Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
334/10.6JAPRT-A.C1-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: NUNO GONÇALVES
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
IDENTIDADE DE FACTOS
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 03/16/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência tem caráter essencialmente normativo, destinando-se a fixar critérios interpretativos uniformes com a finalidade de garantir a unidade do ordenamento jurídico e, com isso, os princípios de segurança, da previsibilidade das decisões judiciais e a igualdade dos cidadãos perante a lei.

II - Pressuposto nuclear é que os julgados, tendo por objeto núcleo factual similar ou equivalente, se contrariem ou colidam entre si, na decisão da mesma questão fundamental de direito.

III - Trata-se apenas de verificar, partindo de factualidades idênticas, se a posição tomada no acórdão recorrido, quanto a certa questão de direito, seria a que o mesmo julgador tomaria, se tivesse que decidir, aplicando o mesmo regime jurídico, essa questão, no acórdão fundamento, e vice-versa.

IV - Não havendo identidade ou equivalência da situação de facto, a solução dada à questão jurídica – tratada na fundamentação dos dois acórdãos -, haveria de ser, naturalmente, diversa.

V - Contudo, a diferente interpretação do mesmo instituto jurídico na fundamentação não é suficiente para legitimar a admissão da fixação de jurisprudência. 

Decisão Texto Integral:

O Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção criminal, em conferência, acorda:

A - RELATÓRIO:

1. o recurso:

No processo em epigrafe foi julgado o arguido: ------------------

- AA, com os demais sinais dos autos, --

e, por sentença de 16.10.12, transitada em julgado, condenado em cúmulo jurídico, na pena única de 3 anos de prisão, por ter cometido, em concurso efetivo, um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 145.º, n.ºs 1, al. a) e 2, por referência aos arts. 143.º, n.º 1 e 132.º, n.º 2, al. h), todos do Código Penal e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1, al. c) com referência aos arts. 2.º, n.º1, al.f), 3.º, n.º 4, al. a) e 6.º, todos da Lei n.º 5/06, de 23/05.

O Tribunal decretou a suspensão da execução daquela pena de prisão, condicionada ao pagamento, pelo arguido, da indemnização de € 4.500,00 arbitrada ao lesado, à razão de 1.500,00 euros por ano, acrescida de juros de mora vencidos.

O condenado, por requerimento apresentado nos autos em 30.09.2020, invocou a prescrição da pena suspensa, alegando que é autónoma (relativamente à pena principal), pelo que o prazo de prescrição é o previsto na al. d) do n.º 1 do art. 122.º do CP (quatro anos), o qual teria decorrido.

O Tribunal de 1ª instância, por despacho de 21.10.2020, entendendo que o prazo da prescrição aplicável no caso é o da pena de prisão imposta ao arguido, indeferiu a invocada prescrição.

O arguido, inconformado, impugnou aquele despacho recorrendo para a 2ª instância

O Tribunal da Relação ..., por acórdão de 26 de maio de 2021, notificado ao Ministério Publico em 27.05.2021, que vem certificado como transitado em julgado em 11/06/2021, negou provimento ao recurso, assim confirmando o despacho recorrido.

O Procurador da República junto daquela Relação, invocando o disposto no artigo 437.º n.ºs 2 e 4 do Código de Processo Penal (CPP), por requerimento apresentado em 7.07.2021, interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.

Conclui a argumentação com as seguintes conclusões:

1. No processo comum singular n° 334/10...., do Tribunal da Relação ..., por acórdão datado de 26/05/2021, foi decidido que as penas de prisão suspensas não têm um prazo de prescrição autónomo do da pena originária, não lhes sendo aplicável o disposto no art.° 122°, n° 1, al. d), do C. Penal.

2. No processo n° 2062/02.7PBBRG.G1, do Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão proferido a 26/02/2020, debruçando-se sobre a mesma questão jurídica reportada a igual factualidade, consagrou-se solução oposta, ou seja, que o prazo prescricional da suspensão da execução da pena é autónomo do prazo de prescrição da pena principal substituída, concretamente de 4 anos, conforme previsto na al. d) do n° 1 do artº 122° do C. Penal.

3. Estes entendimentos divergentes implicam que penas de prisão de igual medida suspensas na sua execução tenham prazos de prescrição diversos.

4. Ambos os acórdãos transitaram em julgado e não são susceptíveis de recurso ordinário.

5. Deste modo, impõe-se esclarecer, fixando jurisprudência, se as penas de prisão cuja execução foi suspensa têm ou não um prazo de prescrição autónomo do da pena originária, concretamente se o prazo de prescrição que lhes corresponde é o de 4 anos previsto na al. d) do art. 122° do C. Penal ou o prazo da pena principal substituída.

Juntou cópia do acórdão invocado como fundamento.

B) - Subsequentemente se fixe Jurisprudência sobre aquela concreta questão de Direito, no sentido que vem de propor-se.

2. resposta:

O arguido, através do seu Defensor, respondeu defendendo a admissão do recurso, com o prosseguimento para fixação de jurisprudência.

Argumenta (em síntese) que os dois acórdãos apreciaram a “mesmíssima questão de direito, que mereceu julgamentos opostos, tendo existido uma diferente interpretação e aplicação das mesmíssimas normas jurídicas, conducente à resolução da mesmíssima questão em sentidos divergentes – num caso, como no outro, verifica-se identidade da situação de facto e apenas variabilidade quanto ao modo como tal situação de facto foi tratada juridicamente”.

3. parecer do Ministério Público:

O Digno Procurador-Geral Adjunto no Supremo Tribunal de Justiça, pronuncia-se pela admissão da fixação de jurisprudência, com o consequente prosseguimento do recurso – art. 441º, n º1 do CPP – argumentando (em síntese) que em ambas as situações o arguido foi condenado em pena de prisão, com execução suspensa; que não foi revogada. A questão de direito constituiu em ambas as decisões o objecto dos respectivo recurso e foi decidida, no domínio da mesma legislação, de maneira oposta.

O acórdão recorrido, à questão de saber se à pena de prisão cuja execução foi suspensa, independentemente da medida concreta da pena principal, é aplicável o prazo de prescrição de 4 anos, previsto nº 1 alínea d) do artº 122º do Código Penal, respondeu negativamente. Entendeu que não é de aplicar o disposto na referida alínea d) – prazo de 4 anos – à pena de substituição da pena de prisão com execução suspensa.

O acórdão fundamento, respondeu à mesma questão no sentido de que a pena de prisão com execução suspensa é autónoma, independentemente da medida concreta da pena principal, sendo-lhe aplicável o prazo de prescrição de 4 anos, previsto nº 1 alínea d) do artº 122º do Código Penal.

«»

Dispensados os vistos, o processo foi à conferência.

Cumpre verificar da admissibilidade e regime do recurso, da existência de oposição entre os julgados –art. 440º n.º 3 do CPP -, e decidir.


B - FUNDAMENTAÇÃO:

1. o direito:

a) pressupostos:

O artigo 437.º do CPP, estabelece os “fundamentos do recurso” extraordinário para fixação de jurisprudência, dispondo:

1. Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.

2. É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

3. Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.

4. Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.

5. O recurso previsto nos n.os 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.

São, assim, pressupostos substantivos deste recurso extraordinário:

(i) dois acórdãos do STJ tirados em processos diferentes;

(ii) ou um acórdão da Relação que não admite recurso ordinário e que não tenha decidido contra jurisprudência fixada e outro anterior de tribunal da mesma hierarquia ou do STJ;

(iii) proferidos no domínio da mesma legislação;

(iv) assentes em soluções opostas relativamente à mesma questão de direito.

Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, os requisitos materiais ocorrem quando:

- as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito;

- as decisões em oposição sejam expressas;

- as situações de facto e o respetivo enquadramento jurídico sejam idênticos em ambas as decisões[1].

A contradição das decisões definitivas (transitadas em julgado) tem de ser efetiva e explícita, não apenas tácita.

Os julgados contraditórios têm de incidir sobre a mesma questão de direito. Isto é, a mesma norma ou segmento normativo foi aplicada/o com sentidos opostos a situações fácticas iguais ou equivalentes.

Entende-se que assim sucede quando, nos acórdãos, foi decidida a mesma matéria de direito, “ou quando esta matéria constar de fundamentos que condicionam, de forma essencial e determinante, a decisão proferida[2].

Têm de aplicar a mesma legislação, o que sucede sempre que, entre os momentos do seu proferimento, não se tenha verificado qualquer modificação legislativa com relevância para a resolução da questão de direito apreciada. Esta identidade mantém-se ainda que não seja o mesmo o diploma legal do qual consta a legislação aplicada[3].

E julgar situações de facto idênticas. Mesmo que a diferença factual de ambos os processos, a do acórdão recorrido e a do acórdão fundamento, seja inelutável por dizer respeito a acontecimentos históricos diversos, terá que se tratar de diferenças factuais inócuas que nada interfiram com o aspeto jurídico do caso[4].

E o artigo 438º (interposição e efeito) do CPP estabelecendo os requisitos de forma, dispõe:

1. O recurso para fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.

2. No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência.

São, assim, pressupostos formais[5]:

(i) a legitimidade do recorrente;

(ii) a tempestividade do recurso (interposição no prazo de 30 dias após o trânsito em julgado do acórdão recorrido);

(iii) o trânsito em julgado dos acórdãos conflituantes;

(iv) a invocação, e junção de cópia, do acórdão fundamento;

(v) inexistência de jurisprudência fixada sobre a mesma questão de direito;

(vi) justificação, de facto e de direito, do conflito de jurisprudência.

Exigia-se ainda que o recorrente propusesse o sentido da jurisprudência a fixar –cfr.  Assento n.º 9/2000, de 30 de Março de 2000, publicado no Diário da República, I Série - A, de 27.05.2000. Exigência que foi eliminada pela jurisprudência fixada no Acórdão (AUJ) n.º 5/2006, de 20 de Abril de 2006, publicado no Diário da República, I Série-A, de 6.06.2006, no qual, reexaminando e reputando ultrapassada a jurisprudência daquele Assento, estabeleceu-se:

No requerimento de interposição do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência (artigo 437.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), o recorrente, ao pedir a resolução do conflito (artigo 445.º, n.º 1), não tem de indicar «o sentido em que deve fixar-se jurisprudência» (artigo 442.º, n.º 2).

Assim, nesta fase do presente recurso, o recorrente não tinha de indicar o sentido da jurisprudência a fixar.

b) finalidade:

A finalidade da uniformização da jurisprudência não é prioritariamente dirigida à justiça do caso concreto, mas sim ao objetivo latitudinário de evitar a propagação do erro de direito judiciário pela ordem jurídica[6]. Visa a uniformização da resposta jurisprudencial, contribuindo para uma interpretação e aplicação uniformes do direito pelos tribunais, a igualdade, a certeza e a segurança jurídica no momento de aplicar o mesmo direito a situações da vida que são idênticas.

Trata-se de um recurso de carácter normativo destinado unicamente a fixar critérios interpretativos uniformes com a finalidade de garantir a unidade do ordenamento penal e, com isso, os princípios de segurança, da previsibilidade das decisões judiciais e a igualdade dos cidadãos perante a lei.

Não está em causa a reapreciação da bondade da decisão (da aplicação do direito ao caso) proferida no acórdão recorrido (já transitado em julgado). Trata-se apenas de verificar, partindo evidentemente de uma factualidade equivalente, se a posição tomada no acórdão recorrido, quanto a certa questão de direito, seria a que o mesmo julgador tomaria, se tivesse que decidir no mesmo momento essa questão, no acórdão fundamento, e vice-versa. 

Por outro lado, como se assinala no Acórdão de 19/04/2017[7] deste Supremo Tribunal: “o recurso para fixação de jurisprudência é um recurso excecional, com tramitação especial e autónoma, tendo como objetivo primordial a estabilização e a uniformização da jurisprudência, eliminando o conflito originado por duas decisões contrapostas a propósito da mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação.

Do carácter excecional deste recurso extraordinário decorre necessariamente um grau de exigência na apreciação da respetiva admissibilidade, compatível com tal incomum forma de impugnação, em ordem a evitar a vulgarização, a banalização dos recursos extraordinários”, obstando a que possa transformar-se em mais um recurso ordinário, contra decisões transitadas em julgado.

Exigência que se repercute com intensidade especial na verificação dos dois pressupostos nucleares: a oposição dos julgados; e a identidade das questões decididas. Entendendo-se que são insuscetíveis de «adaptação», que poderia pôr em causa interesses protegidos pelo caso julgado, fora das situações expressamente previstas na lei[8].

Mas também se repercute na constatação dos demais pressupostos substantivos e bem assim dos requisitos formais.

Como se referiu e é entendimento jurisprudencial uniforme[9], a oposição, expressa, tem de aferir-se pelo julgado e não pelos fundamentos em que assentou a decisão.

E a questão de direito só será a mesma se houver identidade das situações de facto contemplados nas duas decisões[10].

c) no caso:

Vejamos se no vertente recurso estão preenchidos os pressupostos para que possa ser concedida a pretendida fixação de jurisprudência:

i. quanto aos pressupostos formais:

Da legitimidade: ao Ministério Público, recorrente nestes autos, não só assiste o direito de apresentar os recursos legalmente admitidos, como está mesmo obrigado, por força de lei, a interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência –art. 437º n.º 5 do CPP.

Inexistência de AUJ sobre a questão de direito em causa: o Supremo Tribunal de Justiça não tem jurisprudência fixada sobre se a pena suspensa tem um prazo próprio de prescrição e, se assim for, que prazo das alíneas do art.º 122º n.º 1 do Código Penal se aplica.

Acórdão transitado: o acórdão recorrido, datado de 26.05.2021, foi tirado pelo Tribunal da Relação ... em recurso, no qual o arguido impugnou despacho de Juiz de 1ª instância que lhe indeferiu a arguição da prescrição da pena suspensa que lhe fora aplicada no processo.

Não admitia recurso ordinário conforme resulta do disposto nos arts.432º n.º 1 al.ª b) e 400º n.º 1 al.ª c), ambos do CPP.

Podia ser visado com a arguição de nulidades, admitia pedido de correção de erros, lapsos, obscuridades ou ambiguidades que não importassem modificação essencial da decisão de harmonia com o estabelecido nos arts 379º n.º 2 e 380.º, n.º 1, al.ª b) aplicável por força do art. 425.º, n.º 4, todos do CPP.

Não prescrevendo a lei prazo especial para o pedido de correção a que alude a norma do art. 380º citado, vem a jurisprudência deste Supremo Tribunal entendendo que o prazo para tal efeito é de 10 dias, conforme prevê o art. 105.º, n.° 1 do CPP, contados da data da notificação ao sujeito processual interessado.

É também de 10 dias o prazo para interpor recurso para o Tribunal Constitucional – art. 75º n.º 1 da Lei n.º 28/82 de 15 de novembro.

Não tendo sido visado com tais procedimentos, relativamente ao Ministério Público, porque lhe foi pessoalmente notificado em 27 de maio de 2021, tornou-se definitivo em 7 de junho seguinte (porque dia 6 foi um domingo).

Prazo: verifica-se que o recurso foi interposto em 7.07.2021, portanto, no 30º dia posterior ao trânsito em julgado quanto ao Ministério Público e, assim, dentro do prazo legalmente estabelecido (que é de 30 dias contados daquele efeito juridico –art. 438º n.º 1 do CPP).

 Acórdão fundamento: o recorrente alega que o decido no acórdão recorrido está em oposição com o dispositivo do acórdão fundamento, proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães. em 26.02.2020, tirado no processo n.º 2062/02.7PBBRG.G1, que afirma ter transitado em julgado em 5.06.2020. Juntou cópia. Não foi indicada nem se encontrou publicação nos sites oficiais da justiça.

Motivação: O requerimento de interposição de recurso inclui motivação, na qual se expõem as razões de facto e de direito que, no entendimento do recorrente, demonstram a contradição do julgado no acórdão recorrido com o decidido no acórdão fundamento.

No caso estão, pois, reunidos os pressupostos formais para a admissão do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.

ii. quanto aos pressupostos substanciais:

Vejamos se o mesmo sucede com os pressupostos substantivos.

Dois acórdãos de diferentes tribunais superiores: O recorrente, ademais de identificar, naturalmente, o acórdão recorrido, proferido pelo Tribunal da Relação ... no processo em epígrafe, fundamenta a sua pretensão num acórdão anterior proferido pela Relação de Guimarães no processo n.º 2062/02.7PBBRG.G1.

Definiu a questão jurídica que pretende ver uniformizada, consistente no seguinte: se a pena suspensa tem, ou não tem, um prazo de prescrição autónomo, concretamente se o prazo de prescrição que lhes corresponde é o de 4 anos previsto na al. d) do art. 122° do C. Penal ou o prazo da pena de prisão que substituí.

No domínio da mesma legislação: a norma que o recorrente convoca para amparar a pretensão uniformizadora – o artigo 122.º n.º 1 alínea d) do Código Penal -, não sofreu alteração no período temporal sobre que incidiram os acórdãos fundamento e recorrido.

Idêntica da questão jurídica: exige-se que a questão jurídica nuclear apreciada e decidida nos dois acórdãos conflituantes tenha a mesma incidência fáctico-normativa.

Similitude ou equivalência da factualidade: ao pressuposto da identidade da questão jurídica, a jurisprudência deste Supremo Tribunal aditou a identidade da questão de facto, entendida esta, “não como uma identidade absoluta entre dois acontecimentos históricos mas que eles se equivalham para efeitos de subsunção jurídica a ponto de se poder dizer que, pese embora a solução jurídica encontrada num dos processos assente numa factualidade que não coincide exatamente com a do outro processo, esta solução jurídica continuaria a impor-se para o subscritor mesmo que a factualidade fosse a do outro processo”[11].

Como sustenta Baptista Machado, não é possível determinar a existência de um conflito de decisões sem uma referência bipolar, simultânea, às questões de direito e às situações da vida[12].

Efetivamente, salienta a jurisprudência, não pode haver oposição ou contradição entre dois acórdãos, relativamente à mesma questão fundamental de direito, quando são diversos os pressupostos de facto em que assentaram as respetivas decisões.

Identidade que pressupõe circunstancialismo fáctico e/ou processual essencialmente idêntico ou equivalente do ponto de vista dos seus efeitos jurídicos, não sendo defensável a exigência da mesmidade, de uma identidade fáctica absoluta. Os acontecimentos da vida humana, influenciados como são pelas condições internas e exógenas, mesmo que repetidos na mesma cena, logo que tenham atores diferentes apresentam inelutavelmente diferenças factuais. Diferenças que muitas vezes não interferem com a identidade do aspeto jurídico dos casos. Interessa, mas é também suficiente que a situação fáctica se apresente com contornos equivalentes, para o que releva no desencadeamento da aplicação das mesmas normas[13].

Oposição de julgados: exige-se que as decisões em oposição, tiradas no domínio de vigência da mesma legislação, sejam expressas e, tendo por objeto núcleo factual similar ou equivalente, se contrariem ou colidam entre si, na decisão sobre a mesma questão fundamental de direito.

Oposição que tem de ser expressa, sendo irrelevante a divergência da fundamentação.

d) não oposição de julgados:

Sendo aqueles os parâmetros da admissão da uniformização de jurisprudência, impõe-se colocar lado a lado os dois arestos, para ajuizar da mesmidade – ou não - da situação de facto e da oposição da decisão relativamente àquela concreta questão de direito.

i. as questões fácticas:

No acórdão indicado como fundamento, do Tribunal da Relação de Guimarães, a situação de facto é a seguinte: ----------

O arguido naquele processo, por acórdão do tribunal de 1ª instância, transitado em julgado em 4.11.2008, foi condenado, em cúmulo jurídico, na pena de 5 anos de prisão com execução suspensa por igual período de tempo.

Decorreu aquele período de tempo sem que a suspensão da execução da pena tenha sido prorrogada e sem que tenha sido revogada.

A decisão sobre a extinção ou revogação ficou a aguardar pelo resultado de outro processo a correr termos contra o arguido, onde “está acusado de ter cometido crimes semelhantes durante o período de suspensão da pena, o que pode ser fundamento da revogação da suspensão (art° 56°, n° 1, al. b) do CP), determinando-se o cumprimento da pena principal de prisão.

O Juiz de 1ª instância, por despacho, decidiu “declarar extinta, por prescrição, a pena de suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido nestes autos”.

O Ministério Público recorreu para a Relação. Que, pelo acórdão indicado como fundamento, negou “provimento ao recurso (…), confirmando o despacho recorrido.

Motivando o assim decidido esclarece-se aí: ------------------

No caso em análise, o acórdão condenatório transitou em julgado a 4 de Novembro de 2008. O prazo de prescrição iniciou-se nessa data (art 122, n.º 2) e nessa mesma data foi logo interrompido uma vez que “a prescrição da pena se interrompe com a sua execução” (art.º 126, n.º 1, aI. a), também do CP).”

“No caso (…) a pena de suspensão esteve em execução durante 5 anos, pelo que a prescrição se interrompeu entre 4 de novembro de 2008 e 4 de novembro de 2013.

Não constam outras causas de interrupção nem qualquer causa de suspensão da prescrição.

Descontando-se o período de interrupção, o prazo de prescrição completou-se em 4 de novembro de 2017 [4 de novembro de 2013 + 4 anos (art.º 122, nº 1, al. d)]. “A 5 de Novembro de 2017 decorreu a totalidade do prazo (…).

De tudo o exposto, (…) o Tribunal a quo bem interpretou o preceituado “em qualquer dos números” dos art.ºs 50 e 122 do CP, ao decidir declarar extinta, por prescrição, a pena de suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido nestes autos.

b. no acórdão recorrido:

No acórdão recorrido, do Tribunal da Relação ..., a situação de facto é a seguinte: ----------

O arguido foi condenado em 1ª instância, por acórdão de 16.10.2012, transitado em julgado em 6.11.2012, na pena única de 3 anos de prisão, com execução suspensa por igual período de tempo, condicionada ao pagamento, pelo arguido, da indemnização de €4.500,00 ao lesado, à razão de €1.500,00 euros por ano, acrescida de juros e mora.

Por despacho judicial de 15.03.2017, foi prorrogado o período de suspensão da execução da pena aplicada ao arguido pelo período de 1 ano e 6 meses.

Por requerimento apresentado em 30.09.2020, o arguido invocou a prescrição da pena em que foi condenado, alegando ter decorrido o prazo de 4 anos previsto no art. 122.º, n.º 1, al. d) do Cód. Penal.

O Juiz de 1ª instância, por despacho, entendendo que a pena aplicada ao arguido não estava prescrita, indeferiu a pretensão do arguido.

Inconformado, o arguido recorreu para a Relação. Que, pelo acórdão recorrido, negando provimento ao recurso, confirmou o despacho impugnado.

Motivando a decisão expende-se no referido aresto: -----

“atendendo à pena de prisão aplicada ao arguido o prazo de prescrição é o previsto no art. 122.º, n.º 1, al. c) do Código Penal, portanto, de 10 anos, que deve ser contado desde a data do trânsito em julgado da decisão condenatória, nos termos do n.º 2 deste dispositivo legal e assim, o prazo de prescrição da pena em causa ainda não ocorreu e apenas irá ocorrer na data de 06.11.2022, sem que se mostre excedido o prazo máximo a que se alude no n.º 3 do artigo 126 do Código Penal.

Assim, a decisão recorrida ao considerar que a pena única de prisão de três anos,

suspensa na execução por igual período, não se mostra prescrita, e indeferindo a pretensão do arguido, não violou ou fez interpretação incorreta das disposições dos arts.122º, nº 1, al. d), 125º, a contrario, e 126º, nºs 1, 2 e 3 do CP, bem como os arts.50º e ss. do CP, e 492º e ss. do CPP.”

c. dissemelhança (patente):

Conforme acima se realçou e aqui se repete, no recurso extraordinário para fixação de jurisprudência “trata-se apenas de verificar, partindo evidentemente de uma factualidade equivalente, se a posição tomada no acórdão recorrido, quanto a certa questão de direito, seria a que o mesmo julgador tomaria, se tivesse que decidir no mesmo momento essa questão, no acórdão fundamento, e vice-versa.” 

Colocando lado a lado os dois acórdãos que o recorrente coloca em confronto logo se verifica que se o recorrido adotasse o entendimento aplicado no acórdão invocado como fundamento, a prescrição da pena suspensa aplicada ao arguido nestes autos somente ocorreria em 15 de setembro de 2022.

É que, nos dois acórdãos entendeu-se, igualmente, que o termo inicial do prazo de prescrição da pena suspensa foi a data do trânsito em julgado da respetiva decisão condenatória.

Mas, no invocado como fundamento entendeu-se que o prazo da prescrição, iniciado em 4.11.2008, imediatamente interrompido durante os 5 anos de execução da pena suspensa, se iniciou com o termo do cumprimento da referida pena, ocorrido em 4.11.2013. Contando desde então os 4 anos estabelecidos no art. 122º n.º 1 al.ª d) do Cód. Penal, conclui que a pena suspensa ali aplicada ao arguido ocorreu em 4.11.2017.

Se tivesse de julgar a pretensão do arguido sobre que versou o acórdão recorrido, aplicando o mesmo critério e raciocínio, teria entendido que o prazo de prescrição da pena suspensa se iniciou em 6.11.2012, data do trânsito da decisão condenatória e logo se interrompeu por 3 anos com a execução da pena de substituição. Diferentemente do que se verificou no caso reapreciado no acórdão fundamento, aqui, a pena suspensa foi prorrogada por mais um ano e seis meses, por despacho judicial de 15.03.2017. Decisão que prolongou a execução e, com esta, a interrupção do prazo de prescrição da pena suspensa por igual período de tempo, ou seja, até 15 de setembro de 2018. Ora, contando desde essa data os 4 anos estabelecidos no art.º 122º n.º 1 al.ª b) do Cód. Penal, concluiria que a prescrição da pena suspensa só irá ocorrer em 15 de setembro de 2022.

Por sua vez, se o acórdão recorrido tivesse de julgar a pretensão do Ministério Público sobre que versou o acórdão invocado como fundamento teria concluído que a pena de prisão naqueles autos aplicada ao ali arguido prescreveria em 4 de novembro de 2023.

A dissemelhança das situações de facto é inexoravelmente patenteada pela alegação do arguido recorrente nestes autos, fundamentando a sua pretensão de revogação da decisão da 1ª instância invocando para tanto a aplicação, ao seu caso, da norma do art.º 126º n.º 3 do Cód. Penal. Efetivamente, o arguido argumentava que tinha decorrido o prazo alargado de prescrição da pena suspensa por terem decorrido, 6 anos sobre a data do trânsito em julgado da decisão condenatória. Isto é, os 4 anos estabelecidos no art.º 122º n.º 1 al.ª d), mais a metade desse prazo, conforme estatui o art.º 126º n.º 3, ambos do Cód. Penal.

A ser assim, é evidente que nem sequer a questão jurídica seria a mesma.

É, pois, bem patente a diversidade das questões de facto sobre que incidiram os acórdãos recorrido e fundamento.

Não havendo identidade ou equivalência da situação de facto, evidentemente que, como se advertiu, a solução dada à questão jurídica – tratada na fundamentação de ambos haveria de ser, naturalmente, diversa.

Contudo, a diferente interpretação do mesmo instituto jurídico na fundamentação não é suficiente para legitimar o vertente recurso extraordinário.  

Conclui-se, assim, pela não oposição de julgados, que é um dos requisitos substanciais da admissão do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.

Em consonância com o exposto impõe-se rejeitar o recurso extraordinário em apreciação, nos termos do art.º 441º nº 1 do CPP.

C. DECISÃO:

O Supremo Tribunal de Justiça, 3.ª secção criminal, de conformidade com o exposto, acorda em rejeitar o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto pela recorrente – 441º n.º 1, do CPP.


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Sem custas por o recorrente delas estar isento - arts. 522º do CPP.

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Lisboa, 16 de março de 2021


Nuno Gonçalves (Juiz Conselheiro relator)

Paulo Ferreira da Cunha (Juiz Conselheiro adjunto)

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[1] Ac. STJ de 9-10-2013, 3ª sec., proc. 272/03.9TASX, www.dgsi.pt/jstj.
[2] Miguel Teixeira de Sousa, Sobre a constitucionalidade da conversão do valor dos assentos - apontamentos para uma discussão, 1996, pag. 56.
[3] M. Teixeira de Sousa, ob. e loc. cit.
[4] Ac. STJ de 28-05-2015, 5ª sec. proc. 6495/12.2TBBRG.G1-A.S1, www.dgsi.pt/jstj.
[5][5] Atinentes ao tempo e ao modo.
[6] Ac. STJ de 23/07/2016, proc. n.º 2023/13.0TJLSB.S1, www.dgsi.pt/jstj.
[7] 3ª secção, proc. 175/14.1GTBRG.G1-A.S1, www.dgsi.pt.
[8] Ac. STJ de 6/4/2016, Proc. 521/11.0TASCR.L1-A.S1
[9] Ac. STJ de 11/01/2017, proc. 133/14.6T9VIS.C1-A.S1, www.dgsi.pt.
[10] Neste sentido Ac. STJ de 12/1/2017, proc. 427/13.GAARC.P1-A.S1, www.dgsi.pt/jstj.
[11] Ac. STJ de 26.06.2014, proc. n.º 1714/11.5GACSC.L1.S2.
[12] Âmbito de Eficácia e Âmbito de Competência das Leis, p. 224.
[13] Ac. STJ de 30-10-2019, proc. n.º 2701/11.9T3SNT.L1-A.S1, in www.dgsi.pt