I. RELATÓRIO
1. No Tribunal da Comarca do Baixo Vouga, Albergaria-a-Velha, foi julgado o arguido AA, identificado nos autos, e condenado pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio, previsto e punido pelo art. 131.º do Código Penal (CP) e 86.º, n.º 3 do Regime Jurídico das Armas e suas Munições (RJAM), aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23/02, com as alterações da Lei n.º 17/2009, de 6/5, na pena de 13 anos de prisão, e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.ºs 1, alínea c) e 2 com referência aos arts. 3.º, n.º 4, alínea a) e 6.º, n.ºs 1 e 2, alínea a) do RJAM, na pena de 2 anos de prisão.
Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 13 anos e 6 meses de prisão.
2. Inconformado, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, quer em relação à matéria de facto, quer de direito, tendo obtido parcial provimento e visto reduzidas as penas parcelares para 11 anos de prisão, pelo crime de homicídio, e 13 meses de prisão, para o crime de detenção de arma proibida, e o cúmulo jurídico destas penas, para 11 anos e 4 meses de prisão.
3. Mesmo assim, o arguido não se conformou com esta decisão, tendo recorrido para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo assim a sua motivação:
Considerando que:
1ª_ O acórdão da Relação de Coimbra não se pronunciou quanto às questões colocadas pelo Recorrente na conclusão 15ª, ponto 2) e 3) e 17ª (motivação de fls. 764 e ss dos Autos) o que implica a nulidade do Acórdão, nos termos do art. 379° nº 1alínea c) do Código de Processo Penal, o que se invoca para todos os efeitos legais.
2ª O Arguido não pode concordar com o Acórdão recorrido, pois o mesmo não atendeu a toda a prova produzida, nomeadamente ás declarações do Arguido; ao depoimento dos Inspectores da Polícia Judiciária, BB e CC; à informação de Serviço da Polícia Judiciária, ao relatório de inspecção judiciária feito pela Polícia Judiciária, ao Auto de Reconstituição, á informação de serviço, ás fotos da vítima e ao relatório de autópsia.
3ª O Acórdão recorrido limita-se a considerar convincentes os depoimentos das testemunhas DD e DD. Todavia os mesmos contradizem-se entre si; a versão dos mesmos contraria as regras de experiência - se efectivamente a testemunha J... estivesse como afirma, debruçado com os braços e corpo na janela que estava aberta do lado do condutor/vítima, mais para o lado direito, isso implicaria das duas uma: que o DD tinha de ter sido atingido (por forma a não contrariar o relatório pericial que confirma que as balas entraram da esquerda para a direita e de trás para a frente) ou os tiros teriam de ter entrado na cabeça do C... da frente para trás (contrariando o relatório da autópsia); contraria a prova pericial e ainda os vestígios existentes e encontrados no local.
4a_ o Acórdão recorrido violou o art. 163° do Código de Processo Penal, dado que diverge do juízo científico contido no relatório de autópsia (relatório pericial) segundo o qual "as direcções dos tiros com entradas respectivamente na região frontal (à esquerda), zigomática e parietal esquerdas, foram da esquerda para a direita, de trás para a frente e de cima para baixo, com excepção do primeiro que foi de baixo para cima", para fazer vingar a versão das testemunhas DD e DD, sem no entanto, justificar cientificamente ou tecnicamente a divergência para com o resultado da perícia nomeadamente a direcção dos tiros, limitando-se a dar uma fundamentação vaga e sem cariz científico.
5ª_ Nenhuma testemunha referiu que a cabeça do C..., enquanto era atingida por tiros, fazia qualquer "movimento descontrolado". De facto o C... teve a cabeça encostada ao banco onde estava sentado (condutor) e apenas a mesma tombou para a frente (para o volante) após os tiros. Para além disso, do relatório de autópsia não se retira tal conclusão, mas antes os locais das entradas das balas na cabeça de C.... E este é um juízo científico de dois peritos médicos, com conhecimentos especiais, que se presume subtraído à livre apreciação do julgador e que se traduz numa excepção ao princípio da livre apreciação da prova, reconhecido no art. 127° do Código de Processo Penal, a menos que o juiz apresente uma fundamentação de cariz científica, que seja capaz de sustentar uma convicção divergente do juízo contido na perícia e afastar o valor probatório legalmente reconhecido à prova pericial, fazendo assim uso da prerrogativa conferida pelo art. 163° n°. 2 de Código de Processo Penal.
6a_ O Acórdão recorrido, ao proceder nestes termos, está inquinado, por violar, as regras de proibição ou valoração de prova e as exigências de fundamentação constantes nos artigos 163° e 374° ambos do Código de Processo Penal, incorrendo por isso, no vício de falta de fundamentação ou motivação, sendo causa de nulidade do Acórdão, nos termos do art. 374° n°. 1 e 2 e art. 379° do Código de Processo Penal, o que se invoca para todos os efeitos legais. Atendendo ao texto do acórdão proferido pela Relação e às regras de experiência comum, existe um erro notório na apreciação da prova e uma insuficiência para a decisão da matéria de facto provada - art. 410° n° 2 alíneas a) e c) do Código de Processo Penal.
7ª_ O Acórdão recorrido considerou que a conduta do Arguido não preenche o Crime de Homicídio Privilegiado, previsto e punido pelo art.133" do Código Penal, com base no elemento privilegiador emoção violenta. Todavia não ponderou um outro elemento privílegiador - o desespero, sendo que embora próximos, distinguem-se. Entendemos por isso, que no nosso caso, o elemento privilegiador a ter em atenção é o desespero, dado que o Arguido vinha sofrendo ameaças do C... prolongadas no tempo (pontos 19) a 35) da matéria dada como provada), as quais conduziram ao desespero do Arguido, o que também se vetificou no dia dos factos. Assim, deverá ser imputada ao Arguido a prática de um Crime de Homicídio Privilegiado, dado que o mesmo actuou dominado por desespero, o qual diminui sensivelmente a sua culpa.
8ª_ O Crime de Detenção de Arma Proibida é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias. Todavia o Acórdão recorrido optou pela aplicação ao Arguido de pena de prisão que fixou em 13 meses. Contudo não concordamos pelos seguintes motivos: no processo de operação de determinação da escolha da pena, o acórdão não fez, embora a lei a isso exija, qualquer opção justificativa fundamentada pela pena de prisão em detrimento da pena de multa e, quando ao crime é aplicável alternativamente pena de multa ou prisão, a Constituição da República Portuguesa e a lei ordinária impõem que o julgador dê preferência à pena de multa, sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
9ª_. No nosso caso, quanto à prevenção geral negativa entendemos que o julgador ao optar pela pena de prisão (no Crime de detenção de Arma Proibida) está a tentar instrumentalizar o Arguido AA, aplicando-lhe uma pena maior do que a medida da sua culpa, para que alegadamente sirva de exemplo à demais comunidade, o que não é aceitável. Quanto às exigências de prevenção geral positiva, entendemos que as mesmas não se verificam se atendermos: ao que ficou provado nos Autos nos pontos 19) a 35), 37) a 44), ao facto de o Arguido continuar a ser bem visto pela comunidade em geral. Logo a crença da comunidade na validade da norma violada não é posta em causa, tal como não é posta em causa a confiança nas instituições jurídico penais, com a aplicação de pena de multa ao Arguido. Quanto à prevenção especial, entendemos que a aplicação de pena privativa da liberdade aplicada ao crime de Detenção de Arma Proibida, não pode promover a ressocialização do Arguido. Assim ao aplicar a pena de multa ao mesmo isso implicará que este não quebre tão acentuadamente os laços familiares, profissionais e sociais e aliviará a possível estigmatização de que o Arguido poderá ser alvo. Desta feita, a aplicação de pena de multa pela prática do crime em questão satisfaz as exigências de prevenção geral e especial.
10a- O Acórdão recorrido fixou para o CRIME DE HOMICÍDIO a pena parcelar de 11 anos de prisão e para o CRIME DE DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA a pena de parcelar de 13 meses de prisão, tendo sido feito o cúmulo jurídico o qual fixou a pena única de 11 anos e 4 meses de prisão, todavia, não podemos concordar com tais penas parcelares e, por conseguinte, com a pena única fixada, porque as penas ainda se mostram excessivas, ultrapassando a medida da culpa. Daí que só a redução das penas parcelares para o mínimo legal permitirá assegurar as expectativas da comunidade e consequentemente realizar as finalidades de punição de forma adequada e suficiente e permitir, desta forma, uma mais fácil reintegração social do Arguido, tendo sempre em conta os factos provados nos pontos 19) a 35) e 37) a 44)- as quais funcionam como circunstâncias atenuantes.
Termina pedindo a revogação do acórdão recorrido.
4. No Supremo Tribunal de Justiça, o Ministério Público emitiu parecer no qual se pronunciou no sentido da improcedência do recurso quanto a todas as questões, colocando, no entanto, a questão da existência de uma nulidade por omissão de pronúncia do tribunal “a quo” no que se refere à ponderação da lei mais favorável, sendo certo que as alterações introduzidas pela Lei n.º 17/2009, de 6/05, ao Regime Geral das Armas e suas Munições só entraram em vigor 180 dias depois da publicação, tendo os factos ilícitos ocorrido antes, embora o acórdão condenatório seja posterior.
5. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2 do CPP, o arguido veio responder, discordando daquele parecer em todos os pontos, mas afirmando a sua concordância relativamente à referida questão de omissão de pronúncia.
6. Colhidos os vistos, o processo veio para conferência para decisão, não tendo sido requerida a audiência de julgamento.
II. FUNDAMENTAÇÃO
7. Matéria de facto apurada
7.1. Factos dados como provados:
"1) No dia 08 de Agosto de 2009, a hora não concretamente apurada, mas entre as 23.30 horas e as 23.50 horas, o arguido AA, dirigiu-se, na sua viatura de marca Peugeot 206, com a matrícula ...-...-VT, para junto do café denominado "Correios Bar", sito na Rua Major Geraldo, em Alquerubim, município de Albergaria-a-Velha, levando consigo uma arma de fogo de calibre 6,35 mm, com, pelo menos, três munições no carregador.
2) Nessa altura, encontrava-se parado, na dita Rua Major Geraldo, à frente do café "Correios Bar", o veículo automóvel de marca BMW 318, com a matrícula XFW-682.
3) No lugar do condutor encontrava-se o proprietário desse veículo, FF, e no lugar de passageiro, do lado direito daquele, encontrava-se DD, estando o FF a falar com EE, irmão da dita DD.
4) O arguido AA aproximou-se daquele local ao volante do referido veículo de matrícula ...-...-VT, circulando em sentido contrário ao veículo BMW 318, de matrícula XFW-682, e imobilizou a viatura ao lado do veículo do FF.
5) De imediato, o arguido AA, estando aberto o vidro da sua viatura, munido da referida pistola de calibre 6,35 mm, empunhou e apontou a mesma na direcção do FF e disparou, a uma distância entre 30 centímetros e 1 (um) metro, três projécteis de calibre 6,35 milímetros em direcção à cabeça deste, atingindo-o e abandonando, de seguida, o local.
6) O FF descaiu, de imediato, a cabeça, tendo a sua viatura ido embater na viatura de matrícula ...-HF-...que ali se encontrava estacionada, à frente.
7) Como consequência da conduta do arguido AA, o FF foi transportado pelo INEM de Albergaria-a-Velha ao Hospital D. Pedro, em Aveiro, onde lhe foi efectuado um RX, sendo detectados três projécteis no interior do crânio.
8) O FF veio a falecer, tendo o óbito sido certificado no dia 09 de Agosto de 2009, pelas 11.40 horas.
9) Esta morte foi devida às lesões traumáticas crânio-miningo-encefálicas sofridas, como consequência directa e necessária da referida conduta do arguido AA.
10) A vítima era beneficiária da Segurança Social com o n° 283414811.
11) O arguido AA e a vítima eram vizinhos, residindo a cerca de 1 km de distância um do outro.
12) O arguido AA agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito, conseguido, de provocar a morte do FF.
13) Quis o arguido AA utilizar aquela arma, nas circunstâncias em que o fez e atingir, como atingiu, uma zona vital da vítima.
14) Quis o arguido AA, e conseguiu, retirar qualquer possibilidade de a vítima se defender.
15) O arguido AA não é titular de licença de uso e porte de qualquer tipo de arma de fogo.
16) A arma utilizada pelo arguido AA não se encontrava manifestada nem registada, o que este bem sabia.
17) O arguido AA tinha em seu poder a mencionada arma que, pelas suas características, sabia ser de detenção e uso proibidos por lei, quando não manifestada ou registada e sem a necessária licença.
18) Sabia o arguido AA que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
19) À data dos factos (8 de Agosto de 2009), encontrava-se a decorrer o Processo de Inquérito n° 174/09.5GBALB, nos Serviços do Ministério Público de Albergaria-a-Velha, no qual eram ofendidos GG e o ora arguido AA e arguido a ora vítima FF
20) Com efeito, no dia 07 de Março de 2009 (cinco meses antes dos factos em discussão nos presentes autos), por volta das 00.15 horas, o FF dirigiu-se com uma caçadeira junto do referido café "Correios Bar", onde se encontrava a GG, proprietária desse café, o agora arguido AA e HH.
21) Nessa altura, sem qualquer justificação, o FF disparou vários tiros na direcção da porta do café "Correios Bar", causando danos patrimoniais e, só por mero acaso, não atingiu as pessoas presentes no café, nomeadamente o ora arguido AA.
22) Após estes primeiros disparos, o FF dirigiu-se para junto do veículo automóvel de marca Peugeot 206, com a matrícula ...-...-VT, que sabia ser propriedade do AA, e disparou sobre tal veículo pelo menos dois tiros, tendo causado danos no capot e pára-brisas.
23) Toda esta factualidade causou ao ora arguido AA medo e inquietação, chegando mesmo a temer pela sua própria vida, dada a conduta do FF e a personalidade deste.
24) O FF, a partir de então, intensificou os seus comportamentos ameaçadores, por estar convencido que o arguido AA mantinha um caso amoroso com a sua ex-companheira, a agora testemunha II.
25) Em virtude desse convencimento, o FF, pelo menos numa ocasião em que passou pelo agora arguido AA, ameaçou este, dizendo expressões do género "eu qualquer dia acabo com a tua raça" e "um dia haveremos de conversar."
26) O que levava a que o arguido AA sentisse inquietação e medo em virtude das referidas ameaças que eram feitas pelo FF.
27) Era do conhecimento geral que o FF tinha armas, trazendo, pelo menos em algumas ocasiões, uma consigo.
28) Em Junho de 2009, o FF tinha registadas em seu nome quatro armas, concretamente a espingarda de caça n° A6218, marca RANGER, calibre 12, livrete n° L09389; a espingarda de caça n° 421PW20623, marca BROWNING, calibre 12, livrete n° H97244; a espingarda de caça n° 2029498, marca FABARM, calibre 12, livrete n° N65583, e espingarda de caça n° 13712, marca E. BERNARD, calibre 12, livrete n° G36443 (fls. 385 dos autos).
29) Tal como o arguido AA, parte da população em Ameal, Alquerubim, tinha medo do FF, porque este, sem qualquer justificação, ameaçou algumas pessoas, utilizando algumas vezes armas.
30) A própria ex-companheira deste, II, foi alvo do comportamento agressivo do FF, o que deu lugar ao Processo de Inquérito n°. 85/08.1GAALB, que correu termos nos Serviços do Ministério Público de Albergaria-a-Velha (fls. 364 a 370 dos autos).
31) Isto porque, no dia 05 de Fevereiro de 2008, pelas 17:25 horas, o FF, dirigiu-se ao café "Correios Bar" e agrediu-a fisicamente.
32) E, em virtude de alguns presentes terem intervindo para apaziguar a situação, o FF saiu do café, dirigiu-se ao seu veículo automóvel, onde retirou uma arma, após o que regressou ao café "Correios Bar" e, empunhando a arma, ameaçou a sua ex-companheira, a filha e todos os presentes, tendo efectuado posteriormente um disparo para o ar e, de seguida, ausentou-se do café.
33) As ameaças de que era vítima o arguido AA por parte do FF, associadas à personalidade violenta deste, levaram a que aquele andasse preocupado com o que poderia ocorrer.
34) No próprio dia dos factos, o FF fazia transportar no seu veículo automóvel de marca BMW, com a matrícula XFW -682, uma moca de fabrico artesanal, com cerca de 51 cm de comprimento, com alça de borracha, de cor preta, tendo numa das extremidades incrustados 10 pregos e 17 parafusos.
35) Após os referidos disparos, o arguido AA ficou confuso e temeroso e saiu do local.
36) Na sequência do falecimento do FF, beneficiário n°11161985100 do Centro Nacional de Pensões, foram requeridas a este organismo, em representação dos dois filhos menores deste, JJ e LL, as respectivas prestações por morte, as quais foram deferidas, tendo o Centro Nacional de Pensões pago, a título de subsídio por morte, o montante global de 2.515,32€, e pago também, a título de pensões de sobrevivência, no período de Setembro de 2009 a Janeiro de 2010, o montante global de 877,82€.
37) A data dos factos o arguido AA trabalhava na empresa Tupai há cerca de 21 anos, no que auferia o vencimento de 600,006 mensais.
38) Vivia em casa de seus pais, num bom ambiente familiar, cujo agregado é composto pela mãe, pai, irmã, cunhado e duas sobrinhas.
39) Concluiu o 6.º ano de escolaridade.
40) O arguido AA não é o proprietário da arma utilizada no dia dos factos.
41) O mesmo é considerado uma pessoa bem comportada, cordata, pacífica, respeitada, respeitadora e bem aceite e integrada no meio social em que vive e trabalha.
42) É considerado pela sua entidade patronal um colaborador cumpridor dos seus deveres profissionais, sério e honesto, não criando atritos com ninguém ou qualquer tipo de problemas, sendo a sua função importante para o normal funcionamento do departamento ao qual pertence.
43) Continua a ser querido e respeitado pelos seus colegas de trabalho.
44) Do seu CRC não consta qualquer condenação criminal. "
7.2. Factos dados como não provados:
a) Que no referido dia 08 de Agosto de 2009, cerca das 23.00 horas, o arguido AA avistou o FF junto do café denominado "Correios Bar", sito em Alquerubim, Albergaria-a-Velha, a discutir com o proprietário deste estabelecimento e decidiu, nessa altura, pôr fim à vida do FF;
b) Que, para a concretização de tal propósito, o arguido FF se dirigiu, então, à sua residência, local onde detinha a referida arma de calibre 6,33 mm e nela colocou quatro balas no carregador;
c) Que as armas referidas em 28) supra estavam, em Junho de 2009, em poder do FF;
d) Que o arguido AA, no dia dos factos, chegou perto do café "Correios Bar" por volta das 22.30 horas e estacionou o seu veículo automóvel Peugeot 206, de matrícula ...-...-VT, dirigindo-se, de seguida, para o interior desse estabelecimento, onde ali permaneceu algum tempo;
e) Que, posteriormente, deslocou-se para a parte exterior do mesmo estabelecimento, sentando-se junto a um chafariz ali existente;
f) Que, quando se encontrava ali sentado, surgiu no local o veículo automóvel de marca BMW, modelo 318, matrícula XFW-682, conduzido pelo FF, o qual estacionou em frente ao café "Correios Bar";
g) Que quando este ali chegou abriu a janela do seu veículo automóvel e começou a provocar o arguido AA, dizendo "Ah seu filho da Puta, hoje estás sozinho ,
h) Que, ao ouvir isto, o arguido AA manteve-se sentado junto do chafariz, tentando não fazer atenção ao que o FF dizia;
i) Que, como o arguido AA não teve qualquer reacção, o FF, mostrando-se bastante exaltado, disse para aquele "Ah seu filho da puta, é hoje que eu te mato";
j) Que, nessa altura, o FF movimentou-se dentro do veículo automóvel, como que à procura de algum objecto;
1) Que, perante aquela afirmação, e ao ver a movimentação do FF, o arguido AA entrou em pânico, porque aquelas palavras, em tom exaltado, proferidas pelo FF, associadas às suas atitudes anteriores e à sua própria personalidade, criaram no arguido AA a ideia de que aquele ia atentar contra a sua vida, naquele momento, tanto mais que estava sozinho e não se avistavam pessoas nas proximidades;
m) Que, numa atitude irreflectida, causada no quadro anteriormente descrito, o arguido AA, com vista a demover o FF, de modo a que ele saísse do local e não atentasse contra a sua vida, retirou do seu bolso uma arma que ali tinha, disparando um tiro para o chão junto do chafariz;
n) Que, todavia, o FF não saiu do local, tendo antes, irado e em alta voz, dito "É agora que acabo contigo";
o) Que este, em acto contínuo, virou-se para o lado direito do veículo, inclinando-se repentinamente para esse lado, como se pretendesse apanhar algo para executar a ameaça proferida;
p) Que, ao aperceber-se daquela súbita reacção, o arguido AA arrepiou-se de pavor;
q) Que o arguido AA, pensando que o FF iria pegar numa arma para o matar, disparou instintivamente as balas que ainda se encontravam na arma que trazia, na direcção do FF;
r) Que fez isso com a intenção de defender-se e salvaguardar a sua (do arguido) integridade física, sem ponderar ou prever as consequência do seu acto;
s) Que aqueles disparos foram decorrentes dessas ameaças e provocação do próprio FF;
t) Que o arguido AA desconhecia, à data dos factos, que a arma em questão não se encontrava manifestada, nem registada, e que apenas se fazia acompanhar com uma arma nesse dia em virtude do medo que sentia do FF;
u) Que a ama de fogo apenas servia, caso fosse interceptado pelo FF, para repelir uma eventual agressão física por parte deste e não para atingir o mesmo, como veio a acontecer.".
8. Questões a decidir:
- Omissão de pronúncia quanto à impugnação da matéria de facto;
- Violação do art. 163.º do CPP (juízo pericial);
- Qualificação dos factos (homicídio privilegiado);
- Escolha e medida da pena.
8.1. Relativamente à arguida omissão de pronúncia, como se vê das primeiras cinco conclusões e com mais nitidez no texto da motivação, o recorrente pretende sobretudo, camufladamente, rediscutir a matéria de facto, no intuito de ver reconhecida a sua versão dos factos, de acordo com a qual teria praticado um crime de ofensa à integridade física agravada ou, então, um crime de homicídio privilegiado .
Com efeito, ele traz fundamentalmente à colação a prova produzida na audiência de julgamento, questionando o reexame feito pelo tribunal “a quo” e invocando contradição entre certos depoimentos e violação das regras de experiência comum, para pôr em causa as conclusões a que chegou o mesmo tribunal. Ora, isso é admitir que o tribunal “a quo” sempre procedeu ao reexame da decisão de facto. Simplesmente o recorrente discorda desse reexame, pretendendo que o STJ “mergulhe”, ao fim e ao cabo, na análise da prova produzida, ao menos para detectar essas alegadas contradições e, através disso, levá-lo a pronunciar-se sobre as mesmas. É, porém, evidente, que um tal tipo de análise está fora da órbita dos poderes deste Tribunal, que, sendo um tribunal de revista, apenas aprecia matéria de direito. Postula o art. 434.º do CPP o seguinte: “Sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do art. 410.º, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito.” A ressalva inicial diz respeito, para além das nulidades que não devam considerar-se sanadas, aos vícios do art. 410.º, n.º 2, que são vícios intrínsecos à própria decisão e não erros de apreciação e interpretação da prova produzida. Ora, o recorrente, para além daqueles vícios (alíneas a) e c) – insuficiência da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova), invoca erros de julgamento quanto à decisão da matéria de facto. Porém, quanto aos primeiros, é certo que os confunde com os últimos, bastando ver que extravasa da decisão propriamente dita, descambando para a discussão da prova produzida.
Quanto aos primeiros, bastará recordar que este Tribunal tem entendido, em jurisprudência praticamente uniforme, que o recurso da matéria de facto, ainda que restrito aos vícios do art. 410.º, n.º 2 do CPP (a chamada revista alargada) tem actualmente (isto é, depois da reforma introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto) de ser interposto para a Relação, e da decisão desta que sobre tal matéria se pronuncie já não é admissível recurso para o STJ, pelo que se haverão de considerar precludidas todas as razões que foram ou podiam ser invocadas nesse recurso, cuja decisão esgota os poderes de cognição nessa matéria (Cf., entre outros, os acórdãos de 1/6/2006, Proc. n.º 1427/06 – 5.ª e de 22/6/2006, Proc. n.º 1923-06 – 5.ª e no mesmo sentido SIMAS SANTOS e LEAL HENRIQUES, O Novo Código E Os Recursos, 2001, edição policopiada, pgs. 9 e 10).
Esta interpretação colhe apoio na redacção introduzida pela aludida reforma na alínea d) do art. 432.º do CPP, que passou a conter a locução, antes inexistente, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito.
De acordo com esta jurisprudência, entende-se que, se uma tal interpretação é feita sem prejuízo de o STJ conhecer dos citados vícios oficiosamente, nos termos do disposto no art. 434.º do CPP e da jurisprudência fixada pelo Pleno das Secções Criminais no Acórdão n.º 7/95, de 19 de Outubro, publicado no DR 1.ª S/A, de 28/12/95, esse conhecimento se deve, não ao facto daqueles vícios poderem ser alegados em novo recurso que verse os mesmos depois de terem sido apreciados pela Relação, mas ao facto de, num recurso restrito exclusivamente à matéria de direito, o STJ constatar que, por força da inquinação da decisão recorrida por algum deles, não pode conhecer de direito sob o prisma das várias soluções jurídicas que se apresentem como plausíveis, o que não é, de forma alguma, o caso destes autos.
Como se disse, porém, o recorrente, se invoca os vícios do art. 410.º, n.º 2, pretende sobretudo ou exclusivamente atingir a decisão da matéria de facto, sob o prisma da prova produzida em audiência de julgamento – matéria que, mais do que a análise dos vícios do art. 410.º, n.º 2 do CPP, é de todo estranha aos poderes deste Tribunal. Com efeito, quer a alegada insuficiência da matéria de facto provada, quer o erro notório na apreciação da prova reportam-se, na visão do recorrente, a elementos extrínsecos à decisão estritamente considerada em si ou em conjugação com as regras gerais da experiência comum, para se localizarem no âmbito da apreciação e interpretação da prova produzida em audiência de julgamento, repetidamente chamada à colação na motivação de recurso e nas próprias conclusões, o que coloca tal matéria fora da zona de abrangência daquele art. 410.º, n.º 2.
O fulcro da discordância reside na matéria de facto que se deu como provada e como não provada, a partir da prova que se fez ou não fez na audiência de julgamento. O recorrente, porém, conhecendo os limites dos poderes de cognição deste Tribunal envereda por um caminho que lhe permita tornear a dificuldade e insinuar a sua pretensão, através de uma oblíqua porta de entrada, na esfera dos poderes cognitivos do STJ. É assim que alega que o tribunal “a quo” não atendeu a todas as provas produzidas, assacando-lhe limitação de análise. Com isso, pretende ter havido omissão de pronúncia, inquinando o acórdão recorrido de nulidade (art. 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP). Todavia, nessa perspectiva, a verificar-se a pretendida nulidade, ela não derivaria da alínea c), mas mais adequadamente da alínea a), pois o tribunal “a quo” não omitiu pronúncia sobre as questões colocadas, como acima demonstrámos, mas não teria entrado em linha de conta com todas as provas produzidas, isto é, não teria procedido a um exame crítico completo das provas que, no entender do recorrente, deveriam ter servido para formar a convicção do tribunal. Por outras palavras, teria havido uma deficiência de fundamentação, reportada ao exame crítico das provas, por referência ao art. 374.º, n.º 2 do CPP.
Essa crítica do recorrente merece-nos as seguintes considerações:
O tribunal, na fundamentação da decisão, deve fazer uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção. Quer isto dizer que a lei não exige que essa fundamentação envolva a consideração exaustiva de todas e cada uma das provas produzidas, mas só daquelas que serviram para formar a convicção do tribunal, destinando-se esse procedimento a tornar perceptível aos destinatários da decisão e aos cidadãos em geral que na opção decisória foi seguido um processo lógico, racional, assente numa base de razoabilidade e encontrando no lastro da experiência comum das coisas um apoio convincente. O exame crítico da prova “não obriga os julgadores a uma escalpelização de todas as provas que foram produzidas e, muito menos, a uma reprodução do tipo gravação magnetofónica dos depoimentos prestados na audiência, o que levaria a uma tarefa incomportável com sadias regras de trabalho e eficiência, e ao risco de falta de controlo pelos intervenientes processuais da transposição feita para o acórdão” (Acórdão do STJ de 30-01-02, proferido no Proc. n.º 3063-01, da 3.ª Secção, Sumários dos Acórdãos do STJ, n.º 57, p. 69).
Por outro lado, há que ter em atenção que, neste caso, o tribunal recorrido é um Tribunal da Relação, ou seja, um tribunal de recurso que, tendo embora competência para conhecer de facto e de direito, exerce um poder de controle sobre a decisão recorrida numa óptica de reexame do decidido, com vista a detectar concretos erros in judicando ou in procedendo, mas não a proceder a um segundo julgamento da causa.
Em matéria de fundamentação da decisão, esta posição hierárquica do tribunal recorrido tem reflexos que se traduzem em o artigo 374.º, n.º 2 do CPP, no que respeita ao exame crítico dos meios de prova, não poder ser directamente transposto para a fase dos recursos. O que é evidente, por uma razão desde logo elementar: o tribunal de recurso não procede a um julgamento com subordinação aos princípios da imediação e da oralidade, não estabelecendo contacto directo com as provas produzidas, nomeadamente com as provas pessoais, nem com os participantes do processo, salvo casos pontuais de renovação da prova. A fundamentação exigida, quanto ao exame crítico das provas, não pode, pois, ser do mesmo tipo da que se exige para a 1.ª instância.
Aliás, como se tem entendido neste Supremo Tribunal de Justiça, as normas atinentes aos recursos, nomeadamente o art. 425.º do CPP, não remetem directamente para o art. 374.º, mas para o art. 379.º, estabelecendo o n.º 4 daquele art. 425.º que “é correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso o disposto nos artigos 379.º e 380.º, sendo o acórdão ainda nulo quando for lavrado contra o vencido, ou sem o necessário vencimento”.
Portanto, o art. 374.º só indirectamente é aplicável, através do art. 379.º, mas com as devidas adaptações (correspondentemente), sendo que essas adaptações têm de levar em conta que os tribunais de relação, embora tenham competência em matéria de facto, não apreciam directamente a prova produzida e não a apreciam nos mesmos termos da 1.ª instância, pelo que a fundamentação exigida para as suas decisões tem de estar em consonância com a natureza do seu objecto, que é a reapreciação de uma outra decisão, no universo de questões levantadas pelo recurso (Cf., entre outros, os acórdãos de 25/5/2006, Proc. n.º 1183-06, de 17/1/2008, Proc. n.º 607/07 e de 28-02-2008, Proc. n.º Proc. n.º 442-07, todos da 5.ª Secção, tendo o último sido relatado pelo mesmo relator deste processo).
Fundamentalmente, ao tribunal de recurso cabe verificar se a decisão recorrida fundamentou a sua opção em matéria de decisão de facto de forma consistente, lógica e racional e de acordo com as regras da experiência comum, isto é, se tal opção decisória se mostra convincente do ponto de vista da lógica interna da explicitação da sua motivação, referindo criticamente os meios de prova decisivos para a formação da respectiva convicção, e se mostra consentânea com as máximas, os princípios e os ensinamentos da vida, segundo a experiência normal das coisas.
Se o recorrente impugna a matéria de facto sob o ângulo da prova produzida em julgamento, das duas, uma: ou identifica concretos pontos em que se materializa a sua divergência, indicando as provas concretas que impõem decisão diversa da recorrida; ou impugna globalmente o sentido da decisão de facto, ou seja, a versão factual nela acolhida, pretendendo impor uma outra versão, pela diferente leitura que faz da prova produzida no seu conjunto. Neste último caso, a impugnação aproxima-se de uma rejeição da convicção do tribunal. Numa situação tal, o tribunal de recurso não tem que reanalisar todos e cada um dos meios de prova, procedendo a uma espécie de segundo julgamento da matéria de facto. Tanto mais será assim, quanto o recorrente refira as provas em globo, ainda que sumariando (naturalmente, dentro de uma perspectiva, que é a sua) o conteúdo e o sentido das várias provas produzidas, nomeadamente, as de carácter testemunhal. Ao tribunal recorrido, bastará, como se disse, verificar se o tribunal recorrido fundamentou a sua opção decisória de acordo com os padrões exigidos e que, de uma forma geral, em matéria de exame crítico das provas, se reconduzem a critérios prudenciais, isto é (na formulação do Acórdão do STJ de 16-03-2005, Proc. n.º 662-05, da 3.ª Secção, Sumários, n.º 89, pp. 88/89, retomada no Acórdão de 23-06-2010, Proc. n.º 1-07.8ZCLSB.L1.S1, da 3.ª Secção) critérios cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência.
Reproduzindo palavras do Relator no contexto de outro processo (Proc. n.º 827-08, da 5.ª Secção), o tribunal de recurso, ao pronunciar-se sobre uma questão, nomeadamente em matéria de impugnação de facto, não tem que responder especificamente a todas as objecções, argumentos e reparos, observações morfológicas e sintácticas, interpretações sinonímicas ou paronímicas, enquadramentos semânticos ou sintagmáticos a que o recorrente resolva recorrer para fazer valer o seu ponto de vista. Ao tribunal de recurso compete responder à impugnação de uma forma coerente, lógica, fundada, convincente e que abarque a questão nas suas linhas essenciais, de modo a que se perceba que a tratou no seu todo e unitariamente.
Esse trabalho foi feito na decisão recorrida. De forma muito concisa e certeira, o tribunal “a quo” começa por detectar o núcleo fundamental das divergências:
Neste segmento o recorrente entende que foram incorrectamente julgados os pontos 1 a 5, 12 a 14 e 16 a 18 dos factos dados como provados e as alíneas d) a u) da facticidade que foi dada como não provada.
Invoca para o efeito as suas próprias declarações e os depoimentos das testemunhas BB, CC, DD, EE, MM,GG, II.
(…)
O arguido não nega que tenha abatido a vítima, quando esta estava sentada ao volante do seu veículo automóvel que estava parado, com três tiros na cabeça disparados a uma curta distância do alvo, o que entende é que estes foram disparados, não de dentro do seu automóvel, mas sim depois de se ter aproximado a pé dele.
É pois esta a questão.
Em seguida, o acórdão recorrido analisa as provas produzidas, detendo-se em particular nas testemunhas presenciais, mas não se ficando por aí, pois também estende a sua análise a outras provas, para concluir, em fundamentação autónoma, com exame crítico dessas provas e mostrando a total falta de lógica da versão do recorrente, que “nenhuma razão existe que afecte a credibilidade daquelas testemunhas presenciais. Questiona também a “intenção de matar”, ponto nuclear da matéria de facto que o recorrente pretende atingir com a sua impugnação/versão alternativa dos factos com vista a uma diversa qualificação destes, para concluir que “ao disparar três tiros na cabeça da vítima, sentada na sua viatura”, o recorrente não podia manifestar outra intenção que não fosse essa. E a rematar a análise, conclui por fim:
Em suma, da conjugação de toda a prova produzida nos autos, conclui-se que as conclusões a que o tribunal colectivo chegou em matéria factual não só não colidem com as regras da experiência, como são o espelho daquilo que efectivamente ocorreu, e como tal nenhuma razão existe para alterar quer a matéria de facto fixada como provada quer a considerada não provada, tendo-se esta, na ausência de qualquer um dos vícios do art. 410.º, n.º 2 do CPP como definitiva.”
Em remate de tudo quanto se expôs, deve dizer-se que o tribunal “a quo” cumpriu estritamente o seu dever de fundamentação no respeitante à impugnação da matéria de facto, sendo certo que o recorrente não aceita a solução a que chegaram as instâncias, ou seja a convicção alcançada, apesar de devidamente motivada, ignorando o princípio da livre apreciação da prova, entendido precisamente nesse sentido de motivação coerente e o mais possível objectivada, e os poderes cognitivos deste Tribunal, pois a questão da suficiência ou insuficiência da fundamentação em matéria do exame crítico das provas é ainda uma questão de facto. (…) a decisão sobre a suficiência da fundamentação na referência ao “exame crítico” das provas não integra os poderes de cognição do Supremo Tribunal, tal como definidos no artigo 434º do CPP, salvo quando tenha (deva) decidir sobre a verificação dos vícios do artigo 410º, nº 2 do CPP (Acórdão do STJ de 16-03-2005, Proc. n.º 662-05, já referido). Daí que, em definitivo, como solução in extremis, recorra a uma nulidade, pois essa caberia em tais poderes de cognição, mas apenas como capa para encobrir a sua persistente e voluntariosa discordância da convicção a que chegaram as instâncias.
8.1.1. No que se refere aos elementos típicos do crime de detenção de arma proibida, sobretudo no tocante aos elementos subjectivos, o recorrente alega que houve igualmente omissão de pronúncia por parte do tribunal “a quo”, pois, segundo ele, na conclusão 17.ª da motivação de recurso para a Relação, “nenhuma prova foi feita no sentido de que o Arguido sabia que a arma não estava manifestada ou registada, tanto mais que a arma era do seu pai”. Todavia, não há recurso para o STJ do decidido relativamente a este crime, dado que a Relação confirmou a decisão condenatória da 1.ª instância, embora para melhor (confirmação in melius), descendo a pena que tinha sido fixada em 2 anos de prisão, para 13 meses de prisão, sendo certo que é jurisprudência maioritária deste Tribunal a de que a confirmação in melius obsta ao recurso para o STJ, nos termos do disposto no art. 400.º, n.º 1, alínea f) do CPP, desde que, obviamente, a pena aplicada não seja superior a 8 anos de prisão (Cf., entre outros, o Acórdão de 15-04-2010, Proc. n.º 631-03.7GDLLE.S1, da 5.ª Secção).
Como tal, não sendo admissível o recurso, a questão colocada também não deve ser conhecida.
8.2. O recorrente coloca ainda a questão da violação do art. 163.º do CPP, segundo o qual: “1. O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador. 2. Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.”
Também aqui se trata de um falso problema, que, no fundo, continua a estar ligado à questão anterior, ou seja, à divergência do recorrente em relação à decisão da matéria de facto.
Com efeito, o que o recorrente quer dizer é que, tal como assentes os factos, estes colidem com o juízo pericial – juízo esse que consta do relatório de autópsia, dizendo, na parte que interessa, o seguinte: “(…) as direcções dos tiros com entradas respectivamente na região frontal (à esquerda), zigomática e parietal esquerdas, foram da esquerda para a direita, de trás para a frente e de cima para baixo, com excepção do primeiro que foi de baixo para cima”.
Ora, o recorrente fundamenta o seu próprio juízo, mais uma vez, na prova produzida, ou seja, numa certa interpretação dessa prova, referindo as tais contradições de que estariam eivados os depoimentos das testemunhas presenciais e no que as testemunhas ouvidas disseram ou não disseram acerca da postura da vítima aquando do recebimento dos tiros, bastando ler as próprias conclusões da motivação, nomeadamente, as conclusões 4.ª e 5.ª. Assim, de novo, o recorrente traz ao recurso, que deveria versar exclusivamente matéria de direito, matéria de facto no seu sentido mais amplo e que, por isso, está subtraída ao conhecimento deste Tribunal. Com efeito, o STJ não vai apreciar se as testemunhas tais e tais entraram ou não em contradição, se a cabeça da vítima fazia ou não fazia qualquer movimento descontrolado, e por aí fora, para chegar à conclusão de que o tribunal “a quo” errou. Tem de se partir da matéria assente na decisão, que, aparentemente, na sua lógica interna ou em conjugação com as regras da experiência comum, não está inquinada por qualquer vício.
Por outro lado, tem de se aceitar como plausível, porque coadunável em princípio com aquelas regras, a explicação fornecida pela própria decisão para a questão das direcções dos tiros. Com efeito, respondendo às objecções do recorrente, diz a decisão recorrida a certo passo:
E não se argumente com a direcção dos tiros constantes do relatório de autópsia o qual é perfeitamente compatível com a descrição dos factos feita por aquelas testemunhas, pois o impacto provocado pelos tiros dados a curta distância na cabeça de um indivíduo gera um movimento descontrolado desta e como tal as direcções dos tiros podem por via disso tomar os vários sentidos constantes desse relatório.
Acresce que não há aqui qualquer divergência do juízo pericial que foi feito no relatório de autópsia. Divergência haveria se a decisão tivesse afirmado, por exemplo, que a direcção dos tiros não foi a que consta daquele documento, mas não é isso o que resulta do transcrito comentário. Aí, há até uma explícita subordinação ao juízo pericial, afirmando-se que a versão dos factos que foi dada como provada é compatível com ele. E, na verdade, não há razões (lógicas, científicas, da experiência comum das coisas) para dizer o contrário. O juízo pericial não envolve nos seus próprios termos uma exclusão, por incompatível, da versão que foi dada como assente. Nem os peritos, como é lógico, se pronunciaram sobre tal questão, pelo que ela pertence ao domínio da liberdade de convicção do tribunal, que o recorrente não aceita, como vimos.
O tribunal não tinha, pois, que fundamentar qualquer divergência, como supõe o recorrente e, por outro lado, também resulta do exposto que não se detecta qualquer vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, nem qualquer erro notório na apreciação da prova, concernentes a tal questão e que obstruíssem o caminho para uma correcta decisão de direito. Em vão foi feita a referência aos artigos 163.º, 374.º, n.ºs 1 e 2, 379.º e 410.º, n.º 2, alíneas a) e c), todos do CPP.
O recorrente carece nitidamente de razão também neste passo.
8.3. O recorrente coloca em seguida a questão da qualificação dos factos, entendendo que os mesmos devem ser qualificados como crime de homicídio privilegiado, sendo que o elemento privilegiador é o desespero e não a emoção violenta, que foi exclusivamente encarada pelo tribunal “a quo”. O desespero traduzir-se-ia em o arguido vir sofrendo ameaças prolongadas no tempo e estar dominado por ele no dia dos factos.
Escreveu-se, a tal propósito, no Acórdão recorrido:
Na perspectiva do recorrente a sua conduta integraria um crime de homicídio privilegiado p. e p. pelo art° 133° CP, por sofrer ameaças prolongadas no tempo, o que lhe causava medo e receio.
Pois bem estabelece-se no referido artigo que "Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido (…)
E o que desde já se dirá é que o recorrente, face à factualidade provada, não tem absolutamente qualquer razão.
Na verdade não é só por si o facto do arguido ter medo e inquietação face às ameaças que a vítima lhe dirigira anteriormente, capaz de atingir uma tal emoção violenta que leve à inibição dos mecanismos de controlo que impeçam alguém de matar outrem.
Como escreve Maia Gonçalves "Compreensível emoção é um estado emocional não censurável ao agente e susceptível de afectar o homem médio suposto pela ordem jurídica. Exige-se ainda que a emoção, para além de compreensível, seja violenta, devendo portanto atingir elevada gravidade ou grau de intensidade".
Figueiredo Dias, por sua vez, diz-nos3 "Compreensível emoção violenta é um forte estado de afecto emocional provocado por uma situação pela qual o agente não pode ser censurado e à qual também o homem normalmente "fiel ao direito" não deixaria de ser sensível. Não se trata aqui de qualquer valoração social ou (muito menos) moral do estado de afecto, mas apenas da sua verificação nos termos preditos".
Ou como escreve Amadeu Ferreira4 "A violência da emoção é apreendida pelos seus efeitos e não pelas suas causas. Assim, também a lei só considera violenta aquela emoção que "domina" e leva o agente ao crime» Se a emoção deve dominar o agente, tal significa que este perde o seu autodomínio, o controlo, ficando obnubilada ou cortada a sua relação com a realidade. Não é o agente que conduz o seu comportamento, mas "deixa-se levar", arrastar, pela violência da emoção que o domina".
E exige-se ainda na parte final do referido preceito que se verifique uma diminuição sensível da culpa, o que a nosso ver reforça a exigência contida na Ia parte do preceito, isto é que só em caso de emoção muito intensa haveria lugar ao privilegiamento do homicídio.
Ora o simples medo e inquietação que o arguido tinha da vítima não pode de modo algum levar a concluir-se que aquele se encontrava dominado por emoção violenta aquando da prática dos factos, até porque nada nos autos nos permite concluir que a vítima alguma vez pretendesse concretizar as ameaças, designadamente as referidas no ponto 25 da facticidade provada.
Na verdade o que os autos demonstram é que foi o arguido que procurou e conseguiu eliminar fisicamente a vítima e não consta que lhe tivesse feito anteriormente qualquer ameaça, preenchendo a sua conduta os elementos objectivos e subjectivo do crime de homicídio por que foi condenado.
Deste modo é manifesta a improcedência da pretensão do arguido neste ponto.
Em primeiro lugar, devemos observar o seguinte:
É verdade que o Acórdão recorrido encarou sobretudo o alegado privilegiamento sob o prisma da “compreensível emoção violenta”, que definiu à luz da doutrina, citando os principais Autores que se têm debruçado sobre a matéria, dando por excluída a verificação dos respectivos pressupostos.
Partindo dos elementos que constituem esses pressupostos, nomeadamente:
- a existência de um estado ou afecto emocional;
- provocada por uma situação que não é merecedora de censura, porque não imputável ao agente e à qual o homem médio (ou fiel ao direito) não deixaria de ser sensível ou afectado por ela;
- violenta, isto é, grave, capaz de levar o agente a praticar o acto, porque dominado por esses estado e, portanto, agindo fora do controle dos instintos ou da valoração normal do comportamento pela consciência;
- compreensível, de um certo ponto vista objectivo, o que corresponderá a perceber o descontrole do indivíduo naquelas circunstâncias sob que agiu e
- conduzindo a uma sensível diminuição da culpa, isto é, a uma menor exigibilidade de outro comportamento, e incidindo, assim, em último termo, no tipo de culpa
o acórdão recorrido, naturalmente partindo da factualidade provada, concluiu que o recorrente não agiu debaixo de uma emoção violenta, que lhe retirasse o controle dos seus actos, quer do ponto de vista psicológico, quer do ponto de vista da sua avaliação e significado, tendo sido ele a procurar a vítima, eliminando-a e não tendo tido anteriormente qualquer ameaça concreta que se ligasse (é a interpretação que se retira do texto) de uma forma directa e imediata ao acto praticado.
Embora, encarando fundamentalmente a situação sob o prisma da emoção violenta, a verdade é que, no texto da decisão, colhem-se também aspectos que irradiam para a questão do desespero.
O desespero vem a traduzir-se “não tanto ⌠n⌡a situação objectiva de falta de esperança na obtenção de um resultado ou de uma finalidade, quanto sobretudo ⌠em⌡ estados de afecto ligados à angústia, à depressão e à revolta”, segundo FIGUEIREDO DIAS, Comentário Conimbricense, p. 52, que acompanha AMADEU FERRREIRA e TERESA SERRA, quando integram nesses estados os casos da chamada humilhação prolongada, de que constituiu caso paradigmático na jurisprudência o Acórdão do STJ de 16-01-90, BMJ 393º, citado também por aquele penalista. Nestes estados de espírito, ditos asténicos, não entraria o requisito da “compreensibilidade” (em sentido contrário, AMADEU FERREIRA, Homicídio Privilegiado, Almedina, 1991, p. 100 e TERESA QUINTELA DE BRITO, “Homicídio Privilegiado”, Liber Discipulorum Para Jorge de Figueiredo Dias, p. 919), embora os restantes elementos apontados devessem estar presentes para se verificar o efeito privilegiador.
Segundo o Acórdão do STJ de 05-05-2010, proferido no Proc. n.º 90-08.8GCCNT.C1, da 3.ª Secção, por sinal citado pelo recorrente, embora não tenha dado provimento ao recurso e, consequentemente tenha negado, no caso, a existência de uma tal cláusula de privilegiamento, o desespero, no plano doutrinário, é concebido como fruto de uma situação que se arrasta no tempo, com origem em pequenos ou grandes conflitos, que acabam por levar o agente a considerar-se numa situação sem saída, deixando de acreditar, de ter esperança, tudo limitando a opção psicológica do agente desesperado, nele se englobando os casos de suicídios alargados ou de humilhações reiteradas, com origem, sobretudo, em estados de afecto ligados à angústia, depressão ou revolta , não se tornando exigível que tais estados de afecto sejam compreensíveis.”
Ora, nas considerações tecidas no acórdão recorrido, percebe-se um elemento de descontinuidade entre o comportamento da vítima e o do recorrente, que tanto inibe o pressuposto da provocação em termos de causalidade e proporcionalidade do comportamento dito provocado, como a actuação sob o efeito de um estado violento, conduzindo ao descontrole e, por essa via e em termos de actuação de um homem médio, a uma sensível diminuição da culpa.
Alega o recorrente que “o Arguido vinha sofrendo ameaças do FF prolongadas no tempo (19 a 35 da matéria provada), as quais conduziram ao desespero do Arguido, o que também se verificou no dia dos factos”.
Recapitulemos a referida matéria de facto:
19) À data dos factos (8 de Agosto de 2009), encontrava-se a decorrer o Processo de Inquérito n° 174/09.5GBALB, nos Serviços do Ministério Público de Albergaria-a-Velha, no qual eram ofendidos GG e o ora arguido AA e arguido a ora vítima FF
20) Com efeito, no dia 07 de Março de 2009 (cinco meses antes dos factos em discussão nos presentes autos), por volta das 00.15 horas, o FF dirigiu-se com uma caçadeira junto do referido café "Correios Bar", onde se encontrava a GG, proprietária desse café, o agora arguido AA e HH.
21) Nessa altura, sem qualquer justificação, o FF disparou vários tiros na direcção da porta do café "Correios Bar", causando danos patrimoniais e, só por mero acaso, não atingiu as pessoas presentes no café, nomeadamente o ora arguido AA.
22) Após estes primeiros disparos, o FF dirigiu-se para junto do veículo automóvel de marca Peugeot 206, com a matrícula ...-...-VT, que sabia ser propriedade do AA, e disparou sobre tal veículo pelo menos dois tiros, tendo causado danos no capot e pára-brisas.
23) Toda esta factualidade causou ao ora arguido AA medo e inquietação, chegando mesmo a temer pela sua própria vida, dada a conduta do FF e a personalidade deste.
24) O FF, a partir de então, intensificou os seus comportamentos ameaçadores, por estar convencido que o arguido AA mantinha um caso amoroso com a sua ex-companheira, a agora testemunha II.
25) Em virtude desse convencimento, o FF, pelo menos numa ocasião em que passou pelo agora arguido AA, ameaçou este, dizendo expressões do género "eu qualquer dia acabo com a tua raça" e "um dia haveremos de conversar."
26) O que levava a que o arguido AA sentisse inquietação e medo em virtude das referidas ameaças que eram feitas pelo FF.
27) Era do conhecimento geral que o FF tinha armas, trazendo, pelo menos em algumas ocasiões, uma consigo.
28) Em Junho de 2009, o FF tinha registadas em seu nome quatro armas, concretamente a espingarda de caça n° A6218, marca RANGER, calibre 12, livrete n° L09389; a espingarda de caça n° 421PW20623, marca BROWNING, calibre 12, livrete n° H97244; a espingarda de caça n° 2029498, marca FABARM, calibre 12, livrete n° N65583, e espingarda de caça n° 13712, marca E. BERNARD, calibre 12, livrete n° G36443 (fls. 385 dos autos).
29) Tal como o arguido AA, parte da população em Ameal, Alquerubim, tinha medo do FF, porque este, sem qualquer justificação, ameaçou algumas pessoas, utilizando algumas vezes armas.
30) A própria ex-companheira deste, II, foi alvo do comportamento agressivo do FF, o que deu lugar ao Processo de Inquérito n°. 85/08.1GAALB, que correu termos nos Serviços do Ministério Público de Albergaria-a-Velha (fls. 364 a 370 dos autos).
31) Isto porque, no dia 05 de Fevereiro de 2008, pelas 17:25 horas, o FF, dirigiu-se ao café "Correios Bar" e agrediu-a fisicamente.
32) E, em virtude de alguns presentes terem intervindo para apaziguar a situação, o FF saiu do café, dirigiu-se ao seu veículo automóvel, onde retirou uma arma, após o que regressou ao café "Correios Bar" e, empunhando a arma, ameaçou a sua ex-companheira, a filha e todos os presentes, tendo efectuado posteriormente um disparo para o ar e, de seguida, ausentou-se do café.
33) As ameaças de que era vítima o arguido AA por parte do FF, associadas à personalidade violenta deste, levaram a que aquele andasse preocupado com o que poderia ocorrer.
34) No próprio dia dos factos, o FF fazia transportar no seu veículo automóvel de marca BMW, com a matrícula XFW -682, uma moca de fabrico artesanal, com cerca de 51 cm de comprimento, com alça de borracha, de cor preta, tendo numa das extremidades incrustados 10 pregos e 17 parafusos.
35) Após os referidos disparos, o arguido AA ficou confuso e temeroso e saiu do local.
Desta matéria de facto colhe-se o carácter violento da vítima, algumas atitudes violentas e ameaças de que o arguido foi objecto por várias ocasiões, algumas das quais deram origem a um processo crime, a preocupação do mesmo arguido com o que viesse a acontecer, medo e receio provocados pelo comportamento da vítima. Todavia, não resulta dessa factualidade que o recorrente tivesse entrado em desespero e que nessa situação e por causa dela tivesse actuado como actuou. Mesmo a circunstância de a vítima, no dia dos factos, transportar no seu veículo-automóvel uma moca de fabrico artesanal, com cerca de 51 cms. de comprimento, tendo numa das extremidades incrustados 10 pregos e 17 parafusos, está relacionada causalmente com o comportamento do recorrente, que foi quem procurou a vítima, se abeirou com o seu do carro dela e disparou a arma de fogo de que vinha munido.
Por conseguinte, muito embora sejam de relevo as circunstâncias atenuantes que envolveram a actuação do arguido, o certo é que não preenchem os pressupostos do tipo de homicídio privilegiado.
Desta forma, o recorrente também aqui carece de razão.
8.4. No capítulo da escolha e medida da pena, tendo o recorrente contestado a pena de prisão em vez da pena de multa para o crime de detenção de arma proibida, tendo a pena sido confirmada pela Relação nos termos consignados em 8.1.1., e verificando-se, portanto a dupla conforme, não será de conhecer dessa questão, por não ser admissível recurso para o STJ em conformidade com o art. 400.º, n.º 1, alínea f) do CPP.
Todavia, como alega o Ministério Público neste Tribunal, levanta-se uma outra questão (prévia).
Com efeito, o recorrente foi condenado por um crime de homicídio agravado, por tê-lo cometido com arma, nos termos do art. 86.º, n.º 3 da Lei n.º 5/2006,de 23/02, segundo a alteração da Lei n.º 17/2009, de 16/05, que reza assim: As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já prever agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma.
Ora, os factos dos autos foram cometidos em 08-08-2009 e as alterações acima referidas apenas entraram em vigor 180 dias depois da publicação, nos termos do art. 120.º da citada Lei: A presente lei entra em vigor 180 dias após a sua publicação, com excepção do disposto nos artigos 109.º a 111.º, que vigoram a partir do dia seguinte ao da publicação da presente lei.
Ou seja, a lei entrou em vigor depois da prática dos factos, mas antes de ser proferido o acórdão condenatório.
Como assim, sendo inovadora a referida norma, estamos em face de uma sucessão de leis no tempo, obrigando à ponderação do regime mais favorável ao agente, nos termos do disposto no art. 2.º, n.º 4 do CP.
Ora, tal ponderação não foi feita, o que constitui uma omissão de pronúncia sobre questão que o tribunal devia ter considerado e apreciado, gerando a nulidade prevista no art. 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP – nulidade que afecta a qualificação do crime (agravado?; não agravado?) e a operação de determinação e fixação da medida da pena, quer a relativa à pena parcelar do crime de homicídio, quer a pena conjunta, que eventualmente terá de ser reequacionada.
DECISÃO
9. Nestes termos, acordam em conferência na (5.ª) Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:
- Não tomar conhecimento da questão de omissão de pronúncia levantada a propósito do crime de detenção de arma proibida, bem como da pena aplicada por tal crime, nos termos do consignado em 8.1.1. e 8.4. (1.ª parte);
- Negar provimento ao recurso nas questões apreciadas sob os antecedentes n.ºs 8.1., 8.2. e 8.3.;
- Anular a decisão recorrida na parte da determinação e fixação da medida da pena, para que o Tribunal “a quo” se pronuncie sobre a referida questão da ponderação do regime mais favorável ao arguido, conforme explanado em 8.4.
10. Custas pelo recorrente com 6 UC de taxa de justiça.
Supremo Tribunal de Justiça, 6 de Janeiro de 2011
Artur Rodrigues da Costa (relator)
Arménio Sottomayor