Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06B4220
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: BETTENCOURT DE FARIA
Descritores: NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
PRINCÍPIO INQUISITÓRIO
Nº do Documento: SJ200612190042202
Data do Acordão: 12/19/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - Ainda que dos autos constem todos os elementos integradores de determinada questão jurídica, que seria suficiente para dar uma outra solução ao pleito, se a mesma não foi alegada pela parte que dela pode beneficiar, não pode o tribunal tomar conhecimento dessa questão, nos termos dos artºs 264º e 660º nº 2 do C. P. Civil. *

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I
"AA" moveu a presente acção sumária contra Empresa-A, Empresa-B e BB, pedindo que os réus fossem condenados no pagamento da quantia de 3.181.5000$00, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação, em virtude dos danos que sofreu emergentes de acidente de viação.
Os réus contestaram.
O processo seguiu os seus trâmites e, feito o julgamento, foi proferida sentença que condenou a ré Empresa-A a pagar à autora a quantia de € 13.716,94.
Apelou esta ré, mas sem êxito.
Recorre a mesma, novamente, apresentando, nas suas alegações de recurso, as seguintes conclusões:

1 A apólice relativa ao veículo HP foi contratada com BB para serviço particular.
2 Tal veículo foi afectado ao serviço de aluguer e alienado a Empresa-B de 22.08.86 até 10.09.91, como consta expressamente da alínea I) dos factos assentes aditada no decurso do julgamento.
3 O facto não era do conhecimento da recorrente, que apenas soube através da petição inicial do serviço de aluguer, nada podendo alegar para além disso, por desconhecimento material da conjuntura, tem a inerente invocação da conjuntura.
4 A afectação a um fim de risco e a venda do veículo constituem, face à citada alínea I), um caso julgado formal irreversível nos autos.
5 O acidente ocorreu em 27.01.89, quando o veículo fora alienado pelo segurado a terceiros à revelia da contestante, inibida de alegar o que ao tempo desconhecia, mas o tribunal averiguou no exercício do inquisitório.
6 Da observância do princípio do inquisitório resultou a descoberta da verdade material de que resulta a nulidade/caducidade do seguro e a ilegitimidade da recorrente face à lei do seguro obrigatório, disposição de interesse e ordem pública, sendo esta do conhecimento oficioso do tribunal.
7 No Acórdão da Relação fez-se, portanto, errada apreciação dos factos e má aplicação do disposto nos artºs 13º do D.L. 522/85, 429º do Código comercial e 264º, 265º, 493º, 494º, 511º, e 672º do Cod. Proc. Civil.
8 A descoberta da verdade material é a pedra chave da filosofia do processo civil, não podendo, nem devendo, ser postergada através duma aplicação tabelar, que esquece a própria tempestividade do inquisitório atribuído ao juiz e seus efeitos quanto à aplicação do direito substantivo.
9 Face aos factos provados e aceites, deve ser reconhecida a nulidade do contrato e a ilegitimidade da recorrente, resultante do uso indevido do veículo e da sua alienação anterior ao acidente.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

II
Nos termos do artº 713º nº 6 do C. P. Civil, consignam-se os factos dados por assentes pelas instâncias e que ao caso interessam, remetendo para o que consta de fls. 510 a 511.

III
Apreciando

No seu recurso de apelação a actual ré recorrente, veio levantar a questão da nulidade do contrato de seguro, nos termos do artº 429º do C. Comercial, por terem existido falsas declarações da parte do respectivo tomador e a da sua caducidade, por entretanto o veículo ter sido alienado.
A relação desatendeu tais alegações com o facto de que essas questões se configuravam como questões novas, dado não terem sido levantadas em 1ª instância.
Coloca a recorrente outra vez as mesmas questões, referindo que a obrigação do tribunal de recurso as conhecer deriva do princípio processual da verdade material e da oficiosidade de tal conhecimento.
Vejamos.

1 A necessidade de que o tribunal decida de acordo com a verdade material não significa que esta deva ser obtida à outrance e por qualquer modo. O que seria mais adequado a um tribunal norteado pelo populismo e pelo justicialismo, característico de situações sociais de anarquia em que as instituições vão surgindo e funcionando de forma espontânea.
A obtenção da verdade material tem regras e leva-nos àquilo que é normalmente chamado de verdade formal, ou seja, aquela que é obtida por certa forma, ou por certas formas processuais. A verdade formal não é uma mentira, mas a verdade material que foi possível obter. Daqui que a qualidade processual de um sistema de justiça avalie-se pela capacidade de aproximar a "sua" verdade da verdade "real".
Deste modo, seguir e aplicar correctamente os preceitos da verdade formal é a forma com mais segurança que tem o julgador, de acordo, aliás com o que a lei lhe impõe, de obter uma segura visão da realidade sobre a qual tem de actuar.
A primeira regra do processo civil, neste campo é o do dispositivo. O tribunal só investiga e decide as questões que as partes lhe submetem, conforme o prescrito nos artºs 264º e 660º nº 2 do C. P. Civil.
Questão jurídica é uma determinada problemática de direito de que a parte entende que devem decorrer certos efeitos jurídicos. É por estes que se delimita o conceito de questão jurídica.
O princípio do inquisitório tem por objectivo superar insuficiências de alegação e de prova das partes, mas move-se dentro dos limites fixados pelo dispositivo.
Como claramente resulta do artº 265º do mesmo código.
No caso vertente, a ré seguradora não se defendeu colocando as questões jurídicas da nulidade e da caducidade do contrato. Logo o tribunal delas não pode conhecer, inquisitoriamente, uma vez que isso implicaria a apreciação de factos de que não pode tomar conhecimento - artº 265º nº 3 - . Nem vai nisto nenhuma ofenda ao princípio da verdade material. Não é o tribunal que "vira a cara para o outro lado" e ignora os vícios do contrato. É a própria parte que poderia beneficiar desses vícios que não trouxe essa realidade ao processo.
Também não releva que factos integradores dessas questões estejam assentes nos autos. Como se assinalou, o princípio do dispositivo aplica-se não só aos factos, mas ainda às questões jurídicas.
Bem andou, pois, o tribunal da 2ª instância, quando entendeu que as mesmas questões eram questões novas que não poderiam ser apreciadas em recurso, dado estar ultrapassado o momento processual de as invocar.

2 A outra alegação da recorrente é a de que as ditas questões são do conhecimento oficioso. A oficiosidade é realmente uma excepção ao princípio do dispositivo.
Contudo, a anulabilidade prevista no artº 429º do C. Comercial não pode ser, por definição, do conhecimento oficioso. Se a norma prevê que o vício possa deixar de produzir efeitos, é porque não entende que tais efeitos são de interesse e ordem pública.
Igualmente, a caducidade não é do conhecimento oficioso, nos termos referenciados no acórdão em apreço, para o qual se remete, de acordo com o artº 713º nº 5 do C. P. Civil.

Com o que improcede o recurso.

Pelo exposto, acordam em negar a revista e confirmam o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 19 de Dezembro de 2006
Bettencourt de Faria
Pereira da Silva
Rodrigues dos Santos