Decisão Texto Integral: |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I- Relatório:
1-1- No Tribunal Judicial de Vila Real de Santo António a Sociedade Turística AA S.A., com sede no Hotel AA, Avenida Infante D. Henrique, Monte Gordo, Vila Real de Santo António, propôs a presente acção com processo ordinário contra a Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, sita na Praça..............em Vila Real de Santo António, pedindo se declarasse a manutenção do direito à reversão e consequente imposição à R. da construção de um parque de repouso ou recreio para uso dos frequentadores da estância balnear de Monte Gordo, como condição da doação que lhe foi feita em escritura de 28-05-1963, de uma parcela de terreno devidamente identificada nos autos.
Fundamenta este pedido, em síntese, dizendo que em 28.05.1963, BB e mulher, CC, e a Sociedade “CC, Lda” de que o primeiro era sócio gerente, na qualidade de proprietários, (na proporção de metade para a Sociedade e metade para BB e mulher), doaram à R., livre de ónus ou encargos, uma parcela de terreno (composta, no seu conjunto, por três parcelas) com a área total de 4.387,40 m2., devidamente identificada nos autos. A referida parcela de terreno, fora adquirida pelos doadores à R. (por meio de venda em hasta pública realizada em 06.01.1960, titulada por alvará dessa edilidade com o número 57, emitido em 16.01.1960, com as alterações constantes do averbamento de 02.03.1961), sendo que, das condições da venda em hasta pública, constava que “parte do referido conjunto de terreno composto pelas três parcelas se encontrava destinado exclusivamente à construção “de um parque de repouso ou recreio para uso dos frequentadores da instância balnear de Monte Gordo” e dos utentes de um hotel que deveria ser construído noutra parcela do citado terreno”. Em cumprimento com o estipulado nas condições da venda, na escritura pública de doação (de uma dessas parcelas de terreno) à R., ficou exarado que a referida doação ficaria dependente da verificação de dois eventos ou circunstâncias, a saber:- “O terreno doado só poderá ser utilizado pela C. M. V. R. S.A. na construção de um Parque Municipal a levar a efeito em harmonia com o ante plano de urbanização de Monte Gordo”; e “A doação considerar-se-á sem efeito, revertendo para os doadores ou seus herdeiros ou representantes, não só o terreno objecto desta doação condicional, mas também as benfeitorias nele existentes, quer no caso de ao mesmo terreno ser dado, em qualquer tempo, destino diferente daquele que se estabelece na alínea anterior - entenda-se o número supra -, quer no caso de o projecto do Parque não estar concluído dentro do prazo de três anos a contar da data desta escritura, salvo se houver, num e noutro caso, acordo dos doadores quanto às alterações a efectuar”. Não obstante a aceitação pela R. dos termos da doação impostos pelos doadores, que declarou (...), que o terreno doado se destina à construção de um Parque Municipal, como acima se prevê e que tal parque estará concluído dentro do prazo de três anos a contar da data da presente escritura”, a verdade é que, volvidos três anos, a R. não erigiu na parcela de terreno doada o competente Parque Municipal. Acresce que, no dia 24.10.1994, a escritura de doação que BB e mulher, CC e a Sociedade “CC, Lda” fizeram à Câmara Municipal foi alterada, sendo que, os únicos e legítimos herdeiros dos doadores acima identificados, DD e EE e a “Sociedade Turística AA, S.A.”, (anteriormente designada por Sociedade “CC Lda.”), declararam “ que prescindiam do direito de reversão inerente naquela condição, pelo que pela presente escritura se considera alterada a escritura inicial, em conformidade com o desejo agora expresso, deixando assim de ficar condicionada a qualquer prazo para a realização do parque previsto’” (...) mantendo-se, em tudo o resto, o estipulado na escritura inicial”. Em 27.01.1995, a R. Câmara permutou com a firma “Marmonte - Construtora Predial, Lda.”, (para efeitos de alargamento da via pública) uma área de 554,6 m2, que fazia parte do prédio objecto da doação identificada, permuta esta que foi autorizada pelos representantes dos doadores (na qualidade de herdeiros e únicos representantes dos mesmos), sendo porém certo que dessa Declaração/Autorização resultava que tal concordância “ (...) era feita sem prejuízo do fim para que foi feita a doação em 28/05/1963, pelo que se mantém a condição de utilização do restante terreno exclusivamente para construção de um Parque Municipal a levar a efeito pela citada Câmara, sob pena de reversão para os herdeiros e representantes dos dadores do citado prédio, nos termos estipulados da aludida escritura de doação”. Em 10.07.1995, a firma “Larbrás - Empresa de Construção Civil, S.A,”, solicitou à Câmara Municipal (à semelhança do que fizera a firma “Marmonte”), uma permuta de terrenos com a área de 297 m2, com destino a um parqueamento, ampliação das áreas de passeio, alinhamento e amplitude de arruamentos (sendo certo que a parcela de terreno a permutar fazia parte da parcela de terreno objecto da referida doação). Desta feita, (e sem que os representantes dos doadores fossem chamados a intervir, tal como sucedera com a permuta de terrenos antes referida), a permuta dos terrenos foi aprovada por meio da deliberação camarária de 15.02.00, notificada à A. em 15 de Maio de 2000, (proposta do Senhor Presidente referente à permuta de terrenos a celebrar entre a firma “Larbrás” e a R., aprovada por maioria, tendo sido deliberado: “1) -A existência de interesse público na permuta de terrenos proposta pela firma “Larbrás”, por permitir o alargamento das Ruas 3 e Bartolomeu Perestrelo, com a possibilidade de criar estacionamentos públicos perpendiculares às vias referidas; 2.) - Que fosse invocada a prescrição e a ilicitude das condições da doação do referido terreno; 3.) - Que se aprovasse a permuta dos terrenos em causa)”. Com tais fundamentos e ainda por a R. ter considerado a ocorrência da prescrição da condição aposta na doação (construção de um Parque Municipal), além disso, a natureza ilícita, desproporcional e contrária à lei e à ordem pública da cláusula de reversão não sujeita a prazo de cumprimento, não tendo sido a A. chamada a autorizar a permuta de 297 m2 da parcela, entre a R. e a empresa de construção Larbrás, após deliberação camarária de 15/02/2000, conclui a A. pela procedência da acção, no sentido de ser declarada a manutenção do direito à reversão das identificadas parcelas e a consequente imposição à R. da construção do parque, como condição da doação.
A R. contestou alegando, em resumo, que o terreno doado em 28 de Maio de 1963, tinha sido adquirido, em hasta pública, por BB e pela Sociedade S...U...A... Limitada, à própria donatária Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, no dia 6 de Janeiro de 1960, sendo que, das parcelas arrematadas, uma delas era destinada única e exclusivamente à construção de um hotel e suas dependências (actualmente o Hotel AA) e a segunda parcela agora em causa, destinada a parque de repouso ou recreio para uso dos frequentadores do hotel. Que tendo sido emitido, em 2 de Março de 1961, o alvará nº 57 para titular essa venda, e onde constavam as condições de alienação, verificava-se, pelas mesmas, (para além do destino das parcelas), que “o parque de recreio ou repouso podia ser utilizado pela Câmara Municipal para a realização de qualquer festa de beneficência ou outro fim de interesse municipal, uma vez em cada ano, sem que tenha de pagar qualquer aluguer, ficando porém a seu cargo todas as outras despesas, incluindo as derivadas de prejuízos causados aos proprietários durante a utilização”. Assim, e ao contrário do que se alega no artigo 9° da petição inicial nos termos das condições de alienação, o parque de recreio e lazer não se destinava livremente para uso dos frequentadores da Estância Balnear, uma vez que era necessário os proprietários do hotel elaborarem um regulamento de admissão que nunca chegou a ser feito. Que, tendo os adquirentes da referida parcela, tomado conhecimento do anteplano de Urbanização de Monte Gordo, (conforme consta da planta existente na Câmara Municipal e anexa ao alvará no qual parte daquele terreno estava abrangido pela construção de um Parque Municipal), doaram à Câmara Municipal uma parcela de terreno com a área de 4.387,40 m2 a destacar das outras parcelas que adquiriram anteriormente à Câmara Municipal (para que fosse construído o parque Municipal), tendo transferido para a Câmara Municipal todo o domínio, direito, acção, posse e usufruição sobre a parcela de terreno doada, prestando a evicção. Mais consta nessa escritura de doação: “A doação considerar-se-á sem efeito, revertendo, para os doadores ou seus herdeiros ou representantes, não só o terreno objecto desta doação condicional, mas também as benfeitorias nele existentes quer no caso de ao mesmo terreno ser dado em qualquer tempo, destino diferente daquele que se estabelece na alínea anterior, quer no caso de o projectado Parque não estar concluído no prazo de 3 anos a contar da data desta escritura, salvo se houver num ou noutro caso, acordo dos doadores, quanto às alterações a efectuar.” Assim, e de acordo com o estipulado nos termos da referida condição, havia motivo por parte dos doadores de requererem a reversão do terreno desde o dia 29 de Maio de 1966. Não o tendo feito até 2 de Junho de 1987, e tendo começado a correr naquela data o prazo de prescrição do exercício do direito, tal direito prescreveu em 2 de Junho de 1987, completados 20 anos sobre a data em que o direito podia ser exercido. Além disso, o terreno em causa encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial sob o nº 939/950109 a favor do Município de Vila Real de Santo António, sem qualquer cláusula de reversão a favor dos doadores, o que contraria o disposto no art. 940º nº3 do Código Civil, gozando a R. de presunção do direito de propriedade, nos termos do art. 7º do C. Registo Predial. Por outro lado, a A., Sociedade Turística AA, foi notificada da proposta aprovada por maioria na reunião de 16/02/2002, nos termos da qual a R., Câmara Municipal, deliberou invocar a prescrição e a ilicitude das condições da doação do terreno em causa, não sendo demais lembrar que, em 24 de Outubro de 1994, os herdeiros dos mencionados doadores BB e esposa tinham celebrado uma escritura de alteração de escritura de doação de 28 de Maio de 1963 na qual declararam “que prescindem do direito de reversão inerente aquela condição, pelo que pela presente escritura se considera alterada, em conformidade com o desejo agora expresso, a escritura inicial, deixando assim de ficar a doação condicionada a qualquer prazo para realização do parque previsto,(…) em tudo o resto se mantendo o estipulado na escritura inicial”. Os descendentes dos doadores não tinham qualquer legitimidade para celebrar a escritura de alteração da escritura de doação, sendo portanto tal escritura nula, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 270º e 960º nº 2 do Código Civil. No entanto, ainda que tal não se considere, é inadmissível um vínculo perpétuo, com fundamento em disposições da Lei reguladora das Cláusulas Contratuais Gerais. Assim, e porque a declaração de renúncia à reversão foi emitida mais de sete anos decorridos após a prescrição do direito, além de que a escritura de alteração da doação contém uma cláusula que representa um vínculo perpétuo, logo, ilegal e contrário à lei, além da presunção que lhe advém do registo a favor da R., conclui pela improcedência da acção.
A A. replicou alegando no essencial e em síntese, que a invocação da prescrição do excercício do direito pela A. é absolutamente descabida e carece de fundamento, pela única razão de que a condição aposta na doação de 63 foi inteiramente aceite pela R., facto que, volvidos três anos sem que essa condição fosse cumprida, operou a transferência da propriedade da parcela de terreno para a esfera jurídica dos herdeiros e representantes dos doadores. Além disso, apesar de já haverem decorridos mais de 20 anos aquando da escritura de alteração, (o tal prazo que no entender da R. balizava o fim do direitos dos doadores a pedirem a reversão da parcela de terreno) é no mínimo estranho que a R. tenha concordado com a manutenção da obrigação da construção de um parque municipal aquando da celebração da escritura de alteração da doação, quando, na verdade, defende que o direito a exigir a reversão da parcela de terreno, onde o mesmo iria ser erigido, já havia prescrito. O que sucedeu na realidade – segundo alega - foi que, face à resolução do contrato operada pelo não cumprimento da prestação de construção do parque, os herdeiros e os doadores, mantiveram, na escritura de doação, a condição inicial, prescindindo tão só do prazo inicialmente fixado de 3 anos para a construção do mesmo.
Conclui, assim, que, quanto à obrigação de construção de um parque municipal, esta se manteve inalterável, até porque esses mesmos termos foram aceites pela R. na referida escritura de alteração. Mais conclui pela não ocorrência de qualquer excepção ao não cumprimento da prestação, pela manutenção do direito à reversão e, reflexivamente, o direito à imposição à R. de construção do parque como condição da doação.
Realizou-se a audiência preliminar, após o que se elaborou saneador-sentença onde, conhecendo-se do mérito dos autos, se julgou a acção improcedente com a absolvição da R. dos pedidos.
Não se conformando com esta decisão, dela recorreu a A. de apelação para o Tribunal da Relação de Évora, tendo-se aí, por acórdão de 2-10-2008, julgado procedente o recurso revogando-se o despacho saneador sentença, julgando-se procedente a acção reconhecendo-se a subsistência na esfera jurídica da A. quer o direito potestativo à reversão da parcela, quer o direito de exigir da R. o cumprimento do encargo (construção do parque) mencionado na escritura de doação de 28-5-1963 e mantido na escritura de alteração de 24-10-1994.
Irresignada com este acórdão, dele recorreu a R. para este Supremo Tribunal, recurso que foi admitido como revista e com efeito devolutivo.
A recorrente alegou, tendo das suas alegações retirado as seguintes conclusões:
1ª- Enferma o Acórdão recorrido de um vício de nulidade, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil, por manifesta contradição entre a sua decisão, no sentido do reconhecimento da subsistência, na esfera jurídica da Recorrida, quer do direito potestativo de reversão da parcela doada, quer do direito a exigir à R., ora Recorrente, a construção do parque municipal no terreno objecto de doação, e a resolução das questões que constituem fundamento e antecedente lógico daquela decisão.
2ª- Com efeito, não se descortina qual a articulação lógica entre a fundamentação do Acórdão Recorrido e a conclusão do Tribunal a quo no sentido da subsistência, na esfera jurídica da Recorrida, do direito à reversão da parcela doada, porquanto tal faculdade não se encontra admitida pelo Tribunal Recorrido em termos genéricos, ou com os fundamentos inicialmente previstos na escritura de doação primeiramente outorgada, para o efeito apenas admitindo o Tribunal Recorrido, enquanto fundamento da dita reversão, e em sede de fundamentação do Acórdão, o desrespeito do fim previsto para os terrenos doados – fundamento que, acrescente-se, não foi invocado pela Recorrida e, como tal, não deveria ter sido apreciado pelo Tribunal Recorrido, muito menos justificar qualquer decisão de procedência do recurso de apelação em consideração.
3ª- Não se justifica, por outro lado, do ponto de vista lógico justificativo, a decisão do Tribunal a quo com respeito à vinculação da ora Recorrente na construção do parque municipal, porquanto tal obrigação quedou, como bem reconheceu o Tribunal Recorrido em sede da fundamentação do Acórdão, desprovida de qualquer conteúdo útil e vinculativo na senda da celebração da escritura de alteração da doação, nos termos da qual prescindiram os herdeiros dos doadores do prazo de três anos inicialmente previsto para a obrigação de construção do dito parque, bem como da faculdade de reversão da doação com fundamento no incumprimento dessa mesma obrigação, assim se considerando a mesma revogada em conjunto e a propósito da revogação da cláusula de reversão que fundamentava,
4ª- Desta feita, deverá ser revogada a decisão proferida pelo Tribunal a quo, sendo, em consequência, mantida a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância, que se afigura concretamente consonante com a própria argumentação aduzida pelo Tribunal Recorrido, que apenas por mero e manifesto lapso, e provavelmente em resultado das contradições várias de que padece a tese esgrimida pela ora Recorrida (e pelo Tribunal Recorrido tão bem identificadas), poderá ter determinado a procedência do recurso de apelação interposto pela Autora, ora Recorrida.
5ª- Ainda que se considere que o Tribunal Recorrido reconheceu a manutenção do direito de reversão da doação com base no fundamento que constitui a atribuição ao bem doado de destino diverso daquele estipulado na mesma escritura de doação, sempre deverá considerar-se que o Acórdão Recorrido padece de uma nulidade por excesso de pronúncia, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil, porquanto tal fundamento não foi invocado nem sequer foi a sua ocorrência demonstrada nos autos, hipótese em que deverá igualmente ser revogada a decisão proferida pelo Tribunal a quo, sendo, em consequência, mantida a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância.
6ª- Atento o teor da escritura de alteração da doação datada de 24 de Outubro de 1994, resulta inequívoco concluir que os herdeiros não pretenderam, senão, excluir a cláusula de reversão que assessorava o negócio jurídico de doação, revogando-a in totum, e não prescindir tão-somente do prazo de três anos a que o exercício da dita reversão se encontrava condicionado – e que, aliás, à data da outorga da mencionada escritura de alteração da doação, já havia há muito decorrido.
7ª- Resulta igualmente evidente da análise da segunda escritura de doação que os representantes dos doadores renunciaram também à obrigação de construção do parque municipal propriamente dita, tal obrigação devendo considerar-se revogada em conjunto e a propósito da revogação da cláusula de reversão que fundamentava, porquanto tal obrigação e tal cláusula de reversão constituíam prerrogativa una e instrumental relativamente ao encargo modal que onera a doação em apreço – a obrigação de respeito da finalidade prevista para o objecto da doação.
8ª- Relativamente à faculdade de reversão da doação com fundamento no incumprimento da obrigação de respeito da finalidade estipulada para o bem doado, também a mesma se deverá considerar renunciada em decorrência do teor da segunda escritura de doação, mantendo-se o modo que onera a presente doação passível de sancionamento pelos herdeiros dos doadores nos termos do prescrito no artigo 965.º do Código Civil.
9ª- Com efeito, a natureza modal da doação em apreço determinou a previsão de uma cláusula de resolução para a hipótese de incumprimento de tal encargo, que se materializou na previsão de uma faculdade de reversão da doação operante mediante a subsunção e concomitante invocação de um dos dois fundamentos nela previstos, que não apresentam, contudo, qualquer singularidade, eficácia ou utilidade se considerados individualmente e de forma dissociada do referido encargo modal.
10ª- O teor da cláusula da segunda escritura de doação, no sentido de que as partes “prescindem do direito de reversão inerente naquela condição”, aponta nesse sentido, devendo considerar-se que a condição aí mencionada, não obstante a falta de rigorismo jurídico, mais não é que o encargo modal previsto na primeira escritura de doação, que se traduz na obrigação de respeito da finalidade prevista para o objecto da doação, ao serviço do qual se encontravam clausulados, quer a obrigação de a Recorrente proceder à construção do parque municipal (esta mais não constituindo que uma concretização, acessória e especifica, daquele encargo modal), quer os dois fundamentos previstos para a reversão da doação em apreço, expedientes que deverão considerar-se revogados pelas partes mediante a outorga da segunda escritura pública de doação, assim tendo sido revogado todo o clausulado na primeira escritura a propósito da faculdade de reversão da doação.
11ª- Tal entendimento resulta consequência linear da perscrutação do teor da escritura de doação outorgada em 24.10.1994, e da aplicação, para o efeito, dos critérios previstos nos artigos 236.º e 237.º do Código Civil, porquanto o interesse da Autora, ora Recorrida, na construção do parque sempre se afigurou manifestamente diminuto, sendo que a previsão do encargo modal onerando a doação em apreço sempre teve em vista a imposição, à beneficiária, ora Recorrente, da obrigação de construção do dito parque, no próprio interesse dos doadores, assim se desonerando de tal encargo sem deixar de adquirir a parcela destinada ao Hotel, cuja construção e exploração era o seu único interesse.
12ª- O direito à construção do parque municipal – e o consequente direito à reversão da doação com fundamento na violação de tal direito – não se enquadra em nenhuma das categorias de direitos enunciadas no nº 2 ou no nº 3 do artigo 298.º do Código Civil, nem se trata de um direito indisponível ou que a lei tenha declarado isento de prescrição, sempre restando proceder à aplicação da regra geral prevista no n.º 1 do artigo 298.º do Código Civil e, independentemente de quaisquer outras classificações possíveis desse mesmo direito, considerá-lo sujeito a prescrição, pelo seu não exercício, durante um determinado lapso de tempo legalmente estabelecido.
13ª- Por outro lado, o direito cuja prescrição ora se pretende ver reconhecida é o direito dos doadores – e, presentemente, dos seus representantes – à conclusão, no prazo de três anos, do projecto do parque municipal, que se traduz numa cláusula modal que onera a doação, vincula a donatária e mais não consubstancia que um verdadeiro direito subjectivo/obrigacional que, tal como bem refere o Tribunal Recorrido no entendimento por este explanada na p. 25 do Acórdão Recorrido e que ora se devolve à precedência, deverá considerar-se prescritível.
14ª- Em decorrência do prescrito na primeira parte do n.º 1 do artigo 297.º do Código Civil, resulta necessário considerar aplicável aos presentes autos o prazo de prescrição de vinte anos fixado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de Novembro de 1966, que aprovou o novo Código Civil, procedendo à sua contagem desde o início da vigência deste diploma – dia 1 de Junho de 1967.
15ª- Destarte, e em virtude da combinação do vertido na 1.ª parte do n.º 1 do artigo 306.º, com o disposto nas alíneas b) e c) do artigo 279.º do Código Civil, resulta evidente que a prescrição do direito dos doadores requererem a reversão da parcela de terreno objecto do negócio jurídico de doação se verificou às 24 horas do dia 2 de Junho de 1987, razão pela qual, e de acordo com o prescrito no artigo 304.º do Código Civil, a Ré, ora Recorrida, tem a faculdade de recusar o cumprimento da prestação em consideração, ou de se opor por qualquer modo ao exercício do direito correspectivo, considerando-se, assim, procedente a excepção peremptória extintiva de prescrição que presentemente se invoca.
16ª- O entendimento do Tribunal Recorrido, no sentido da subsistência da cláusula de reversão da doação, sem se encontrar, porém, o exercício da mesma constrangido a um qualquer prazo, determina a nulidade da mesma por violação do disposto na alínea j) do artigo 18.º e no artigo 12.º do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais, e no n.º 2 do artigo 2230.º do Código Civil, aplicável ex vi artigo 967.º do mesmo diploma legal.
17ª- Em conformidade com o vertido no ponto 5 da decisão do Tribunal de 1.ª Instância quanto à matéria de facto considerada como provada resulta mister concluir que o inadimplemento da construção do parque municipal não poderá ser imputável à ora Recorrente, tratando-se, assim, de um inadimplemento não culposo, porquanto a admissão do dito parque encontra-se condicionada à elaboração, pelos doadores – ou seus representantes - de um regulamento que deverá ser submetido à sanção da Câmara Municipal, o que determina a aplicabilidade do disposto no artigo 813.º do Código Civil e desonera a Recorrente de qualquer responsabilidade com respeito à construção do mencionado parque, que não a resultante de uma actuação dolosa que não se encontra por qualquer forma evidenciada nos presentes autos, assim inviabilizando a operatividade da cláusula de reversão da mencionada doação.
18ª- O Acórdão Recorrido violou, assim, de forma clamorosa, o disposto nas alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil, o disposto nos artigos 236.º, 237.º, 279.º alíneas b) e c), 297.º n.º 1, 298.º, 304.º, 306.º n.º 1, 813.º, 965.º, 966.º e no n.º 2 do artigo 2230.º do Código Civil, este último artigo aplicável ex vi do artigo 967.º do mesmo diploma legal, bem como o disposto na alínea j) do artigo 18.º e no artigo 12.º do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais.
Nestes termos deverá ser proferido Acórdão que declare nulo o Acórdão Recorrido, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil, por manifesta contradição entre a sua decisão e os seus fundamentos, assim se determinando a revogação da decisão proferida pelo Tribunal a quo, sendo, em consequência, mantida a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância. Subsidiariamente, deverá ser proferido Acórdão que declare nulo o Acórdão Recorrido, nos termos do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil, por manifesto excesso de pronúncia com respeito à apreciação do direito de reversão da doação com base no fundamento que constitui a atribuição ao bem doado de destino diverso daquele estipulado na mesma escritura de doação, assim se determinando a revogação da decisão proferida pelo Tribunal a quo, sendo, em consequência, mantida a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância. Deverá ser proferido Acórdão que julgue integralmente procedente o presente recurso, sendo, em consequência, revogado o Acórdão Recorrido e considerada absolvida a R., ora Recorrente, de todos os pedidos formulados pela A., aqui Recorrida.
A recorrida contra-alegou, pronunciando-se pela confirmação do acórdão recorrido.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II- Fundamentação:
2-1- Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas (arts. 690º nº 1 e 684º nº 3 do C.P.Civil).
Nesta conformidade, serão as seguintes as questões a apreciar e decidir:
- Se ocorre a nulidade do acórdão nos termos do art. 668º nº 1 als. c) e d) do C.P.Civil.
- Se se encontra extinta a cláusula de reversão em causa e a consequente obrigação da R. de proceder à construção do parque municipal.
-Se o direito invocado pela A. se encontra prescrito.
- Se a cláusula de reversão da doação constitui vínculo perpétuo e intemporal e, como tal, é inadmissível.
- Se não poderá ser imputado à R. o não cumprimento da obrigação de construção do parque.
2-2- Vem fixada das instâncias a seguinte matéria de facto:
1- Em 28.05.1963, BB e mulher, CC, e a Sociedade “CC, Lda” de que o primeiro era sócio gerente, na qualidade de proprietários, (na proporção de metade para a Sociedade e metade para BB e mulher), doaram à R. C.M.V.R.S.A., livre de ónus ou encargos, uma parcela de terreno com a área total de 4.387,40 m2. (Motivação: escritura de doação exarada em 28 de Maio de 1963, em VRSA, no notário privativo da Câmara Municipal, fls. 19 a 28 dos autos).
2- A parcela de terreno, sita em Monte Gordo, freguesia e concelho de VRSA, confronta a Norte com terrenos municipais e FF, a Sul com Estrada Municipal 511 entre Monte Gordo e VRSA (prolongamento da Avenida Infante D. Henrique) e BB, a Nascente com terrenos municipais e a Poente com BB, Rua Bartolomeu Perestrelo e FF (Motivação: escritura de doação exarada em 28 de Maio de 1963, em VRSA, no notário privativo da Câmara Municipal, fls. 19 a 28 dos autos).
3- Tal parcela constituía um todo que englobava três parcelas, A, B e C, (cujas confrontações e áreas se encontram devidamente descritas e identificadas na referida escritura, e que aqui se dão como integralmente reproduzidas) e fazia parte do prédio descrito na Conservatória de Registo Predial de VRSA sob o nº 7671, a fls. 183 do Livro B nº 18 e encontra-se inscrito na matriz predial rústica da freguesia e concelho de VRSA sob o artigo 575 (Motivação: escritura de doação exarada em 28 de Maio de 1963, em VRSA, no notário privativo da Câmara Municipal, fls. 19 a 28 dos autos e certidão da Cons. Reg. Pred. VRSA de fls. 125 a 135).
4- A referida parcela de terreno, fora adquirida pelos doadores à R. C.M.V.R.S.A (por meio de venda em hasta pública realizada em 06.01.1960, titulada por alvará dessa edilidade com o número 57, emitido em 16.01.1960) – (Motivação: cópia de certidão passada pela Câmara Municipal de VRSA da Acta da reunião ordinária de 16 de Dezembro de 1959, fls. 87 a 91 e Alvará nº 57 emitido a 16/01/1960, fls 105 a 107).
5- Das condições da venda em hasta pública, constava que “parte do referido conjunto de terreno composto pelas três parcelas se encontrava destinado exclusivamente à construção “de um parque de repouso ou recreio para uso dos frequentadores do hotel, incluindo-se no número dos seus utentes os frequentadores da estância balnear de Monte Gordo, devendo a admissão do aludido parque ser condicionada por um regulamento elaborado pelos proprietários do hotel e que seria submetido à sanção da Câmara Municipal” (Motivação: escritura de doação exarada em 28 de Maio de 1963, em VRSA, no notário privativo da Câmara Municipal, maxime fls.24 e cópia de certidão da reunião ordinária da Câmara de 16/12/1959, condição terceira, fls. 89).
6- Previam ainda as condições de venda em hasta pública que, entre o lote de terreno destinado à construção do Hotel e o lote destinado ao parque de recreio, seria construída uma passagem subterrânea (Motivação: cópia de certidão da reunião ordinária da Câmara de 16/12/1959, condição terceira, alínea c) fls. 90).
7- Consta da escritura de doação referida em 1-: “os doadores transferem para a Câmara todo o domínio, direito, acção e posse e usufruição que têm tido sobre a parcela de terreno doada, prestando a evicção”. (…) - “O terreno doado só poderá ser utilizado pela C. M. V. R. S.A. na construção de um Parque Municipal a levar a efeito em harmonia com o ante plano de urbanização de Monte Gordo”, e “A doação considerar-se-á sem efeito, revertendo para os doadores ou seus herdeiros ou representantes, não só o terreno objecto desta doação condicional, mas também as benfeitorias nele existentes, quer no caso de ao mesmo terreno ser dado, em qualquer tempo, destino diferente daquele que se estabelece na alínea anterior - entenda-se o número supra -, quer no caso de o projecto do Parque não estar concluído dentro do prazo de três anos a contar da data desta escritura, salvo se houver, num e noutro caso, acordo dos doadores quanto às alterações a efectuar”. (Motivação: escritura de doação exarada em 28 de Maio de 1963, em VRSA, no notário privativo da Câmara Municipal, maxime fls.26).
8- Pelo representante da donatária, ora R., C.M.V.R.S.A., foram aceites os termos da doação impostos pelos doadores, mais declarando (...), que o terreno doado se destina à construção de um Parque Municipal, como acima se prevê e que tal parque estará concluído dentro do prazo de três anos a contar da data da presente escritura”. (Motivação: escritura de doação exarada em 28 de Maio de 1963, em VRSA, no notário privativo da Câmara Municipal, maxime fls.27).
9- Volvidos três anos, a R. C.M.V.R.S.A. não erigiu na parcela de terreno doada o competente Parque Municipal, nem os doadores elaboraram o regulamento referido em 5. (Motivação: resulta dos autos a confissão da R. e também da A.).
10- BB e mulher, CC, faleceram em 28 de Abril de 1972 e 29 de Novembro de 1975, respectivamente, e deixaram como únicos e universais herdeiros seus filhos, DD e EE . (Motivação: escrituras de habilitação nos autos, fls. 139 a 153).
11- A “Sociedade Turística AA, S. A.” sucedeu à sociedade “..........e A..., Ldª”, por transformação (Motivação: cópia de fls. 154)
12- No dia 24.10.1994, os herdeiros dos primitivos doadores BB e mulher CC e a sucedânea da Sociedade “CC, Lda” outorgaram, no notário privativo da CMVRSA, uma escritura de doação da mesma parcela de terreno objecto da doação referida em 1, no âmbito da qual declararam “que prescindem do direito de reversão inerente naquela condição, pelo que pela presente escritura se considera alterada a escritura inicial, em conformidade com o desejo agora expresso, deixando assim de ficar condicionada a qualquer prazo para a realização do parque previsto”; (...) em tudo o resto mantém-se o estipulado na escritura inicial”. (Motivação: escritura de fls. 37 a 39).
13- Em 27.01.1995, no notário privativo da CMVRSA, foi celebrada uma escritura de permuta de terrenos sitos em Monte Gordo, entre a R. C.M.V.R.S.A. e a firma “Marmonte - Construtora Predial, Lda.”, para efeitos de alargamento da via pública. (Motivação: cópia de escritura de permuta, a fls. 121 a 124 dos Autos de Providência Cautelar em apenso).
14- A parcela de terreno a permutar por tal edilidade, com a área de 554,6 m2, fazia parte do prédio objecto da doação identificada em 1. e 12. (Motivação: cópia de escritura de permuta, a fls. 121 a 124 dos Autos de Providência Cautelar em apenso).
15- Os representantes dos doadores acima identificados, na qualidade de herdeiros e únicos representantes dos mesmos, foram então chamados a pronunciar-se, tendo, para o efeito, autorizado a permuta de terrenos entre a R. C.M.V.R.S.A. e a referida firma, em 24 de Outubro de 1994 (Motivação: declaração datada de 24/10/1994, fls. 40/41).
16- No documento de concordância da referida permuta, consta o seguinte: (…) esta concordância é feita sem prejuízo do fim para que foi feita a doação em 28/05/1963, pelo que se mantém a condição de utilização do restante terreno exclusivamente para construção de um Parque Municipal a levar a efeito pela citada Câmara, sob pena de reversão para os herdeiros e representantes dos dadores do citado prédio, nos termos estipulados na aludida escritura de doação.” (Motivação: declaração datada de 24/10/1994, fls. 40/41).
17- Em 10.07.1995, a firma “......... - Empresa de Construção Civil, S.A,”, solicitou à C.M.V.R.S.A. uma permuta de terrenos com a área de 297 m2 com destino a parqueamento, ampliação das áreas de passeio, alinhamento e amplitude de arruamentos.(Motivação: cópia de certidão da CMVRSA da reunião ordinária realizada em 16/02/2000 e notificação à Autora, fls. 42 a 63).
18- A parcela de terreno a permutar (293 m2) fazia parte da parcela de terreno objecto de doação referida em 1. e 12. (Motivação: cópia de certidão da CMVRSA da reunião ordinária realizada em 16/02/2000 e notificação à A., fls. 42 a 63, planta de fls. 104 do autos de providência cautelar em apenso e cópia de certidão da Conservatória de Registo Predial de VRSA, a fls.105 a 110 dos autos de providência cautelar em apenso).
19- A permuta dos terrenos referida em 17 e 18 foi aprovada por meio de deliberação camarária. (Motivação: cópia de certidão da CMVRSA da reunião ordinária realizada em 16/02/2000 e notificação à A., fls. 42 a 63).
20- Em reunião da Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, realizada em 16.02.00, foi submetida à aprovação daquela autarquia uma proposta do Senhor Presidente daquela edilidade referente à permuta de terrenos a celebrar entre a firma “........” e a R. C.M.V.R.S.A. (Motivação: cópia de certidão da CMVRSA da reunião ordinária realizada em 16/02/2000 e notificação à A., fls. 42 a 63).
21- A proposta foi aprovada por maioria e foi assim deliberado:
“1.) - A existência de interesse público na permuta de terrenos proposta pela firma “Larbrás”, por permitir o alargamento das Ruas 3 e Bartolomeu Perestrelo, com a possibilidade de criar estacionamentos públicos perpendiculares às vias referidas;
2.) - Que fosse invocada a prescrição e a ilicitude das condições da doação do referido terreno;
3.) - Que se aprovasse a permuta dos terrenos em causa; (Motivação: cópia de certidão da CMVRSA da reunião ordinária realizada em 16/02/2000 e notificação à A., fls. 42 a 63).
22- A A. foi notificada desta deliberação em 15 de Maio de 2000, juntamente com cópia da acta da referida reunião camarária e ainda de um parecer da jurista daquela edilidade. (Motivação: cópia de certidão da CMVRSA da reunião ordinária realizada em 16/02/2000 e notificação à A., fls. 42 a 63).
23- A A. interpôs recurso contencioso de anulação de tal decisão camarária para o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, tendo vindo este Tribunal a julgar-se incompetente em razão da matéria. (Motivação: cópia de despacho do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, fls. 14 a 18 e fls.108 a 112 dos Autos de Providência Cautelar em apenso).
24- Em 16 de Janeiro de 1960 foi emitido o alvará nº 57 para titular a venda referida em 4 e 5, e no qual constam as condições de alienação. (Motivação: cópia do Alvará nº 57, datado de 16 de Janeiro de 1960, fls. 105 a 107)
25- Essas condições, para além do destino das parcelas, ainda determinavam que o parque de recreio ou repouso podia ser utilizado pela Câmara Municipal para a realização de qualquer festa de beneficência ou outro fim de interesse municipal, uma vez em cada ano, sem que tivesse de pagar qualquer aluguer, ficando porém a seu cargo todas as outras despesas, incluindo as derivadas de prejuízos causados aos proprietários durante a utilização (Motivação: cópia do Alvará nº 57, datado de 16 de Janeiro de 1960, fls. 105 a 107)
26- No Alvará referido em 24, constava, em relação à venda supra referida em 4 e 5:” Considera-se nula e de nenhum efeito a venda das aludidas parcelas de terreno, revertendo para a Câmara os terrenos alienados sem direito a qualquer indemnização por parte desta, mesmo que existam benfeitorias introduzidas nos terrenos, que revertem, no caso da inobservância de qualquer das condições especialmente elaboradas para a alienação dos terrenos destinados à construção de um Hotel e respectivo Parque de Repouso ou Recreio, em Monte Gordo, aprovadas pela Câmara Municipal na sua reunião do dia dezasseis de Dezembro do ano findo (1959)” (Motivação: Alvará nº 57, fls. 106).
27- O terreno em causa encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial sob o nº 939/950109 a favor do Município de Vila Real de Santo António, sem qualquer cláusula de reversão a favor dos doadores. (Motivação: cópia de certidão da Conservatória de Registo Predial de VRSA, fls. 115 e fls. 105 a 110 dos Autos de Providência Cautelar em apenso). --------------------
2-3- A recorrente (mais rigorosamente o Município de Vila Real de Santo António) começa por sustentar no presente recurso, existir manifesta contradição entre os fundamentos e a decisão proferida na Relação de Évora. Segundo o seu entender, no acórdão proferiu-se a decisão acima referida. Sucede que tal segmento decisório não constitui decorrência necessária e lógica daquele que foi o entendimento adoptado pelo tribunal recorrido ao longo da fundamentação do acórdão. Não se descortina qual a articulação lógica entre a fundamentação do acórdão e a decisão no sentido da subsistência, na esfera jurídica da recorrida, do direito à reversão da parcela doada, porquanto tal faculdade não se encontra admitida pelo tribunal recorrido em termos genéricos.
Nos termos do art. 668º nº 1 al. c) do C.P.Civil, a sentença é nula “quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão”. Isto é, a sentença será nula “quando os fundamentos invocados devessem, logicamente, conduzir a uma decisão diferente da que a sentença ou acórdão expressa” (A.Varela, in Manual, 1ª edição, pág. 671). Está aqui em causa um erro lógico, derivado de os fundamentos usados não estarem em sintonia com a decisão tomada.
Segundo a recorrente, a decisão relativa ao reconhecimento do direito (potestativo) à reversão da parcela doada não poderia ser proferida já que na fundamentação do aresto não se reconheceu tal faculdade em termos genéricos.
Somos em crer que a recorrente carece de razão visto que no acórdão pese embora se reconheça que, pelos motivos aí aduzidos, ficou arredada a inobservância do prazo do fundamento resolutivo ou da condição resolutiva estipulada e, consequentemente, ficou extinto o direito (potestativo) à reversão com tal fundamento, reconheceu-se a subsistência do direito à reversão com o fundamento na aplicação da parcela a finalidade de destino diverso dos estipulados na doação. Daquele fundamento apenas se retirou que “a desoneração do vínculo do prazo para o cumprimento do modo converteu a obrigação em que este se analisava numa obrigação pura, sem prazo”. Da subsistência deste fundamento retirou-se a decisão de reconhecimento da conservação na esfera jurídica da A, o direito potestativo da reversão da parcela doada.
Não ocorre, assim, a irregularidade formal do acórdão invocada pela recorrente, já que a decisão está em sintonia, quanto a este aspecto, com a fundamentação.
Sustenta também a recorrente que o desrespeito do fim previsto para os terrenos doados, fundamento usado no acórdão para justificar a reversão, não havia sido invocado pela recorrida e, como tal, não deveria ter sido apreciado pelo tribunal recorrido, muito menos para justificar qualquer decisão de procedência do recurso de apelação em consideração.
Evidentemente que esta argumentação já nada tem a ver com o irregularidade formal (nulidade) apontada ao acórdão de que vimos falando. Poderia, a existir, gerar a nulidade a que alude o art. 668º nº 1 al. d) do C.P.Civil derivada de se ter conhecido “questões de que não podia tomar conhecimento” (excesso de pronúncia).
Esta nulidade está directamente relacionada com o dispositivo do art. 660º nº 2 segundo o qual “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.
Portanto, face a esta disposição, o juiz deve pronunciar-se sobre todas as questões que sejam submetidas à sua apreciação. Mas não deve tomar conhecimento de questões não submetidas ao seu conhecimento. No primeiro caso existirá uma omissão de pronúncia. No segundo ocorrerá um excesso de pronúncia.
De sublinhar que a lei fala em «questões», isto é, em assunto juridicamente relevantes, pontos essenciais de facto ou direito em que as partes fundamentam as suas pretensões. Aí não devem ser abrangidos, como é jurisprudência uniforme (entre muitos Acórdão do STJ de 4-3-2004, in proc. 04B522/ITIJ/net.), razões ou argumentos usados pelas partes para concluir sobre questões.
Ora, no caso vertente, não se vê que tenha existido por banda do acórdão em análise qualquer excesso de pronúncia, visto que um dos fundamentos invocados pela A. para a reversão dos terrenos foi, precisamente, o desrespeito do fim previsto para os terrenos doados, como se verifica compulsando a petição inicial. Haveria, pois, que apreciar esse fundamento de procedência da acção, o que se fez.
Não se vê, assim, que ocorra a dita nulidade.
Sustenta ainda a recorrente que a decisão do tribunal recorrido, no que toca à vinculação da A. à construção do parque municipal, não se justifica porquanto tal obrigação quedou, como bem reconheceu o tribunal recorrido em sede da fundamentação do acórdão, desprovida de qualquer conteúdo útil e vinculativo na senda da celebração da escritura de alteração da doação, nos termos da qual prescindiram os herdeiros dos doadores do prazo de três anos inicialmente previsto para a obrigação de construção do dito parque, bem como da faculdade de reversão da doação com fundamento no incumprimento dessa mesma obrigação, assim se considerando tal obrigação revogada em conjunto e a propósito da revogação da cláusula de reversão que fundamentava.
Quer dizer, segundo a recorrente, o acórdão padece aqui de nulidade visto que a decisão não está conforme os fundamentos. Na fundamentação reconheceu-se que a obrigação de construção do parque municipal ficou desprovida de qualquer conteúdo útil e vinculativo (por os herdeiros dos doadores terem prescindido do prazo de três anos inicialmente previsto para o cumprimento de tal construção), razão por que não se justificou a condenação proferida de se reconhecer à A. o direito de exigir da R. o cumprimento da construção de tal parque.
Compulsando o acórdão, mais uma vez se verifica que ele não padece da irregularidade apontada já que no acórdão recorrido se justificou, com explanação suficiente, a condenação proferida. Para além do mais referiu-se que “com a desoneração do vínculo do prazo para o cumprimento do modo converteu a obrigação em que este se analisava numa obrigação pura, sem prazo. A partir da escritura de alteração de 24-10-1994, pois, o direito de reversão da parcela depende do desvio do respectivo destino relativamente ao tido em vista pelos doadores na escritura de 1963. Ao abrigo do art. 965º CC, tem a Autora e apelante o direito de exigir da donatária o cumprimento dos encargos. Não consta que o tivesse feito, nem mesmo pela presente acção em que se limita a peticionar o reconhecimento, na sua esfera jurídica, quer do direito de reversão dos bens, quer da imposição da obrigação de cumprimento do modo…”. Note-se que em consonância com estes entendimentos, na decisão o Tribunal limitou-se a reconhecer a subsistência na esfera jurídica da A., quer o direito potestativo à reversão da parcela, quer o direito a exigir da R. o cumprimento do encargo (construção do parque). Vemos, assim, que a condenação em causa se encontra evidenciada.
Defende depois a recorrente, repetindo a argumentação antes aduzida, que ainda que se considere que o tribunal recorrido reconheceu a manutenção do direito de reversão da doação com base no fundamento que constitui a atribuição ao bem doado de destino diverso daquele estipulado na mesma escritura de doação, sempre deverá considerar-se que o acórdão recorrido padece de uma nulidade por excesso de pronúncia, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil, porquanto tal fundamento não foi invocado nem sequer foi a sua ocorrência demonstrada nos autos, hipótese em que deverá igualmente ser revogada a decisão proferida pelo Tribunal a quo, sendo, em consequência, mantida a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância.
Já se respondeu a tal objecção, remetendo-se para o que acima se mencionou sobre o assunto.
2-4- Sustenta a recorrente que, atento o teor da escritura de alteração da doação datada de 24 de Outubro de 1994, resulta inequívoco concluir que os herdeiros não pretenderam, senão, excluir a cláusula de reversão que assessorava o negócio jurídico de doação, revogando-a in totum, e não prescindir tão-somente do prazo de três anos a que o exercício da dita reversão se encontrava condicionado – e que, aliás, à data da outorga da mencionada escritura de alteração da doação, já havia há muito decorrido. Resulta igualmente evidente da análise da segunda escritura de doação que os representantes dos doadores renunciaram também à obrigação de construção do parque municipal propriamente dita, tal obrigação devendo considerar-se revogada em conjunto e a propósito da revogação da cláusula de reversão que fundamentava, porquanto tal obrigação e tal cláusula de reversão constituíam prerrogativa una e instrumental relativamente ao encargo modal que onera a doação em apreço – a obrigação de respeito da finalidade prevista para o objecto da doação. Relativamente à faculdade de reversão da doação com fundamento no incumprimento da obrigação de respeito da finalidade estipulada para o bem doado, também a mesma se deverá considerar renunciada em decorrência do teor da segunda escritura de doação, mantendo-se o modo que onera a presente doação passível de sancionamento pelos herdeiros dos doadores nos termos do prescrito no artigo 965º do Código Civil. Com efeito, a natureza modal da doação em apreço determinou a previsão de uma cláusula de resolução para a hipótese de incumprimento de tal encargo, que se materializou na previsão de uma faculdade de reversão da doação operante mediante a subsunção e concomitante invocação de um dos dois fundamentos nela previstos, que não apresentam, contudo, qualquer singularidade, eficácia ou utilidade se considerados individualmente e de forma dissociada do referido encargo modal. O teor da cláusula da segunda escritura de doação, no sentido de que as partes “prescindem do direito de reversão inerente naquela condição”, aponta nesse sentido, devendo considerar-se que a condição aí mencionada, não obstante a falta de rigorismo jurídico, mais não é que o encargo modal previsto na primeira escritura de doação, que se traduz na obrigação de respeito da finalidade prevista para o objecto da doação, ao serviço do qual se encontravam clausulados, quer a obrigação de a recorrente proceder à construção do parque municipal (esta mais não constituindo que uma concretização, acessória e especifica, daquele encargo modal), quer os dois fundamentos previstos para a reversão da doação em apreço, expedientes que deverão considerar-se revogados pelas partes mediante a outorga da segunda escritura pública de doação, assim tendo sido revogado todo o clausulado na primeira escritura a propósito da faculdade de reversão da doação. Tal entendimento resulta consequência linear da perscrutação do teor da escritura de doação outorgada em 24.10.1994, e da aplicação, para o efeito, dos critérios previstos nos artigos 236º e 237º do Código Civil, porquanto o interesse da A. na construção do parque sempre se afigurou manifestamente diminuto, sendo que a previsão do encargo modal onerando a doação em apreço sempre teve em vista a imposição, à beneficiária, ora recorrente, da obrigação de construção do dito parque, no próprio interesse dos doadores, assim se desonerando de tal encargo sem deixar de adquirir a parcela destinada ao Hotel, cuja construção e exploração era o seu único interesse.
Com esta argumentação, a recorrente defende que através da escritura de alteração da primitiva doação, deixou de estar vinculada à obrigação de proceder à construção do mencionado parque municipal, o que inicialmente resultava da primeira escritura de doação. Segundo a recorrente, resulta inequívoco da análise da sobredita escritura que os herdeiros não pretenderam, senão, prescindir da cláusula de reversão que assessorava a doação, revogando-a in totum.
Entramos, assim, na essencial questão de direito que os presentes autos debatem.
Como se vê através dos factos provados, em 28.05.1963, BB e mulher, CC, e a Sociedade “CC, Lda” de que o primeiro era sócio gerente, na qualidade de proprietários, doaram à R., livre de ónus ou encargos, uma parcela de terreno com a área total de 4.387,40 m2. Consta da escritura de doação “os doadores transferem para a Câmara todo o domínio, direito, acção e posse e usufruição que têm tido sobre a parcela de terreno doada, prestando a evicção”. (…) - “O terreno doado só poderá ser utilizado pela C. M. V. R. S.A. na construção de um Parque Municipal a levar a efeito em harmonia com o ante plano de urbanização de Monte Gordo”, e “a doação considerar-se-á sem efeito, revertendo para os doadores ou seus herdeiros ou representantes, não só o terreno objecto desta doação condicional, mas também as benfeitorias nele existentes, quer no caso de ao mesmo terreno ser dado, em qualquer tempo, destino diferente daquele que se estabelece na alínea anterior - entenda-se o número supra -, quer no caso de o projecto do Parque não estar concluído dentro do prazo de três anos a contar da data desta escritura, salvo se houver, num e noutro caso, acordo dos doadores quanto às alterações a efectuar”. Mais se provou que pelo representante da donatária, ora R., foram aceites os termos da doação impostos pelos doadores, declarando (...), “que o terreno doado se destina à construção de um Parque Municipal, como acima se prevê e que tal parque estará concluído dentro do prazo de três anos a contar da data da presente escritura”.
No douto acórdão recorrido em relação a esta doação referiu-se que se tratava de uma doação onerada com um encargo (doação modal – art. 963º do C.Civil, diploma de que serão as disposições a referir sem menção de origem). Isto porque a parcela doada só poderia ser utilizada para os fins nela ditos, isto é, a construção do parque municipal.
Resulta da própria doação os fundamentos de resolução da doação, a saber: Dar-se ao terreno, em qualquer tempo, destino diferente do estabelecido e o projecto do parque não estar concluído no prazo de três anos a contar da data da escritura. Concretizando-se qualquer destas hipóteses, como ficou estabelecido na doação, esta considerar-se-ia sem efeito, revertendo para os doadores ou seus herdeiros ou representantes, não só o terreno objecto da doação (condicional), mas também as benfeitorias nele existentes.
A R. aceitou todas estas cláusulas, o que significa que assumiu as obrigações de aplicar a parcela ao fim querido pelos doadores e de realizar esse fim no prazo de três anos. Vinculou-se, pois, juridicamente a R., ao destino a dar ao terreno e ao prazo estabelecido.
Pelo facto de a doação ter sido onerada com os ditos encargos, não deixa de constituir uma liberalidade (vide a este propósito C.Civil Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela, Volume II, 3ª edição, pág. 289). Daí o ter-se estabelecido no art. 963º nº 2 que “o donatário não é obrigado a cumprir os encargos senão dentro dos limites do valor da coisa ou do direito doado”. A doação modal não pode transformar-se num acto prejudicial para o donatário.
Nos termos do art. 965º na doação modal, tanto o doador como os seus herdeiros têm legitimidade para exigir do donatário, ou dos seus herdeiros, o cumprimento dos encargos, se necessário, através de meios coactivos.
Daqui resulta, a nosso ver, que o incumprimento culposo dos encargos da doação modal, gerará a imposição coerciva ao faltoso o cumprimento dos correspondentes deveres, mas pode também, nos termos do art. 966º, fundar a resolução da doação se esse direito for conferido no contrato.
Para o que aqui importa, interessa fazer ressaltar, porque tal foi previsto na doação, que dando a donatária destino diverso ao terreno, haverá incumprimento do negócio. Como a este propósito bem se refere no douto acórdão recorrido “a finalidade declarada pelos doadores à donatária e aceite por esta é incluída no negócio e passa a fazer parte do seu conteúdo, enquanto obrigação assumida por esta no âmbito do programa contratual traçado pelas partes. Assim, existindo, do lado da donatária, a obrigação de dar à parcela um certo destino, haverá incumprimento caso lhe venha a dar destino diverso…”.
O incumprimento poderá determinar, nos termos legais, que os doadores (herdeiros ou representantes) exijam da donatária o cumprimento do encargo ou, nos termos da doação em análise, a reversão dos bens para os doadores ou seus herdeiros ou representantes.
Somos em crer que em relação a estes entendimentos nenhuma questão se levanta nos autos.
A controvérsia reside a jusante deste juízo e consistirá em saber se a cláusula de reversão e o consequente encargo (construção do parque) se mantêm em vigor, face à escritura pública realizada pelos sucessores dos doadores e a R..
Recapitulemos então o que se provou a este respeito:
No dia 24.10.1994, os herdeiros dos primitivos doadores BB e mulher CC e a sucessora da Sociedade “CC, Lda” outorgaram, no notário privativo da CMVRSA, uma escritura de doação da mesma parcela de terreno objecto da doação referida em 1, no âmbito da qual declararam “que prescindem do direito de reversão inerente naquela condição, pelo que pela presente escritura se considera alterada a escritura inicial, em conformidade com o desejo agora expresso, deixando assim de ficar condicionada a qualquer prazo para a realização do parque previsto”; (...) em tudo o resto mantém-se o estipulado na escritura inicial”.
Em 27.01.1995, no notário privativo da CMVRSA, foi celebrada uma escritura de permuta de terrenos sitos em Monte Gordo, entre a R. C.M.V.R.S.A. e a firma “Marmonte - Construtora Predial, Lda.”, para efeitos de alargamento da via pública, sendo que a parcela de terreno a permutar por tal edilidade, com a área de 554,6 m2, fazia parte do prédio objecto da doação.
Os representantes dos doadores acima identificados, na qualidade de herdeiros e únicos representantes dos mesmos, foram então chamados a pronunciar-se, tendo, para o efeito, autorizado a permuta de terrenos entre a R. C.M.V.R.S.A. e a referida firma, sendo que no documento de concordância da referida permuta, consta o seguinte: (…) esta concordância é feita sem prejuízo do fim para que foi feita a doação em 28/05/1963, pelo que se mantém a condição de utilização do restante terreno exclusivamente para construção de um Parque Municipal a levar a efeito pela citada Câmara, sob pena de reversão para os herdeiros e representantes dos dadores do citado prédio, nos termos estipulados na aludida escritura de doação”.
Quer dizer, através do instrumento de 24-10-1994, os herdeiros e a sucessora dos primitivos doadores declararam prescindir do direito de reversão em relação à dita condição, deixando assim a doação de ficar condicionada a qualquer prazo para a realização do parque previsto, mantendo, porém, tudo o resto estipulado na escritura inicial.
Segundo a recorrente, ao excluir-se a cláusula de reversão que assessorava o negócio jurídico de doação, revogou-se a mesma in totum não sendo admissível o entendimento de se querer prescindir tão-somente do prazo de três anos a que o exercício da dita reversão se encontrava condicionado.
Não foi este o entendimento do douto acórdão recorrido, visto que aí se afirmou que a partir de então a doação deixava de ficar condicionada a qualquer prazo para a realização do parque previstoAA., mantendo-se em tudo o mais o estipulado na escritura inicial.
Somos em crer ser certa esta posição, já que os termos em que foi realizada a escritura de 24-10-94 inculcam neste sentido.
A este propósito, convém esclarecer que este Supremo, pese embora não conheça, em regra, de questões de facto (arts.722º nº 2, 729º nº 1 do C.P.Civil e 26º da Lei 3/99 de 13/1 - Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais-) o certo é que a questão levantada se coloca a nível de interpretação de regras de direito, designadamente as atinentes à interpretação das declarações negociais (arts. 236º e segs.), para a qual, evidentemente este Supremo Tribunal tem competência.
Como se sabe, em sede de interpretação das declarações vale o disposto no art. 236º nº 1 que refere que “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”. Esta disposição, como é comummente reconhecido, consagra a chamada teoria da impressão do destinatário, segundo a qual a declaração negocial deve ser interpretada como um declaratário medianamente sagaz, diligente e prudente a interpretaria, colocado na posição concreta do declaratário.
Nesta conformidade, um declaratário com estas características não deixaria de dar à expressão em causa, o alcance atribuído pela Relação. Nós próprios, como já vimos, demos idêntico conteúdo à manifestação de vontade exarada pelos os herdeiros e a sucessora dos primitivos doadores na dita escritura. Sublinhe-se que ao expressamente aí se referir que a doação deixa de ficar condicionada a qualquer prazo para a realização do parque mas mantendo tudo o resto estipulado na escritura inicial, dissipa qualquer dúvidas em relação ao conteúdo global da liberalidade: Conservou-se o inicial encargo, construção do parque no terreno.
Por conseguinte, de forma alguma se pode defender, como faz a recorrente, de que através da dita escritura se revogou in totum a cláusula de reversão.
É certo também que os herdeiros e a sucessora dos primitivos doadores, posteriormente, foram chamados a pronunciar-se sobre a permuta de terrenos efectuada pela R. em 27-1-1995 (facto mencionado acima sob o nº 13), tendo autorizado tal troca. Porém no documento de concordância foi referido que o assentimento era feito “sem prejuízo do fim para que foi feita a doação em 28/05/1963, pelo que se mantém a condição de utilização do restante terreno exclusivamente para construção de um Parque Municipal a levar a efeito pela citada Câmara, sob pena de reversão para os herdeiros e representantes dos dadores do citado prédio, nos termos estipulados na aludida escritura de doação”. Isto é, também através deste documento os ditos sujeitos mantiveram e reforçaram o encargo primitivo da doação, em relação ao restante terreno.
A posição da recorrente sobre a questão é, pois, insubsistente.
2-5- Sustenta depois a recorrente que o direito à construção do parque municipal – e o consequente direito à reversão da doação com fundamento na violação de tal direito – não se enquadra em nenhuma das categorias de direitos enunciadas no nº 2 ou no nº 3 do artigo 298º, nem se trata de um direito indisponível ou que a lei tenha declarado isento de prescrição, sempre restando proceder à aplicação da regra geral prevista no nº 1 do artigo 298º e, independentemente de quaisquer outras classificações possíveis desse mesmo direito, considerá-lo sujeito a prescrição, pelo seu não exercício, durante um determinado lapso de tempo legalmente estabelecido. Por outro lado, o direito cuja prescrição ora se pretende ver reconhecida é o direito dos doadores – e, presentemente, dos seus representantes – à conclusão, no prazo de três anos, do projecto do parque municipal, que se traduz numa cláusula modal que onera a doação, vincula a donatária e mais não consubstancia que um verdadeiro direito subjectivo/obrigacional que, tal como bem refere o tribunal recorrido no entendimento por este explanada, deverá considerar-se prescritível. Em decorrência do prescrito na primeira parte do nº 1 do artigo 297º, resulta necessário considerar aplicável aos presentes autos o prazo de prescrição de vinte anos fixado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de Novembro de 1966, que aprovou o novo Código Civil, procedendo à sua contagem desde o início da vigência deste diploma – dia 1 de Junho de 1967. Em virtude da combinação do vertido na 1ª parte do nº 1 do artigo 306º, com o disposto nas alíneas b) e c) do artigo 279º, resulta evidente que a prescrição do direito dos doadores requererem a reversão da parcela de terreno objecto do negócio jurídico de doação se verificou às 24 horas do dia 2 de Junho de 1987, razão pela qual e de acordo com o prescrito no artigo 304º, a R. tem a faculdade de recusar o cumprimento da prestação em consideração, ou de se opor por qualquer modo ao exercício do direito correspectivo, considerando-se, assim, procedente a excepção peremptória extintiva de prescrição que invoca.
Em relação à prescrição dos direitos, o douto acórdão recorrido referiu que “flui do exposto que o direito à reversão pressupõe o êxito na invocação do fundamento resolutivo constante da cláusula resolutiva ou a verificação da condição resolutiva; a reversão é uma consequência da resolução. E o direito à resolução é um direito potestativo; logo, não tem como contrapartida qualquer prestação a que encontre vinculado o sujeito passivo. A prescrição é uma forma de extinção de direitos subjectivos que consiste na faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de opor, por qualquer forma, ao exercício do direito prescrito (art. 304º nº1 CC). Ora, tratando-se in casu, de um encargo de construção de um parque municipal imposto em benefício de um conjunto indeterminado de pessoas ou no interesse público, estamos perante um dever jurídico, mas não de uma obrigação em sentido técnico para a Ré e apelada, onerada; A Autora e as pessoas legitimadas para exigir o cumprimento do encargo não têm um verdadeiro direito de crédito sobre a prestação (Cfr. Pires de Lima – A.Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 3ª ed., p. 292). Logo, é-lhe inaplicável o regime da prescrição, legalmente adequado para a extinção de direitos de crédito e não de direitos potestativos; logo, a obrigação de cumprimento do encargo modal não prescreve.
Quer dizer, por se considerar o direito à resolução um direito potestativo, entendeu-se no aresto recorrido não se encontrar prescrita a respectiva obrigação de cumprimento do encargo modal. Acrescentou-se que pese embora o direito à resolução com fundamento no incumprimento seja imprescritível, o certo é que pode caducar, em aplicação do princípio de que os direitos potestativos não prescrevem mas caducam, como decorre do art. 436º nº 2, sendo porém certo que a caducidade no ocorre no caso, dado que o direito de reversão e consequente reversão subsistem na esfera jurídica da A..
Por direito potestativo deve entender-se a “faculdade que o sujeito tem de produzir efeitos jurídicos mediante declaração de vontade sua, em certos casos integrada por decisão judicial. A essa faculdade corresponde, da parte daquele contra quem ela se exerce, um estado se sujeição, consistente em ficar submetido aos efeitos jurídicos produzidos, sem concorrer para eles e sem a eles poder opor-se” (in Direito das Obrigações, Galvão Telles, 7ª edição, pág. 10). O estado se sujeição decorrente de uma obrigação, traduz-se numa situação inelutável de suportar na esfera jurídica própria as consequências do exercício dos direitos potestativos (vide a este propósito Almeida Costa in Noções de Direito Civil, 2ª edição, pág. 22).
No aresto recorrido considerou-se o direito à resolução da doação como um direito potestativo.
Temos dúvidas em relação a este entendimento (2) .
Com efeito, como decorre dos arts. 965º e 966º, os herdeiros e a sucessora dos doadores têm direito a exigir da donatária o cumprimento do encargo ou, nos termos da doação em análise, a reversão dos bens para os doadores ou seus herdeiros ou representantes. Por sua vez a donatária tem a obrigação de cumprir o encargo, proceder à construção do parque. Esta obrigação tem o carácter técnico já que sobre a donatária incide um vínculo jurídico, em virtude do qual fica adstrita à realização da dita prestação (vide Almeida Costa, obra citada, pág. 22). Não se pode, assim, falar de um estado de sujeição no sentido de ter de suportar os efeitos jurídicos produzidos, sem a eles se pode opor. O exercício do direito por parte dos doadores (herdeiros e sucessora), tem, pois, como contrapartida a dita prestação por parte da donatária.
Por outro lado, como resulta do art. 298º nº 1 “estão sujeitos a prescrição pelo seu não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei, os direitos que não sejam indisponíveis ou a que a lei não declare isentos de prescrição”. Em anotação a esta disposição, referem Pires de Lima e Antunes Varela que “como regra, todos os direitos estão sujeitos à prescrição. Exceptuam-se no número primeiro os direitos indisponíveis e os que a lei declare isentos de prescrição. Entre os primeiros estão os direitos de personalidade … e, de uma maneira geral, todos os direitos relativos ao estado da pessoa, como os direitos de família. …. Entre os segundos estão compreendidos todos os direitos referidos nos nºs 2 e 3. O n.º 2 considera, em princípio, de caducidade os prazos fixados na lei ou por vontade das partes para o exercício de direitos. …. O n.º 3 refere-se a direitos reais que, embora não sujeitos a prescrição, podem extinguir-se pelo não uso (in C.Civil Anotado, Volume I, 4ª edição, pág. 272).
Portanto, a nosso ver, não sendo os aludidos direitos por parte dos doadores, susceptíveis de serem englobados em qualquer das categorias de direitos enunciados no nºs 1, 2 e 3 do art. 298º, estarão sujeitos aos prazos de prescrição.
Pese embora esta circunstância, os direitos que os AA. pretendem fazer valer não se encontram, no nosso entender, extintos por prescrição.
É certo que desde a entrada em vigor do Código Civil vigente e 2 de Junho de 1987 decorreram, como a recorrente afirma, 20 anos(3).
O douto acórdão recorrido pronunciou-se também sobre a questão, na a hipótese de se entender não estarem em causa direitos potestativos, dizendo que ainda que “se configure a prescritibilidade do direito à resolução e reversão, deve entender-se que, nesse caso, a Ré e apelada renunciou à invocação da prescrição quando na escritura de alteração da doação outorgada em 24-10-1994 – data em que, inequivocamente, já se havia completado o prazo prescricional – declarou, através do respectivo Presidente, aceitar a alteração da escritura inicial nos termos expressos na escritura de alteração. Se a doação deixou então de estar condicionada a qualquer prazo para a realização do parque, mantendo-se em tudo o que oportunamente fora estipulado - v. g. a vinculação do destino – e isto (quer dizer, a obrigação de destinar a parcela doada a parque municipal) foi aceite pela donatária (que então na perspectiva que agora defende já poderia invocar a prescrição) deve entender-se que, aceitando ou renovando a aceitação do encargo) renunciou tacitamente à prescrição (art. 302º nº1 e 2 CC)”.
Ou seja, segundo o acórdão recorrido, através do instrumento de 24-10-1994, a R. renovando a aceitação do encargo, renunciou tacitamente à prescrição(4), de harmonia com o disposto no art. 302º nºs 1 e 2.
Ora, como é evidente, desde essa data (de 24-10-1994) não decorreu por completo o prazo prescricional (de 20 anos).
Parece-nos ser correcto este entendimento.
Mas a questão poderá ver-se ainda através de outros factos, levando, a idênticos resultados. Como se sabe e resulta do art. 303º, a prescrição para ser eficaz necessita de ser invocada. Ora, como flui da factualidade inserida nos nºs 13 a 16 acima mencionada, em 27.01.1995, aquando da permuta de terrenos aí indicada, os representantes dos doadores (os ora AA.), na qualidade de herdeiros e únicos representantes dos mesmos, foram chamados pela R. a pronunciar-se, tendo autorizado tal troca. Isto é, nessa data a R., ao invés de apelar à prescrição (tácita ou expressamente), fez através do dito chamamento, o reconhecimento do direito dessas pessoas, renunciando tacitamente, também aqui, a invocar a prescrição.
Claro que por maioria de razão (o acto foi posterior àquele), o (novo) prazo prescricional ainda não decorreu por completo.
Não ocorre, pois, a excepção da prescrição.
2-6- Defende depois a recorrente que o entendimento do Tribunal Recorrido, no sentido da subsistência da cláusula de reversão da doação, sem se encontrar, porém, o exercício da mesma constrangido a um qualquer prazo, determina a nulidade da mesma por violação do disposto na alínea j) do artigo 18.º e no artigo 12.º do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais, e no n.º 2 do artigo 2230.º do Código Civil, aplicável ex vi artigo 967.º do mesmo diploma legal.
A esta objecção respondeu o acórdão recorrido dizendo que “começando por estes últimos, não conseguimos descortinar – certamente por insuficiência nossa – onde é que o cumprimento de um encargo de construção ou aprovação de projecto de um parque municipal seja física e legalmente impossível, contrário à lei ou à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes. Relativamente à nulidade da cláusula contratual por a obrigação de afectar a parcela de terreno doada ser duradoura perpétua e o respectivo tempo de vigência depender exclusivamente de que a predispôs, diremos apenas, por um lado, não estarmos perante cláusulas contratuais gerais pré-estabelecidas por uma das partes e que a outra se limitou a aceitar (art. 1º nº1 do DL nº 446/85 citado) e por outro, não se configurar a afectação ao fim como uma vinculação duradoura perpétua, na medida em que, como vimos, pode ser desencadeada a respectiva caducidade nem o seu tempo de vigência depender apenas da vontade de quem a predispôs, porque tal foi expressamente aceite pela outra parte”.
Parece-nos, no geral, ser certa esta argumentação. Com efeito, não vemos como o encargo da doação (construção do parque) pode constituir uma condição impossível e contrária à lei ou ordem pública. Não constitui também o encargo um vínculo perpétuo e intemporal visto que, como decorre do art. 777º, nas prestações sem prazo, o devedor pode a todo o tempo exonerar-se delas, cumprindo a sua obrigação.
Por outro lado, não estamos, patentemente, perante cláusulas contratuais gerais pré-estabelecidas por uma das partes e que a outra se limitou a aceitar (art. 1º nº1 do DL nº 446/85), pelo que o respectivo regime jurídico é de afastar. O encargo da doação foi jurídica e relevantemente assumida pela donatária, que recebeu a propriedade da coisa (art. 954º al. a)). De resto, não estamos, claramente, face a uma obrigação duradoura. O cumprimento da obrigação (encargo) em qualquer altura pode ser realizado, extinguindo o respectivo vínculo.
Improcede também aqui a pretensão da recorrente.
2-7- Sustenta, por fim, a recorrente que em conformidade com o vertido no ponto 5 da decisão do Tribunal de 1ª Instância quanto à matéria de facto considerada como provada, resulta mister concluir que o inadimplemento da construção do parque municipal não poderá ser imputável à ora recorrente, tratando-se, assim, de um inadimplemento não culposo, porquanto a admissão do dito parque encontra-se condicionada à elaboração, pelos doadores – ou seus representantes - de um regulamento que deverá ser submetido à sanção da Câmara Municipal, o que determina a aplicabilidade do disposto no artigo 813.º do Código Civil e desonera a recorrente de qualquer responsabilidade com respeito à construção do mencionado parque, que não a resultante de uma actuação dolosa que não se encontra por qualquer forma evidenciada nos presentes autos, assim inviabilizando a operatividade da cláusula de reversão da mencionada doação.
Este assunto não foi invocado anteriormente, designadamente no recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Évora. Pode assim dizer-se que a questão colocada neste Supremo Tribunal é uma questão nova porque não levantada no tribunal recorrido e, consequentemente, não deverá ser conhecida (5). É que, como se sabe, os recursos visam a reapreciação de questões já submetidas a apreciação no tribunal recorrido e não criar decisões sobre matéria nova (neste sentido vai a jurisprudência unânime deste Supremo Tribunal – entre outros, Acórdão do STJ de 3-2-2004 in www.djsi.pt/jstj.nsf). Nesta conformidade não é lícito, no âmbito do recurso, invocar questões que não tenham sido suscitadas no tribunal a quo e que, por isso, não tenham sido objecto da decisão recorrida. Ao tribunal de recurso, só cabe, pois, apreciar as questões decididas pelo tribunal hierarquicamente inferior. Só assim não será relativamente às questões de conhecimento oficioso, para o conhecimento das quais, o tribunal de recurso tem competência. Além de ser questão nova, a matéria em causa não constitui, obviamente, matéria do conhecimento oficioso, razão por que não poderá este Tribunal pronunciar-se sobre ela.
O recurso improcede in totum.
III- Decisão:
Por tudo o exposto, nega-se a revista, confirmando-se, nos termos expostos, o douto acórdão recorrido.
Sem custas dada a isenção legal da R.
Lisboa, 25 de Junho de 2009
Garcia Calejo (Relator)
Helder Roque
Sebastião Póvoas
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(1) Ficando a obrigação sem prazo, como se assinala no douto acórdão recorrido, a todo o tempo seria legítima a exigência do seu cumprimento ou a fixação de prazo para tal, como decorre do disposto no art. 777º nºs 1 e 2 do C.Civil.
(2) O direito à reversão, com as características inerentes, é que poderá constituir um direito potestativo.
(3) Sem controvérsia, o prazo prescricional aplicável ao caso, seria de 20 anos (prazo ordinário de prescrição), de harmonia com o disposto no art. 309º do C.Civil.
(4) Cujo prazo estava, claramente, completo (art. 302º nº 1 do C.Civil).
(5) Nunca esta questão, da forma como foi colocada nesta instância (em termos de mora do credor), foi sequer delineada nos autos, designadamente na contestação. |