Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | ERNESTO NASCIMENTO | ||
| Descritores: | RECURSO PER SALTUM ABUSO SEXUAL CRIANÇA VIOLAÇÃO CONCURSO DE INFRACÇÕES ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS NOTIFICAÇÃO | ||
| Data do Acordão: | 10/09/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | ADIADO SINE DIE | ||
| Sumário : | Apesar de no recurso o arguido apenas suscitar a questão da medida da pena, sendo a questão da subsunção dos factos ao Direito do conhecimento oficioso, sem prejuízo, naturalmente, da proibição da reformatio in pejus, se o Tribunal considera que os factos provados são susceptíveis de uma outra, diversa e mais gravosa qualificação jurídica, deve, ainda assim, dar cumprimento ao disposto no artigo 424.º/3 CPPenal. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5.ª secção do Supremo Tribunal de Justiça I. Relatório. 1. Através de acórdão de 2025-05-21 proferido no âmbito do processo comum colectivo 409/24.4JAFAR do Tribunal Judicial da Comarca de Beja, Juízo Central Cível e Criminal de Beja – Juiz, no que aqui releva, foi o arguido AA condenado pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos artigos 171.º/1 e 2 e 177.º/1 alíneas a) e b) CPenal na pena de seis anos de prisão. 2. Inconformado, recorre o arguido, para este Supremo Tribunal, invocando a violação dos artigos 40.º/1, 71.º/1 e 2 e 72.º/1 e 2 alínea c) CPenal, rematando o corpo da motivação com as conclusões que se passam a transcrever: 1. O arguido foi condenado na pena de prisão de 6 anos pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, nos termos dos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alíneas a) e b) do Código Penal. 2. O arguido tem plena consciência da gravidade do crime que cometeu, e o presente recurso não pretende minimizar a natureza dos factos criminosos nem desconsiderar a sua gravidade objetiva 3. Considera-se, porém, que o Tribunal a quo não valorou de forma esgotante a postura processual de colaboração e de arrependimento que o arguido assumiu desde o primeiro momento. 4. O objetivo deste recurso visa assim, e apenas, discutir a medida da pena. 5. Desde o primeiro momento dos presentes autos o arguido confessou os factos, mostrou arrependimento e colaborou com a investigação e com o Tribunal. 6. Em concreto, o arguido deslocou-se voluntariamente à GNR no dia do crime, pondo-se completamente à disposição das autoridades, na perfeita consciência de que fizera algo muito grave e de que as medidas de coação poderiam ser as mais graves. 7. No primeiro interrogatório judicial de arguido detido, o arguido confessou os factos do despacho de apresentação, sem qualquer cálculo, emenda, tergiversação ou falsa justificação, estando visivelmente emocionado, o que foi reconhecido pela Meritíssima Juiz. 8. Mais tarde, no contexto de audição para ponderação da obrigação de permanência na habitação, o arguido mostrou novamente arrependimento e vergonha, emocionando-se. 9. Em audiência de julgamento, o arguido confessou novamente os factos sem qualquer cálculo, emenda, tergiversação ou falsa justificação, estando visivelmente emocionado, demonstrando sincero arrependimento e consciência da gravidade dos seus atos. 10. O Tribunal a quo reconheceu o caráter integral e sem reservas da confissão do arguido. 11. De forma consistente e séria, ao longo de todo o processo, o arguido confessou os factos, mostrou arrependimento, culpa e vergonha e reconheceu a gravidade do crime cometido. 12. Esta postura processual não apaga o crime nem diminui a gravidade ou a ilicitude do mesmo, mas é relevante para a correta ponderação das exigências de prevenção especial e de reintegração do arguido na sociedade. 13. Inclusive, a lei prevê como causa de atenuação especial da pena, nos termos do artigo 72.º, n.º 2, alínea c) do Código Penal, ter havido atos demonstrativos de arrependimento sincero do agente. 14. O comportamento processual do arguido só é assumível por quem tem plena consciência da gravidade do que fez, e por quem transporta consigo uma culpa e uma vergonha elevadas e genuínas. 15. Por outro lado, com a postura assumida, o arguido facilitou o labor probatório e investigatório das autoridades, nunca tendo atrasado o processo, feito chicana processual ou obstruído ou estorvado a ação da justiça. 16. Assim, é aplicável ao presente caso o disposto no artigo 72.º, n.ºs 1 e 2, alínea c) do Código Penal, situando-se a moldura penal abstrata do crime entre os 9 meses e 15 dias e os 8 anos e 8 meses de prisão. 17. Paralelamente, importa ter em conta alguns dos factos considerados provados que abonam ao arguido. 18. Do facto provado 23 resulta que o arguido não tem quaisquer adições e assume um comportamento socialmente normal; resulta também de tal facto que o arguido é uma pessoa com ética de trabalho, revelando capacidade de sacrifício em prol de terceiros, força de vontade e carácter. Até à data dos factos, o arguido gozava de boa imagem social, sendo tido como uma pessoa idónea. 19. O arguido mantém relação com todos os filhos biológicos, encontrando-se neste momento a cumprir a medida de coação na casa de seus pais, tendo por isso laços familiares sólidos. Acresce que os familiares mostram constrangimento e deceção pelos factos praticados pelo arguido, pelo que o mesmo não se encontra num ambiente laxista. 20. Sublinha-se também que, em face do percurso de vida do arguido, não surpreende o facto provado 24, do qual resulta que o arguido não tem antecedentes criminais, não surpreendendo tão-pouco o conteúdo do relatório social, que indica a execução das medidas de coação, primeiro em cárcere, depois em casa, sem quaisquer incidentes. 21. Pelo exposto, pode concluir-se com segurança o seguinte: a. O arguido tem plena consciência da gravidade do crime cometido; b. O arguido está arrependido do crime cometido e sente culpa e vergonha pelo que fez, possuindo consciência crítica sobre os seus atos; c. O arguido colaborou desde o primeiro momento, sem quaisquer reservas, com as autoridades, contribuindo para o rápido andamento dos autos, facilitando o labor probatório e investigatório das autoridades, e poupando algumas testemunhas de reviverem os factos em juízo; d. O arguido está socialmente inserido, teve uma vida de estudos e de trabalho, e tem um percurso pessoal e profissional de luta e de esforço, revelando nas opções tomadas carácter, força de vontade e preocupação com a família; e. O arguido dispõe de todas as competências intelectuais e motoras para dedicar a sua vida ao trabalho honesto; f. O arguido não tem antecedentes criminais, nem possui uma personalidade deformada, repugnante, isenta de valores ou de esteios morais, impreparada para uma sã convivência social, impossibilitadora de conformação normativa ou de pensamento crítico ou consequencial; g. O crime cometido é um evento isolado na vida do arguido, não escorado numa personalidade estruturalmente perversa ou repugnante; h. O arguido dispõe de família que o ampara mas que demonstra consciência crítica face ao que aconteceu, não vivendo num ambiente laxista. 22. Neste contexto, a pena concretamente fixada deve ser revista, nos termos do artigo 71.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal. 23. Não se pondo em causa o grau de ilicitude dos factos e da culpa do arguido, agravada pelos laços de afinidade existentes com a ofendida, sublinha-se que o arguido está preparado para manter uma conduta lícita. 24. Por outro lado, sendo inegáveis as necessidades de prevenção geral, as necessidades de prevenção especial encontram-se atenuadas, não só pelas várias e consistentes demonstrações de culpa, vergonha, arrependimento e consciência crítica e pela ausência de registo criminal, mas também pelo período de reclusão que o arguido vem passando desde 19 de agosto de 2024. 25. Face ao que vem exposto, o arguido considera que a pena concretamente fixada deve situar-se nos 3 (três) anos de prisão. 26. Esta pena deve ser suspensa, nos termos do artigo 50.º do Código Penal, pelo período de 5 anos, acompanhada de um rigoroso regime de obrigações e injunções: a. Condicionar a suspensão ao pagamento da compensação pecuniária à ofendida, ao abrigo do artigo 51.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, sendo que pelo menos em cada um dos 5 anos deve o arguido entregar € 2 000 à ofendida; b. Proibir o arguido de contactar por qualquer meio com a ofendida durante os 5 anos da suspensão, nos termos do artigo 52.º, n.º 2, alínea d) do Código Penal; c. Proibir o arguido de se estar a menos de 500 metros do local de residência da ofendida e do estabelecimento de ensino ou local de trabalho desta durante os 5 anos da suspensão, nos termos do artigo 52.º, n.º 2, alínea b) do Código Penal; d. Proibir o arguido de estar com os seus filhos biológicos menores quando desacompanhado de outras pessoas maiores, preferencialmente os avós paternos ou os tios paternos, durante os primeiros 3 anos da suspensão, nos termos do artigo 52.º, n.º 2, alínea d) do Código Penal; e. Proibir o arguido de se ausentar da sua residência durante os fins de semana e feriados, exceto se for para trabalhar, durante as folgas, se forem em dias úteis, e durante férias laborais nos primeiros 2 anos da suspensão, com fiscalização pelos serviços de reinserção social através de meios técnicos de controlo à distância, nos termos do artigo 51.º, n.º 4, 52.º, n.º 1, alíneas a) e c), 2 e 4, todos do Código Penal; f. Sujeitar o arguido a regime de prova, nos termos do artigo 53.º, n.º 4 do Código Penal. 27. Esta solução, para além de se ajustar melhor às necessidades de prevenção especial e ao fim das penas, permite ainda ao arguido retomar a sua atividade profissional, obtendo assim proventos financeiros para pagar a compensação à ofendida e para apoiar os seus filhos biológicos menores. 28. Reenviar o arguido para a prisão depois de este ter de lá saído para ficar em casa com pulseira não parece fazer sentido do ponto de vista da prevenção especial e da reintegração social. 29. Caso não se entenda ser de suspender a pena de prisão de 3 anos, e considerando que, previsivelmente, os presentes autos não serão decididos pelo Tribunal ad quem antes de 19 de agosto de 2025, suscita-se a possibilidade de ser aplicada a obrigação de permanência na habitação sujeita a vigilância eletrónica nos termos conjugados dos artigos 43.º, n.º 1, alínea b) e 80.º, n.º 1 do Código Penal. 30. Nos termos do artigo 43.º, n.ºs 3 e 4 do Código Penal, o Tribunal deve, caso entenda ser de aplicar a prisão domiciliária: a. autorizar as saídas do arguido para exercício de atividade profissional ou para entrevistas ou outras diligências com vista à obtenção de trabalho; b. impor ao arguido a frequência de programas de prevenção de criminalidade sexual; c. impor ao arguido o pagamento de pelo menos € 5 000 à ofendida, por conta da compensação financeira arbitrada, até ao termo da pena de 3 anos; d. Proibir o arguido de contactar por qualquer meio com a ofendida; e. Proibir o arguido de estar com os seus filhos biológicos menores quando desacompanhado de outras pessoas maiores, preferencialmente os avós paternos ou os tios paternos. 31. Note-se que neste regime não se aplica a liberdade condicional, conforme artigo 43.º, n.º 5 do Código Penal. 32. Caso não se entenda ser de aplicar a atenuação especial da pena, entende-se que a pena de prisão não deve ser superior a 5 anos, devendo a mesma ser suspensa nos exatos termos acima indicados. 33. Independentemente de ser ou não aplicável aos presentes autos a atenuação especial da pena, a pena concretamente fixada de 6 anos de prisão, conforme determinada pelo Tribunal a quo, afigura-se excessiva face a outras penas determinadas ao abrigo de outros processos, de gravidade superior, em que os crimes foram repetidos ao longo do tempo. 3. Admitido o recurso e cumprido o disposto no artigo 411.º/6 CPPenal, apresentou resposta a Magistrada do MP, dirigida a este Tribunal, defendendo que o recurso não merece provimento, concluindo pela seguinte forma: 1 - O arguido ora recorrente foi condenado, pela prática, em autoria material, de um crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punível pelos artigos 171º/1 e 2, e 177º/1, alíneas a) e b) do Código Penal na pena de 6 anos de prisão. 2 - Inconformado com a decisão final condenatória, dela interpôs recurso o arguido, pugnando por uma pena menor, alegando que o Coletivo de Juízes a quo não ponderou a sua postura processual de colaboração e de arrependimento. 3 - Cremos, salvo o devido respeito, que não assiste razão ao recorrente, não merecendo censura o Douto Acórdão e, consequentemente, o recurso está condenado à improcedência. 4 - Só em caso de desproporcionalidade na sua fixação ou necessidade de correção dos critérios de determinação da pena concreta, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso, deverá intervir o Tribunal de 2ª Instância alterando o quantum da pena concreta. 5 - Caso contrário, isto é, mostrando-se respeitados todos os princípios e normas legais aplicáveis e respeitado o limite da culpa, não deverá o Tribunal de 2ª Instância intervir corrigindo/alterando o que não padece de qualquer vício. 6 - Na determinação da pena, o Tribunal Coletivo a quo ponderou em que circunstâncias ocorreu o crime, o grau de ilicitude dos factos, a natureza do culpa, o motivo determinante da conduta, a situação pessoal do recorrente, as suas condições de vida, bem como a necessidade de garantir a reprovação e a prevenção de crime – que tem uma grande incidência com efeitos tão perversos e a ausência de antecedentes criminais, as fortes exigências em termos de prevenção geral. 7 - As considerações tecidas na decisão recorrida não revelam qualquer incoerência ou desproporcionalidade na fixação da medida concreta da pena, não suscitando a necessidade de correção da decisão, visto que nela se observaram os critérios de determinação da pena concreta, foram adequadamente atendidos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso. 8 - Assim, bem decidiu o Tribunal Coletivo a quo em fixar ao recorrente a pena de 6 anos de prisão. 9 – A operatividade do instituto da suspensão da pena de prisão, consagrado no artigo 50º depende, da verificação de pressupostos formais e materiais. 10 - O pressuposto formal é de a pena ser inferior a 5 anos de risão, o que não se verifica in casu, 11 – Mas caso se assim entenda, alterando-se a pena de prisão determinada pelo Tribunal Coletivo a quo para uma pena inferior ou igual a 5 anos de prisão, “O pressuposto material da suspensão da execução da pena é o da adequação da mera censura do facto e da ameaça da prisão às necessidades preventivas do caso, sejam elas de prevenção geral, sejam de prevenção especial” , 12 - Atentas as circunstâncias concretas do caso, deve-se afastar a suspensão da pena de prisão do recorrente porque a ameaça da execução da mesma não será suficiente para que o recorrente toma consciência da gravidade do seu comportamento e das consequências irreparáveis que este tipo de criminalidade provoca nas indefesas vítimas. 13 - As exigências de prevenção geral e as de prevenção especial o impedem. 14 - Os atos sexuais que envolvem menores são hediondos, constituem violações graves dos direitos fundamentais, em especial do direito da criança à proteção e aos cuidados necessários ao seu bem-estar. 4. De seguida foi ordenada a subida dos autos ao Tribunal da Relação de Évora. Aqui, em vista dos autos o Magistrado do MP pronunciou-se, ao abrigo do disposto no artigo 416.º CPPenal, pela improcedência do recurso. Seguidamente o arguido, em resposta, veio dizer que o Tribunal da Relação é incompetente para apreciar o recurso interposto, devendo tal incompetência, aliás geradora de nulidade insanável, ser declarada e, sequentemente, ser ordenada a remessa dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça (artigos 432.º, n.ºs 1, alínea c) e 2, 32.º, n.º 1, 119.º, alínea e) e 417.º, n.º 6, alínea a) do Código de Processo Penal). Aberta conclusão ao relator, entendendo-se que o arguido apenas impugna a medida concreta da pena de 6 anos de prisão em que se mostra condenado, sendo o objecto do recurso exclusivamente reportado a matéria de direito, nos termos do disposto no artigo 432.º/1 alínea c) CPenal, foi declarada a incompetência material daquele Tribunal, determinando-se a remessa do processo ao Supremo Tribunal de Justiça. 5. Remetidos a este Supremo Tribunal de Justiça, em vista dos autos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416.º CPPenal, o Senhor Procurador-Geral Adjunto, acompanhando a resposta apresentada pelo MP na 1.ª instância, emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso. 6. Notificado, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 417.º/2 CPPenal, o arguido reafirmou os fundamentos do recurso. 7. Colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência e dos correspondentes trabalhos resultou o presente Acórdão. II. Fundamentação 1. Âmbito do recurso O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente, cfr. artigos 402.º, 403.º e 412.º CPPenal, sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso, se necessário à boa decisão de direito, de vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º/2 CPPenal, cfr. acórdão de fixação de jurisprudência 7/95, de nulidades não sanadas, n.º 3 do mesmo preceito e de nulidades da sentença, cfr. artigo 379.º/2 CPPenal, na redação da Lei 20/2013. E, assim, as questões suscitadas pelo recurso interposto pelo arguido são as de saber se, - é caso de atenuação especial da pena; - é caso de redução da pena concreta, mesmo não sendo caso de aplicação daquela cirunstância modificativa. 2. Atentemos, desde já, com maior cuidado e atenção na questão da subsunção dos factos ao Direito. Com base nos factos provados, designada e essencialmente, 5- Acto contínuo, o arguido AA agarrou nos dois braços de BB, pôs o seu corpo em cima do corpo dela, imobilizou-a mediante o emprego de força física, beijou-a na boca, beijou-a nos seios, com as mãos tocou-lhe nos seios, desviou-lhe os calções e as cuecas para o lado, acariciou-lhe e introduziu-lhe os dedos na vagina e, após, introduziu o seu pénis erecto na vagina. 6- O arguido AA, após introduzir o pénis na vagina de BB, friccionou-o, fazendo movimentos de entrada e saída, até atingir o orgasmo e terminou a ejacular na barriga dela. 7- O arguido AA provocou muita dor e sangramento a BB. 8- Foi a primeira relação sexual de cópula vaginal de BB. 9- Após o arguido AA ordenou a BB que parasse de chorar, que fosse à casa de banho limpar-se e que se mantivesse em silêncio. 10- O arguido AA actuou sempre sob oposição de BB, que tentou, sem sucesso, afastar a cara para evitar os beijos e o corpo para evitar o contacto físico, ao mesmo tempo que implorava dizendo, repetidamente «Pára, não faças isso!» 11- O arguido AA actuou do modo supra descrito com a filha CC a dormir, na mesma cama, deitada ao lado de BB. 12- O arguido AA não usou preservativo. 13- No mesmo dia 18.08.2024, pelas 11 horas, o arguido AA entregou a BB um comprimido «Postinor, 1,5 mg», vulgo, pílula do dia seguinte, anticonceptivo de emergência, por si adquirido naquele mesmo dia, e disse-lhe «bebe isto para o caso de …». 14- Na véspera, no final da tarde do dia 17.08.2024, num dos quartos da residência, o arguido tentou beijar a BB, não tendo logrado porque esta se esquivou e fugiu. 15- Em meados de Abril de 2024, em duas ocasiões distintas, o arguido apalpou BB por cima da roupa, nos seios, rabo e vagina, foi o arguido acusado, primeiro, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 171.º/1 e 2 e 177.º/1 alíneas a), b) e c) CPenal e, condenado, depois, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos artigos 171.º/1 e 2 e 177.º/1 alíneas a) e b) CPenal. Da decisão condenatória proferida na 1.ª instância e aqui sob recurso, a propósito da operação de subsunção dos factos ao Direito retira-se a seguinte fundamentação: “ (…) a matéria de facto não deixa dúvidas acerca da verificação dos elementos objectivos e subjectivos do crime em análise: o arguido, após já ter em ocasiões anteriores apalpado BB por cima da roupa, nos seios, rabo e vagina e ter entrado na casa de banho quando aquela estava a tomar banho, sendo que o poliban do duche tem vidro transparente, no dia em questão o arguido entrou no seu quarto, dirigiu-se à cama que as crianças partilhavam, agarrou nos dois braços de BB, pôs o seu corpo em cima do corpo dela, imobilizou-a mediante o emprego de força física, beijou-a na boca, beijou-a nos seios, com as mãos tocou-lhe nos seios, desviou-lhe os calções e as cuecas para o lado, acariciou-lhe e introduziu-lhe os dedos na vagina e, após, introduziu o seu pénis erecto na vagina, friccionou-o, fazendo movimentos de entrada e saída, até atingir o orgasmo e terminou a ejacular na barriga dela, tendo actuado sempre sob oposição daquela, sabendo que ela tinha 13 anos de idade, que não queria manter relações sexuais, e ainda assim, quis e conseguiu forçá-la a manter consigo cópula vaginal completa, contra a sua vontade, através do recurso à força física que exerceu sobre o corpo daquela, com intuito de satisfazer o seu desejo sexual e os seus instintos libidinosos, indiferente às consequências de tal actuação sobre a mesma, prejudicando-a no seu normal e são desenvolvimento e atentando contra a sua autodeterminação sexual, aproveitando-se da circunstância de a ofendida se encontrar sozinha, desprevenida, não lhe conseguir oferecer resistência física, em face da superioridade física do arguido, que lhe prendeu os movimentos, limitou e impediu a sua capacidade de reacção e defesa, agindo de forma voluntária, livre e consciente. (…)” Cremos bem que a leitura dos factos provados são susceptíveis de integrar uma outra, diversa e plúrima qualificação jurídica. Com efeito, os factos que forma tidos como integradores do crime pelo qual o arguido foi acusado e vem condenado, de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos artigos 171.º/1 e 2 e 177.º/1 alíneas a) e b) CPenal, a que se reportam os pontos 5 e 6 do elenco dos factos provados da decisão recorrida; - acto contínuo, o arguido AA agarrou nos dois braços de BB, pôs o seu corpo em cima do corpo dela, imobilizou-a mediante o emprego de força física, beijou-a na boca, beijou-a nos seios, com as mãos tocou-lhe nos seios, desviou-lhe os calções e as cuecas para o lado, acariciou-lhe e introduziu-lhe os dedos na vagina e, após, introduziu o seu pénis erecto na vagina; - o arguido AA, após introduzir o pénis na vagina de BB, friccionou-o, fazendo movimentos de entrada e saída, até atingir o orgasmo e terminou a ejacular na barriga dela, são, eles próprios susceptíveis de integrar o tipo legal de crime de violação agravado, p. e p. pelos artigos 164.º/1 e 2 alínea a) e 177.º/1 alínea b) e 8 CPenal, porque colocou o corpo em cima da vítima. Por outro lado vem provado no ponto 14, que. - na véspera, no final da tarde do dia 17.08.2024, num dos quartos da residência, o arguido tentou beijar a BB, não tendo logrado porque esta se esquivou e fugiu, e, no ponto 15, que, - em meados de Abril de 2024, em duas ocasiões distintas, o arguido apalpou BB por cima da roupa, nos seios, rabo e vagina, O que é susceptível de integrar, respectivamente, em concurso real, o tipo legal de crime de abuso sexual de menor agravado – tal como vem condenado – um, na forma tentada e outro, na aforma consumada. Com efeito. Parece claro que tanto o tipo de crime de abuso sexual de crianças como o de violação não contemplam a pressuposta multiplicidade de actos semelhantes, que está implícita no crime habitual nem, por isso, a sua realização supõe um comportamento reiterado. Cada um dos vários actos do arguido foi levado a cabo num diverso contexto situacional, necessariamente comandado por uma diversa resolução e traduziu-se numa autónoma lesão do bem jurídico protegido. Cada um desses atos não constituiu um momento ou parcela de um todo projetado nem um ato em que se tenha desdobrado uma atividade suposta no tipo, mas um “todo”, em si mesmo, um autónomo facto punível. Deve por isso entender-se que, referentemente a cada grupo de actos, integradores do tipo de abuso sexual e do tipo de violação, existe uma pluralidade de sentidos de ilicitude típica e, portanto, de crimes. Não obstante, vem imputada ao arguido a prática de um crime, de um crime de abuso sexual. Sem que nada indicie, sem que nada permita inferir que a conduta do arguido se traduza numa única e singular resolução, que abarcasse, ab initio, as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que viriam a ter lugar os actos sexuais que praticou com a vitima. O que ressalta dos factos provados é que o arguido, aproveitando o facto de integrar o mesmo agregado familiar que a vítima, por três ocasiões, tomou a decisão de a molestar sexualmente. Dito de outra forma, o arguido, quando pretendia satisfazer seus apetites sexuais, renovava a intenção de o fazer, praticando de seguida os actos necessários a executá-la: escolhia o momento, o espaço e o modo concreto de o levar a cabo. Cremos, assim, que cada uma das condutas do arguido – cada acto sexual - é autónoma em relação às outras, sujeita a um juízo, também ele, autónomo de censura, constituindo, assim, um crime, em concurso efectivo, com os demais. Isto dito. Como é sabido, dispõe o artigo 424.º/3 CPPenal que, “sempre que se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na decisão recorrida ou da respectiva qualificação jurídica não conhecida do arguido, este é notificado para, querendo, se pronunciar no prazo de 10 dias”. Norma que se aplica no caso de o tribunal de recurso verificar por iniciativa própria, que face aos factos provados, o enquadramento jurídico – criminal se deveria fazer por modo diverso, integrando a conduta em outro preceito incriminador e face a essa alteração, não prevista, desconhecida do arguido, a fim de se evitar uma decisão surpresa, haverá a necessidade de dar a conhecer a possível alteração de qualificação. A exemplo do que ocorre no processo cível com o artigo 3.º CPCivil, mas, no processo penal, com raízes e razões mais ponderosas e visando a salvaguarda de interesses mais profundos e assegurar as garantias de defesa constitucionalmente acauteladas. Haverá, assim, desde já, de dar cumprimento a este normativo. E, assim, se determinará a notificação do arguido para querendo, em 10 dias, se pronunciar. III. Dispositivo Por todo o exposto, acordam os Juízes que compõem este Tribunal em decidir o seguinte: - compulsados os autos constata-se que os factos julgados provados na decisão recorrida poderão ser susceptíveis de integrar a prática pelo arguido, não de um crime de crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos artigos 171.º/1 e 2 e 177.º/1 alíneas a) e b) CPenal, mas sim, em concurso real e efectivo, de um crime de violação agravado, p. e p. pelos artigos 164.º/1 e 2 alínea a) e 177.º/1 alínea b) e 8 CPenal, de um crime de abuso sexual de crianças agravado, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 171.º/1 e 2 e 177.º/1 alíneas a) e b) CPenal e de um outro crime de abuso sexual de crianças agravado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 171.º/1 e 2 e 177.º/1 alíneas a) e b) CPenal; - ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 424.º CPPenal, determina-se se efectue a comunicação desta enunciada alteração da qualificação jurídica dos factos constantes do acórdão condenatório. Notifique, sendo o arguido para, querendo, em 10 dias se pronunciar. Sem tributação. Certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e, assinado eletronicamente por si e pelos Srs. Juízes Conselheiros adjuntos, nos termos do artigo 94.º/2 e 3 CPPenal. Supremo Tribunal de Justiça, 2025OUT09 Ernesto Nascimento - Relator Celso Manata - 1.º Adjunto Vasques Osório - 2.º Adjunto |