Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
97S204
Nº Convencional: JSTJ00033185
Relator: ALMEIDA DEVEZA
Descritores: DESPEDIMENTO COM JUSTA CAUSA
CATEGORIA PROFISSIONAL
Nº do Documento: SJ199801210002044
Data do Acordão: 01/21/1998
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N473 ANO1998 PAG382
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR PROC CIV. DIR CIV - DIR OBG.
DIR TRAB - CONTRAT INDIV TRAB.
Legislação Nacional: CPC67 ARTIGO 305 ARTIGO 308 N2.
DL 64-A/89 DE 1989/02/27 ARTIGO 9 N1 N2 A.
CCIV66 ARTIGO 762.
DL 49408 DE 1969/11/24 ARTIGO 20 N1 C ARTIGO 21 N1 D ARTIGO 22 ARTIGO 23 ARTIGO 39 N1.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1994/12/07 IN CJSTJ ANOII TIII PAG303.
ACÓRDÃO STJ PROC136/97 DE 1997/12/10.
ACÓRDÃO STJ DE 1995/02/08 IN CJSTJ ANOIII TI PAG267.
ACÓRDÃO STJ PROC4119 DE 1995/10/18.
Sumário : I - Constitui justa causa de despedimento nos termos do artigo
9 n. 1 n. 2 alínea a) do Decreto-Lei 64-A/89, de 27 de Fevereiro, referido ao artigo 20 n. 1 alínea c) do Decreto-Lei 49408, de 24 de Novembro de 1969, o facto de o trabalhador repetidamente ter desobedecido à ordem da entidade patronal para preenchimento de fichas em que, de meia em meia hora, apontava, após verificação por medição, a conformidade da peça que por ele estava sendo fabricada com o desenho ou peça modelo correspondente, tarefa essa compreendida na sua categoria profissional de torneiro mecânico.
II - A categoria profissional corresponde a dois conceitos integrados pelo mesmo nome de categoria: a categoria-função ou categoria contratual, que identifica o essencial das funções a desempenhar pelo trabalhador e a que se obrigou pelo contrato de trabalho ou pelas alterações que este vier sofrendo em função da sua dinâmica; e a categoria-estatuto ou categoria normativa que se refere ao núcleo dos direitos garantidos pela lei e pelos IRCT.S ao complexo das funções da categoria-função.
III - A categoria-estatuto ou normativa assenta nas funções efectivamente desempenhadas pelo trabalhador, ou seja, na categoria-função ou contratual.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:
I - A, com os sinais dos autos, intentou acção com processo ordinário emergente de contrato de trabalho contra "B, Lda." também com os sinais dos autos, pedindo a sua condenação a: a) ver declarado ilícito o despedimento com que o sancionou; b) reintegrá-lo no seu posto de trabalho ou a pagar-lhe a indemnização de antiguidade, se por ela optar; c) pagar-lhe as retribuições vencidas e vincendas desde a data do despedimento até à da sentença.
Para tal alega, em resumo, que trabalhava para a Ré, mediante pertinente contrato de trabalho, auferindo ultimamente a retribuição mensal de 77000 escudos.
Alegando que o despedimento tem de se considerar como sanção abusiva, atribuíu à acção o valor de 3234000 escudos.
A Ré contestou a improcedência da acção. Pediu, em reconvenção, que o Autor fosse condenando a pagar-lhe a quantia de 1766027 escudos. E deduziu o incidente do valor da causa, pretendendo que o mesmo fosse fixado em 1617000 escudos.
Em impugnação alegou, em resumo, que o Autor foi despedido com justa causa.
O Autor respondeu ao pedido reconvencional, pedindo a sua improcedência. Quanto ao valor da causa defendeu que à mesma deveria ser atribuído o valor que indicou, já que a sanção de despedimento foi abusiva.
Pelo despacho de folhas 188 o Exmo. Juiz fixou à causa o valor indicado pelo Autor na sua petição.
A Ré, não se conformando com tal fixação agravou do referido despacho.
Proferiu-se o Despacho saneador, tendo-se elaborado a Especificação e o Questionário, objectos de reclamação das partes, reclamação essa parcialmente atendida.
Procedeu-se a julgamento e proferiu-se sentença que decidiu da forma seguinte: a) declarou ilícito o despedimento e condenou a Ré a reintegrar o Autor no seu posto de trabalho e a pagar-lhe a quantia de 936833 escudos de retribuições vencidas desde a data do despedimento até à da sentença; b) julgou improcedente o pedido reconvencional, absolvendo o Autor deste pedido.
Inconformada com a sentença a Ré dela apelou para o Tribunal da Relação do Porto de folhas 316 a 327. A Relação decidiu da forma seguinte: a) quanto ao agravo - valor da causa -, concedeu provimento parcial ao agravo, fixando à acção o valor de 3383027 escudos (sendo de 1617000 escudos, o valor correspondente ao pedido do Autor, e 1766027 escudos, correspondente ao pedido reconvencional). b) quanto à apelação, revogou em parte a sentença recorrida, absolvendo a Ré dos pedidos e mantendo a absolvição do Autor quanto à reconvenção.
II-B - Não se conformando com a decisão da Relação nas partes que lhes foram desfavoráveis, o Autor recorreu de Revista para este Supremo, tendo concluído as suas alegações da forma seguinte: a) O Acórdão recorrido ofendeu preceitos de direito substantivo, nomeadamente no que à decisão do recurso de agravo diz respeito, as disposições constantes dos artigos 32 e 33 da LCT; b) O Acórdão recorrido fez má interpretação do artigo 7, n. 2 do CCIV, bem como do n. 1 do artigo 1 do Regime aprovado pelo Decreto-Lei 372-A/75, quando conjugados e, por conseguinte, ofendeu ambos os preceitos ao decidir que os artigos 32 e 34 da LCT se encontram revogados; c) Ofendeu ainda os mesmos preceitos ao sustentar que na vigência do actual Regime, aprovado pelo Decreto-Lei 64-A/89, de 27 de Fevereiro, os artigos 32 e 34 da LCT não têm aplicação por se encontrarem revogados, uma vez que; d) Tais preceitos se encontram em vigor e, por via disso, deveriam ter sido levados à reunião dos normativos à luz dos quais a decisão a proferir teria que ser tomada, o que, a acontecer, determinaria obrigatoriamente, uma outra em sentido contrário; e) O Acórdão recorrido, no que à decisão sobre o recurso de apelação diz respeito, ofendeu preceitos de direito substantivo, nomeadamente as disposições constantes dos artigos 19 alínea g) e 22, ns. 1 e 2 da LCT e, ainda, o disposto na cláusula 80 do CCTV para o sector Metalúrgico e Metalomecânico subscrito pela Federação dos Sindicatos da Metalúrgia, Metalomecânica e Minas de Portugal,
Instrumento de Regulamentação Colectiva de Trabalho de que a Associação Patronal representativa da recorrida é também subscritora. Com efeito; f) Contra os normativos legais citados, o Acórdão recorrido, decidiu que uma entidade patronal podia encarregar um trabalhador, sem o seu acordo, definitivamente, de funções não compreendidas no objecto do seu contrato de trabalho.
Termina, pedindo a revogação do acórdão recorrido, e mantida, na íntegra, a decisão da 1. instância.
Contra alegou a recorrida, que formulou as seguintes conclusões: a) O Decreto-Lei 64-A/89 revogou o Decreto-Lei 372-A/75, o qual, por sua vez, disciplinou de forma totalmente nova o regime dos despedimentos, revogando, assim, os artigos 32 a 34 da LCT, que já nem sequer são transcritos em inúmeras colectâneas da legislação laboral; b) Os artigos 32 a 34 da LCT não foram represtinados pela entrada em vigor do Decreto-Lei 64-A/89; c) O artigo 32 da LCT remete para o artigo 109 da LCT, que também foi revogado pelo Decreto-Lei 372-A/75; d) Tanto a jurisprudência como a doutrina só atribuem, ao trabalhador despedido ilicitamente, uma indemnização correspondente a um mês de remuneração base por cada ano de antiguidade ou fracção; e) O Acórdão recorrido adopta uma correcta perspectiva da dinâmica empresarial e laboral; f) O recorrente assenta toda a sua fundamentação na CCT, reportada a um determinado momento - o da sua assinatura - necessariamente estático; g) A descrição das funções do recorrente não está conforme
às funções efectivamente desempenhadas; h) Tais funções já contemplavam a medição pelo recorrente das peças feitas por si e a verificação da sua conformidade com o desenho respectivo - o que não está contemplado na CCT; i) A ficha de controlo em curso de fabrico era tão somente o registo dessa medição, de meia em meia hora; j) Nâo há, assim, qualquer novidade ou sobrecarga das funções do recorrente motivada por tal procedimento, que não constitui nova função, não tendo sentido recorrer-se à figura do "jus variandi"; l) A categoria de um trabalhador afere-se pelas funções efectivamente executadas e não pelas que constam, nomeadamente, de uma CCT; m) O preenchimento de uma ficha não implica a baixa de categoria, retribuição, posição ou tratamento do recorrente; n) O Acórdão recorrido demonstrou conhecer integral e profundamente a realidade laboral no seu dinamismo.
Termina, pedindo a manutenção do Acórdão recorrido.
III-A - Subidos os autos a este Supremo a Exma. Magistrada do Ministério Público emitiu parecer nos seguintes termos: a) quanto ao valor da causa, deverá ele ser de 5000027 escudos (valor indicado pelo Autor na sua petição, por entender que o despedimento pode ser tido como sanção abusiva, a que se somará o valor da reconvenção), pelo que nesta parte o recurso deve ser provido; b) quanto à ilicitude do despedimento, entende que se deve negar a Revista.
Este parecer foi notificado às partes, que nada responderam.
Corridos os vistos legais, estão os autos para decisão.
III-B - A matéria de facto que a Relação deu como provada é a seguinte:
1) O Autor foi admitido ao serviço da Ré, em 1 de Outubro de 1973, desde então aí desenvolvendo a sua actividade, no desempenho das funções próprias de torneiro especializado;
2) Auferindo ultimamente o salário mensal de 77000 escudos;
3) Em 18 de Fevereiro de 1995 o Autor recebeu uma nota de culpa na qual era acusado de ter desobedecido a uma ordem da Ré, no sentido de preencher uma ficha de controlo de qualidade, visando a implementação dos sistemas de controlo de qualidade na empresa;
4) Na sequência do processo disciplinar a Ré deliberou o despedimento do Autor, em 29 de Março de 1995, decisão recebida pelo Autor em 31 de Março de 1995;
5) Com fundamento nos mesmos factos referidos em 3) a Ré instaurou outros sete procedimentos disciplinares a mais sete colegas de trabalho do Autor, todos laborando na Secção "C" da Ré;
6) O Autor é filiado no Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias Metalúrgicas e Metalomecânicas do Distrito de Braga, Associação filiada na Federação dos Sindicatos da Metalúrgia, Metalomecânica e Minas de Portugal;
7) A Ré é filiada na Associação Industrial do Minho;
8) Para implementar um Sistema de qualidade, no âmbito da norma NPEN29002, e devido a reclamações feitas por seus clientes, a Ré recorreu ao Centro Tecnológico de Apoio à Indústria Metalomecânica (CATIM);
9) Tal sistema consistia na detecção e na criação e instalação dos mecanismos tendentes a evitar a sua repetição;
10) Implicando tal sistema o preenchimento, por cada trabalhador, de uma ficha de controlo em curso de fabrico, para que qualquer desconformidade fosse detectada e a sua repetição prevenida e evitada;
11) Sem a implementação de tal sistema, a Ré, via-se na eminência de perder clientes;
12) A Ré promoveu reuniões entre o CATIM, referido no ponto de facto 8) e os trabalhadores para explicar a forma do preenchimento da ficha em causa e para os sensibilizar para a necessidade do seu preenchimento e para a finalidade que se pretendia alcançar;
13) Na sequência dessas reuniões, a Ré emitiu uma ordem expressa aos seus trabalhadores no sentido de ser dado início ao processo em causa e respectivo preenchimento da ficha;
14) Nas Secções "A" e "B" da Ré, os trabalhadores preencheram a ficha, obedecendo à ordem transmitida;
15) Na Secção "C", a do Autor, este e outros trabalhadores recusaram o preenchimento da ficha;
16) Uma vez constatada essa recusa, mais uma vez a Ré promoveu nova reunião com os trabalhadores da Secção "C" e com os membros de DRHT Desenvolvimento de Recursos Humanos e Turismo, Lda, empresa contratada pela Ré para maior rentabilização e esclarecimento daqueles trabalhadores com vista a solucionar aquela situação;
17) Os trabalhadores da Secção "C", mantiveram a recusa em obedecer à ordem do preenchimento da ficha;
18) Em 2 de Novembro de 1994, a Ré perante essas recusas, promoveu uma nova reunião entre os trabalhadores da Secção
"C" e o "CATIM" e o "DRHT", na qual aqueles trabalhadores não só afirmaram a intenção de continuar a não preencher a ficha como se recusaram a assinar a acta da reunião;
19) O preenchimento das fichas, aludidas no ponto de facto 10), importava a seguinte operação: de meia em meia hora o Autor verificava por medição, a conformidade de uma peça, com o desenho correspondente;
20) E apontava numa ficha, de folhas 115 a 125 são o exemplo, a hora e a medição ou medições constantes;
21) E não mais do que isso;
22) O sistema de preenchimento dessas fichas pelo Autor, destinava-se a vigorar definitivamente;
23) A recusa do Autor em preencher as fichas ficou a dever-se ao facto de ele entender que tal operação não lhe era exigível, por corresponder a tarefas próprias dos controladores de qualidade; excedendo as sua próprias;
24) Assim, justificando o Autor tal recusa aos superiores hierárquicos da Ré;
25) O Autor, já antes da ordem de preenchimento das fichas procedia à medição e por amostragem, das peças que fabricava e a sua conformidade com o desenho respectivo;
26) Em consequência da conduta do Autor e dos outros seus colegas, a Ré não pode beneficiar dos serviços prestados pelo "CATIM";
27) Com o DRHT a Ré dispendeu a quantia de 632217 escudos;
28) A Ré pagou os serviços prestados pelo "CATIM" por uma quantia não apurada.
III-C - As questões que se colocam neste recurso prendem-se com o valor da causa e a justa causa de despedimento.
Começaremos por apreciar a primeira daquelas questões.
Como resulta da petição, o Autor atribuíu à acção um certo e determinado valor no pressuposto de que sendo o despedimento uma sanção abusiva, a indemnização de antiguidade seria em dobro.
No entanto, e sem se entrar na questão de se saber se o despedimento constitui ou não uma sanção abusiva, para a determinação do valor da causa deve atender-se ao momento em que a acção é proposta. E esse valor deve ser certo, expresso em moeda legal e deve representar a utilidade económica imediata do pedido (artigos 305 e 308 do CPC).
Segundo a petição inicial e tendo em conta o pedido formulado, o Autor pretendia receber uma certa quantia em dinheiro - 3234000 escudos -, partindo do princípio de que o despedimento seria uma sanção abusiva e como tal haveria que ser indemnizado. E, sem entrar na discussão de se saber se ele teria ou não razão quanto à qualificação do despedimento como sanção abusiva, a verdade é que foi essa quantia que ele pediu. O saber-se se tem ou não razão quanto a esse ponto, é questão que só na decisão concreta sobre essa questão cabe resolver.
Haverá, assim, que atender ao valor atribuído pelo Autor à acção.
E, como a Ré deduziu pedido reconvencional, com fundamento diverso do pedido do Autor, e pediu a sua condenação em certa quantia - 1766027 escudos - haverá, para atribuição do valor à causa de somar os dois valores pedidos (n. 2 do artigo 308 citado), o que totaliza a quantia de 5000027 escudos.
III-D - Vejamos agora se existiu ou não justa causa de despedimento.
O n. 1 do artigo 9 do Regime Jurídico da Cessação do Contrato Individual de Trabalho e da Celebração e Caducidade do Contrato de Trabalho a Termo aprovado pelo Decreto-Lei 64-A/89, de 27 de Fevereiro, (que se passará a designar por LCCT, e de cujos artigos serão todos, sempre que não haja referência a outro diploma) dá-nos a noção de justa causa como sendo o "comportamento do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho".
Segundo aquele preceito a existência de justa causa de despedimento - exige a verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
1) um, de natureza subjectiva, traduzido num comportamento culposo do trabalhador;
2) outro, de natureza objectiva, que se traduz na impossibilidade de subsistência da relação de trabalho;
3) existência de nexo de causalidade entre aquele comportamento e esta impossibilidade de subsistência da relação laboral.
Assim, para que se esteja perante justa causa de despedimento torna-se necessário que haja comportamento culposo do trabalhador. A justa causa disciplinar tem a natureza de uma infracção disciplinar, pressupondo uma acção ou uma omissão imputável ao trabalhador a título de culpa, e violadora dos deveres a que o trabalhador, como tal, está sujeito, deveres esses emergentes do vínculo contratual, cuja observância é requerida pelo cumprimento da actividade a que se obrigou ou pela disciplina da organização em que essa actividade se realiza.
Mas, não basta aquele comportamento culposo do trabalhador.
É que sendo o despedimento a mais grave das sanções, para que o comportamento do trabalhador integre a justa causa é ainda necessário, que seja grave em si mesmo e nas suas consequências.
E a gravidade do comportamento do trabalhador não pode aferir-se em função do critério subjectivo do empregador, devendo atender-se a critérios de razoabilidade, considerando a natureza da relação laboral, o grau de lesão dos interesses da entidade empregadora, o carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes (artigo 12, n. 5).
Tanto a gravidade como a culpa hão-de ser apreciadas em termos objectivos e concretos, de acordo com o entendimento de um bom pai de família ou de um empregador normal, em face do caso concreto e segundo critérios de objectividade e razoabilidade.
Mas, o comportamento culposo do trabalhador apenas constitui justa causa de despedimento quando determine a impossibilidade prática da subsistência da relação laboral, o que sucederá sempre que a ruptura da relação laboral seja irremediável na medida em que nenhuma outra sanção seja susceptível de sanar a crise contratual aberta com aquele comportamento culposo.
Aquela impossibilidade prática, por não se tratar de impossibilidade física ou legal, leva-nos para o campo da inexigibilidade, a determinar através do balanço, em conflito, dos interesses em presença - o da urgência da desvinculação e o da conservação do contrato de trabalho.
Por isso se pode afirmar que existe justa causa de despedimento quando o estado de premência do despedimento seja de julgar mais importante que os interesses opostos na permanência do contrato.
Assim, somente se poderá concluir pela existência de justa causa, comparando-se a diferença dos interesses contrários das partes, quando, em concreto, e tendo em conta os factos praticados pelo trabalhador, seja inexigível ao empregador o respeito pelas garantias da estabilidade do vínculo laboral.
A inexigibilidade de permanência do contrato de trabalho envolve um juízo de prognose sobre a viabilidade da relação laboral, a realizar segundo um padrão essencialmente psicológico - o das condições mínimas de suporte de uma vinculação duradoura, que implica frequentes e intensos contactos entre os sujeitos.
Assim, existirá impossibilidade prática de subsistência da relação laboral sempre que, nas circunstâncias concretas, a permanência do contrato e das relações pessoais e patrimoniais, que ele importa, sejam de forma a ferir, de modo exagerado e violento, a sensibilidade e a liberdade psicológica de uma pessoa normal, colocada na posição do empregador, ou seja, sempre que a continuidade do vínculo represente uma insuportável e injusta imposição ao empregador (cfr. Monteiro Fernandes, em "Direito do Trabalho", 8. edição, volI, págs.461 e segs.; Menezes Cordeiro, em "Manual de Direito do Trabalho", 1991, págs. 822; Lobo Xavier, em "Curso de Direito do Trabalho", 1992, págs.488; Jorge Leite e Coutinho de Almeida, em "Colectânea de Leis do Trabalho", 1985, págs.249; Motta Veiga, em Direito do Trabalho", II, págs.128).
Tem este Supremo vindo a decidir verificar-se a impossibilidade prática de subsistência da relação laboral, por deixar de existir o suporte psicológico mínimo para o desenvolvimento da relação laboral, quando se esteja perante uma situação de absoluta quebra de confiança entre a entidade patronal e o trabalhador (cfr. Acs. de 7 de Dezembro de 1994 e 11 de Outubro de 1995 em, respectivamente, Col. Jur. - Acs. STJ, ano II, tomo III pág. 303 e ano III tomo III pág. 277, e Acórdão de 10 de Dezembro de 1997 na Revista 136/97 e a jurisprudência aí referida).
Na verdade, a exigência geral de boa fé na execução dos contratos reveste-se, neste campo, de especial significado, por estar em causa o desenvolvimento de um vínculo caracterizado pela natureza duradoura e pessoal das relações dele emergentes (cfr. artigo 762 C.Civil).
Assim, justifica-se que se acentue o elemento fiduciário dessas relações, dado que o contrato de trabalho é celebrado com base numa recíproca confiança entre o empregador e o trabalhador devendo as futuras relações obedecer aos ditames da boa fé e desenvolver-se no âmbito dessa relação de confiança. Sendo assim, é necessário que a conduta do trabalhador não seja susceptível de destruir ou abalar essa confiança, de criar no espírito do empregador a dúvida sobre a idoneidade futura da conduta do trabalhador.
Vejamos, então, se os comportamentos do Autor são ou não susceptíveis de constituir justa causa de despedimento.
A questão surge em se saber se o Autor, desobedecendo à ordem do preenchimento da ficha, agiu ou não com legitimidade. Isto é, se ele era ou não obrigado a cumprir essa ordem.
Com o contrato de trabalho nascem para as partes determinados direitos e deveres.
Um dos deveres do trabalhador é o referido na alínea c) do n. 1 do artigo 20 da LCT, ou seja, obedecer à entidade patronal em tudo o que respeite à execução e disciplina do trabalho. Este dever constitui um elemento do próprio contrato e decorre da subordinação jurídica do trabalhador em relação ao empregador, a ele correspondendo o exercício pelo empregador do poder de direcção. Com o contrato de trabalho, surge para o trabalhador uma situação de subordinação jurídica, a qual determina, para este, a obrigação de obedecer às ordens da entidade patronal.
No entanto, este dever tem limites, limites esses logo referidos na parte final da referida alínea c) do n. 1 do artigo 20 da LCT: o trabalhador não tem de obedecer às ordens e instruções da entidade patronal que se mostrem contrárias aos seus direitos e garantias, direitos e garantias essas que estão referidos no artigo 21 da LCT.
Assim, a ordem dada e que viole aqueles direitos e garantias é ilegítima, não tendo o trabalhador a obrigação de obediência à mesma.
E um dos direitos do trabalhador é o de exercer só as funções da sua categoria. Assim, a entidade patronal não pode, salvo nos casos de "jus variandi" referidos no artigo 22 da LCT, atribuir tarefas ao trabalhador que não caibam na sua categoria profissional.
E é com este fundamento que o Autor se recusou a preencher as fichas, já que esse preenchimento não fazia parte das funções da sua categoria profissional, mas sim das do "controlador de qualidade".
A categoria do Autor era a de "Torneiro Mecânico", categoria que é definida pelo CCT aplicável como sendo "o trabalhador que, operando um torno mecânico paralelo, vertical, revólver ou de outro tipo, executa todos os trabalhos de torneamento de peças, trabalhando por desenho ou peça modelo. Prepara a máquina, e se necessário, as ferramentas que utiliza".
O "Controlador de Qualidade" é "o trabalhador que verifica se o trabalho executado ou em execução corresponde às características expressas em desenhos, normas de fabrico ou especificações técnicas. Detecta e assinala possíveis defeitos ou inexactidões de execução ou acabamento, podendo eventualmente elaborar relatórios simples".
O CCT aplicável (cla. 4.) define "função" como sendo "o conjunto bem definido de tarefas atribuídas a um trabalhador ou, de modo semelhante, a vários, correspondendo a um ou mais postos de trabalho de idênticas características" e caracteriza a "profissão", como sendo o "conjunto de funções compreendendo tarefas semelhantes exercidas com carácter de permanência ou de proeminência".
A posição do trabalhador na organização da empresa em que presta a sua actividade define-se através do conjunto de serviços e tarefas que formam o objecto da prestação laboral. A essa posição corresponde a categoria do trabalhador, a qual traduz o status do trabalhador na empresa, determinado com base numa classificação normativa e em conformidade com a natureza e espécie das tarefas por ele efectivamente realizadas no exercício da sua actividade laboral.
A categoria corresponde ao essencial das funções a que o trabalhador se obrigou pelo contrato ou pelas alterações decorrentes da sua dinâmica. Corresponde a uma determinação qualitativa da prestação de trabalho contratualmente prevista. É o que se chama de categoria contratual ou categoria-função.
Mas, também a nível legal e nos instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho se disciplina a matéria da categoria do trabalhador. É o que se chama de categoria normativa ou categoria-estatuto, na medida em que define a posição do trabalhador pela correspondência das suas funções a uma determinada categoria, cujas tarefas típicas se descrevem. Neste âmbito, a categoria propícia a aplicação da disciplina prevista na lei ou em instrumento de regulamentação colectiva, com repercussão em diversos aspectos da relação laboral, designadamente na hierarquia salarial, operando a integração do trabalhador na estrutura hierárquica da empresa (cfr. Acórdão deste Tribunal, de 8 Fevereiro de 1995, em Col. Jur. - Acs. STJ, ano III, tomo I pág.267; e Acórdão de 18 de Outubro de 1995 no recurso de revista n. 4119, da 4 Secção).
A categoria "assume a natureza de conceito normativo - no sentido de que circunscreve positiva e negativamente as funções a exercer em concreto pelo trabalhador, ou, noutros termos, de que nela se subsumem as tarefas prometidas e se excluem tarefas diferentes - e, por conseguinte, se estabelece uma relação de necessidade entre o exercício de certa função e a titularidade de certa categoria" (cfr. Monteiro Fernandes, em "Direito do Trabalho ", 8 ed. I/172).
As fontes de direito laboral, com especial relevo para os instrumentos de regulamentação colectiva, preveêm situações laborais para as quais garantem direitos mínimos
- remuneração, tempo de trabalho, carreira, etc.. Como refere o Dr. Menezes Cordeiro, em "Manual de Direito do Trabalho", págs. 665 e segs.) estamos perante a categoria
- estatuto que, em princípio, nunca pode baixar, por força dos artigos 21, n. 1, alínea d) e 23 da LCT. "Assim, da categoria em Direito de Trabalho, pode dizer-se que ela obedece aos princípios da efectividade, da irreversibilidade e do reconhecimento. A efectividade recorda que no domínio da categoria-função, revelam as funções substancialmente pré-figuradas e não as meras designações exteriores; a irreversibilidade explica que, uma vez alcançada certa categoria, o trabalhador não pode, dela, ser retirado ou despromovido; tem-se, aqui, em vista a categoria-estatuto dos artigos 21, n. 1, alínea d) e 23 da LCT; o reconhecimento determina que, através da classificação, a categoria-estatuto corresponda à categoria-função e, daí, que a própria categoria- -estatuto assente nas funções efectivamente desempenhadas" (Dr. M. Cordeiro, ob. cit., págs.669).
Por exprimir a posição contratual do trabalhador, a categoria profissional é objecto de protecção legal e convencional. Assim, e nos termos do artigo 21, n. 1, alínea d) da LCT, o empregador não pode baixar a categoria do trabalhador. Tal, traduz um meio de protecção da profissionalidade como valor inerente à pessoa do trabalhador.
Assim, uma vez atribuída ou reconhecida determinada categoria ao trabalhador, o empregador deve logo pô-lo a executar tarefas inerentes a essa categoria, nos termos do artigo 22 da LCT. E, igualmente, deve o empregador pagar toda a retribuição correspondente a essa categoria.
No que se refere à actividade a desempenhar pelo trabalhador ela encontra-se delimitada pelo objecto fixado no contrato de trabalho (n. 1 do artigo 39 da LCT) e em função da categoria para que o trabalhador foi contratado.
Como acima se referiu já a categoria traduz o status do trabalhador na empresa, determinado com base numa classificação normativa e em conformidade com a natureza e espécie das tarefas por ele efectivamente desempenhadas no exercício da sua actividade.
Como também acima se deixou referido a categoria profissional de um trabalhador corresponde a dois conceitos integrados pelo mesmo nome de categoria, a "categoria-função", ou categoria contratual, que identifica o essencial das funções a desempenhar pelo trabalhador e a que este se obrigou pelo contrato de trabalho ou pelas alterações que este vai sofrendo em função da sua dinâmica; e a "categoria-estatuto", ou categoria normativa, que se refere ao núcleo dos direitos garantidos pela lei ou pelos IRCT'S ao complexo das funções da categoria função. Assim temos que é a categoria função que comanda a categoria estatuto ou normativa, pois esta assenta nas funções efectivamente desempenhadas pelo trabalhador.
Perante o que acima se disse, é que teremos de decidir da razão do recorrente/Autor.
Já se viu quais as funções a desempenhar por um "torneiro mecânico", e, face a elas, verifica-se que ele procede ao torneamento das peças, trabalhando por desenho ou peça modelo. Assim, haverá que concluir que ele terá forçosamente de verificar a conformidade entre as peças que produz e o desenho ou peça modelo, verificação essa que implica a medição das peças em execução, medição essa que é uma tarefa inerente à categoria de "torneiro mecânico".
Mas, da matéria de facto provada resulta que já antes da ordem que o Autor não acatou, uma das funções exercidas pelo Autor consistia na medição, por amostragem, das peças que fabricava e na verificação da sua conformidade com os desenhos respectivos (cfr. ponto de facto 25)). Ora, o preenchimento da ficha de controlo exigida pela Ré não pode deixar de ser tida como uma forma de consubstanciar aquela medição e, assim, tal tarefa não constitui qualquer alargamento do objecto da prestação a que o Autor se obrigara perante a Ré, nos termos do contrato de trabalho.
E, nem se diga que o preenchimento daquelas fichas constitui tarefa do "controlador de qualidade", pois elas consistem em verificar se o trabalho executado ou em execução corresponde às características expressas em desenhos, verificação essa que não passa pelo preenchimento das fichas, tarefa essa já, como se viu, compreendida nas funções de "torneiro mecânico".
Teremos, pois, de concluir que o preenchimento das faladas fichas cabia no complexo das funções inerentes à categoria de "torneiro mecânico", como também, e essencialmente, no âmbito das funções efectivamente desempenhadas pelo Autor.
Por tal motivo a ordem da Ré no sentido do preenchimento daquelas fichas é legítima.
Face ao até aqui referido temos que a ordem da Ré é legítima e o seu não acatamento pelo Autor constitui uma desobediência ilegítima.
Nos termos da alínea a) do n. 2 do artigo 9 da LCCT a desobediência ilegítima às ordens dadas ao trabalhador por responsável hierarquicamente superior constitui justa causa de despedimento. É certo que, conforme entendimento unânime da jurisprudência, os comportamentos referidos nas diversas alíneas daquele n. 2 não constituem por si só justa causa de despedimento, pois eles têm de estar subordinados ao comando do n. 1 do mesmo artigo, que define o conceito de justa causa.
No caso concreto temos como certo que se verificam os elementos do conceito de justa causa, acima referidos.
Assim, temos que o comportamento do Autor se tem de considerar como culposo, na medida em que ele podendo agir de outra forma, não o fez e não se eximiu da prática dos falados comportamentos bem sabendo que eles se não coadunavam com a sua prestação laboral. E essa culpa é tanto mais grave, quanto se verificou reiteradamente, apesar de lhe ter sido chamada a atenção para o seu incorrecto comportamento. O Autor omitiu um dever de diligência que lhe era exigível. E a sua culpa, tendo em conta os factos provados e a ela atinentes, tem de se considerar como grave.
E os apontados comportamentos assumem uma especial gravidade, pois o Autor continuou a insistir na recusa, apesar de a Ré ter promovido duas reuniões entre os trabalhadores e membros do "DRHT" e da "CATIM" - ponto de facto 16 daí resultou que a Ré não pôde beneficiar dos serviços prestados pelo "CATIM" - ponto de facto 26).
Assim, e tendo em conta a culpa do Autor e a gravidade do seu comportamento, haverá que concluir que existe a impossibilidade prática de manutenção da relação laboral, já que nas condições em concreto, a permanência do contrato e das relações que dele resultam são de molde a ferir, de forma exagerada e violenta, a sensibilidade e a liberdade psicológica de uma pessoa colocada na posição da
Ré, e por forma a abalar e destruir a confiança que, entre Autor e Ré, presidiu à elaboração do contrato de trabalho, criando na Ré a dúvida sobre a idoneidade futura da conduta do Autor, o que se traduz no rompimento imediato do contrato.
Assim, considera-se que se verificam os requisitos da justa causa de despedimento do Autor.
IV- Assim, acorda-se em conceder parcial procedência ao recurso do Autor e, em consequência:
1) revogar a decisão quanto ao valor da causa, que se fixa em 5000027 escudos;
2) confirmar, no restante, o Acórdão recorrido, considerando-se, assim, que o despedimento do Autor é lícito.
Custas por Autor e Ré na proporção de 1/5, para esta; e 4/5 para o Autor.
Lisboa, 21 de Janeiro de 1998.
Almeida Deveza.
Couto Mendonça.
Sousa Lamas.