Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
Relator: | GRAÇA AMARAL | ||
Descritores: | DEVER DE GESTÃO PROCESSUAL FACTOS ESSENCIAIS FACTOS COMPLEMENTARES FACTOS INSTRUMENTAIS PODERES DE COGNIÇÃO TRIBUNAL DA RELAÇÃO ÓNUS DE ALEGAÇÃO PRINCÍPIO DO DISPOSITIVO PRINCÍPIO DA IGUALDADE PRINCÍPIO DA IMPARCIALIDADE ARGUIÇÃO DE NULIDADES NULIDADE DE ACÓRDÃO OMISSÃO DE PRONÚNCIA OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO | ||
![]() | ![]() | ||
Data do Acordão: | 04/18/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | REVISTA IMPROCEDENTE. | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário : | I - O dever de apreciar uma questão suscitada pela parte é independente da apreciação do respectivo mérito. II - Não ocorre nulidade de acórdão, por contradição entre os fundamentos e a decisão, na situação em que o tribunal da Relação, colmatando a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, e substituindo-se ao tribunal recorrido no conhecimento do pedido dos autores alicerçado em outro fundamento alegado na petição, conclui pela improcedência do mesmo, por falta de alegação de facto essencial para o efeito. III - O reforço dos poderes de gestão processual do juiz introduzidos com a reforma do processo civil não se confinam à gestão formal, abarcando, igualmente, uma gestão material do processo no campo da decisão de facto. Nessa medida, a lei processual (art. 5.º do CPC) veio permitir que, oficiosamente, o juiz possa tomar em consideração factualidade não alegada pelas partes nos respectivos articulados, com excepção da reportada aos factos essenciais que constituam a causa de pedir em que se sustenta o pedido do autor, ou em que se fundamentem as excepções invocadas pelo réu (n.º l do art. 5.º). IV - Não cabe nos poderes de cognição do tribunal da Relação aditar facto essencial não alegado e integrante da causa de pedir, ainda que o mesmo possa resultar do depoimento das testemunhas. V - O dever de gestão inicial do processo atribuído ao juiz pelo art. 590.º do CPC, por forma a convidar as partes a colmatarem quaisquer irregularidades dos articulados, sugerindo-lhes o suprimento das insuficiências ou imprecisões tendentes à boa decisão da causa, tem como limite inultrapassável o respeito pelos princípios do dispositivo, da igualdade das partes e da imparcialidade do juiz, conforme decorre da exigência constitucional de salvaguarda de um processo equitativo (art. 20.º, n.º 4, da CRP). VI - Na ausência de um acordo das partes nesse sentido, não podia o tribunal da Relação anular a sentença com base na relevância de factualidade para a procedência da acção, colmatando uma falta de alegação de facto essencial e, nessa medida, beneficiando uma das partes (incumpridora do respectivo ónus de alegação) em detrimento da outra. | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça I - Relatório 1. AA e mulher, BB, propuseram acção declarativa contra CC e DD e mulher, EE, deduzindo os seguintes pedidos: - serem os Réus condenados a reconhecerem os Autores como donos e legítimos possuidores dos prédios rústicos identificados no item 1.º supra e, bem assim, ser reconhecido o direito de preferência sobre a transmissão do prédio rústico identificado no item 13º supra; - ser proferida sentença que proceda à substituição dos Réus pelos Autores, enquanto compradores na escritura pública de compra e venda outorgada em 28/03/2019 a fls. 74 a 75 do Livro 194 – D de escrituras diversas do Cartório Notarial da Dra. FF; - serem os 2ºs Réus condenados a entregarem o referido prédio aos Autores livre de ónus e/ou encargos e desocupado de pessoas e bens e no estado e condições em que o receberam, atribuindo-se-lhes o respectivo preço pago; - ser ordenado o cancelamento de todos e quaisquer registos que os Réus compradores hajam feito a seu favor em consequência da compra do supra referido prédio e outros que venha porventura a fazer; Alegaram fundamentalmente: - serem donos de dois prédios rústicos que estão juntos, formando uma unidade agrícola, situados no Lugar ..., freguesia ..., ...: o Campo ... ou de ..., com 4.000m2, inscrito na matriz sob o artigo ...80.º da referida freguesia e descrito na Conservatória sob o n.º ...75 – ...; o Campo ...», com a área de 4.000m2, inscrito na matriz sob o artigo ...89.º da indicada freguesia e descrito na Conservatória sob o n.º ...79 – .... - confrontar tal unidade agrícola, a poente, com o prédio rústico denominado «Campo ...», com a área de 4.227m2, sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...83.º e descrito na Conservatória sob o n.º ...46 ..., que a 1.ª Ré alienou aos 2.ºs Réus. - ter a 1.ª Ré procedido à venda do referido imóvel – confinante pelo lado poente à sua unidade agrícola e com área inferior à unidade de cultura – sem ter cumprido a obrigação a que alude o artigo 416.º, do Código Civil; - não serem os 2ºs Réus proprietários de qualquer terreno rústico confinante com o que adquiriram.
2. Os Autores procederem ao depósito do valor de €35.000,00, nos termos do artigo 1410.º, n.º 1, do Código Civil, bem como da quantia paga pelos 2.ºs Réus a título de IMT e de imposto de selo.
3. Após citação, os Réus DD e EE contestaram invocando: - terem adquirido o imóvel para nele edificarem uma moradia para sua habitação; - terem sido informados (pela Câmara Municipal e pela imobiliária) da real capacidade construtiva do terreno; - não terem feito menção da intenção de construção na escritura de compra e venda por terem sido aconselhados de que tal menção teria reflexo no aumento do preço de aquisição; - terem informado os Autores dos termos do negócio por forma a acautelar eventual direito de preferência, tendo o Autor expressamente referido não estar interessado no mesmo. Concluíram pela improcedência da acção.
4. A Ré CC apresentou contestação defendendo a improcedência da acção. Referiu nesse sentido: - ter recebido, através de herança, o imóvel objecto de venda; - ter-se limitado a contactar uma agência imobiliária para que procedesse à venda do mesmo; - ter posto à venda como terreno para construção através de imobiliária que avaliou o terreno e lhe informou que o mesmo possuía capacidade construtiva; - ter sido a imobiliária quem tratou do negócio, tendo-se limitado a ir à escritura e a receber o preço.
5. Foi realizada audiência prévia no âmbito da qual foi proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova[1].
6. Realizado julgamento foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu os Réus do pedido.
7. Apelaram os Autores que impugnaram a matéria de facto fixada na sentença. O tribunal da Relação do Porto proferiu acórdão que julgou o recurso improcedente.
8. Vieram os Autores recorrer de revista para este tribunal, formulando as seguintes conclusões (transcrição): “1- Os autores e recorrentes cumpriram com o ónus de alegação imposto pelo nº 1 do artigo 5º do CPC e invocaram oportunamente, ou seja, nos articulados (neles se incluindo, necessariamente, o articulado que foram convidados a apresentar pelo despacho de 22-01-2020, com a ref. ...14) a factualidade necessária ao conhecimento e procedência da segunda causa de pedir, ou seja, do direito de preferência à luz do previsto no art. 26º do Decreto Lei nº 73/2009 de 31 de março que a sentença não conheceu. 2- Aliás, se a Relação concluiu padecer a sentença do vício da nulidade por omissão de pronúncia, uma vez que os AA. invocaram na PI o direito de preferência à luz do previsto no art. 26º do Decreto Lei nº 73/2009 de 31 de março que a sentença não conheceu, foi precisamente porque na PI os AA. o invocaram suficientemente. 3- Sob pena de contradição entre o decidido e os seus fundamentos (cfr. artigo 615º nº 1 al. c) do CPC). 4- É pacífico na doutrina que a eventual incompletude ou subtileza [como a Relação considerou existir na PI] no cumprimento desse ónus relativamente a factos concretizadores ou complementares dos inicialmente alegados não pode ter efeitos preclusivos, visto que os factos omitidos ainda podem ser introduzidos nos autos, quer através de um articulado de aperfeiçoamento, quer em face do que resulte da instrução. 5- A consideração destes factos tem natureza oficiosa, independentemente da circunstância de ter sido reclamado ou não a sua inclusão nos factos provados (e foi-o, in casu, nas alegações orais). 6- Em causa, o facto de, também, o prédio dos AA. estar inserido em área RAN. 7- O aresto em crise entendeu que «por não ter sido alegado, não podiam os autores/apelantes fazer prova da realidade do mesmo, nem o tribunal o poderia considerar, pois por força do preceituado nº nº 2 do referido art.º 5º do C.P. Civil, o mesmo estava fora dos poderes de cognição do tribunal, por se não tratar de um facto enunciado nas suas alíneas, mas como já se referiu, de um facto essencial. Destarte e sem necessidade de outros considerandos, o facto provado em 1.ª instância e aí elencado sob o nº 9 mantêm-se inalterado.» 8- Isto, apesar de, como refere o aresto, ter resulta das declarações das testemunhas ouvidas e, bem assim, de ter sido confirmado pelo documento de fls. 94 aludido na sentença. 9- Sendo certo que o documento de fls. 94 foi exibido e objeto de contraditório na própria audiência de discussão em julgamento, tendo as testemunhas sido inquiridas sobre o seu teor, pelos mandatários das partes, donde se entende respeitado o requisito da parte final da al. b) do nº 2 do citado preceito. Para além da alegação do facto na PI e no articulado ref. ...14, bem como o documento de fls. 94, ter também sido objeto de contraditório, no seio da tramitação processual. 10- O acórdão em crise parece ignorar a reforma do CPC de 2013 que acabou com “uma visão assaz formalista e fundamentalista do ónus de alegação” , erigiu como um dos seus pilares o da prevalência das decisões de mérito sobre as formais, consagrando-o no artigo 6º do CPC, e passou a conferir “às partes a prerrogativa de articularem os factos essenciais que sustentam as respetivas pretensões, ficando reservada a possibilidade de, ao longo de toda a tramitação, naturalmente amputada de momentos inúteis, vir a entrar nos autos todo um acervo factual merecedor de consideração pelo tribunal com vista à justa composição do litígio”, conforme Exposição de Motivos do diploma. 11- É absolutamente chocante uma decisão deste jaez, pois não só, como já vimos, afinal o facto foi alegado nos articulados [tanto na pi, como no articulado com a ref. ...14 que os AA. foram notificados a fazer], como resultou da instrução do processo de forma manifesta e inequívoca, tendo sido confirmado pelas diversas testemunhas inquiridas e pelo documento de fls. 94 que, inclusive, foi projectado em écran durante o julgamento, para melhor percepção do tribunal e das testemunhas, que inequivocamente confirmaram a localização do prédio dos AA. e dos RR., em área de RAN – toda aquela zona é de Reserva Agrícola Nacional. Daí a clara referência ao mesmo na fundamentação da decisão de facto constante da sentença. 12- O aresto em crise, preso a formalismos de pretérito e fundamentalismos em relação ao ónus de alegação, em detrimento da busca da verdade material, faz uma incorrecta interpretação do disposto no artigo 5º do CPC, violando todo o regime processual vigente de suprimento das deficiências na alegação factual pelas partes e, bem assim, um dos pilares fundamentais do processo civil hodierno, que é ao da prevalência das decisões de mérito sobre as formais, consagrado no artigo 6º, que sai iguale visivelmente ferido. 13- Impunha-se, nos termos expostos, que o acórdão recorrido, fazendo bom uso do mecanismo do nº 2 al. b) do artigo 5º do CPC – que funciona como válvula de escape – deferisse o pedido de aditamento da matéria de facto ao ponto 9 da sentença. 14- Consequentemente, com o outro suprimento de Vªs Exªs e visto encontrarem-se provados os requisitos da norma (os prédios de preferente e preferido serem rústicos confinantes e localizaremse em área de RAN), deverá ser julgado procedente o pedido, com fundamento na causa de pedir da violação da obrigação de preferência decorrente do direito de preferência estabelecido no art. 26º do Decreto Lei nº 73/2009 de 31 de março. 15- Efectivamente, verificam-se os pressupostos legais, ou os elementos constitutivos do direito de preferência consignado em tal norma legal, quais sejam: - ambos os prédios (de preferente e preferido) devem estar inseridos numa área da RAN, serem rústicos ou mistos e confinantes, qualquer que seja a modalidade da alienação e mesmo no caso de dação em cumprimento. 16- E, tal como na situação apreciada no acórdão desse superior tribunal acima referido, também aqui os 2ºs RR. não se podem arrogar a titularidade de idêntico direito, por não serem, à data de tal aquisição, donos de qualquer prédio confinante com o prédio adquirido. 17- Refira-se ainda que, para o reconhecimento do direito de preferência dos AA. não tem qualquer relevância o facto de o terreno preferido se destinar ou não exclusivamente à exploração agrícola, conforme provado em 20 dos factos assentes da sentença, considerando a opção legislativa do Decreto Lei nº 73/2009 de 31 de março de alargar o âmbito do direito de preferência, nomeadamente, para contribuir para a preservação dos recursos naturais e assegurar que a atual geração respeite os valores a preservar, permitindo uma diversidade e uma sustentabilidade de recursos às gerações seguintes, pelo menos, análogos aos herdados das gerações anteriores. 18- O que é considerado fundamental e estratégico, pelas profundas alterações geopolíticas que as sociedades actuais têm sofrido, pelo reflexo nas sociedades humanas e nos ecossistemas em geral que as alterações climáticas têm produzido, pela necessidade da manutenção de condições estratégicas básicas de vida das populações e da garantia da sustentabilidade dos recursos, conforme Preâmbulo do diploma que rege acerca da restrição de utilidade pública de âmbito nacional em que se consubstancia a Reserva Agrícola Nacional. Sem Prescindir, e por exagerada cautela de patrocínio, 19/ Caso se entenda – como o aresto em crise entendeu (cremos apenas porque se não apercebeu do articulado de resposta em que se concretizou a alegação) – que não o podia fazer por existir efetiva e irreparável omissão de alegação de facto essencial, então, em coerência com o espírito da reforma e a «ratio» dos acima citados preceitos, deveria o tribunal «a quo» ter ordenado a baixa dos autos à 1ª instância, a fim de ser proferido o despacho pré-saneador a que alude o artigo 590º nº 4 do CPC, anulando toda a tramitação subsequente a esse momento processual e convidando os autores/recorrentes a aperfeiçoar, nessa parte, a sua PI. 20/ De facto, o disposto no artigo 590º nº 4 do CPC constitui um poder vinculado, “que o juiz tem o dever de exercer quando ocorram nos articulados insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada” - José Lebre de Freitas in “A Acção Declarativa Comum – À Luz do Código de Processo Civil de 2013 -, 3ª ed., pág.156. 21/ Ora, ao julgar logo improcedente a causa de pedir - que reconhece ter sido invocada na PI -com fundamento em que se apercebeu de alegada deficiência de alegação fáctica, que por não gerar ineptidão seria sempre sanável, sem que se tenha dignado à prolação de despacho de aperfeiçoamento, a Relação omitiu um acto que a lei prescreve, o que por exagerada cautela, subsidiariamente, se invoca nos termos do disposto no artigo 195º do CPC e que inquina o acórdão de Nulidade.”
9. Os Réus DD e EE apresentaram contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso, concluindo essencialmente que: “ (…) 15. O Dign. Tribunal a quo não desconsiderou que o prédio dos AA. se localizava em RAN nem fez, alegadamente, uma incorrecta apreciação da prova porque não aplicou o artigo 26.º do Decreto-Lei n.º 73/2009 de 31 de março e o artigo 1381.º al. a) 2.ª parte do Código Civil, no entanto, os Recorrentes nunca alegaram na sua petição inicial que os seus prédios se situavam em RAN nem tampouco tal matéria foi levada a temas de prova. 16. Ora, os Recorrentes não alegaram nem provaram que os seus prédios são em RAN. (e o que não está nos autos não está no direito!) 17. Por sua vez, os Recorridos alegaram e demonstraram a possibilidade de autonomização da parte rústica da parte urbana. 18. Atento o manancial fáctico que resultou provado nos autos, não existem dúvidas de que os 2.ºs Réus demonstraram que na data da aquisição pretendiam construir uma moradia que tivesse algum espaço para logradouro ou quintal, bem como se provou que os 2.ºs Réus apenas fizeram a compra porque o prédio tinha capacidade construtiva para nele ser construída a casa que pretendiam. Por outro lado, e relativamente à admissibilidade legal de construção de uma moradia no prédio vendido aos 2ºs Réus, face aos factos provados nos pontos 23. e 25. aquela se mostra demonstrada, na medida em que a alteração do destino do prédio mostra-se a coberto do Plano Director Municipal, existindo uma parte do terreno classificado como Zona de Construção do Tipo Dois, resultando evidenciada uma possibilidade real do destino diferente da cultura do prédio se verificar. 19. Assim, julgando-se preenchida uma das circunstâncias previstas na alínea a) do artigo 1381º do Código Civil, os Recorrentes não podem gozar do direito de preferência sobre a venda do prédio.”
10. A Ré CC, nas suas contra-alegações, conclui no sentido da improcedência realçando que “(…) os autores/apelantes omitiram a alegação de um facto essencial e constitutivo desse seu invocado direito – ou seja, omitiram a alegação de que o seu prédio rústico se situa ou está inserido numa área da RAN, pelo que “sibi imputet” já que essa omissão de fundamentação da causa de pedir determina, sem mais, a improcedência desse seu pedido”.
II – APRECIAÇÃO DO RECURSO De acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do CPC), mostram-se submetidas à apreciação deste tribunal as seguintes questões: Nos termos do artigo 671.º, n.º 3, do CPC, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida pela 1.ª instância. Acresce que, perante uma das questões que, igualmente, constitui objecto da revista – o poder do tribunal da Relação na reapreciação da matéria de facto impugnada –, a decisão da Relação integra, igualmente, uma decisão única, pois a mesma alicerça-se em normas específicas privativas de uma 2.ª instância (não aplicáveis à 1.ª instância), afastando, por isso, o conceito de sobreposição de decisões que caracteriza a dupla conformidade de julgados limitativa do recurso para o STJ. Na verdade, mostra-se pacífico o entendimento que defende ter cabimento em sede de revista sindicar o modo como a Relação conheceu a matéria de facto impugnada sempre que esteja em causa uma situação de violação da lei processual reconduzida à questão da legalidade da interpretação feita pelo tribunal da Relação quanto à(s) referida(s) norma(s). No caso, conforme decorre das alegações da revista, os Recorrentes colocam em causa a decisão do tribunal a quo de não aditar factualidade que considera ter resultado provada em audiência de julgamento. Segundo os Recorrentes, a inconsideração da referida matéria fáctica pelo tribunal a quo decorre de um posicionamento formalista inadequado acerca dos poderes do juiz na busca da verdade material através da indagação e consideração de factualidade relevante para a decisão da causa. 1. Encontra-se inscrita a aquisição, a favor dos Autores, dos seguintes prédios: - «Campo ... ou de ...», com 4.000m2, inscrito na matriz sob o artigo ...80.º da indicada freguesia e descrito na Conservatória sob o n.º ...75 – ...; - «Campo ...», com a área de 4.000m2, inscrito na matriz sob o artigo ...8.º da indicada freguesia e descrito na Conservatória sob o n.º ...79 – ...; 2. Os indicados prédios vieram à titularidade e posse dos Autores por sucessão e partilha por óbito de AA e AA, encontrando-se averbados na matriz a seu favor e em seu nome inscritos na Conservatória através das Ap. ...37 e ...82 de 02/12/2010. 3. Os prédios referidos em 1. estão juntos. 4. Veio recentemente ao conhecimento dos Autores que por escritura pública outorgada em 28.03.2019 no Cartório Notarial ... na Praça ..., perante a Notária FF, a 1.ª Ré, representada por GG, procedeu à venda ao casal dos segundos Réus, pelo preço de €35.000.00, do prédio rústico denominado «Campo ...», com a área de 4.227m2, sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...83.º e descrito na Conservatória sob o n.º ...46 .... 5. O prédio referido em 4. confronta pelo poente com os indicados prédios dos Autores referidos em 1., sitos naquele Lugar .... 6. A 1.ª Ré não comunicou previamente aos Autores o projecto de venda e cláusulas do contrato, nomeadamente o preço, condições de pagamento e identificação dos compradores. 7. Os 2.ºs Réus não são proprietários de qualquer terreno rústico confinante com o que adquiriram. 8. Todos os aludidos prédios têm a área inferior à unidade de cultura, sendo certo que são todos de cultura arvense de regadio, ou seja, cultivo de ervas e milhos. 9. O prédio transmitido aos 2.ºs Réus localiza-se em área de Reserva Agrícola Nacional (RAN). 10. Os Autores procederam ao depósito do preço de aquisição e acresceram a esse valor as quantias pagas de IMT e ao imposto de selo. 11. Os Autores já tinham tomado conhecimento que a 1.ª Ré iria vender o prédio, para efeitos de construção de moradia pelos Réus. 12. Os Réus decidiram construir uma moradia que tivesse algum espaço para logradouro ou quintal, já que a que eles habitavam, não tinha tal espaço. 13. Numa imobiliária sita na ..., a “...” viram que estava à venda um terreno para construção de moradia, 4 frentes, exactamente o que pretendiam, sito na freguesia ..., ..., onde residiam e têm a sua vida familiar organizada. 14. Resolveram então dirigir-se a tal agência e aí tiraram informações sobre a real capacidade construtiva do terreno e o preço, tendo sido informada positivamente aquela capacidade. 15. Quiseram os 2.ºs Réus saber o montante dos encargos que teriam com a celebração da escritura e pagamento dos impostos devidos ao Estado, e foram também informados que se comprassem o terreno sem referir que se destinava a construção, o valor a despender era mais reduzido, dado os encargos fiscais serem mais suaves. 16. Procuraram negociar o valor do terreno com a agência, pois não tinham dinheiro suficiente para o comprar 17. O Réu DD foi falar com o autor, e a sua intenção de comprar o terreno para aí construir a sua moradia e se ele estaria interessado em tal compra. 18. O Autor, conhecido do Réu DD, e amigo próximo dos padrinhos da Ré BB, e também amigo dos pais desta, disse-lhe que não tinha qualquer interesse na compra, até porque recentemente tinha efectuado a compra de uma casa e não queria mais encargos. 19. Os 2.ºs Réus na escritura não fizeram referência a que o terreno se destinava à construção da sua casa para evitar mais despesas fiscais. 20. Os 2.ºs Réus apenas fizeram a compra porque o prédio tinha capacidade construtiva para nele ser construída a casa que pretendiam e o autor sabia perfeitamente que o terreno se destinava aos 2.ºs Réus construírem a sua casa. 21. Como iam construir a casa no terreno que compraram, venderam, entretanto, a casa onde viviam, e que estavam a pagar ao Banco o empréstimo que contraíram para a comprar. 22. No site da sociedade de mediação imobiliária “...”, na publicidade do terreno o mesmo era identificado como “terreno para construção”. 23. O prédio referido em 4. mantém capacidade construtiva. 24. A Ré CC pôs imediatamente à venda o prédio referido em 4., depois de se ter informado junto de uma agência de que tinha capacidade construtiva, e, como tal, teria sempre um valor melhor do que se não a tivesse. 25. De acordo com o definido na Planta de Ordenamento do Plano Director Municipal de ..., o prédio referido em 4. encontra-se classificado como Zona de Construção do Tipo Dois na faixa de trinta e cinco metros marginante à Rua ... e como espaços não urbanizáveis integrados na Reserva Agrícola Nacional na restante área.
1.2 Não provados a) Os prédios referidos em 1. não têm já quaisquer valos ou muros delimitadores entre si, formando uma unidade agrícola, a qual confronta de norte com o próprio (casa agrícola), do sul com Quinta ... (...), do poente com HH, II e outros e do nascente com herdeiros de JJ e CC. b) Os Autores têm a posse dos prédios indicados em 1., por si e seus antepossuidores, há mais de 15, 20, 30 e mais anos, posse que sempre se manteve com justo título, de boa-fé, sem conhecimento de lesar interesse de terceiros; pacificamente, pois sem usar de qualquer violência, de modo que essa posse fosse de todos e por qualquer interessado conhecida. Continuamente, sem qualquer interrupção c) Sempre os Autores e antepossuidores daqueles prédios os usaram, fruíram e deles dispuseram e transmitiram como coisa exclusiva e totalmente sua. d) Pagando as respectivas contribuições e impostos, retirando da terra todas as suas utilidades, ou seja, neles cultivando ervas e milhos e fazendo seus os proventos dessas sementeiras. e) Unindo os dois prédios entre si, passando a ter a configuração e confrontações acima descritas. f) Tudo à vista de todos e sem oposição de ninguém. g) Na ignorância desculpável de que, com isso, lesassem terceiros; antes na convicção e certeza de exercerem um direito próprio. h) O conhecimento referido em 11. abrangia os termos e condições indicados na escritura. i) Os 2.ºs Réus começaram a procurar em vários sites de várias imobiliárias que tivessem à venda um terreno. j) Antes de avançar para o negócio, os 2.ºs Réus foram à Câmara Municipal ..., onde foram atendidos por um técnico, que localizou o terreno, e confirmou a capacidade construtiva aludida em 23. k) Não tendo possibilidades de melhorar o valor que conseguiram encontrar, os 2.ºs Réus foram falar com os pais de ambos para ver da possibilidade destes lhes emprestarem algum dinheiro para que pudessem concretizar o negócio, dado que não tinham todo o dinheiro necessário e não queriam contrair novo financiamento bancário, pois já tinham o encargo de pagar o empréstimo que contraíram para compra a casa onde viviam. l) Os pais emprestavam-lhes o dinheiro necessário, e os Réus que queriam endividar-se o mínimo, esgotariam todas as suas economias, ficando mesmo com a sua capacidade financeira no limite mínimo. m) Na ocasião referida em 17. o Réu DD transmitiu ao autor o preço da transacção que pretendia efectuar. n) O Réu DD até entregou ao autor um documento para ser assinado por este que dizia que renunciava a eventual direito de preferência. o) Os 2.ºs Réus ainda falaram com os padrinhos da ré BB que lhes disseram que eram pessoas sérias, que estivesse à vontade. p) Os 2.ºs Réus haviam celebrado contrato promessa de compra e venda relativamente à casa onde viviam. q) Provisoriamente os 2.ºs Réus instalaram-se em casa da avó da Ré BB. r) A imobiliária envia e-mail’s para mais de 5.000 clientes sobretudo das áreas de ... e .... s) Os 2.ºs Réus têm duas filhas de 9 e 3 anos. t) O modo pelo qual a Ré CC adquiriu o prédio referido em 4. foi no âmbito do inventário a que se procedeu por óbito de seus pais, KK e marido LL, o qual correu termos pelo Cartório Notarial da Dr.ª FF, na ..., com o nº 239/13. u) Nesse inventário, além de diversos bens móveis, foram relacionados os dois imóveis que faziam parte do acervo patrimonial das heranças de seus pais, a saber, o imóvel objecto dos presentes autos e a casa de morada de família. v) Porque as relações com sua cunhada não eram as melhores, a Ré CC teve que se inteirar do valor de ambos os prédios, por forma a, na Conferência de Interessados a haver em tal inventário, poder apresentar proposta relativamente aos mesmos, acautelando a posição que lhe interessava, pois, tinha interesse na casa, onde então vivia sua cunhada, mas não tinha especial interesse pelo outro prédio, dado que seus pais haviam doado a seu falecido irmão uma parcela de terreno para construção, onde o mesmo construiu uma excelente casa antes de falecer no acidente que o vitimou, e nessa casa, se a Ré ficasse, como pretendia, com a casa paterna, sua cunhada teria de deixar a casa paterna e certamente iria viver para tal casa, onde estava a sobrinha da Ré e filha de seu irmão e sua cunhada. x) E tendo em vista apresentar as propostas, a Ré CC contactou uma agência imobiliária para a informar do valor de cada um dos imóveis da herança. z) A agência fez a avaliação, atribuiu o valor de cada um dos imóveis. aa) O pai da Ré CC já a tinha informado da capacidade referida em 24., pois que quando deu o terreno a seu irmão para ele fazer a casa, logo disse que também ela poderia fazer uma casa no restante do terreno. bb) Na Conferência de Interessados, a Ré CC acabou por apresentar as melhores propostas relativamente aos dois prédios, pelo que ambos lhe foram adjudicados, ficando a mesma com a obrigação de pagar uma torna a sua cunhada e sobrinhos. cc) Na altura de pagar as tornas, e porque se arriscava a ficar sem a casa se não pagasse a torna no prazo fixado, a Ré CC teve que pedir dinheiro emprestado para liquidar a torna. dd) A Ré CC pressionou a agência para que lhe vendesse rapidamente o imóvel, pois queria pagar o mais rapidamente possível o dinheiro a quem lho emprestou, pois embora sempre vivesse modestamente, nunca pedira dinheiro emprestado a ninguém e não descansava enquanto não “arrumasse” a sua vida. ee) Algumas pessoas, e também da freguesia ..., chegaram a procurar a Ré CC, que todavia as remetia para o responsável da agência.
2. O direito 2.1 Da nulidade do acórdão Imputam os Autores ao acórdão recorrido a nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão porquanto, consideram, que a decisão a quo ao conhecer do pedido de exercício do direito de preferência à luz do previsto no artigo 26.º, do DL nº 73/2009 de 31-03, substituindo-se ao tribunal de 1.ª instância perante a nulidade (omissão de pronúncia) por este praticada, tem necessariamente por pressuposto que tal matéria se encontra suficientemente alegada nos autos. Tal imputação, porém, carece de fundamento. O vício em causa - contradição entre os fundamentos e a decisão –, respeitando à construção lógica da decisão, ocorre quando o julgador concluiu num sentido oposto/ou diverso do que resultaria face aos fundamentos nela indicados enquanto alicerces da própria decisão. A exigência de um nexo lógico entre as premissas e a conclusão da decisão nada tem a ver com um juízo de conformidade ou desconformidade, uma vez que a contradição entre os fundamentos e a decisão só assume relevância enquanto vício formal inquinando-a de nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º1, alínea c), do CPC, “quando se traduzir numa contradição nos seus próprios termos, num dizer e desdizer desprovido de qualquer nexo lógico positivo ou negativo, que não permita sequer ajuizar sobre o seu mérito. Se a relação entre a fundamentação e a decisão for apenas de inconcludência jurídica, estar-se-á já perante uma questão de mérito, reconduzida a erro de julgamento e, por isso, determinativa da improcedência da ação.[3] No caso, o tribunal a quo considerou que o tribunal de 1.ª instância omitiu pronúncia sobre determinada questão – direito de preferência dos Autores subtilmente invocado à luz do previsto artigo 26.º Decreto-Lei n.º 73/2009, de 31 de Março –, que se lhe impunha apreciar face ao alegado nos artigos 20.º e 21.º, da petição[4]; nessa medida, nos termos do disposto no artigo 665.º, do CPC, substituiu-se àquele tribunal e tomou dela conhecimento. Ao invés do que defendem os Recorrentes, o suprimento da nulidade da sentença e o conhecimento do pedido consubstanciam parâmetros diferentes de análise. Com efeito, o dever de apreciar uma questão suscitada pela parte (que decorre da exigência prescrita no n.º2 do artigo 608.º do CPC, nos termos do qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”) é independente da apreciação do respectivo mérito, pelo que, no caso, o reconhecimento feito pelo tribunal recorrido quanto ao dever processual de apreciar o pedido dos Autores alicerçado em outro fundamento alegado na petição e não conhecido em sede de sentença, não o impedia de concluir pela improcedência do mesmo por insuficiência de alegação de factos (essenciais) para o efeito. Não ocorre, por isso, a alegada nulidade.
2.2 Da legalidade da decisão de não aditamento de factualidade provada em audiência de julgamento Insurgem-se os Recorrentes relativamente ao acórdão recorrido ao decidir pelo não aditamento da factualidade referente à localização do prédio dos Autores (encontrar-se o referido terreno inserido em área RAN). Consideram estar em causa um entendimento formalista e fundamentalista quanto ao ónus de alegação, que se encontra em desacordo com os princípios enformadores das alterações introduzidas ao Código de Processo Civil, que privilegiam a verdade material em detrimento das decisões formais, constituindo, por isso, uma interpretação inadequada do artigo 5.º, do CPC. Relativamente à questão, encontra-se decidido no acórdão: “Quanto à localização do prédio dos autores/apelantes relativamente à RAN dir-se-á que, não obstante como ficou bem expresso na motivação da decisão da matéria de facto proferida em 1.ª instância “…MM demonstrou ter conhecimento sobre a factualidade em causa, designadamente que os prédios dos autores e o prédio em discussão nos autos são de monocultura/cultura rotativa arvense (no inverno erva e na primavera/verão milho), esclarecendo também que a zona onde os prédios se inserem é de RAN e que no prédio vendido aos 2.ºs réus só há uma pequena margem que foi desafectada/libertada da RAN (…) não se pode olvidar quer a situação do prédio dos preferentes, ora autores/apelantes, se situar na área da RAN é facto constitutivo e o primeiro fundamentador da respectiva causa de pedir relativamente ao pedido do direito de preferência ao abrigo do disposto no art.º 26.º do DL n.º 73/2009, de 31.03, (com as alterações dadas pelo DL n.º 199/2015, de 16.09) que aprovou o regime jurídico da Reserva Agrícola Nacional (“RAN”), já que o n.º1 de tal preceito refere que: “Sem prejuízo dos direitos de preferência estabelecidos no Código Civil e em legislação complementar, os proprietários de prédios rústicos ou mistos incluídos numa área de RAN gozam do direito de preferência na alienação ou dação em cumprimento de prédios rústicos ou mistos confinantes.” Ou seja, a inclusão do prédio de quem se arroga ao direito de preferência na alienação de um prédio confinante estar incluído/situado numa área da RAN é assim um facto essencial à respectiva causa de pedir. E assim sendo, era ónus dos autores/apelantes o alegarem em sede da petição inicial dos presentes autos e não o fizeram, tendo apenas alegado a tal respeito que: “20.º Acresce que o prédio transmitido aos 2.ºs RR. acima identificado em 13.º se localiza em área de Reserva Agrícola Nacional (RAN). Pelo que, 21º Também assiste aos autores o direito de preferência por via do disposto no artigo 26.º do Decreto-Lei n.º 73/2009, de 31 de Março, que estipula um direito legal de preferência incidente sobre a transmissão de prédios rústicos ou mistos incluídos numa área RAN”, cfr. art.º 5.º n.º1 do C.P.Civil, pelo que “sibi imputet”. Sem olvidar que, apesar do mesmo ter resultado das declarações das testemunhas ouvidas, por não ter sido alegado, não podiam os autores/apelantes fazer prova da realidade do mesmo, nem o tribunal o poderia considerar, pois por força do preceituado no n.º 2 do referido art.º 5.º do C.P.Civil, o mesmo estava fora dos poderes de cognição do tribunal, por se não tratar de um facto enunciado nas suas alíneas, mas como já se referiu, de um facto essencial.”. Entendeu, pois, o tribunal a quo que estando em causa facto essencial (integrando a causa de pedir) não alegado, independentemente de o mesmo ter sido invocado e/ou demonstrado por testemunhas em sede de audiência de julgamento, não podia ser considerado como provado por se encontrar arredado do âmbito dos poderes de cognição do julgador. Segundo os Recorrentes, tal facto novo, essencial, deveria de ter sido aproveitado por ter resultado da produção dos meios de prova disponíveis ao tribunal da Relação (documento e declarações de testemunhas) no exercício dos poderes que o artigo 662.º, do CPC, lhe confere. Não podemos corroborar tal entendimento por o mesmo, assentar, a nosso ver, quer numa configuração equivocada do papel que o nosso processo civil atribui ao juiz na construção da verdade dos factos, quer numa interpretação inadequada do artigo 5.º, do CPC, porquanto, no domínio da decisão fáctica, não temos dúvida, de que ainda se mantém a edificação do modelo no princípio do dispositivo. Na verdade, a reforma do processo civil operada assentou numa flexibilização do princípio do dispositivo conduzindo a um reforço dos poderes de gestão processual do juiz que não se confinam à gestão formal, abarcando, igualmente, uma gestão material do processo que, no âmbito da decisão de facto, veio permitir que, oficiosamente, o juiz possa tomar em consideração factualidade não alegada pelas partes nos respectivos articulados. A viabilidade legal deste procedimento encontra-se prevista no artigo 5.º, do CPC, preceito que, quanto a nós, se mostra claro no sentido de dele resultar um inequívoco não arredar do ónus de alegação das partes quanto aos factos essenciais (n.º 1), que constituam a causa de pedir em que se sustenta o pedido do autor (cfr. artigo 552.º, n.º1, alínea d), do CPC) ou em que se fundamentem as excepções invocadas pelo réu (cfr. artigo 572.º, alínea c), do CPC). Esta obrigatoriedade que impende sobre as partes de introduzir no processo os factos essenciais não se estende, porém, a outros factos pois, segundo o citado artigo 5.º, do CPC, a lei concede ao juiz a faculdade de, oficiosamente, introduzir no processo quer os factos instrumentais (n.º 2, alínea a)), quer os complementares e concretizadores (n.º 2, alínea b)) que resultem da produção de prova e, bem assim, os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções (n.º 2, alínea c)). É, pois, nesta diferenciação de categorização de factos (essenciais, instrumentais, complementares ou concretizadores e notórios) que se circunscreve o âmbito do poder de gestão material do juiz, sendo que, apenas relativamente aos primeiros – os essenciais (que, sublinhamos, quanto ao autor, constituem e individualizam a causa de pedir; quanto ao réu, fundamentam as excepções invocadas), a lei fez permanecer o princípio do dispositivo na sua plenitude, fazendo recair sobre as parte um dever de alegação sob pena de preclusão. Colocando-se, assim, no caso, a situação de poder resultar das diligências probatórias factualidade indubitavelmente essencial[5] (não instrumental nem concretizadora ou complementar[6]), atenta o que preceitua o n.º1 do artigo 5.º do CPC, mostra-se legal a decisão do tribunal a quo em rejeitar a consideração da mesma na matéria de facto. Conforme faz realçar no acórdão deste tribunal de 20-09-2016 a inércia processual das partes (seja por inépcia ou impreparação sua em termos técnico-processuais, seja intencionalmente em função de uma certa interpretação do direito aplicável) produz consequências negativas (desvantagens ou perda de vantagens) para elas, só havendo lugar à desvalorização do princípio da sua autorresponsabilização mediante a intervenção tutelar, assistencial ou corretiva do tribunal quando a lei o preveja.[7] Na situação em causa, a lei não só não o prevê como, conforme interpretação do artigo 5.º do CPC, que temos por adequada, não o consente. Assim sendo, verificando-se que os Autores incumpriram o seu dever de alegação, apenas aos mesmos são imputáveis as respectivas consequências que, nessa medida, não poderão ser assacadas ao tribunal. Não violou, assim, o tribunal a quo qualquer norma processual ao decidir pelo não aditamento da referida matéria.
2.2.1 Defendem ainda os Recorrentes que caberia ao tribunal da Relação, a entender que se estava perante uma efectiva e irreparável omissão de alegação de facto essencial, ter ordenado a baixa dos autos à 1ª instância, a fim de ser proferido o despacho pré-saneador a que alude o artigo 590º nº 4 do CPC, anulando toda a tramitação subsequente a esse momento processual e convidando os autores/recorrentes a aperfeiçoar, nessa parte, a sua PI. Justificam tal entendimento defendendo que o artigo 590.º, n.º4, do CPC, prevê um poder vinculado do juiz em suprir insuficiências ou imprecisões dos articulados. Verifica-se, também quanto a esta pretensão (de o tribunal da Relação anular o processado com fundamento em nulidade processual decorrente da omissão de despacho de convite ao aperfeiçoamento da petição), que os Recorrentes têm uma perspectiva equivocada dos poderes de gestão processual conferidos ao juiz no nosso CPC. Na verdade, ainda que o artigo 590.º, do CPC, atribua ao juiz um dever de gestão inicial do processo por forma a convidar as partes a colmatarem quaisquer irregularidades dos articulados sugerindo-lhes o suprimento das insuficiências ou imprecisões dos respectivos articulados tendentes à boa decisão da causa, tal dever encontra-se inevitavelmente balizado pelos princípios estruturantes do processo civil, designadamente, do dispositivo, da igualdade das partes e da imparcialidade do juiz, que constituem traves-mestras do princípio fundamental do processo equitativo proclamado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa[8]. A realização da justiça do caso concreto não pode ser alcançada fora do âmbito de tais princípios enformadores de toda a actuação processual do juiz delineada, desde logo, pela premissa da factualidade alegada em função da pretensão visada. Assim sendo, nunca poderia o tribunal da Relação, na ausência de um acordo das partes nesse sentido, anular a sentença com base na relevância de factualidade para a procedência da acção, colmatando uma falta de alegação de facto essencial e, nessa medida, beneficiando uma das partes (incumpridora do respectivo ónus de alegação) em detrimento da outra. Há, como vimos, um limite inultrapassável ao dever de gestão processual (quer na sua vertente material, quer na sua vertente formal) que se impõe constitucionalmente ao juiz pelo artigo 20.º, n.º4, da Constituição da República Portuguesa, que radica na obrigação de manter um processo equitativo onde tem de imperar a salvaguarda da imparcialidade do julgador. Improcedem, por isso, na sua totalidade, as conclusões das alegações.
IV – DECISÃO Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente a revista, confirmando o acórdão recorrido. Custas pelos Recorrentes. Lisboa, 18 de Abril de 2023
Graça Amaral (Relatora) Maria Olinda Garcia Ricardo Costa
Sumário, art.o 663, n.o 7, do CPC.
______________________________________________
|