Acordam, precedendo conferência, na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:
I
1. Nos autos de processo comum em referência,
AA – identificado por este nome e como filho de BB e de CC, natural de ..., nascido a ... de 1978, [...] , com residência na Rua ...,
foi condenado, em 1.ª instância (acórdão 22 de Julho de 2003), pela prática de factos consubstanciadores da autoria material de 20 crimes de falsificação de documento, em cúmulo jurídico das correspondentes penas parcelares, na pena única de 6 anos de prisão.
Tal decisão foi confirmada por acórdão, do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11 de Março de 2004 e, tendo sido interposto recurso deste para o Supremo Tribunal de Justiça, veio o mesmo a ser rejeitado, por acórdão de 24 de Novembro de 2004, transitado em julgado.
2. O Ministério Público em 1.ª instância interpõe agora recurso extraordinário de revisão daquele acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, «em prol do arguido».
Extrai da respectiva motivação as seguintes conclusões:
«1º Por Deliberação de 22.07.03, transitada a 13.12.05, foi o arguido, com pretenso nome de "AA" condenado a pena (única) de 6 A de prisão, pelo cometimento de 20 crimes de falsificação, tendo o mesmo estado sob OPHVE, até ao momento do trânsito, altura em que passaria a expiar tal pena, a que se veio, contudo, a eximir, não mais sendo encontrado, razão pela qual veio a ser declarado contumaz, nos presentes autos (cfr Acórdão condenatório e despacho posterior, de 29.10.15, inclusos na certidão anexa).
2º Na sua identificação, "ab initio", e ao longo do processo, mormente durante o Julgamento respectivo, identificou-se, sempre, com aquele nome, consignando que nascera a 1.02.78 (cfr cit. Acórdão, "in" relatório, ao ponto 3).
3º Porém, vem aos autos outro indivíduo, que se arroga com aquela identidade, e sob a mesma filiação, mas asseverando nunca ter sido arguido no âmbito destes autos, nem sujeito, portanto, a medida de coacção daquela natureza, jamais tendo estado presente em Audiência, radicado que está, há mais de 16 anos, no ..., que exibiu o passaporte, suscitando a possibilidade de alguém ter usurpado a sua identidade (fls. 4694 a 4696: cfr. certidão junta).
4º Tal situação adquiriu foros de realidade quando se apurou, nos autos, que vários pedidos de BI para aquele mesmo indivíduo foram formulados, entre 1990 e 2003, com datas de nascimento díspares (1.02.78 e 1.02.70), conforme ofícios da DGRN, a fls. 4279 e 4320, integrantes da mesma certidão.
5º Avisadamente, o Tribunal, a sugestão do MºPº, determinou a realização de perícia dactiloscópica comparativa, no sentido de conhecer se havia coincidência entre as marcas digitais das mãos do requerente (ponto 3º destas motivações) e as constantes dos pedidos de BI, verificando-se tratar-se de impressões produzidas por um só indivíduo, sobre quem não havia registo no sistema automatizado de identificação lofoscópica (base de dados extraída de arguidos), corroborando a tese de inocência do exponente (cfr. relatório pericial, constante da referida certidão: fls. 4866 a 4868).
6º No mesmo âmbito, o LPC assinala que o indivíduo resenhado como AA, nos UIIC/PJ, não tem as mesmas impressões digitais que constam do material submetido a exame, pelo que, científico-tecnicamente não pode ser o genuíno titular dos BIs emitidos, razão pela qual sugeriu a introdução de correcção na ficha biográfica (ainda relatório pericial indicado).
7º Nessa senda foi levantada judicialmente a contumácia, nestes autos, como já haviam sido recolhidos os MDs, firme que ficou a situação de alguém ter atravessado todo o processo (até ao Supremo: fls. 3870 a 3880) com identidade falsa, pessoa que fisicamente, apesar de condenada presencialmente (fls. 3427), sob aquela veste identificativa, nunca voltou a ser localizada, apesar de ter sido acompanhada por Ilustre Advogada!
8º Impõe-se, assim, de forma liminarmente cristalina, rectificar o juízo condenatório enquanto dirigido a AA, dada a demonstração, documental e pericial, da sua não participação na factualidade imputada, seguramente protagonizada, sim, por quem {terceiro, não identificável) esteve durante toda a fase investigatória, de Julgamento e recursória sob identidade clonada, em prejuízo do verdadeiro detentor dessa identificação, por sinal pessoa física essa sempre assessorada por jurista!
C) Meios de prova: (habilitantes de juízo absolutório) - certidão única), contendo:1) Acórdãos da 1ª instância, RLx e STJ; 2) despacho de fls. 4713 a 4715; 3) reqtº de fls. 4694 a 4696; 4)ofs. da DGRN: fls. 4279 e 4320; 5) relatório pericial: fls. 4666 a 4668: e 6)Acta de julgamento: fls. 3427».
3. O Senhor Juiz do Tribunal de 1.ª instância, por despacho de 3 de Abril de 2019, informou, nos termos do disposto no artigo 454.º, do Código de Processo Penal (CPP):
«Nos presentes autos o arguido AA, [...], nascido em .../1978, filho de BB e de CC, natural de ..., residente na Rua..., que se mostrava em situação de obrigação de permanência na habitação, com vigilância electrónica, foi condenado pela prática de um crime de burla agravada, p. e p. pelo artigo 217.º e 218.º, n.º 1, do Código Penal, na pena única de 6 anos de prisão, pela prática de vinte crimes de falsificação,
Tal decisão foi objecto de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa e para o Supremo Tribunal de Justiça, sem que a decisão tenha sido alterada.
Após o trânsito em julgado da decisão o arguido deixou de ser contactável, pelo que foi declarado contumaz, sendo que se apurou, posteriormente que a pessoa que foi julgada e condenada usava abusivamente a identidade do verdadeiro AA
Veio o Ministério Público em benefício do arguido apresentar recurso extraordinário de revisão da decisão alegando que a pessoa que foi condenada, e que esteve presente em julgamento, não é AA.
De harmonia com o disposto no artigo 449.º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Penal “a revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.”
Consideram-se como factos ou meios de prova novos são aqueles que eram ignorados pelo recorrente ao tempo do julgamento e não puderem ser apresentados antes deste. Portanto, não basta que os factos sejam desconhecidos do tribunal, sendo que o arguido só pode indicar novos meios de prova se justificar que ignorava a sua existência ao tempo da decisão ou elas não puderam ser apresentadas (artigo 453º, nº 2, do Código de Processo Penal).
Dispõe o artigo 453°, n° 1, do Código de Processo Penal que “Se o fundamento da revisão for o previsto na alínea d) do nº 1 do artigo 449º, o juiz procede às diligências que considerar indispensáveis para a descoberta da verdade, mandando documentar, por redução a escrito ou por qualquer meio de reprodução integral, as declarações prestadas.”
Os meios de prova e de obtenção de prova novos só podem ser permitidos se eram ignorados pelo recorrente ao tempo do julgamento e não puderem ser apresentados antes deste. A impossibilidade a que a lei se refere é das testemunhas (dos meios de prova) e não do arguido.
Foi determinada a junção de uma certidão de parte dos autos do processo principal.
Mostram-se juntos aos autos de recurso extraordinário certidões do acórdão proferido, bem como dos arestos do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa e do Supremo Tribunal de Justiça, o CRC do processo e os despachos e diligências referentes ao comprovar do facto que AA com a identificação supra não foi a pessoa física que foi presencialmente julgada nestes autos.
Da prova documental resulta que AA não foi julgado e condenado nestes autos, mas que quem o foi é pessoa não concretamente identificada que usurpou a identificação do mesmo, sendo que não existe qualquer dúvida quantos aos factos que essa terceira pessoa cometeu, nem aos ilícitos pelos quais foi condenado, e pelos quais esteve sujeito a medida de coacção.
Assim, entendo que não tendo sido carreados para os autos quaisquer novos meios de prova ou novos factos referentes ao autor do crime, mas sim sobre a sua identificação, e tendo sido já determinado que a condenação em apreço não será averbada a AA, solteiro, pedreiro, nascido em .../1978, filho de BB e de CC, natural de ..., residente na Rua ..., estamos perante uma situação em que há que investigar quem foi a pessoa que esteve presente nestes autos e que aqui foi condenado para que a condenação lhe seja a si averbada e possa cumprir a pena aplicada, mas que o presente pedido de revisão extraordinária não poderá proceder.»
4. O Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
Alega, designadamente:
«7. Mas é claro que a verdadeira questão que aqui cumpre dirimir não é a da novidade dos factos e, ou, das provas, ou a injustiça da condenação, que tudo é pacífico, mas a da propriedade, in casu, do meio processual recurso extraordinário de revisão de que o Exmo. Procurador da República de Almada lançou mão.
Sendo que nestes casos em que alguém é julgado e condenado sob nome falso divisam-se na jurisprudência deste STJ fundamentalmente duas soluções, uma, a desse recurso, outra, a da correcção da sentença nos termos do art.º 380º do CPP.
Dicotomia que, aliás, as posições dos magistrados de 1ª instância reflectem, mas que – diga-se – já foi bem mais marcada do que hoje se apresenta 5.
8. Abreviando considerações, e como antecipado, o signatário é pela solução do recurso de revisão.
Isso com atenção às especificidades do caso e pelas razões de que, v. g., se dá conta no douto AcSTJ de 18.2.2016 - Proc. n.º 87/07.5PFLRS-A.S1 6, tirado em situação similar à presente, que também ali se sabia que alguém se tinha feito passar por outrem e que nessa qualidade tinha sido criminalmente julgado e condenado, e que também ali se ignorava de todo em todo quem tivesse sido tal pessoa.
E em tal circunstância e com manifesto interesse para o caso presente, disse-se nesse aresto o seguinte:
6. Diferentemente do que já se decidiu, noutros processos, a questão do erro de identificação do arguido não pode, no caso em apreço, ser resolvida por via da rectificação da sentença condenatória, a levar a efeito nos termos do artigo 380.º do CPP.
Como se destacou no acórdão de 15/10/2015, proferido no recurso extraordinário de revisão n.º 202/06.6PATMA-A.S1 […], com ampla recensão da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, na matéria,
«Podem detectar-se, na jurisprudência deste Supremo Tribunal, duas correntes: uma, que considera que a verificação de erro na identificação da pessoa condenada, cuja identidade foi assumida por outrem, constitui facto novo ou novo meio de prova, que é fundamento do recurso de revisão; outra, que reduz a questão a uma situação em que se impõe a necessidade de rectificação da sentença condenatória, a levar a efeito nos termos do art. 380.º do CPP. [...]
"Contudo, nos tempos mais recentes, tornou-se claramente dominante a posição jurisprudencial que considera não constituir fundamento de revisão o falseamento da identidade do arguido presente na audiência. Segundo essa posição, se a pessoa julgada é efectivamente o arguido, que se identificou com os elementos de identificação de outra pessoa, há apenas que corrigir os elementos de identificação na sentença, com os consequentes cancelamento e averbamento nos registos criminais do arguido e da terceira pessoa."
Ora, a correcção dos elementos de identificação do arguido passa, necessariamente, pelo conhecimento da identificação da pessoa (física) que foi julgada.
O que, no caso, se ignora.
Não se vendo, por outro lado, como razoavelmente adequada e frutífera a realização, no processo, de diligências com vista a apurar a verdadeira identidade do arguido.
7. Por isso mesmo, no caso em apreço, o recurso extraordinário de revisão apresenta-se como o meio processual adequado a corrigir o fortemente indiciado erro na identificação do arguido condenado, no quadro dos respectivos pressupostos.
8. A decisão de autorização de revisão tem como primeira consequência o reenvio do processo para realização de novo julgamento (artigo 457.º, n.º 1, do CPP).
Ora, no caso, o "novo julgamento" terá de ser o julgamento de AA. pois as graves dúvidas da justiça da condenação recaem, precisamente, sobre ser ele o autor dos factos objecto de condenação.
Por outro lado, com o "novo julgamento" não será afrontado o princípio non bis in idem, consagrado no n.º 5 do artigo 29.º da Constituição ["Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime"] na medida em que tudo indica que não foi AA. a pessoa física submetida ao anterior julgamento.
Claro que o "novo" julgamento da pessoa que não foi arguido no processo e não foi condenada passa por conceber um "novo" julgamento de quem, realmente, não foi submetido a julgamento e só numa pura ficção (simulando-se que quem foi julgado no processo foi a pessoa de cujos elementos de identificação a pessoa efectivamente julgada se serviu para se identificar, falsamente) poderia assentar.
O que, ademais, implica o julgamento de uma pessoa relativamente à qual há fortes indícios de não ter praticado o crime.
9. No entanto, dado o particular circunstancialismo do caso, não se encontra outra via que não seja o recurso de revisão para repor a justiça.
Na situação, em que não é previsível que venha a ser feita a prova da verdadeira identidade do condenado não se mostra viável a correcção oficiosa da sentença, nos termos do artigo 380.º [...]».
E também a lição do Acórdão de 28.1.2004 - Proc. n.° 03P3557 8 pode ser de grande utilidade para a presente discussão:
Não obstante alguma aparente simplicidade, e a imposição de remédio pronto para a regularidade da vida dos sujeitos contingentemente implicados, a solução processual para os casos em que existem dúvidas sobre a identidade de uma pessoa a que se refere uma decisão condenatória, tem sido objecto de diversa pronúncia por parte deste Supremo Tribunal. Em alguns casos, tem decidido que a verificação posterior de erro na identificação da pessoa condenada, que tomou a identidade de outrem, constitui um facto novo, ou novos meios de prova, que fundamenta o recurso de revisão.
Diversamente, pelo menos na aparência das coisas e numa tendência mais recente, a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem optado por uma solução que faz reverter a questão a uma mera situação em que se impõe a necessidade de rectificação e correcção da sentença, nos termos que são permitidos pelo artigo 380° do Código de Processo Penal. [...]
A questão sob apreciação não poderá, porém, ter uma solução unitária, dependendo das circunstâncias de cada caso, e do nível de definição ou de indeterminação dos elementos essenciais que estejam em causa, relativos à identificação da pessoa julgada e condenada. [...]
No essencial, importa determinar se a dúvida, divergência ou incompletude de identificação se refere exclusivamente ao sujeito ou também ao julgamento; dito de outro modo, devem ser relevantes os termos e o modo em que a situação vem exposta e o recurso de revisão motivado e fundamentado. Nesta perspectiva, a dúvida refere-se - apenas - ao sujeito quando as incorrecções ou a incompletude dos elementos sobre a identidade não possibilitem a execução da sentença, sem estar em causa outra pessoa, com a consequente possibilidade, probabilidade ou risco de confusão ou confundibilidade de posições ou papéis processuais. Em tais casos, por não estar em causa um elemento essencial, será de efectuar a correcção (material) da sentença, nos termos permitidos pelo artigo 380º, nº 1, alínea b), do CPP: erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.
No caso, porém, de não estar em causa apenas um erro de identificação, mas uma sobreposição ou mesmo usurpação de identidade, a perspectiva não é já inteiramente simétrica. Na verdade, em tais circunstâncias, estão, ou podem estar, em causa dois sujeitos; nesta medida, quando A invoca que nada teve a ver com uma infracção, dado que B se terá identificado no processo com elementos respeitantes á sua identidade, este dado ou facto não constitui apenas um problema de identificação, mas também de conteúdo de julgamento, pois importa dizer, na reposição da correspondência da realidade com o processo, que não foi A quem praticou a infracção que está em causa. O expediente processual de correcção, que pressupõe uma averiguação, rápida, simples e incidental, não se conforma com uma mera eliminação; a correcção só será possível quando se possa fazer constar que a pessoa condenada foi B, com a sua verdadeira identidade, e não que não foi A, deixando vazio o lugar de identidade do arguido: uma sentença não pode ter lugares vazios, não se compadecendo a correcção material com um non liguei [...].
[A] reposição da correspondência entre a realidade e o processo, com vem indiciada pelos novos factos, impõe uma nova decisão que diga, após a adequada prova, que o referido indivíduo não cometeu a infracção a que a sua identidade ficou processualmente ligada.»
9. Ora, a eloquência dos trechos acabados de transcrever e a sua acomodabilidade ao caso praticamente que dispensam considerações adicionais.
Na verdade, aqui, tal como ali, não está apenas em causa corrigir na sentença a identificação do verdadeiro condenado, até porque esta é desconhecida e não é possível averiguá-la no processo com a celeridade que o incidente previsto no art.º 380º do CPP supõe.
De resto, o que verdadeiramente releva não é uma questão de simples correcção de elementos de identificação mas, como se diz no Acórdão de 28.1.2004, de conteúdo de julgamento, por isso que exigindo a justiça do caso «nova decisão que diga, após a adequada prova, que» o dito Joel Francisco não foi ao autor dos factos criminosos que a Acórdão Recorrido associa à sua pessoa.
O que, tudo, aponta para propriedade e procedência do recurso, e consequente autorização da revisão.
10. Desfecho por que, em conclusão e considerando todo o exposto, o Ministério Público se pronuncia.»
II
5. O Ministério Público, recorrente, reporta o pedido de revisão do acórdão condenatório à pretextada verificação dos fundamentos previstos na alínea d) do n.º 1 do artigo 449.º, do CPP.
Alega, em síntese, que a pessoa física que foi julgada e condenada nos autos fez sua a identidade de terceiro, como adrede se veio a comprovar por via de prova documental e pericial.
6. Resulta dos autos:
(i) o arguido (com a identificação transcrita acima, § 1), foi condenado, com trânsito em julgado, pela prática de factos consubstanciadores da autoria material de 12 crimes de falsificação de documento, cada um p. e p. nos termos do disposto no artigo 256.º n.º 1 alínea c), do CP, nas penas de 10 meses de prisão por cada um dos crimes e, mais, pela prática de factos consubstanciadores da autoria material de 8 crimes de falsificação de documento, cada um p. e p. nos termos do disposto no artigo 256.º n.os 1 alínea a) e 3, do CP, nas penas de 18 meses de prisão por cada um dos ilícitos e, em cúmulo jurídico de tais penas parcelares, na pena única de 6 anos de prisão;
(ii) após o trânsito em julgado daquela decisão, o arguido deixou de ser contactável, por isso que veio a ser declarado contumaz;
(iii) na identificação apresentada ao longo do processo, designadamente em sede de audiência de julgamento, o arguido identificou-se, sempre, com o nome e credenciação referidos acima;
(iv) posteriormente, vem aos autos indivíduo outro, exibindo aquela identidade, sob a mesma filiação, asseverando nunca ter sido arguido no âmbito destes autos, não tendo estado presente na audiência, radicado que está, há mais de 16 anos, no Reino Unido,
(v) indivíduo que exibiu o passaporte, suscitando a possibilidade de alguém ter usurpado a sua identidade;
(vi) em sequência apurou-se, nos autos, que, entre 1990 e 2003, foram formulados vários pedidos de bilhete de identidade para aquele mesmo indivíduo, com datas de nascimento díspares (1 de Fevereiro de 1978 e 1 de Fevereiro de 1970);
(vii) determinou-se a realização de perícia dactiloscópica comparativa, no sentido de conhecer se havia coincidência entre as marcas digitais das mãos do requerente e as constantes dos pedidos de BI, verificando-se tratar-se de impressões produzidas por um só indivíduo, sobre quem não havia registo no sistema automatizado de identificação lofoscópica (base de dados extraída de arguidos);
(viii) no mesmo âmbito, o Laboratório de Polícia Científica assinala que o indivíduo resenhado como AA, nos UIIC/PJ, não tem as mesmas impressões digitais que constam do material submetido a exame, concluindo-se que, científico-tecnicamente, não pode ser o genuíno titular dos bilhetes de identidade emitidos, vindo a corrigir-se a ficha biográfica;
(ix) foram recolhidos os mandados de detenção e foi levantada a contumácia, nestes autos,
(x) em conformidade com estes dados, sedimentou-se a verificação de alguém ter atravessado todo o processo com identidade falsa;
(xi) pessoa que, fisicamente, apesar de condenada presencialmente, sob aquela veste identificativa, nunca voltou a ser localizada.
7. Nos termos do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 449.º, do CPP, a revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando (d) se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.
8. Resulta desde logo da literalidade da citada alínea d) do n.º 1 do artigo 449.º, do CPP, que, ao abrigo de tal segmento normativo, a revisão (extraordinária) só pode ser concedida se e quando se demonstre que, posteriormente à decisão revidenda, se descobriram factos ou meios de prova novos, vale dizer, outros, que aquela decisão tenha deixado por apreciar.
9. Estão em causa situações e contextos excepcionais, em que o princípio da imutabilidade do caso julgado material não pode deixar de ceder perante a necessidade superior de assegurar o triunfo da justiça.
Como assinalava o Professor Alberto dos Reis (no «Código de Processo Civil, Anotado», Volume V, Coimbra Editora, 1981, pág. 158), «estes recursos pressupõem que o caso julgado se formou em condições anormais, que ocorreram circunstâncias patológicas susceptíveis de produzir injustiça clamorosa. O recurso extraordinário visa eliminar o escândalo dessa injustiça. Quer dizer, ao interesse da segurança e da certeza sobrepõe-se o interesse da justiça.»
10. No caso, indivíduo cuja identidade e paradeiro se desconhecem, fazendo uso da identidade de terceiro, deu-se ao processo e ao julgamento, desaparecendo depois, perante a condenação em pena de prisão, vindo a descortinar-se, posteriormente ao julgamento e ao trânsito da decisão, que esse terceiro, cujo nome foi usado pelo usurpador, nada tem a ver com o labéu condenatório que atingiu o seu nome.
11. Estamos perante factos ou meios de prova novos, e de meios de obtenção de prova novos, no sentido de que eram desconhecidos pelo Tribunal, mesmo pelo recorrente, ao tempo da audiência de julgamento, não podendo por isso ser levados a juízo e ponderados na decisão, factos que lançam graves dúvidas sobre a justiça da condenação.
12. Não pode deixar de reconhecer-se como facto novo o sobreveniente conhecimento de que a pessoa que foi acusada, julgada e condenada sob o nome de AA não ser o cidadão detentor desse nome, mas sim indivíduo outro, que se fez passar por aquele, de identidade (ainda) ignorada, o que resulta sedimentado pelos meios de prova, documentais e periciais, entretanto recolhidos, havendo ainda de conceder-se a flagrante e grave injustiça da condenação levada sobre esse terceiro, que, comprovadamente, não praticou os factos delitivos em referência.
13. Figurando-se pacíficas, no caso, tal assertiva e conclusão, importa dilucidar se o recurso extraordinário de revisão trazido pelo Ministério Público configura o meio processual adequado à pretendida reposição da justiça, ou antes se a decisão condenatória deve ser objecto de correcção, nos termos e âmbito do disposto no artigo 380.º, do CPP.
14. É conhecida a dissensão jurisprudencial a tal respeito – de que ademais se dá proficiente nota no douto parecer que precede.
15. Para referenciar apenas os acórdãos, do Supremo Tribunal de Justiça que, na tese do Senhor Juiz de 1.ª instância, mais recentemente e em situações próximas daquela que vem traduzida nos presentes autos, decidiram que não há lugar a revisão da sentença penal, mas antes que, feita a prova da verdadeira identidade do condenado, deve ser levada, oficiosamente, a correcção da decisão, nos termos previstos no artigo 380.º, do CPP, podem ver-se os acórdãos de 17 de Novembro de 2016 (processo506/11.6PULSB-A.S1), de 10 de Dezembro de 2015 (processo 1863/08.7GLSNT-A.S1), e de 15 de Outubro de 2015 (processo 202/06.6PAMTA-A.S1), disponíveis, como os mais citandos, em www.dgsi.pt.
16. Já no sentido de que a revisão deve ser autorizada, com reenvio do processo ao Tribunal de 1.ª instância, para novo julgamento, podem ver-se os acórdãos, também do Supremo Tribunal de Justiça, de 8 de Junho de 2017 (processo 45/08.2GGLSB-A.L1.S1), de 11 de Maio de 2017 (processo 88/11.9PAPTM-A.S1), de 4 de Janeiro de 2017 (processo 1100/11.7PGALM-A.S1), de 18 de Fevereiro de 2016 (processo 87/07.5PFLRS-A.S1) e de 2 de Dezembro de 2015 (processo 12/11.9PEMAI-A.S1).
17. Figura-se, como nos acórdãos levados neste último sentido, que a revisão é de autorizar.
18. E assim, decisivamente, na medida em que, no caso, não estamos perante um mero erro ou lapso de identificação, designadamente de uma incorrecção ou incompletude dos elementos sobre a identidade de determinado cidadão, mas sim perante uma usurpação de identidade.
19. Como se aduz no acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça, de 28 de Janeiro de 2004 (processo 03P3557),
«No caso, porém, de não estar em causa apenas um erro de identificação, mas uma sobreposição ou mesmo usurpação de identidade, a perspectiva não é já inteiramente simétrica. Na verdade, em tais circunstâncias, estão, ou podem estar, em causa dois sujeitos; nesta medida, quando A invoca que nada teve a ver com uma infracção, dado que B se terá identificado no processo com elementos respeitantes á sua identidade, este dado ou facto não constitui apenas um problema de identificação, mas também de conteúdo de julgamento, pois importa dizer, na reposição da correspondência da realidade com o processo, que não foi A quem praticou a infracção que está em causa. O expediente processual de correcção, que pressupõe uma averiguação, rápida, simples e incidental, não se conforma com uma mera eliminação; a correcção só será possível quando se possa fazer constar que a pessoa condenada foi B, com a sua verdadeira identidade, e não que não foi A, deixando vazio o lugar de identidade do arguido: uma sentença não pode ter lugares vazios, não se compadecendo a correcção material com um non liguet [...]».
20. Como ademais se sublinha neste acórdão, a «reposição da correspondência entre a realidade e o processo, que vem indiciada pelos novos factos, impõe uma nova decisão que diga, após a adequada prova, que o referido indivíduo não cometeu a infracção a que a sua identidade ficou processualmente ligada».
21. A correcção dos elementos de identificação do arguido passa, necessariamente, pelo conhecimento da identidade da pessoa (física) que foi julgada, identidade que, no caso, se ignora, não se vendo razoabilidade (face às dificuldades já manifestadas pelo Ministério Público) na realização, no processo, de quaisquer diligências outras, no sentido de apurar a verdadeira identidade do arguido.
22. Assim, no caso, o recurso extraordinário de revisão há-de ter-se como o meio processual adequado a reparar o erro (fortemente indiciado, em momento superveniente relativamente ao da condenação) na identificação do arguido condenado, e mesmo de garantir adequada reparação ao cidadão cuja identidade foi usurpada, seja por via da imputação ao usurpador do crime p. e p. nos termos do disposto no artigo 359.º n.os 1 e 2, do CP, seja mesmo por via de pedido de indemnização civil, no âmbito do disposto no artigo 72.º, do CPP.
23. Nos termos prevenidos no n.º 1 do artigo 457.º, do CPP, a primeira consequência da autorização da revisão é o reenvio do processo para a realização de novo julgamento eu, no caso, só pode ser o julgamento de AA, na medida em que as graves dúvidas sobre a justiça da condenação recaem, precisamente, sobre a questão de saber se foi ele o autos dos factos delitivos acusados e objecto de condenação.
24. E assim, sem afronta do princípio non bis in idem (ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime), consagrado no artigo 29.º n.º 5, da Constituição, posto que tudo indica que não foi aquela a pessoa física submetida ao anterior julgamento.
25. Por isso que, face à inviabilidade da correcção do deciso, a não autorização da revisão traduzir-se-ia na perenidade de um caso da mais evidente injustiça.
26. Termos em que o recurso deve lograr provimento.
27. Não cabe tributação, desde logo em face da procedência do recurso, também por delas estar isento o recorrente.
III
28. Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se:
(a) autorizar a revisão, reenviando-se o processo para novo julgamento, nos termos do disposto nos artigos 457.º e 459.º e ss., do CPP;
(b) não caber tributação.
Lisboa,