstância que, em concreto, pesou realmente na censurabilidade ou perversidade do agente.

Justifica-se por tudo a agravação, sendo o acórdão de confirmar também nesta parte.

2. (d) Da medida da pena de prisão e da sua redução para medida compatível com a aplicação da pena de substituição

Pela autoria do crime de homicídio qualificado tentado dos arts. 131.º, n.º 1, 132.º, n.º 1, n.º 2, al. b), do CP encontra-se o arguido condenado na pena de 8 (oito) anos de prisão.

Defende em recurso que a pena aplicada “é excessiva e desajustada às necessidades preventivas e outra deve ser aplicada que permita a suspensão da sua execução”; que inexiste tendência para delinquir ou “carreira criminosa” que radique na personalidade do agente, tendo-se tratado de um acto isolado motivado por um contexto muito específico, constituindo uma ocorrência excepcional na vida do arguido, um jovem de 23 anos que não tem averbada qualquer condenação no seu registo criminal; que se encontra integrado no sistema de ensino superior, frequentando o curso de engenharia de ciências e computadores na Universidade do Porto, com um processo educativo desenvolvido unicamente junto da mãe; doente oncológica, com quem mantém uma forte vinculação afectiva, sendo o seu principal cuidador; que a pena é manifestamente excessiva sobretudo quando comparada com aquela que vem sendo a bitola firmada pela jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça.

O recorrente apela a algumas circunstâncias, constantes efectivamente dos factos pessoais provados, a que o tribunal deveria atender. Mas o tribunal atendeu efectivamente a tais circunstâncias, pois refere-se no acórdão que “milita a seu favor a sua idade e a sua boa integração, bem como o facto de lhe não serem conhecidos antecedentes criminais”.

Mais sucede que na fundamentação da pena do acórdão cumpria atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, depunham a favor ou contra o arguido.

Releiam-se as considerações desenvolvidas pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto no parecer, a propósito da determinação da medida da pena, já transcritas em 1. e que nos dispensamos de repetir. Elas são de acompanhar, na leitura correcta dos factos provados e no exame detalhado das consequências jurídicas a retirar realmente deles, em matéria de pena.

E daí que, no acórdão, acertadamente se consideraram elevadíssimas as exigências de prevenção geral “face ao grande e crescente impacto na comunidade dos crimes que envolvem violência contra pessoas com quem se mantém ou manteve uma relação de namoro”.

E disse-se também no acórdão, sempre correctamente, que o arguido agiu na modalidade mais intensa de dolo, o direto; que agiu com frieza de ânimo e reflexão sobre os meios empregues e persistência na intenção de matar por mais de 24 horas, reveladora de uma forte intensidade da vontade criminosa e de acrescida perigosidade; que planeou cuidadosamente a sua atuação, escolhendo os instrumentos a utilizar, o local para atuar, separado por várias dezenas de quilómetros da sua residência, e tomando opção pelas demais circunstâncias envolventes, o que executou de forma fria e calculada; o modo de execução que denota elevada ilicitude, tendo em conta o facto de ter praticado os factos de noite e no prédio onde residia a vítima, o que lhe conferia uma falsa sensação de segurança, o numero de instrumentos cortoperfurantes de que se muniu, o número de golpes desferidos e as zonas atingidas, bem como a já considerável violência física que foi necessário empregar, o sofrimento físico, a angústia, o desespero e o pânico que o arguido forçosamente causou à vítima, sendo que não só foram graves as lesões físicas que lhe foram causadas, como daí resultaram consequências permanentes. Considerou-se também contra o arguido o decurso de dois meses sobre a data em que ocorreu o fim da relação, revelador de uma personalidade possessiva e mais desvaliosa.

Tudo isto se consignou acertadamente no acórdão.

E tendo em conta que ao crime da condenação corresponde a moldura abstrata de 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses de prisão, constata-se que a pena aplicada se situa abaixo do ponto médio da moldura abstracta. Medida que não justifica a intervenção correctiva do Supremo, tendo em conta que o peso do conjunto das circunstâncias agravantes excedeu em muito o das circunstâncias atenuantes, que sobretudo as razões de prevenção geral são elevadíssimas, com elas confluindo exigências de prevenção especial, embora em grau não tão elevado. Por último, o grau de culpa do arguido não fica seguramente aquém da pena aplicada.

Uma nota final sobre o referente jurisprudencial, a que o arguido apelou também na impugnação da medida da pena.

Sabendo-se embora que cada caso transporta em si a natureza de caso único, é de reconhecer a importância do referente jurisprudencial na actividade, sempre judicialmente vinculada (na expressão impressiva de Figueiredo Dias) de determinação da pena. A preocupação com o referente jurisprudencial contribui decisivamente para a atenuação (e, se possível, a erradicação) de eventuais disparidades na aplicação prática dos critérios legais de determinação de pena.

O recorrente pretende sustentar a afirmação que faz, de que a pena aplicada contrariaria esse referente jurisprudencial, invocando três acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, “em casos de homicídio tentado qualificado com base em relação conjugal ou análoga”, em que teriam sido confirmadas ou aplicadas penas de prisão de medida inferior à presente.

Assim, no acórdão do STJ de 23.02.2023, rel. Leonor Furtado, decidiu-se efectivamente a redução de pena de prisão de 8 anos para 6 anos; mas ali o arguido agiu com dolo eventual e não foi causada qualquer lesão física na pessoa da vítima.

Também no acórdão do STJ de 17.12.2020, rel. Helena Moniz, se decidiu a redução de pena de prisão de 6 anos e 6 meses para 5 anos, substituída por prisão suspensa; mas ali a arguida fora mandante do crime e não foi praticado qualquer acto de execução (este acórdão do Supremo substituiu um anterior acórdão do Supremo, absolutório, na sequência de recurso extraordinário contra jurisprudência fixada, interposto pelo Ministério Público).

Já no acórdão do Supremo de 15.12.2012 se decidiu a redução da pena de prisão de 7 anos para 6 anos, num contexto de factualidade e de enquadramento jurídico relativamente próximo do presente; mas esta decisão, só por si e no conjunto de toda a análise de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, não se afigura bastante para permitir e justificar uma intervenção correctiva do Supremo em matéria de pena, pois, só por si, não configura uma situação de afronta ao referente jurisprudencial.

Tanto mais que, cabe sempre ao tribunal de recurso sindicar a decisão com vista à detecção de eventuais erros de julgamento. Erros que, também em matéria de pena, têm de ser evidentes, atenta a margem de liberdade reconhecida ao juiz de primeira instância enquanto componente do acto de julgar. Na ausência desse erro evidente a decisão tomada é de aceitar e, logo, confirmar.

Lembra-se que, a propósito da determinação concreta da pena, a doutrina mais representativa e a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça têm convergido no entendimento de que a sindicabilidade da medida da pena em recurso abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada” (Figueiredo Dias, DPP. As Consequências Jurídica do Crime 1993, §254, p. 197).

2.(e) Do montante da indemnização e da redução do quantum indemnizatório arbitrado a título de danos não patrimoniais

O arguido impugna o quantum indemnizatório arbitrado a título de danos não patrimoniais, asseverando que “uma indemnização no valor de € 30.000,00 é manifestamente desproporcional e injusta, pois a subsistência da família do arguido (a sua mãe e ele) assenta na pensão de reforma auferida pela mãe no valor de € 560,00 por mês, dependendo o arguido da assistência da mãe para subsistir, não lhe sendo conhecidos bens de qualquer natureza, bem como qualquer vencimento, e que a flagrante falta de recursos económicos do arguido para fazer face a tamanho montante pecuniário – circunstância que não foi devidamente tida em conta pelo Tribunal a quo como se impunha – impõe uma substancial redução da indemnização arbitrada à vítima, em termos tais que se torne possível o seu efectivo pagamento”.

Na resposta ao recurso, o Ministério Público pronunciou-se no sentido da confirmação da decisão, “considerando a gravidade dos factos dados como provados, os danos, as consequências dos mesmos para a vítima e condições socio económicas do arguido e ofendida”.

O tribunal procedeu ao arbitramento de indemnização ao abrigo do disposto no art. 82.º-A, n.º 1, do CPP, que preceitua que “não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos arts. 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de proteção da vítima o imponham”. Considerando que a vítima “nunca se opôs expressamente a que lhe fosse arbitrada quantia reparadora e face aos danos e consequências causados”, julgou-se adequado no acórdão “que seja a mesma arbitrada”.

A decisão não foi objecto de impugnação nesta parte, integrando o objecto do recurso apenas o montante da indemnização.

E a este propósito, justificou-se no acórdão: “atendendo às consequências da conduta do arguido, ao contexto em causa e às condições socioeconómicas do arguido e daquela BB, considera-se ajustada para compensar dos danos não patrimoniais que sofreu em consequência da conduta do arguido a quantia de 30 000 EUR.”

É evidente que o comprovado comportamento do arguido para com a pessoa da vítima foi causador de danos que, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito (art. 496.º, n.º 1, do CC). E o montante da indemnização deve ser fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em conta as circunstâncias referidas no art. 494.º do CC - o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.

Os danos não patrimoniais ressaltam dos factos provados do acórdão, e eles assumiram uma gravidade tal que justifica amplamente a indemnização arbitrada. Recorde-se que a vítima sofreu as seguintes lesões físicas, em todo o contexto de horror vivenciado na execução do crime:

“No pescoço: ferida cortante linear irregular, disposta horizontalmente, localizada na face anterior, lateral direita e esquerda da região cervical com 13 cm de comprimento total, com esfacelo cervical, atingimento e laceração completa das veias jugulares externas anteriores, atingimento dos músculos pré tiroideus e laceração parcial da porção medial do músculo esternocleidomastoideu;

- Na mão esquerda: ferida cortante na face dorsal da base de D1 disposta obliquamente ao longo eixo do dedo com 2 cm de comprimento e ferida cortante na fase dorsal do 3.º espaço intermetacárpico com 0, 5 cm e polpa de D2 com 0, 5 cm; que foram causa direta e necessária de 52 dias para a consolidação médico-legal, com afetação da capacidade de trabalho geral durante 33 dias e com afetação da capacidade de trabalho profissional durante 42 dias, bem como, como consequências permanentes anatómicas:

- No pescoço: cicatriz linear irregular, disposta horizontalmente, com reação quelóide associada e aderente aos planos subjacentes localizada na face anterior, lateral direita e esquerda da região cervical com 13 cm de comprimento total, com área cicatricial nacarada que se dirige para cima e para a direita (1 cm) aderente planos subjacentes na zona mediana desta cicatriz, causando dor, disestesia e ainda sensação de repuxamento associada à mobilidade cervical, sendo que tal cicatriz é causa de limitação na mobilidade articular do segmento cervical nos movimentos de rotação para a direita (++) e esquerda (+++);

- Na mão esquerda: cicatriz irregular rosada aproximadamente quadrangular (0.5 cm de lado) localizada na face dorsal do 3.º espaço intermetacárpico, e cicatriz na face dorsal da base de D1 disposta obliquamente ao longo eixo do dedo com 2 cm de comprimento, com vestígios cicatriciais de pontos de sutura, sem queixas subjetivas associadas e que não causam atingimento da mobilidade dos dedos da mão.

17. A cicatriz na face anterior do pescoço é causa de desfiguração grave e permanente e causa de alteração a nível funcional e situacional tendo em conta a alteração na mobilidade do segmento cervical.

18. BB só não morreu porque foi imediatamente socorrida, primeiro pelos seus tios que procuraram estancar a hemorragia e providenciaram pelo seu rápido transporte para uma unidade hospitalar e, depois, pela assistência que lhe foi prestada no Hospital de São João, nesta cidade do Porto, para onde foi transportada, e onde, para além da restante assistência médica e medicamentosa, foi submetida a cirurgia de urgência.”

A “desfiguração grave e permanente e causa de alteração a nível funcional e situacional tendo em conta a alteração na mobilidade do segmento cervical” será um mal para sempre, que excede incomensuravelmente o mal mais imediato do crime, a recordar e a manter viva a lembrança de um episódio tão traumático.

É certo que a situação económica do arguido, que se retira também dos factos provados do acórdão e interessa à fixação da indemnização, exerce um efeito compressor do valor da indemnização a fixar. Mas tal não significa que esse efeito compressor não se mostre já devidamente valorado pelo tribunal e não tenha influído na quantificação do montante arbitrado no acórdão.

Sendo certo que se trata da fixação de um valor segundo critérios de equidade e de proporcionalidade, deve procurar ter-se em conta as decisões anteriores dos tribunais para casos semelhantes (art. 8.º, n.º 3, do CC 13.º, n.º 1 da CRP).

E pode ler-se no Acórdão do STJ de 15-04-2009 (rel. Raul Borges), que “I - Danos não patrimoniais são os insusceptíveis de avaliação pecuniária ou medida monetária, porque atingem bens, como a vida, a saúde, a integridade física, a perfeição física, a liberdade, a honra, o bom nome, a reputação, a beleza, dos quais resulta o inerente sofrimento físico e psíquico, o desgosto pela perda, a angústia por ter de viver com uma deformidade ou deficiência, os vexames, a perda de prestígio ou reputação, tudo constituindo prejuízos que não se integram no património do lesado, apenas podendo ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo mais uma satisfação do que uma indemnização, assumindo o seu ressarcimento uma função essencialmente compensatória, embora sob a envolvência de uma certa vertente sancionatória ou de pena privada.

VI - É consensual a ideia de que só são indemnizáveis os danos não patrimoniais que afectem profundamente os valores ou interesses da personalidade física ou moral, medindo-se a gravidade do dano por um padrão objectivo, embora tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, mas afastando-se os factores subjectivos, susceptíveis de sensibilidade exacerbada, particularmente embotada ou especialmente requintada, e apreciando-se a gravidade em função da tutela do direito; o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado.

VII - Porque a morte absorve todos os outros prejuízos não patrimoniais, o montante da sua indemnização deve ser superior à soma dos montantes de todos os outros danos imagináveis» e «a indemnização do dano da morte deve ser fixada sistematicamente a um nível superior, pois a morte é um dano acrescido e isto tem de ser feito sentir economicamente ao culpado.”

No caso presente, a morte não ocorreu, e não é de indemnização do dano morte que se trata aqui. Mas não deixa de se constatar que a indemnização arbitrada no acórdão fica notoriamente aquém das fixadas por dano morte, respeitando a jurisprudência do acórdão citado.

Também não se desenquadra de outras decisões do Supremo, como seja a do acórdão do STJ de 11-02-2009, rel. Pires da Graça, em que se notou que “estando em causa a fixação do valor da indemnização por danos não patrimoniais, necessariamente com apelo a um julgamento segundo a equidade, o tribunal de recurso deve limitar a sua intervenção às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, «as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida» – cf. Acs. do STJ de 17-06-2004, Proc. n.º 2364/04 -5.ª, e de 03-07-2008, Proc. n.º 1226/08 -5.ª”. E neste acórdão teve-se “por significativa e adequadamente compensatória a indemnização de € 30 000 por danos não patrimoniais”, arbitrada a vítima de homicídio qualificado tentado.

Em contexto semelhante, no acórdão do STJ de 2011-07-13 rel. Henriques Gaspar, o recorrente foi condenado a pagar à assistente a indemnização cível de 30.105,85 €, sendo 28.500, 00 a título de indemnização por danos não patrimoniais.

E no acórdão de 1.ª instância apreciado no acórdão do STJ de 05-05-2021, rel. Teresa Féria, foi decidido condenar o arguido a pagar à ofendida vítima de homicídio qualificado tentado e de violência doméstica agravada a quantia de € 60.000 a título de reparação oficiosa dos danos não patrimoniais, matéria que, no entanto, não integrou ali o objecto do recurso interposto para o Supremo.

De tudo resulta que o acórdão é de confirmar, também nesta parte.

3. Decisão

Face ao exposto, acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso, mantendo-se o acórdão.

Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça em 6 UC’s – (arts 513º /1 e 514º/1 CPP e 8º/9 e Tab. III RCP).

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Cumpra-se oportunamente o disposto no n.º 2 do art. 10.º da Portaria n.º 280/2016.

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Lisboa, 02.05.2024

Ana Barata Brito, relatora

Lopes da Mota, adjunto

Pedro Branquinho Dias, adjunto