Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02A2402
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PINTO MONTEIRO
Descritores: DIREITO DE PERSONALIDADE
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
PRESSUPOSTOS
INIBIÇÃO DE USO DE CHEQUE
Nº do Documento: SJ200210240024021
Data do Acordão: 10/24/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 10650/01
Data: 12/11/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR PERS / DIR RESP CIV.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 483 N2 ARTIGO 484 ARTIGO 496.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO RL DE 1996/03/05 IN CJ TOMOII PAG71.
ACÓRDÃO STJ DE 1999/09/11 IN CJSTJ TOMOIII PAG89.
Sumário : I - Justifica-se a atribuição de uma indemnização por danos não patrimoniais (violação dos direitos de personalidade) sofridos por um cliente de uma entidade bancária, se esta, por manifesto descuido na manipulação dos seus registos informáticos, desencadeou indevidamente junto do Banco de Portugal um processo de rescisão da convenção de cheques relativamente ao lesado, tendo este vindo a ficar inibido do uso de cheques pelas restantes entidades bancárias de que era cliente.
II - Isto, mormente se o aludido procedimento originou desgaste ao autor e diminuiu o prestígio que o mesmo possuía junto das instituições bancárias, bem como a confiança na capacidade para cumprir as suas obrigações, tendo-lhe inclusivamente sido recusado um pedido de um empréstimo de pequeno montante.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I - A intentou acção com processo ordinário contra B, pedindo que a ré fosse condenada a pagar-lhe 3.050.000$00.

Alegou que foi inibido do uso de cheques, por culpa da ré e sem qualquer responsabilidade sua, sofrendo danos patrimoniais e não patrimoniais no montante do pedido.

Contestando, a ré sustentou que para além de incómodos, o autor não demonstra ter tido prejuízos.

O autor veio ampliar o pedido, requerendo a condenação da ré no pagamento de juros vencidos e vincendos.

O processo prosseguiu termos, tendo tido lugar audiência de discussão e julgamento, sendo proferida sentença que condenou a ré a pagar ao autor a quantia de 1.550.000$00 e juros.

Apelou a ré.

O Tribunal da Relação concedeu parcial provimento reduzindo a indemnização para 800.000$00.

Inconformado, recorre o autor para este Tribunal.

Formula as seguintes conclusões:
- O Tribunal de 1ª instância bem decidiu ao determinar, segundo critérios de equidade, que o montante da indemnização por danos não patrimoniais fosse de 1.500.000$00;
- O Tribunal da Relação entendeu que no caso em apreço se justifica uma indemnização a título de danos não patrimoniais em função da gravidade dos danos provocados;
- Porém entendeu, segundo os seus critérios de equidade, que o montante da indemnização, arbitrada em 1ª instância deveria ser corrigida atendendo a que os danos sofridos não são muito graves se comparados aos provocados por notícias levadas ao conhecimento de grande número de pessoas;
- Esta fundamentação não será de relevar uma vez que, foi divulgado por todas as instituições de crédito e bancárias o nome do ora recorrente como utilizador de cheques que oferecem risco;
- Tal divulgação causou vexame, desgosto ao recorrente e este viu ser depreciado e vilipendiado o seu valor aos olhos de todas as instituições de crédito e bancárias.

Contra-alegando, a recorrida defende a manutenção do decidido.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - Vem dado como provado:

O autor é professor na Escola Secundária da ...., recebendo o seu vencimento por crédito em conta e, por exigência da circular nº 1044 da Direcção Geral da Contabilidade Pública, na B;

No dia 08.09.89 procedeu à abertura de conta individual nessa entidade bancária, agência da Cruz de Pau;

A partir dessa data movimentou a conta nº 1501000;

No dia 22 de Junho de 1992, o autor emitiu o cheque nº 8318766448, sacado sobre a supra citada conta no montante de 365.000$00;

Depositando-o na conta de que é titular na .......;

Após conhecimento do ocorrido, e dentro do prazo legal de 10 dias, o autor dirigiu-se ao balcão da referida instituição bancárias para se inteirar da situação;

O autor elaborou a justificação entregando-a de imediato, ficando convicto de que a situação estava regularizada;

Quatro anos mais tarde, em 21 de Agosto de 1996, o autor impossibilitado de se dirigir ao balcão da B, como era habitual, emitiu o cheque nº 4718766452, sacado sobre a referida conta, depositando-o na conta de que é titular no Banco .......;

Apresentado a pagamento o cheque nº 4718766452 de 21.08.96 foi pago;

Decorridos alguns dias, concretamente em 27 de Agosto de 1996, o autor é notificado pela B, agência da Cruz de Pau, da rescisão da convenção de cheques, sem qualquer indicação do tempo de duração da inibição de uso de cheques;

Uma vez mais se dirigiu ao balcão da referida instituição bancária para que lhe esclarecessem a razão de tal inibição, e aí foi-lhe informado pela funcionária D. Custódia, de que em 1992 ficou inibido internamente da utilização de uso de cheques, por um período de 6 meses;

Mais foi informado de que deveria ter procedido à devolução dos cheques que tinha em seu poder naquela data e que o fundamento desta segunda inibição foi a utilização de um desses cheques e a referida inibição tivera como consequência a inclusão, pelo Banco de Portugal, do nome do autor, na listagem de utilizadores que oferecem risco;

O autor até aqui nunca recebeu qualquer notificação, por parte da B, informando-o de que se encontrava inibido do uso de cheques e que deveria proceder à devolução dos cheques que tivesse em seu poder;

Perante tal facto, o autor verbalmente explicou toda a situação antes descrita, tendo-lhe sido solicitado que efectuasse uma exposição por escrito, entregando-a no balcão dessa dependência da B, em 16.09.96;

E, logo a partir do dia 30 de Agosto, viu-se o autor confrontado com a informação das entidades bancárias de que é cliente da rescisão da convenção de cheques;

Perante esta situação, resolveu o autor, em 15 de Outubro de 1996, tomar a iniciativa de solicitar ao Banco de Portugal que, junto da B, procedesse à investigação da responsabilidade desta instituição neste processo e consequentemente da inibição e comunicação da mesma às instituições bancárias;

Por carta datada de 04.11.96 recebeu o autor a comunicação do Banco de Portugal - Departamento de Operações de Crédito e Mercados - da decisão de anulação do seu nome da listagem de utilizadores de cheques que oferecem risco;

O autor foi surpreendido pela devolução do mesmo com indicação de falta de provisão, apesar de nessa data a B já possuir ordem da Escola Secundária da Amora para creditar o vencimento;

A B não iniciou qualquer processo no sentido de anularem a inclusão do seu nome na listagem de utilizadores de cheques que oferecem risco;

A omissão da B levou a que o Banco de Portugal, como é da sua competência, informasse as instituições bancárias da inclusão do nome do autor nessa listagem;

Todo este processo originou desgaste e incómodos ao autor;

Este incidente diminui o prestígio que o autor possuía junto das instituições de crédito bancárias, bem como a confiança na capacidade para cumprir as suas obrigações;

Foi recusado ao autor o pedido de empréstimo no valor de 269.000$00, pelo Crédibanco;

O bom nome do autor foi posto em causa perante as instituições de crédito e bancárias e seus funcionários, sendo com desconforto que se dirigia à B, onde chegou a ser tratado com desconfiança e desagrado;

O autor é pessoa educada e sensível;

Com todo este processo o autor teve de suportar despesas de deslocações, telefonemas, envio de cartas e despesas com expediente decorrentes da rescisão da convenção de cheques, no valor de 50.000$00;

O sistema informático da ré procedeu à anotação de emissão de cheque sem provisão;

E, por alteração do programa informático, tal anotação foi efectuada duas vezes, em vez de uma, dando lugar às anotações nºs. 1 e 2, a qual se ignorava que existisse;

Do que resultou ter ficado a constar dos registos informáticos da ré, embora erradamente, uma inibição do uso de cheque por 6 meses em relação ao autor;

Mas então, não foi efectuada qualquer comunicação ao Banco de Portugal;

Porém, com a apresentação a pagamento de outro cheque da mesma conta, o programa informático da ré, partindo do registo da inibição do uso do cheque anterior pelo período de 6 meses, embora errado, desencadeou uma inibição do uso do cheque por dois anos e a rescisão da convenção de cheque entre autor e ré;

Foi só quando o autor se apresentou perante a ré, na sequência da carta a que se refere o artigo 19º da p.i., a chamar a atenção desta para a indevida rescisão da convenção de cheque, é que a ré se apercebeu do erro informático que determinou a rescisão da referida convenção.

III - Importa começar por resolver a questão prévia suscitada pela recorrida nas suas contra-alegações.

Sustenta que não deve este Tribunal conhecer do recurso, já que o recorrente não invocou quer o erro de interpretação ou de aplicação, quer o erro de determinação da norma aplicável, vindo sim a discutir a matéria de facto.

É certo que ao Supremo Tribunal de Justiça, como Tribunal de revista, só cumpre, em princípio, decidir questões de direito e não julgar matéria de facto (artigo 729º do C. Processo Civil).

Embora no recurso de revista seja admissível apreciar a eventual violação da lei adjectiva, tal só é possível dentro de apertados limites.

O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa só pode ser apreciado se houver ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (artigo 729º e 722º nº 2 do C. Processo Civil).

O STJ pode alterar os factos provados se existir erro das instâncias na análise da prova por violação das normas que fixam o seu valor.

A verdade porém é que o recorrente pretende tão somente que se aprecie a culpa e se extrai daí as necessárias conclusões no que respeita ao montante dos danos não patrimoniais. A apreciação da culpa, como censura da conduta do agente, que podia e devia ter actuado doutro modo é matéria de direito e como tal da competência deste Tribunal.

Os princípios que eventualmente se terão violado são normas de direito substantivo, já que estamos perante responsabilidade civil extracontratual, como se passará a analisar.

Não assiste assim qualquer razão à recorrida.

IV - O autor, invocando ter sofrido danos patrimoniais e não patrimoniais devido a conduta culposa da ré, pediu a condenação desta no pagamento da quantia de 3.050.000$00.

Na 1ª instância foi a ré condenada a pagar 1.550.000$00, importância essa que o Tribunal da Relação reduziu para 800.000$00.

Inconformado com a decisão recorre o autor.

A única questão a resolver prende-se com o montante indemnizatório, defendendo o recorrente que é correcta a verba fixada na 1ª instância, sustentando a recorrida a justeza do decidido no acórdão em causa.

Está-se no campo da responsabilidade civil extracontratual, que resulta de violação de um dever geral de abstenção contraposto a um direito absoluto, no caso concreto o direito de personalidade.

São conhecidos os pressupostos da responsabilidade civil: Facto voluntário; ilicitude; culpa; dano; nexo causal entre o facto e o dano (artigo 483º do C. Civil).

No caso em apreço não se questiona a existência dos referidos pressupostos, necessários, em princípio, ao surgimento da responsabilidade civil. Discute-se tão somente o quantitativo a fixar a título de danos não patrimoniais.

Impõe-se, contudo, algumas breves considerações sobre a culpa.

O nosso ordenamento jurídico consagra o primado da responsabilidade subjectiva, ou seja, assente na culpa, só existindo obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei (artigo 483º nº 2 do C. Civil).

Assiste-se hoje a uma forte tendência no sentido de aumentar a extensão da responsabilidade objectiva ou pelo risco, o que se justifica, antes de mais, pela necessidade de defesa do lesado face ao enorme aumento de riscos que o desenvolvimento tecnológico da sociedade industrial acarreta - Prof. Mota Pinto - "Teoria Geral do Direito Civil", 3ª ed., pág. 121.

Certo é porém que o nosso ordenamento jurídico continua a exigir como regra geral a culpa como pressuposto normal da responsabilidade civil, estabelecendo o referido artigo 483º uma cláusula geral de responsabilidade civil subjectiva.

Agir com culpa significa actuar por forma a que a conduta do agente seja pessoalmente censurável ou reprovável e o juízo de censura ou de reprovação dessa conduta só se pode apreciar no reconhecimento, perante as circunstâncias concretas do caso, de que o obrigado não só devia, como podia ter agido de outro modo. O juízo de culpa, censurando o comportamento do agente, existe quando este adoptou determinada conduta, estando, de acordo com a lei, obrigado a seguir conduta diferente - Prof. Antunes Varela - "Das Obrigações em Geral" II, 7ª ed., pág. 97; Prof. Menezes Leitão - "Direito das Obrigações" I, pág. 278.

Em concreto, a ré desencadeou junto do Banco de Portugal o processo de rescisão da convenção de cheques relativamente ao autor, vindo este a ficar inibido do uso de cheques pelas entidades bancárias de que é cliente.

Esta situação ficou a dever-se ao facto de, erradamente, constar dos registos informáticos da ré uma inibição do uso de cheques relativa ao ora autor.

Nenhuma responsabilidade recai sobre o autor pelo erro cometido.

Acresce que a ré não diligenciou, como devia, para evitar tal situação, nem sequer para posteriormente a corrigir.

A ré actuou, obviamente, com culpa, consistindo esta na omissão da diligência exigível ao agente. Esta mera culpa ou negligência, quer se considere culpa consciente, caso em que a ré não terá tomado as providências necessárias por ter com incúria confiado em que o facto ilícito se não verificaria, ou se considere culpa inconsciente, caso em que por descuido ou imperícia a ré não chegou sequer a conceber a possibilidade de o facto se verificar, a verdade é que a conduta é censurável.

Escreve o Prof. Antunes Varela, obra citada, I, pág. 395 que "o grau de reprovação ou de censura será tanto maior quanto mais ampla for a possibilidade de a pessoa ter agido de outro modo e mais forte ou intenso o dever de o ter feito".

Ora, uma entidade bancária prestigiada como é a B não pode negligenciar condutas que acarretem danos aos seus clientes (sendo que no caso era uma cliente "obrigatória"). Os poderosos e necessários meios informáticos de que a ré dispõe permitem evitar erros grosseiros como o que aconteceu.

Conclui-se assim que existiu por parte da B uma falta de dever objectivo de cuido, tanto no aspecto objectivo (grau de diligência necessária), como sob o ponto de vista subjectivo e concreto (grau de diligência possível em face das circunstâncias reais do caso e da capacidade da ré). Cai-se assim na negligência que, atenta a qualidade de agente, é grave.

A ré está assim obrigada a indemnizar o autor pelos prejuízos sofridos.

Só se discute aqui os danos não patrimoniais. A atribuição neste caso de determinada soma pecuniária legitima-se pela ideia de procurar compensar o lesado, mediante satisfações derivadas da utilização do dinheiro.

À indemnização por danos não patrimoniais não é estranha, também, diga-se, a ideia de reprovar no plano civilístico e com meios próprios do direito privado a conduta do agente - Em sentido próximo se decidiu no Ac. RL de 05.03.96, CJ II, pág. 71, com o mesmo relator.

A factualidade apurada revela danos para o autor suficientemente graves para merecerem a tutela do direito.

Ser privado sem motivo do uso dos cheques com a carga negativa de descrédito, ofensa ao bom nome e à dignidade que tal acarreta, justifica a indemnização atribuída na 1ª instância, discordando-se assim do bem fundamentado acórdão.

Segundo o que as instâncias deram como provado, o processo originou desgaste ao autor e diminuiu o prestígio que o mesmo possuía junto das instituições bancárias, bem como a confiança na capacidade para cumprir as suas obrigações, tendo inclusive sido recusado ao autor o pedido de um empréstimo de pequena monta.

Ainda segundo a factualidade apurada, o bom nome do autor foi posto em causa perante as instituições de crédito e bancárias e seus funcionários, sendo com desconforto que se dirigia à B, onde chegou a ser tratada com desconfiança e desagrado.

O autor, que as instâncias qualificaram de "pessoa educada e sensível", sofreu, obviamente, danos não patrimoniais relevantes.

Há em primeiro lugar ofensa ao crédito do autor, considerando o artigo 484º do C. Civil como facto antijurídico susceptível de gerar responsabilidade civil, a afirmação ou a difusão de facto capaz de prejudicar o crédito de qualquer pessoa. Por crédito entende-se tudo o que se refere ao prestígio económico de pessoa, às suas disponibilidades e qualidades de exactidão, procedência e diligência que interessam à confiança financeira - Prof. Capelo de Sousa - "O Direito Geral de Personalidade", pág. 249, citando o Prof. Orlando de Carvalho.

Mas há também uma ofensa à sua personalidade fazendo incorrer em responsabilidade civil o seu autor, nos termos do artigo 70º do C. Civil, que consagra a tutela geral da personalidade

Tem o Supremo entendido que a importância a fixar deve constituir uma efectiva possibilidade compensatória para responder actualizadamente ao comando do artigo 496º do C. Civil - Por todos o Ac. do STJ de 11.09.99, CJ, Tomo III, pág. 89.

Não há um preço para os direitos de personalidade, mas tem que se impor um preço a quem os viole.

Os 1.500.000$00 atribuídos na 1ª instância a título de danos não patrimoniais é assim a indemnização mais correcta, nesta parte se alterado o acórdão recorrido, mantendo-se no restante.

Nos termos expostos, concede-se a revista.

Custas pela recorrida.

Lisboa, 24 de Outubro de 2002.

Pinto Monteiro,

Lemos Triunfante,

Reis Figueira.