Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ00000334 | ||
Relator: | ABEL FREIRE | ||
Descritores: | MATÉRIA DE FACTO MATÉRIA DE DIREITO CULPA PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA CONTRATO DE SEGURO NULIDADE DO CONTRATO ÓNUS DA PROVA | ||
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Nº do Documento: | SJ200206060017472 | ||
Data do Acordão: | 06/06/2002 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T REL PORTO | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 1339/01 | ||
Data: | 12/03/2001 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA. | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
Área Temática: | DIR COM. DIR ECON - DIR SEG. DIR PROC CIV. DIR CIV - TEORIA GERAL. | ||
Legislação Nacional: | CCOM888 ARTIGO 429 ARTIGO 437 N2. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃO STJ DE 1970/11/13 IN BMJ N201 PAG160. ACÓRDÃO STJ DE 1990/12/20 IN BMJ N402 PAG558. ACÓRDÃO STJ DE 1992/01/15 IN BMJ N413 PAG487. ACÓRDÃO STJ DE 1999/03/11 IN BMJ N485 PAG426. ACÓRDÃO STJ DE 1990/140/04 IN BMJ N400 PAG672. ACÓRDÃO STJ DE 1998/03/03 IN CJSTJ ANOVI T1 PAG103. ACÓRDÃO RP DE 1998/11/09 IN CJ ANO23 T5 PAG86. | ||
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Sumário : | I- A culpa quando resulte da violação de qualquer forma legal ou regulamentar, constitui matéria de direito, sendo, por isso, cognoscível pelo Supremo Tribunal de Justiça. II- Já não assim é quando se baseia na violação dos deveres gerais de previdência, diligência ou perícia, o que integrará matéria de facto do exclusivo apanágio das instâncias. III- Para que se deva concluir pela nulidade do contrato de seguro nos termos e para os efeitos do art. 429 do C. Comercial torna-se necessário que a pessoa que fez o seguro tenha conhecimento dos factos (inexactidão, deficiências ou circunstâncias) e que esses factos sejam susceptíveis de ter podido influir sobre a existência ou condições do contrato. IV- Constituindo a nulidade ou a anulabilidade causa impeditiva da celebração do contrato, impende sobre a seguradora o ónus da prova dos fundamentos que a levariam à sua não celebração. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: A, empresário em nome individual, residente em Moledo, Caminha, intentou a presente acção com processo ordinário, contra B - Companhia de Seguros, S.A., com sede em Lisboa, pedindo que esta seja condenada a pagar ao autor: a) a quantia de 11893230 escudos, correspondente ao capital seguro ou valor dos objectos furtados; b) a importância de 2267860 escudos de juros legais vencidos sobre o capital em dívida, desde 8 de Junho de 1994 até à instauração da acção e c) os juros legais vincendos contados desde essa data até integral e efectivo pagamento. Fundamenta o pedido alegando que celebrou com a Ré um contrato de seguro de cargas para cobertura de risco de perda ou dano sofrido por objectos transportados entre Moledo e Madrid e que, na viagem, o veículo onde os transportava foi furtado e toda a sua carga perdida. A Ré contesta impugnando os factos articulados e excepcionando a circunstância de o autor ter "abandonado o veículo na via pública, desprovido de qualquer tipo de alarme, em local desértico, sem guarda e frequentado por pessoas desconhecidas, do tipo de quem se suspeita que furtam viaturas automóveis." Assim, fez com que a ocorrência deixe de ser imprevista. O Autor não informou a Ré que a viatura não dispunha de alarme, facto que, se fosse do seu conhecimento, recusaria o seguro ou, pelo menos, agravaria a taxa do prémio. Conclui pela nulidade do contrato de seguro e pela improcedência da acção. Na réplica o autor contesta os fundamentos da contestação e reafirma os pressupostos da procedência da acção. Correram os autos os seus termos vindo a ser proferida sentença em primeira instância que julgou a acção procedente e condenou a ré a pagar ao autor a quantia de 11893230 escudos, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde 8 de Junho de 1994 e dos vincendos até integral pagamento. Inconformada a ré interpôs recurso que a Relação julgou improcedente. Vem agora recorrer para este Tribunal, alegando, em resumo: Nos termos do contrato de seguro de mercadorias transportadas entre o autor e a ré a segurança que a seguradora tem de fornecer ao segurado depende da definição dos elementos do contrato, em especial do risco; Para a definição do risco, em geral, a seguradora tem de fiar-se nas declarações do segurado e, na falta destas, a seguradora aceita correr os riscos normais ou usuais da actividade que segura; Qualquer segurado comum não teria empreendido a viagem sem equipar o veículo com um sinal de alarme, nem teria deixado o veículo em local acessível a ser furtado; Tais circunstâncias não foram dadas a conhecer à ré, nem o autor delas o informou: O autor era simultaneamente transportador da mercadoria, sendo-lhe exigível a entrega dos bens transportados no destino; As cláusulas do contrato de seguro que vinculava o autor e a ré impunham àquele a obrigação de tomar todas as medidas que estivessem ao seu alcance para evitar ou diminuir os prejuízos; O autor nada fez de concreto em ordem a pôr de sobreaviso a tentação dos assaltantes de mercadorias guardadas em veículos estacionados, nem, tão pouco, provou a inevitabilidade do furto; Da reprovável conduta do autor resultou a introdução de um vício próprio no objecto do seguro que devia ser prontamente comunicado à ré. Não o fazendo ficou o autor ao abrigo do previsto no artigo 437 n.º 2 do C. Comercial, o que determina ficar o seguro sem efeito. A conduta do autor fez com que a ré ficasse com riscos superiores aos normalmente contratados, o que determina a nulidade do contrato nos termos do art. 429 do C. Comercial. Do exposto resulta que a ré não é responsável pela indemnização reclamada. Ao julgar o contrário o acórdão recorrido, confirmando a sentença de primeira instância, violou os art.s 429 e 437 n.º 2 do C. Comercial. Contra-alegou o autor sustentando que deve manter-se a decisão recorrida. Perante as alegações da ré as questões postas são: Vício próprio do objecto seguro; Se o seguro é nulo. Factos. No dia 1 de Junho de 1994 o Autor celebrou com a ré um contrato de seguro para cobertura dos riscos de perda ou dano sofridos pelos objectos que seriam por si transportados entre Moledo e Madrid no valor de 11893230 escudos - alínea A) da especificação. Esse contrato de seguro abrangia auto-rádios, máquinas de barbear, televisões e vídeos relacionados na factura n.º 94, de 31 de Maio de 1994 - doc. de fls. 12, 13 e 14 dos autos. Em 4 de Junho de 1994, a ré aceitou expressamente o contrato de seguro e considerou-o efectivamente celebrado com início a 1 de Junho de 1994. Esse contrato de seguro encontra-se titulado pela apólice n.º 71124853 e o autor pagou o respectivo prémio. No dia 8 de Junho de 1994, pelas 8.00 horas, o autor participou à Guarda Civil espanhola do posto de Medina del Campo, que lhe haviam furtado o veículo em que fazia o transporte aludido acima e os objectos que se encontravam no seu interior. O autor comunicou à ré o furto aludido. Em 13 de Junho de 1994, o autor foi contactado pela C - encarregada pela ré de proceder a averiguações tendentes a determinar as circunstâncias do furto. Nessa mesma data, foram entregues pelo autor à "C" cópias das facturas referentes à aquisição da mercadoria e, a solicitação desta, em 20 de Julho de 1994, enviou-lhes cópia do título de registo de propriedade e livrete do veículo utilizado no transporte e, em 26 de Julho de 1994, cópia dos balancetes de 1992 e 1993. Em 15 de Janeiro de 1995, o autor enviou à ré, a solicitação desta, reclamação escrita da indemnização, factura n.º 94 e recibo, guia de remessa e pedido de encomenda. doc. de fls. 4 a 8. Com a data de 6 de Abril de 1994, a ré enviou ao autor a carta de fls. 18, pela qual comunica a recusa do pagamento da indemnização por este solicitada uma vez que, segundo as averiguações realizadas "o sinistro resulta da inexistência de todo e qualquer meio de defesa contra furto do veículo transportador e da negligência manifestada ao deixá-lo abandonado com mercadoria num local onde se encontravam realizadas todas as condições ideais para a ocorrência dum furto". Por carta datada de 12 de Junho de 1995, a ré, na sequência da missiva anterior, declara "nulo o seguro titulado pela apólice em referência, por força do que dispõe o art.º. 429°, do Código Comercial" - doc. de fls.19. Em resposta, o autor endereçou à ré a carta registada datada de 20 de Junho de 1995, em que declara: "não existe qualquer razão válida para declarar nulo o seguro em causa (...) devolve o cheque, recibo e acta adicional (...) e não aceito a declaração de nulidade do contrato, nem o estorno do prémio, encargos e imposto de selo. - doc. de fls. 20-22 e alínea L). O veículo XM do dispunha de alarme - alínea M) ainda da especificação. O autor dedica-se à importação e exportação de artigos de relojoaria e electrodomésticos, através de um estabelecimento comercial denominado "D", sito em Moledo - resposta ao quesito 1°. Nessa actividade foi-lhe encomendado um fornecimento de electrodomésticos pela "E", com sede em Madrid. O contrato de seguro bem como os objectos transportados, diziam respeito a essa encomenda. O valor global dessa encomenda era de 11893230 escudos. O transporte referido foi efectuado num veiculo de marca Fiat Ducato, de matrícula XM. Este veículo foi furtado em Abaquines, Medina del Campo, Espanha, na noite de 7 pada 8 de Junho de 1994. Quando estava estacionado no parque do Estabelecimento Hoteleiro "Los Arcos". O veículo foi recuperado pelo autor em 11 de Junho de 1994. Desapareceu a carga nele transportada. A comunicação aludida do furto foi efectuada em 8 de Junho de 1994. O autor reclamou da ré o pagamento do montante global dos objectos desaparecidos, na quantia de 11893230 escudos. O XM dispunha de tranca de direcção. O local onde o XM ficou estacionado não era guardado. O autor, antes de iniciar a viagem, não informou a ré de que o XM não dispunha de alarme. O volume de carga do XM é de 10,712363 m3. Foi partido o vidro triangular da porta direita do XM. Foram retirados a borracha e o vidro da vigia que separa a cabina do compartimento de carga. Essa vigia não permite a passagem de objectos volumosos como as televisões. As suas dimensões são 1,50 x 0,31 metros. As portas traseiras do compartimento de carga não foram forçadas ou violadas. Quando o XM apareceu apresentava uma ligação directa. O XM era dotado de tranca de direcção. O direito. Vício próprio do objecto seguro. Invoca a ré nas suas conclusões que houve violação do contrato porque nele foi introduzido um vício próprio no objecto do seguro que devia ser prontamente comunicado à ré. E com tal vício o seguro ficaria sem efeito. Dispõe o art. 437 n.º 2 do C. Comercial: "O seguro fica sem efeito: 2 - Se o sinistro resultar de vício próprio conhecido do segurado e por ele não denunciado ao segurador." Para fundamentar a existência de tal vício alega a ré que o autor deixou a viatura durante a noite abandonada num parque exterior ao hotel onde pernoitou em Abaquines, Medina del Campo, no percurso que fazia entre Moledo e Madrid, carregado com os objectos seguros não havendo aí guarda. Em seu entender um tal comportamento revela indiferença e irresponsabilidade, porquanto seria de prever a enorme probabilidade de os objectos transportados serem furtados e com um tal comportamento introduziu um "vício próprio no objecto seguro, que deveria ser prontamente comunicado à ré. Não o fazendo o autor ficou ao abrigo da previsão do n.º 2 do art. 437 do C. Comercial". Refere Cunha Gonçalves (Comentário ao Código Comercial, vol. II, pág. 565): "O fim do seguro é garantir o segurado contra um risco eventual derivado duma causa externa, ou ao menos estranha ao objecto segurado, e não o de permitir ao segurado a compensação dos defeitos deste objecto, pela indemnização". A ré põe o acento tónico do vício próprio da coisa no facto do autor não ter usado da diligência dum bom pai de família na guarda das mercadorias ao deixá-las num veículo sem alarme no parque do hotel onde pernoitou, introduzindo um vício no objecto seguro. Ao invocar a negligência do segurado apela a uma circunstância que exorbita o conhecimento deste Tribunal. Com efeito a decisão sobre a culpa, quando esta resulte da violação de qualquer norma legal ou regulamentar, constitui matéria de direito, sendo, por isso, do conhecimento deste Tribunal. Quando se baseie na violação das regras gerais de previdência, diligência ou perícia, trata-se de matéria de facto, que não cabe a este Tribunal apreciar (ver, v. g., os Ac.s do STJ de 13-11-1970, BMJ 201-160, de 20-12-1990, BMJ 402-558 e de 15-1-1992, BMJ 413-487). A Relação entendeu que não se verificava a existência de culpa do segurado Diz a Relação: "nem o autor tem culpa que o hotel não tivesse lá guarda nocturno, nem lhe é assacável responsabilidade - mesmo sob negligência - pelo furto ocorrido nesse parque." E mais adiante acrescenta: "ficou estacionado (o veículo num parque de hotel, presume-se em lugar onde, mesmo durante a noite chegam carros, circulam pessoas em busca de descanso; ou do Hotel partem ......". Nulidade do contrato. Dispõe o art. 429 do Código Comercial: "Toda a declaração inexacta, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam influído sobre a existência ou condições do contrato tornam o seguro nulo § único. Se da parte de quem fez as declarações tiver havido má fé o segurador terá direito ao prémio." Diz a ré que ao deixar o veículo no parque do Hotel, sem guarda nocturno, quando nele se transportavam auto-rádios, máquinas de barbear, televisões e vídeos, circunstâncias estas que não comunicou à ré e que eram essenciais para a exacta apreciação do risco, atenta a natureza do contrato (seguro de transporte de mercadorias), corresponde ao autor fazer assumir riscos maiores dos que são normalmente contratados, o que leva à nulidade do contrato. Entende a ré que a omissão por parte do segurado das circunstâncias em que empreendeu a viagem e ao deixar a viatura no parque do Hotel e sem alarme constituem elementos que influem na existência ou condições do contrato. Vejamos o que deve entender-se por condições inexactas ou reticentes ou circunstâncias que devem ser conhecidas do segurado com influência sobre a existência ou condições do contrato. A inexactidão ou omissão de declarações a que se reporta o art. 429, como fundamento para a nulidade do contrato tem em vista a protecção do segurador de modo a que se este soubesse dessas circunstâncias "não teria concluído o contrato (erro essencial) ou exigiria outras condições mais onerosas para o segurado (erro incidental)" (Calvão da Silva RLJ 133-221). Tratar-se-ia de anulabilidade, segundo certos autores, como Moitinho de Almeida, O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, 61, nota 29 e José Vasques, Contrato de Seguro, 1999, págs. 379 e 380 e na jurisprudência ver o Ac. STJ de 11-3-1999, BMJ 485-426). A jurisprudência vem entendendo que para a existência da nulidade se torna necessário que a pessoa que fez o seguro tenha conhecimento dos factos (inexactidões, deficiências e circunstâncias), por um lado; por outro, que esses factos sejam susceptíveis de terem podido influir sobre a existência ou condições do contrato (Ac. STJ de 4-10-1990, BMJ 400-672). A inexactidão consiste na informação desconforme (falsa, com má fé ou com mera negligência ou erro) com os factos, feita pelo segurado quando tinha conhecimento dele; a deficiência consiste na omissão de factos, também eles relevantes para ser celebrado o contrato, por influírem no risco. "É indispensável que a inexactidão influa na existência e condições do contrato, de sorte que o segurador ou não contrataria ou teria contratado em diversas condições. As simples inexactidões anódinas não produzem a consequência jurídica de anular o contrato" (Cunha Gonçalves, Comentário ao Código Comercial Português, Vol. II-541). Não se vê que outras circunstâncias estejam presentes que pudessem interferir na realização do contrato. Sendo a nulidade ou anulação causa impeditiva da celebração do contrato, cabe à seguradora provar os fundamentos que levariam a não o celebrar (neste sentido Ac. STJ 3-3-1998, CJ(S) VI-1-103 e Ac. RP de 9-11-1998, CJ 23-5-186). Perante a doutrina e jurisprudência indicada, verificamos que a ré cobriu o risco do furto de transporte de mercadorias de Moledo para Madrid sem que do contrato resultem inexactidões, ou seja, informações do segurado desconformes com o conteúdo da proposta. Quanto a omissões ou outras circunstâncias no transporte verifica-se que o veículo transportava a mercadoria sem ter alarme. Mas não se mostra que essa circunstância tenha influído para a celebração do contrato, nem que tenha sido equacionada pelas partes. Também não se provou que a ré deixasse de contratar pelo facto de não haver esse tipo de prevenção contra o furto. O facto de o veículo ficar de noite no parque do Hotel onde o condutor pernoitou não foi uma omissão que tivesse sido prevista na realização do contrato. É natural que se o autor tivesse previsto a eventualidade do furto se tivesse precavido doutra forma, pois não só a mercadoria levada pelos assaltantes causou prejuízos, embora estivesse a coberto do seguro, como a própria viatura que foi furtada e levada pelos assaltantes causou prejuízos ao autor. Ou seja: não há prova de influência na omissão da falta de alarme, nem no local de estacionamento a influenciar a realização do contrato. Nos termos expostos, improcedem as alegações da ré. Nega-se revista. Custas pela ré. Lisboa, 6 de Junho de 2002. Abel Freire, Ferreira Girão, Loureiro Fonseca. |