Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
Relator: | JORGE RAPOSO | ||
Descritores: | RECURSO PER SALTUM COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS ATENUAÇÃO DA PENA DECURSO DO TEMPO MEDIDA CONCRETA DA PENA PENA DE PRISÃO PENA ÚNICA PENA SUSPENSA IMPROCEDÊNCIA | ||
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Data do Acordão: | 03/19/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
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Sumário : | I. A atenuação especial incide sobre as penas concretas de cada um dos crimes e não sobre a pena única. II. A atenuação especial da pena funciona como uma válvula de segurança com dois pressupostos essenciais: - Diminuição acentuada da ilicitude e da culpa, necessidade da pena e, em geral, das exigências de prevenção; III. A atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar; para a generalidade dos casos, para os casos “normais”, “vulgares” ou “comuns”, “lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios”. IV. O decurso do tempo, neste contexto, estando em causa crimes de abuso sexual de crianças, não é “excepcionalmente longo, tendo em consideração a normal tramitação do processo” e não tem uma relevância que justifique o recurso ao instituto da atenuação especial V. O bom comportamento e a ausência de notícia da prática de outros crimes corresponde à expectativa comunitária normal e, assim, a uma situação normal em que não se justifica a diminuição da moldura das penas. VI. A pena única fixada no acórdão encontra-se abaixo do 1/14 da moldura da pena única, com o mínimo de 4 anos e 5 meses (pena parcelar mais alta) e o máximo de 22 anos e 11 meses (soma de todas as penas parcelares), o que corresponde a uma extrema compressão da pena única, que apenas encontra justificação na circunstância de os crimes terem sido praticados de forma significativamente homogénea há 7 anos, num curto período e por o arguido, não tendo antecedentes criminais, nem havendo notícia de condenações anteriores ou posteriores, ter tido uma postura confessória e vir assumindo um comportamento social, familiar e laboral adequados. VII. Pela sua moderação, a pena mostra-se justa – proporcional, adequada e necessária – e conforme aos critérios plasmados nos art.s 71º e 77º do Código Penal, na consideração do facto global, da gravidade desse ilícito global e por referência à personalidade unitária do arguido. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam – em conferência – na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça: I – RELATÓRIO Nos presentes autos de processo comum com intervenção do Tribunal Colectivo, o arguido AA, solteiro, servente de construção civil, filho de BB e CC, natural e nacional do Brasil, nascido em ........1990 foi julgado e a final: a) Absolvido da prática de 3 (três) crimes de abuso sexual de crianças agravados, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.º 1 e 2 e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, na redação da Lei n.º 103/2015, de 24/08; b) Condenado pela prática, em autoria material e em concurso material de - 1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, na redação da Lei n.º 103/2015, de 24/08, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão; - 4 (quatro) crimes de abuso sexual de crianças agravados, previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, na redação da Lei n.º 103/2015, de 24/08, na pena de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão, cada um; - 1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, na redação da Lei n.º 103/2015, de 24/08, na pena de 4 (quatro) anos e 5 (cinco) meses de prisão; c) Em cúmulo jurídico, condenado na pena única de 5 (cinco) anos e 9 (nove) meses de prisão; d) Condenado na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 5 (cinco) anos, nos termos do artigo 69.º-B, n.º 2 do Código Penal; e) Condenado na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menores (em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança), pelo período de 5 (cinco) anos, nos termos do artigo 69.º-C, n.º 2 do Código Penal; f) Condenado na pena acessória de inibição do exercício de responsabilidades parentais pelo período de 5 (cinco) anos, nos termos do artigo 69.º-C, n.º 3, do Código Penal; g) Condenado a pagar à ofendida DD o montante de 5.000 € (cinco mil euros), a título de reparação pelos danos não patrimoniais sofridos, ao abrigo do disposto nos artigos 82.º-A, n.º 1 e 67.º-A, nº 1, alínea b), ambos do Código de Processo Penal e no artigo 16.º, n.º 2, da Lei n.º 130/2015 de 04/09;; * Inconformado, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, apresentando a seguinte síntese conclusiva: 1. O Recorrente foi condenado a uma pena de 5 (cinco) anos e 9 (nove) meses de prisão efetiva nos moldes determinados em sede de acórdão; 2. Nega ser delinquente, a quem tenha que ser forçosamente enclausurado, sem qualquer tipo de recuperação possível; 3. Por outro lado, temos que os factos datam de, pelos menos, há mais de 7 anos , trataram-se de uma ocorrência pluriocasional esporádica no seu percurso pessoal, que não radica na sua personalidade. 4. Desde que o Arguido tomou profundo conhecimento que não se tratava de uma relação amorosa, mas sim de um crime punido, isto é, desde que o Arguido teve conhecimento da censura de tais factos e a punição criminal dos mesmos , não mais praticou conhecimento quaisquer factos da mesma natureza , ou outros ilícitos 5. Não é uma tendência criminosa da sua personalidade. 6. O Arguido não é um Predador 7. E, muito mais volvidos mais de sete anos sobre os factos; foi de sua livre iniciativa e vontade que, se apresentou em Tribunal para contribuir para a descoberta da verdade e para o demonstrar as circunstâncias e contornos que tomou o crime praticado pelo ora Recorrente e descritos no douto acórdão, assim como as descritas condições pessoais do Arguido constantes dos autos, que cremos que deveriam ser consideradas como tendo um relevo especial, impondo-se uma atenuação especial da pena, prevista nos artigos 72º e 73º do CP. 8. Em que a Arguido recompôs a sua vida e, perante esta nova realidade se tornou uma pessoa válida para a Sociedade; 9. Não estamos perante um percurso criminoso, revelador da uma prática recorrente de ilícitos. O Arguido não tem qualquer tipo de antecedentes criminais antes da prática dos factos e, durante este tempo decorrido igualmente não incorreu em qualquer conduta ilícita, como será fácil de constatar; 10. Atendendo aos princípios gerais de direito e à tão visada reinserção social, afere-se como excessivamente gravosa e, acima de tudo, contraproducente a medida da pena aplicada ao ora Recorrente no presente. 11. Ao contrário do que julgou o Tribunal a quo, na decisão ora posta em crise, que salvo devido respeito, não foram levados em consideração os critérios enunciados no nº2 do artº 71 do CP, entende-se ser possível fazer-se o tal juízo prognose favorável à reintegração social do arguido; 12. De molde a decidir-se por medida que contribua para a reintegração e não para a segregação, cumprindo-se assim o disposto no artº40 do Código Penal 13. Tão pouco foram levadas em consideração as circunstâncias pessoais que depondo a favor da recorrente, concorriam para uma suspensão da pena; 14. O doseamento da pena arbitrada pelo tribunal a quo denuncia uma nítida violação do princípio da proporcionalidade das penas; 15. A este respeito, desde já se advoga que as normas constitucionais que se consideram violadas são as vertidas no nº2 do artº32º, nº6 do artº29º e nº4 do artº30º da Constituição da República Portuguesa; 16. No juízo de prognose deverá o tribunal atender, no momento da elaboração da sentença, à personalidade do Agente (designadamente ao seu carácter); as condições da sua vida (inserção social; profissional e familiar) à sua conduta anterior e posterior ao crime (ausência ou não de antecedentes criminais), bem como, no que respeita à conduta posterior ao crime, designadamente à confissão aberta e relevante para a descoberta da verdade; ao seu arrependimento, pedido de desculpas). 17. Crê-se que estão reunidas as condições de facto e de direito para uma efectiva atenuação da pena para o seu limite mínimo de 4 (quatro) anos e 5 (cinco) meses e sua suspensão no nosso modesto entendimento - para o caso vertente; com eventual aplicação de regime de prova que preveja a sujeição a acompanhamento psicológico especializado, por forma à aquisição de capacidades de maturativas, de autoanálise e de elaboração de um pensamento reflexivo, descentrado e consequencial, com especial enfoque na área da sexologia, nos termos sugeridos pela DGRSP 18. Assim e, neste raciocínio é forçoso colocar a hipótese de suspensão da pena, ao abrigo do art.ºº 50 nº1 do CP, concluindo-se, como pugnamos, ser possível fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do Arguido, ou seja, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão efetiva realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Nestes termos deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão ora recorrida, sendo reduzida a medida da pena ao limite minino legal de 4 (quatro) anos e 5(cinco) meses e aplicada a figura da suspensão da pena, nos termos e para os efeitos do artº50 do Código Penal “...Fazendo-se assim a BOA E COSTUMADA JUSTIÇA!” Respondeu o Digno Magistrado do Ministério Público, concluindo pela improcedência do recurso: 1. O acórdão fez uma apreciação correcta da factualidade, tendo condenado o arguido na pena de cinco anos e nove meses de prisão. 2. Foi tida em consideração a circunstância do arguido não possuir antecedentes criminais, conforme explanado no douto Acórdão: “A conduta do arguido, anterior aos factos, é de molde a considerar que o mesmo tem adotado um comportamento de conformidade com a ordem jurídica, uma vez que não regista quaisquer antecedentes criminais”. 3. Os factos praticados pelo arguido foram graves, intrusivos e perduraram no tempo. Não se tratou de um acto irrefletido pelo arguido, mas sim de vários actos. Actos esses praticados contra a filha da sua companheira, cuja idade não podia desconhecer. 4. O crime de abuso sexual de crianças é dos mais graves previstos no Código Penal e daqueles que maior censura merecem por parte da sociedade. 5. A ilicitude do facto é elevada e o dolo de intensidade elevada. 6. As exigências de prevenção geral positiva são elevadas, atenta a necessidade de prevenir este tipo de condutas. 7. Foi respeitado o princípio da proporcionalidade. 8. Tudo ponderado, considerando a gravidade dos factos apurados, a culpa do arguido e as exigências de prevenção, mostra-se objectivamente justificada a pena aplicada encontrada pelo tribunal Termos em que deve o recurso interposto ser julgado improcedente, mantendo-se o douto acórdão recorrido. * Após parecer do Ex.mo Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação de Lisboa, o Exmo Senhor Desembargador, naquele Tribunal, proferiu despacho em 6.2.2025 em que determina a remessa dos “autos ao Supremo Tribunal de Justiça, por ser o tribunal competente para conhecer do presente recurso, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, do Código de Processo Penal, bem como do artigo 417.º, n.º 6, alínea a), do mesmo diploma”. Concordamos na totalidade com a fundamentação e decisão tendo em consideração o teor do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Uniformização de Jurisprudência 5/2017, de 23 de Junho1, no sentido de que «A competência para conhecer do recurso interposto de acórdão do tribunal do júri ou do tribunal coletivo que, em situação de concurso de crimes, tenha aplicado uma pena conjunta superior a cinco anos de prisão, visando apenas o reexame da matéria de direito, pertence ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, do CPP, competindo-lhe também, no âmbito do mesmo recurso, apreciar as questões relativas às penas parcelares englobadas naquela pena, superiores, iguais ou inferiores àquela medida, se impugnadas». * Neste Supremo Tribunal de Justiça o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em que após análise detalhada e completa, conclui: Em conformidade, somos de parecer que o recurso deverá ser julgado improcedente, confirmando-se integralmente o acórdão recorrido. Não foi apresentada resposta ao parecer. * Foram observadas as formalidades legais, nada obstando à apreciação do mérito do recurso (art.s 417º nº 9, 418º e 419º, nºs. 1, 2 e 3, al. c) do Código de Processo Penal). II – FUNDAMENTAÇÃO Como se referiu já, recorre-se directamente para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos dos nºs 2 e 3 do art 410º do Código de Processo Penal (art. 432º nº 1 al. c) do Código de Processo Penal). É jurisprudência constante e pacífica que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. * O Recorrente não argui expressamente a existência de nulidades ou vícios e, analisado o acórdão recorrido, não se encontram nulidades ou vícios de conhecimento oficioso (art.s 379º e 410º do Código de Processo Penal). As questões a decidir são: 1. A atenuação especial da pena; e, 2. A medida da pena única e a possibilidade de suspensão. *** Na decisão sob recurso é a seguinte a matéria fáctica provada: 1. Matéria de facto provada Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos, com relevância para a decisão de mérito: 1. A vítima DD, natural e nacional do Brasil, nasceu em ... de ... de 2003, sendo filha de EE. 2. EE é ainda mãe de FF, nascido em ... de ... de 2006. 3. Em data não apurada do ano de 2010, EE e o arguido passaram a coabitar, como se casados um com o outro fossem. 4. EE e o arguido são progenitores comuns de GG, nascida em ... de ... de 2011. 5. Em data não apurada de 2009, a vítima DD e FF viajaram do Brasil para Portugal, passando a residir com sua avó materna HH, na casa desta, sita na Rua ..., em .... 6. Em data não apurada, compreendida em novembro de 2016, EE, o arguido e a filha comum GG viajaram do Brasil para Portugal, passando então a residir na Rua ..., em ..., assim coabitando com a vítima e demais agregado familiar. 7. Nesse contexto, em data não apurada, compreendida em dezembro de 2016, na época do Natal, no decurso do período noturno, a vítima DD e demais agregado familiar encontravam-se no domicílio comum. 8. Então, pese embora estivesse bem ciente que a vítima tinha apenas treze anos de idade, o arguido enviou-lhe uma mensagem de teor não concretamente apurado e depois foi ao quarto onde a mesma se encontrava e beijou-a na boca, o que desagradou a vítima que, em consequência desse acontecimento, chorou muito, passando mal a noite. 9. Em data ulterior não apurada, anterior a junho de 2017, EE, o arguido e a filha comum GG passaram a coabitar na Rua da ..., em ..., permanecendo a vítima e seu irmão FF a coabitar com sua avó. 10. No período das férias escolares do Verão de 2017, compreendido entre 15 de junho de 2017 e 6 de setembro de 2017, a vítima e seu irmão FF coabitaram com EE e o arguido na residência destes, em ..., habitação com três quartos. 11. Nesse período, por à altura estar desavinda com o arguido, EE não dividia o leito com este, pernoitando num quarto com a filha GG, sendo que a vítima pernoitava noutro quarto e o arguido no quarto restante, enquanto que FF dormia na sala. 12. Nesse contexto, em, pelo menos, cinco ocasiões, de datas não apuradas, compreendidas no aludido período, na aludida residência, as mais das vezes a coberto da noite, prevalecendo-se do facto de EE à altura estar medicada com fármacos que lhe tornavam o sono imune a ruídos ou perturbações externas, o arguido interpelou a vítima no quarto desta, acordando-a. 13. Em todas essas ocasiões, pese embora estivesse bem ciente que a vítima contava apenas treze anos de idade, o arguido beijou-a na boca e acariciou-lhe o corpo, mormente os seios e a vagina, retirando as roupas que a mesma envergava, assim a desnudando. 14. Em todas essas ocasiões, o arguido agarrou uma das mãos da vítima, levando-a até ao pénis exposto do arguido e fazendo-a friccionar-lhe o pénis, em gesto masturbatório. 15. Em todas essas ocasiões, o arguido, com o seu pénis, penetrou a vagina da vítima, aí o friccionando alguns momentos. 16. Em todas essas ocasiões, o arguido lambeu por alguns instantes a vagina da vítima. 17. Numa dessas ocasiões, em data não apurada, o arguido segurou a vítima de modo a que esta recebesse na sua boca o seu pénis, só retirando o seu pénis da boca da vítima quando se apercebeu que esta teve reflexo de engasgo. 18. Em todas as ocasiões descritas, bem sabia e não podia ignorar o arguido a idade da vítima, mormente que a mesma tinha menos de catorze anos de idade. * 19. Ao atuar da forma descrita, na época do Natal de 2016, beijando a vítima DD na boca, o arguido bem sabia e não podia ignorar que punha em causa o livre desenvolvimento da personalidade da mesma na esfera sexual, o que fez com vista a satisfazer os seus instintos libidinosos, o que quis e logrou. 20. Ao atuar da forma descrita, nas ocasiões no decurso do Verão de 2017, despindo e acariciando o corpo da vítima DD, penetrando-a na vagina com o seu pénis, levando a vítima a masturbá-lo, colocando o pénis na sua boca e lambendo-lhe a vagina, o arguido bem sabia e não podia ignorar que punha em causa o livre desenvolvimento da personalidade da vítima na esfera sexual, o que fez com vista a satisfazer os seus instintos libidinosos, o que quis e logrou. 21. Em todas as ocasiões descritas, não ignorava nem podia ignorar o arguido que coabitava com EE, mãe da vítima, como se casados fossem e que coabitava com a vítima, sobre ela tendo o ascendente resultante de com a mesma ter relação familiar e de coabitação, o que lhe propiciava proximidade quotidiana com a vítima, circunstâncias de que se prevaleceu para concretizar os seus instintos libidinosos. 22. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei. Das condições pessoais do arguido 23. O arguido, oriundo do Brasil num seio familiar numeroso e economicamente carenciado, possui um percurso desenvolvimental marcado pela exposição a dinâmicas disfuncionais, tendo inclusivamente assistido a episódios de violência física e sexual severos, perpetrados pelo padrasto contra a progenitora, o qual apresentava um quadro de adição alcoólica. 24. Nessas ocasiões, o arguido interveio em defesa da mãe, recorrendo ao uso de força física para imobilizar o padrasto, impedindo-o de intensificar as agressões. 25. O modelo de supervisão parental revelou-se permissivo, pese embora afetivamente securizante, relevando-se elevados níveis de ressonância afetiva com a progenitora. 26. No período a que alegam os factos que compõem o presente processo judicial, o arguido residia com a ex-companheira EE e a filha comum, sendo que a enteada (DD) integrava o agregado de modo temporário e pontual, designadamente nos períodos de férias escolares. 27. O arguido dispunha de integração laboral enquanto operário num centro de abate de automóveis, não se apurando dificuldades económicas, ainda que a ex-companheira não detivesse hábitos de trabalho regulares. 28. O arguido descreve a vivência marital com a ex-companheira EE como conturbada, na sequência dos desentendimentos suscitados por suspeitas de infidelidade e desconfiança mútua, variáveis que comprometeram a harmonia da relação e contribuíram para a diminuição da atração sexual e escassez dos contactos íntimos entre ambos. 29. Quanto à natureza da sua relação/proximidade com a enteada DD, o arguido insere-a num contexto familiar e de vivência conjunta ocasional, não apontando quaisquer dificuldades relacionais com a mesma. 30. As suas relações de intimidade foram encetadas com parceiras de escalões etários superiores ao seu, não referenciando fatores obstrutivos ou desviantes ao longo do processo de maturação sexual, iniciado aos 17 anos de idade. 31. O arguido não estabelece qualquer contacto com DD desde a separação da ex-companheira EE. 32. No que tange a contactos mantidos com ex-companheira, EE estes revestem-se de um caráter cordial e são destinados à gestão dos assuntos educativos da descendente comum, presentemente com 12 anos de idade. 33. O arguido encetou nova vivência marital há cerca de cinco anos, cuja dinâmica relacional caracteriza como harmoniosa, aspeto que foi secundarizado pela atual companheira. 34. Esta enaltece as competências parentais e pessoais do arguido, designadamente em termos de autogestão emocional e evitamento de conflitos interpessoais, ainda que lhe reconheça alguma dificuldade em expressar sentimentos. 35. A vivência sexual surge descrita por ambos como gratificante, apesar da iniciativa dos contactos íntimos decorrer maioritariamente da iniciativa daquela. 36. O casal reside num apartamento arrendado de tipologia T1, titulado pela companheira, sendo que a filha do arguido integra o núcleo aos fins de semana. 37. O mesmo denota satisfação pelas responsabilidades parentais assumidas, considerando-se um pai presente, envolvido e atento às necessidades da descendente. 38. O arguido possui o 12.º ano de escolaridade, mantém hábitos laborais regulares desde o início da adolescência e atualmente exerce atividade na construção civil sem vinculação contratual, pela qual aufere cerca de 900 euros mensais. 39. Ao longo da sua trajetória biográfica o arguido não atravessou períodos de desocupação, detendo experiência em áreas diversificadas. 40. A companheira presta serviços de limpeza e cuidados a idosos em casas particulares, pelos quais obtém um provento de cerca de mil euros por mês. 41. O quadro económico permanece isento de privações, sendo o rendimento conjunto suficiente para assegurar o pagamento das despesas mensais de manutenção existentes, cujo montante total ascende a mil e cem euros e que inclui a pensão de alimentos da filha (cem euros), bem como outras despesas de educação. 42. Os tempos livres do arguido são despendidos com treino físico (ginásio). 43. O arguido afirma ter sido privado temporariamente do contacto com a filha pela ex-companheira EE na fase posterior à constituição do atual processo, fator que contribuiu para a sua desestabilização pessoal. 44. O arguido deixa transparecer algum constrangimento advindo do envolvimento num processo judicial com conotação sexual. 45. Conquanto reconheça globalmente o bem jurídico associado a esta tipologia criminal, o arguido tende a minimizar as repercussões do seu comportamento no outro, denotando défices no reconhecimento de eventuais consequências para a vítima no que tange à sua autodeterminação sexual. 46. O arguido revela dificuldades de descentração, de empatia e de reconhecimento de eventual dano, porquanto isenta o seu comportamento de qualquer ação coerciva, tendo em conta a alegada consensualidade dos atos em referência. 47. Os serviços de reinserção social consideram que a narrativa do arguido remete para a eventual presença de crenças desadaptativas acerca da sexualidade e, em particular, de distorções cognitivas que assentam na neutralização dos fatores desencadeadores do alegado envolvimento sexual com a vítima menor. 48. DD beneficiou de acompanhamento psicológico na fase posterior ao surgimento da acusação. 49. Atendendo à inexistência de antecedentes criminais, o arguido revela ansiedade quanto à possibilidade de o desfecho judicial culminar numa condenação, manifestando disponibilidade para ingressar num programa dirigido a agressores sexuais. 50. O arguido não regista antecedentes criminais Quanto à “determinação da medida das penas”, o acórdão recorrido ponderou: O crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto pelas disposições conjugadas dos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal é punido com pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses a 10 (dez) anos e 8 (oito) meses de prisão. O crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto pelas disposições conjugadas dos artigos 171.º, n.º 1 e 2 e 177.º, n.º 1 alínea a) e b) do Código Penal é punido com pena de 4 (quatro) anos a 13 (treze) anos e 4 (quatro) meses de prisão. Dentro das molduras indicadas, deverão as penas ser determinadas em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção. O modelo mais adequado de determinação da pena é aquele que comete à culpa a função de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral de integração a função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite máximo coincide com a medida ótima de tutela dos bens jurídicos e cujo limite mínimo corresponde às irrenunciáveis exigências de defesa do ordenamento jurídico e, por último à prevenção especial de integração a função de encontrar, dentro da moldura de prevenção, o quantum exato de pena que melhor sirva as exigências de socialização. No que concerne às necessidades de prevenção geral deste tipo de ilícitos, o Supremo Tribunal de Justiça tece as seguintes considerações, no Acórdão de 05/11/20202:“Os crimes de abuso sexual de crianças e de pornografia de menores, do tipo dos crimes comprovadamente praticados pelo arguido recorrente, constituem um dos factores que provoca maior perturbação e comoção social, designadamente em face dos riscos (e danos) para bens e valores fundamentais que causam e da insegurança que geram e ampliam na comunidade”. É, por conseguinte, inequívoco que neste tipo de criminalidade, extremamente reprovada pela comunidade e pelo legislador, devem ser consideradas muito fortes as exigências da prevenção geral. * Considerando agora os critérios parametrizadores enunciados no n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal e reportando-nos aos fatores concretos concernentes à execução dos factos evidenciam-se as seguintes circunstâncias com relevo para a correspondente ponderação: • O grau de ilicitude dos factos praticados é acentuado, embora atenuado quanto ao primeiro contacto de natureza sexual (que se traduziu num beijo na boca), sendo mais elevado quanto aos demais (em particular um que envolveu, para a além da prática de sexo vaginal, também coito oral), não podendo, todavia olvidar-se que a diferença de idades entre o arguido e a ofendida não é muito acentuada (a ofendida tinha 13 anos e o arguido 26 anos); • O grau de culpa do arguido no cometimento dos factos é elevado, tendo agido com dolo direto, estando bem ciente da gravidade dos factos que praticava e da idade da vítima; • A conduta do arguido, anterior aos factos, é de molde a considerar que o mesmo tem adotado um comportamento de conformidade com a ordem jurídica, uma vez que não regista quaisquer antecedentes criminais; • O arguido confessou, no essencial, os factos dados como provados, expressando consciência critica quanto aos mesmos, bem como constrangimento quanto ao seu envolvimento em atos desta índole, ainda que denote alguma falta de capacidade no reconhecimento das consequências dos seus atos no que respeita à autodeterminação sexual da vítima; • No plano das condições pessoais, o arguido provém de um meio economicamente carenciado, tendo sido sujeito a dinâmicas disfuncionais e a violência no seu meio familiar; tem hábitos laborais regulares, o relacionamento com a progenitora da ofendida foi conturbado, encontrando-se separados e tendo o arguido iniciado outra relação marital há cerca de cinco anos, tida como gratificante, assumindo atualmente as responsabilidades parentais da sua filha, do seu anterior relacionamento com a progenitora da ofendida, a qual atualmente conta com doze anos de idade. Tudo visto e ponderado, entende-se equilibrado, justo e adequado aplicar ao arguido as seguintes penas: - 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, pelo crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal - atos descritos nos pontos 6) a 8) dos factos provados; - 4 (quarto) anos e 3 (três) meses de prisão, por cada um dos outros quatro crimes de abuso sexual, previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 1 e 2 e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal - atos descritos nos pontos 9) a 16) e 18) dos factos provados; - 4 (cinco) anos e 5 (cinco) meses de prisão, pelo crime de abuso sexual, previsto e punido pelos artigos 171.º, n.º 1 e 2 e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal – a que se reportam os atos descritos nos pontos 9) a 18), incluindo os atos do ponto 17) dos factos provados (coito oral). O acórdão fundamentou a “pena unitária”, nos seguintes termos: Atentos os crimes imputados e preenchidos pelo arguido, dir-se-á que estamos perante um concurso efetivo, verdadeiro ou puro, em que a ilicitude de um dos tipos legais não abrange a ilicitude contida no outro, pelo que as duas normas concorrem paralelamente na aplicação concreta. Ora, esta aplicação concreta, tem lugar na nossa lei, através do sistema do cúmulo jurídico, consagrado no artigo 77.º do Código Penal. De acordo com este preceito legal, dever-se-á proceder à fixação das penas parcelares respeitantes a cada um dos crimes em concurso. Posteriormente, somam-se as penas parcelares e obtém-se o limite superior da moldura abstrata aplicável, dentro dos limites absolutos agora expressamente previstos no n.º 2. O limite mínimo é constituído pela mais grave das penas parcelares fixadas. Encontrada desta forma a moldura abstrata, a pena única é determinada, nos termos da última parte do n.º 1, isto é, considerando “em conjunto, os factos e a personalidade do agente”, assim se respeitando o essencial da pena unitária. Considerando os parâmetros a que alude o artigo 77.º, n.º 1 do Código Penal, entende-se que se deverá salientar, com relevância para a determinação da pena única a aplicar ao arguido: • Os factos praticados pelo arguido contra a autodeterminação sexual da ofendida têm, na sua maioria, um caráter muito invasivo (cinco atos de cópula vaginal e um de coito oral, acompanhados de outros atos de índole sexual), atenta a natureza dos ilícitos praticados, tendo sido cometidos de forma essencialmente homogénea; • Decorreu um lapso de tempo assinalável (mais de sete anos) desde o cometimento dos factos pelo arguido, encontrando-se este afastado de contactos com a ofendida há vários anos e mostrando-se neste momento integrado social, profissional e familiarmente; • O arguido tinha, há data dos factos, 26 anos de idade e não tem averbadas quaisquer condenações, anteriores ou posteriores aos factos em apreciação; • O arguido manifestou sentido crítico quanto aos factos que praticou, assumindo-os na sua larga maioria e contribuindo para a descoberta da verdade material; Destarte, somadas as penas parcelares de prisão, temos que o limite máximo é de vinte e dois anos e onze meses de prisão, sendo o limite mínimo de quatro anos e cinco meses prisão, pelo que, operando o cúmulo jurídico, nos termos do artigo 77.º do Código Penal e considerados em conjunto os factos e a personalidade do arguido, reputa-se ajustada a pena única de 5 (cinco) anos e 9 (nove) meses de prisão. *** 1. Atenuação especial da pena O Recorrente pugna pela atenuação especial da pena3 com fundamento no tempo decorrido (sete anos sobre os factos), a sua contribuição para a descoberta da verdade, as condições pessoais, sem antecedentes criminais, recompondo a vida e tornando-se numa pessoa válida para a sociedade. Dispõe o art. 72º nº 1 do Código Penal: “o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto ou a culpa do agente ou a necessidade da pena”. Por sua vez, o nº 2 do mesmo artigo exemplifica várias circunstâncias que, correlacionadas com os requisitos contidos no nº 1, permitem a ponderação sobre a atenuação especial da pena. Deste modo, foi criada pelo legislador uma válvula de segurança para situações particulares, que tem sido justificada nos seguintes termos: Quando, em hipóteses especiais, existam circunstâncias que diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo “normal” de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, aí teremos mais um caso especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa. São estas as hipóteses de atenuação especial da pena. Hipótese que em muitos casos o próprio legislador prevê mas que a apontada incapacidade de previsão leva ainda a suprir com uma cláusula geral de atenuação especial. O funcionamento de uma tal válvula de segurança obedece a dois pressupostos essenciais, a saber: - Diminuição acentuada da ilicitude e da culpa, necessidade da pena e, em geral, das exigências de prevenção; - A diminuição da culpa ou das exigências de prevenção só poderá considerar-se relevante para tal efeito, isto é, só poderá ter-se como acentuada quando a imagem global do facto, resultante da actuação das circunstâncias atenuantes se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo. O que, por outras palavras, significa que a atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar. Para a generalidade dos casos, para os casos “normais”, “vulgares” ou “comuns”, “lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios”4. Apesar do decurso de cerca de 7 anos até ao julgamento, constata-se pela sua numeração que os autos só se iniciaram em 2019, cerca de 3 anos depois da data dos factos por circunstâncias que decorrem da súmula dos depoimentos que o acórdão efectua, seja pelo que afirma a testemunha II (a mãe da vítima inicialmente não acreditou na conduta do seu companheiro) seja pelo relato da própria mãe da vítima (sobrepôs-se o medo das autoridades por ter expirado o visto). Não se pode afirmar que o decurso do tempo, neste contexto, estando em causa crimes de abuso sexual de crianças, seja “excepcionalmente longo, tendo em consideração a normal tramitação do processo” e tenha uma relevância que justifique o recurso ao instituto da atenuação especial5. No caso em apreço, nem o decurso do tempo com bom comportamento posterior, nem as demais circunstâncias invocadas (postura processual confessória em julgamento, inserção social, profissional e familiar, ausência de antecedentes criminais) afastam, para além da normalidade, a acentuada ilicitude dos factos nem a culpa do arguido. Ou seja, o bom comportamento e a ausência de notícia da prática de outros crimes corresponde à expectativa comunitária normal e, assim, a uma situação normal em que não se justifica a diminuição da moldura das penas. Não se descortina qualquer circunstância que determine uma diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena, pelo que não se justifica a atenuação especial das penas, nos termos do art. 72º do Código Penal. 2. Medida da pena única e possibilidade de suspensão O Recorrente não questiona as penas parcelares, limitando-se a pugnar pela aplicação de pena única inferior e pela suspensão da execução da pena. O crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto pelas disposições conjugadas dos art.s 171º nº 1 e 177º nº 1 al. b) do Código Penal é punido com pena de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses de prisão. O tribunal a quo condenou o arguido na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, muito próximo do limite mínimo da pena aplicável. Os cinco crimes de abuso sexual de crianças agravado, previsto pelas disposições conjugadas dos artigos 171º nº 1 e 2 e 177º nº 1 al. a) e b) do Código Penal é punido com pena de 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão. O tribunal a quo condenou o arguido na pena de 4 anos e 3 meses de prisão, quanto a quatro desses crimes e na pena de 4 anos e 5 meses quanto ao outro caso. Em todos os casos, penas concretas muito próximas do limite mínimo da pena aplicável. A pena única foi fixada em 5 anos e 9 meses de prisão, apenas 1 ano e 4 meses superior ao limite mínimo da pena única definida nos termos do art. 77º nº 2 do Código Penal, ou seja, abaixo de 1/14 da moldura penal do cúmulo jurídico. Das conclusões do recurso resulta que o Recorrente se insurge contra a pena única apelando a todos os factores que também apontou para sustentar a atenuação especial das penas. O acórdão recorrido fixou as penas parcelares e única tendo em atenção os factos provados. Relativamente às penas parcelares, o tribunal a quo salientou o grau de ilicitude acentuado (atenuado no caso do primeiro contacto), grau de culpa elevado, dolo directo, ausência de antecedentes criminais, confissão da essencialidade dos factos, consciência critica, mas (alguma) falta de capacidade no reconhecimento das consequências dos seus actos no que respeita à autodeterminação sexual da vítima e ainda as suas condições pessoais e de vida (provindo de meio economicamente carenciado, com dinâmicas disfuncionais e violência no seu meio familiar; hábitos laborais regulares, relacionamento conturbado com a progenitora da ofendida, nova relação marital gratificante há cerca de cinco anos, assunção actual das responsabilidades parentais da sua filha com a progenitora da ofendida). Quanto à pena única, o acórdão recorrido ponderou a natureza dos ilícitos praticados, de forma essencialmente homogénea; lapso de tempo assinalável (mais de sete anos) decorrido desde o cometimento dos factos, encontrando-se este afastado de contactos com a ofendida há vários anos e mostrando-se neste momento integrado social, profissional e familiarmente; a idade e a ausência de condenações anteriores ou posteriores; sentido crítico, assunção da maioria dos factos e contribuição para a descoberta da verdade material. Como decorre da fundamentação da medida das penas transcrita supra, o Tribunal a quo enquadrou devidamente a determinação das penas concretas e única, enfatizando as muito fortes exigências de prevenção geral, aliás em linha com a jurisprudência deste Tribunal6 que também merece a nossa concordância. Como se afirma no acórdão referido, “a necessidade de protecção do bem jurídico protegido pelo disposto nos arts. 171.º e 176.º, do CP, releva com particular intensidade relativamente a menores de 14 anos de idade, face, não apenas à fragilidade das vítimas, também do impacto da conduta delitiva na sua orientação de vida, seja na vertente da sexualidade, seja ainda no são desenvolvimento físico e psíquico desses (irrepetíveis) seres humanos”. Elencou e apreciou todas as circunstâncias pertinentes (com pendor atenuante e agravante) a que alude o nº 2 do art. 71º do Código Penal. Respeitou como se impunha, os princípios gerais, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena. Quanto à pena única, o acórdão recorrido ponderou “em conjunto os factos e a personalidade do arguido”, aplicando pena única de 5 anos e 9 meses de prisão. Os critérios para a fixação da pena única devem reflectir uma ponderação das “características da personalidade do agente, em termos de revelar ou não tendência para a prática de crimes ou de determinado tipo de crime, devendo a pena única reflectir essa diferença em termos substanciais”, sendo essencial considerar o tipo de criminalidade em causa e efectuar uma “conveniente avaliação da totalidade dos factos como unidade de sentido, enquanto reportada a um determinado contexto social, familiar e económico e a uma determinada personalidade”. “Na avaliação desta personalidade unitária do agente, releva, sobretudo «a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização.» Por conseguinte, a medida da pena do concurso de crimes tem de ser determinada em função desses factores específicos, que traduzem a um outro nível a culpa do agente e as necessidades de prevenção que o caso suscita” 7. Como se disse, a pena única fixada no acórdão encontra-se abaixo do 1/14 da moldura da pena única, com o mínimo de 4 anos e 5 meses (pena parcelar mais alta) e o máximo de 22 anos e 11 meses (soma de todas as penas parcelares), nos termos do art. 77º nº 2 do Código Penal. A extrema compressão da pena única, tão próxima do limite mínimo, apenas encontra justificação na circunstância de os crimes terem sido praticados de forma significativamente homogénea há 7 anos, num curto período e por o arguido, não tendo antecedentes criminais, nem havendo notícia de condenações anteriores ou posteriores, ter tido uma postura confessória e vir assumindo um comportamento social, familiar e laboral adequados. Importa salientar que o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico também em matéria de pena e a sindicabilidade da medida concreta da pena em recurso abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas, de acordo com Figueiredo Dias8 não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se “tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada”9 reconhecendo-se, assim, uma margem de actuação do juiz dificilmente sindicável se não mesmo impossível de sindicar10. Como resulta do exposto, a pena única não ofende os princípios e as operações de determinação da pena e considera todos os factores pertinentes, não se vislumbrando qualquer excesso. Assim, pela sua moderação, a pena mostra-se justa – proporcional, adequada e necessária – e conforme aos critérios plasmados nos art.s 71º e 77º do Código Penal, na consideração do facto global, da gravidade desse ilícito global e por referência à personalidade unitária do arguido, ora Recorrente. * Face ao exposto, porquanto o art. 50º nº 1 do Código Penal apenas admite a possibilidade de suspensão quanto a penas de prisão aplicadas em medida não superior a cinco anos, ao contrário do que o Recorrente pretende, não é admissível a suspensão da execução da pena de prisão, consistindo um exercício inútil a ponderação sobre a possibilidade de formular um juízo de prognose positivo subjacente e essa suspensão. Neste contexto, não pode a pena de prisão aplicada ao Recorrente ser suspensa na sua execução. III – DECISÃO Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 3ª Secção Criminal deste Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, mantendo na íntegra a decisão recorrida. Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 5 UC. Jorge Raposo (Relator) Maria Margarida Almeida Lopes da Mota _____________________________________________ 1. Diário da República n.º 120/2017, Série I, de 23.6.2017. 2. Cfr. proc. 114/18.2TELSB.S1 in www.dgsi.pt 3. Não especificando se se refere à pena única, a alguma ou todas as penas parcelares. Porém, a atenuação especial incide sobre as penas concretas de cada um dos crimes, como decorre até da forma como se operacionaliza essa atenuação, nos termos do art. 73º do Código Penal. A pena única determina-se nos termos do art. 77º do do Código Penal. A inadmissibilidade de atenuação especial da pena única é sustentada na jurisprudência deste Tribunal: nesse sentido, o acórdão de 18.5.2022, proferido no proc. 365/18.8PFPRT-A.S1 e a jurisprudência aí citada. Melhor seria ter-se afirmado que se pretende a atenuação especial das penas parcelares. 4. Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime” (1993), pg. 192, 302, 306; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.1.2009, proferido no proc. 08P4029 e, mais recentemente, o acórdão de 27.1.2021, proferido no proc. 300/19.6GDTVD.L1.S1, entre muitos outros. 5. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.3.2012, no proc. 1417/08.8TAVIS.C1.S1 6. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5.11.2020, no proc. 114/18.2TELSB.S1. 7. Conselheiro António Artur Rodrigues da Costa em “O Cúmulo Jurídico na Doutrina e na Jurisprudência do STJ”, texto disponível in http://www.stj.pt/ficheiros/estudos /rodrigues_costa_cumulo_juridico. pdf, pg. 12. 8. Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, 2ª reimpressão, 2009, §255, pg. 197. 9. Neste sentido também os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15.10.2008 e 11.7.2024, respectivamente nos proc.s 08P1964 e 491/21.6PDFLSB.L1.S1. 10. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.3.2004, CJ 2004, 1, pg. 220 e de 20.2.2008, proc. 07P4639. |