Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO (CÍVEL) | ||
Relator: | ABRANTES GERALDES | ||
Descritores: | CONTRATO DE SEGURO RESPONSABILIDADE CIVIL SEGURO DE RESPONSABILIDADE PROFISSIONAL SEGURO DE GRUPO ORDEM DOS ARQUITECTOS OBJETO DO CONTRATO DE SEGURO RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL RESPONSABILIDADE CONTRATUAL INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL TEORIA DA IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO NEGÓCIO FORMAL CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL PRINCIPIO DO TRATAMENTO MAIS FAVORÁVEL AMBIGUIDADE LEI APLICÁVEL QUESTÃO NOVA CONTRA-ALEGAÇÕES PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO PODERES DA RELAÇÃO BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO | ||
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Data do Acordão: | 11/11/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO COM REMESSA À RELAÇÃO | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
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Sumário : | I. A não ser que se trate de questões de conhecimento oficioso, o recurso não possibilita a invocação de questões novas, como ocorre com a discussão da amplitude do contrato de seguro que não foi suscitada pela Seguradora na sua contestação.
II. Suscitada nas contra-alegações do recurso de apelação alguma questão nova, a mesma não pode ser apreciada pela Relação antes de observar o contraditório, nos termos do art. 3º, nº 1, do CPC. III. As declarações negociais que correspondam a negócios de carácter formal, como o contrato de seguro, além de serem interpretadas sob o prisma do declaratário normal, nos termos do art. 236º, nº 1, do CC, não podem valer com um sentido que não tenha no respetivo texto um mínimo de correspondência, nos termos do art. 238º, nº 1, do CC; e, tratando-se de cláusulas contratuais gerais afetadas por alguma ambiguidade, em caso de dúvida, terão o sentido mais favorável ao aderente, como ocorre com o segurado num contrato de seguro de grupo (art. 11º do DL nº 446/85, de 25-10). IV. Um contrato de seguro de grupo outorgado com uma associação pública profissional (no caso, uma Secção Regional da Ordem dos Arquitetos) mediante o qual foi assumida pela Seguradora a responsabilidade pelo pagamento de indemnizações decorrentes da “responsabilidade civil profissional” dos membros inscritos na associação abarca, na falta de qualquer elemento adicional, tanto os danos decorrentes da responsabilidade civil extracontratual como da responsabilidade civil contratual. V. A diferenciação das garantias relativas a cada um dos dois tipos de responsabilidade (extracontratual e contratual) está prevista no art. 24º da Lei no 31/09, de 3-7, porém, tal regime ainda não é aplicável ao caso, uma vez que, atento o disposto no art. 29º, está dependente da entrada em vigor da Portaria prevista no nº 3 do art. 24º. Neste contexto, o âmbito do contrato de seguro fica dependente do que, em concreto, tiver sido convencionado. VI. A maior amplitude do contrato de seguro de “responsabilidade civil profissional” dos arquitetos encontra ainda sustentação adicional no facto de o art. 51º do Estatuto da Ordem dos Arquitetos, republicado pela Lei nº 113/15, de 28-8 (na sequência ao disposto no art. 31º da Lei nº 2/13, de 10-1, sobre o regime jurídico das associações profissionais), ao prever a obrigatoriedade de subscrição de um contrato de seguro de responsabilidade civil ou a prestação de garantia ou instrumento equivalente, se reportar também, de forma genérica, à responsabilidade civil emergente do exercício da atividade profissional. | ||
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Decisão Texto Integral: |
I - AA e marido BB intentaram ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Algarismo Mágico-Unipessoal, Ldª, CC e Ageas Portugal-Comp. de Seguros, SA. Alegaram que acordaram com a 1ª R. a construção de uma moradia unifamiliar e, paralelamente, com o 2º R. um contrato de prestação de serviços com vista à elaboração do projeto de arquitetura, acompanhamento, fiscalização e direção técnica da obra e instrução e acompanhamento do processo de licenciamento. A obra iniciada foi embargada pela Câmara Municipal de ….., vindo os AA. a constatar que não respeitava o projeto e, além disso, apresentava diversos defeitos de execução, com risco de ruína. Apesar de os 1º e 2º RR. se terem comprometido a tal, não apresentaram nenhuma solução para o prosseguimento da obra, pelo que os AA. procederam à resolução dos contratos. Alegaram também que o 2º R. é arquiteto e encontra-se inscrito na Ordem dos Arquitetos Portugueses, tendo esta entidade celebrado com a R. Seguradora um contrato de seguro de responsabilidade civil profissional, mediante o qual esta assumiu a obrigação de responder por todos os prejuízos causados a terceiros pelo 2º R. no exercício da sua atividade profissional de arquiteto. Terminaram pedindo: - A declaração de que aos AA. assistia o direito de procederem à resolução dos contratos com os RR.; - A condenação dos 1º e 2º RR. a demolirem todos os trabalhos executados, com demolição da estrutura construída, reposição da terra removida, nivelação e assentamento da terra resposta e reposição do campo de cultivo aí existente; - A condenação de todos os RR. a pagarem aos AA.: - a quantia de € 144.502,85, acrescida de juros de mora, contados à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da resolução contratual até efetivo e integral pagamento; - a quantia de € 20.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros moratórios, contados à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da prolação da sentença até efetivo e integral pagamento; e - a quantia que vier a liquidar-se posteriormente respeitante a danos futuros que os AA. sofrerem em consequência do incumprimento contratual da 1ª e do 2º RR. Os 1º e 2º RR. apresentaram contestação, tendo negado a existência dos defeitos e que o 2º R. se limitou a assumir a direção técnica da obra, na qualidade de trabalhador da 1ª R. A R. Seguradora contestou. Embora tenha confirmado a existência do contrato de seguro e que “aceita a responsabilidade que assumiu com a celebração do contrato” alegou duas cláusulas de exclusão da responsabilidade, uma a excluir as reclamações relacionadas com o licenciamento da obra, e outra as derivadas de perdas e danos relacionados com a vertente da fiscalização de obras quando a mesma não se fundamente e consubstancie em documentos, pareceres, conselhos, relatórios e comunicações escritas enviadas ao dono da obra e demais intervenientes. Além disso, em termos subsidiários, invocou que a sua responsabilidade está limitada a € 25.000.00, com uma franquia de 10%. Foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência: 1. Declarou que aos AA. assistia o direito de procederem à resolução dos contratos com os 1ª e 2º RR. e condenou os 1ª e 2º RR. a: a) Demolirem todos os trabalhos executados no prédio dos AA., com demolição da estrutura construída, reposição da terra removida, nivelação e assentamento da terra resposta e reposição do campo de cultivo aí existente; b) Pagarem aos AA. a quantia de € 140.151,65, acrescida de juros de mora, contados à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da resolução contratual (até efetivo e integral pagamento; c) Pagarem aos AA. a quantia de € 10.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros moratórios, contados à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da sentença até efetivo e integral pagamento; d) Pagarem aos AA. a quantia que vier a liquidar-se posteriormente respeitante a danos futuros que os AA. sofrerem em consequência do incumprimento contratual da 1ª e do 2º RR. 2. Absolveu a R. Seguradora do pedido, com fundamento nas referidas cláusulas de exclusão e especificamente com base no facto de o 2º R. nunca ter informado os donos da obra dos defeitos que foram detetados. Os AA. apelaram e a Relação confirmou a sentença, ainda que com fundamentação diversa quanto à R. Seguradora, concluindo que, afinal, o contrato de seguro não abarcava a responsabilidade civil contratual, mas apenas a responsabilidade civil extracontratual do 2º R. perante terceiros. Conclusão que a Relação extraiu da interpretação do contrato, na medida em que, não sendo feita expressa “delimitação da responsabilidade civil coberta, se a contratual, se a extracontratual, é legítima a interpretação de que o seguro apenas cobre a responsabilidade civil extracontratual, atento o facto de se tratar de um seguro obrigatório, imposto pelo art. 24º, nº 1, da Lei nº 31/09, de 3-7, o qual limita a obrigatoriedade de segurar à responsabilidade civil extracontratual”. Os AA. vieram interpor recurso de revista em que no essencial alegaram que: O Tribunal recorrido, de forma totalmente inovatória e sem que tal fundamento de defesa tivesse sido invocado, decidiu julgar improcedente a ação, por concluir que o contrato de seguro em apreço não abrangia o ressarcimento de danos emergentes da relação contratual estabelecida entre arquiteto e cliente, ou seja, de responsabilidade contratual. Uma vez que um tal fundamento de defesa (que sempre constituiria defesa por exceção) não foi invocado pela R., estava vedado ao Tribunal recorrido socorrer-se do mesmo, pelo menos sem que previamente concedesse aos AA. o direito ao contraditório relativamente a tal matéria, concedendo-lhes o direito de defesa que não tiveram oportunidade de exercer, em virtude de tal matéria não ter sido invocada nos articulados. A questão de saber se um determinado tipo de dano se encontra coberto pelo âmbito de aplicação de uma determinada apólice de seguro não constitui matéria de direito, mas antes matéria de facto que integraria fundamento de defesa por exceção perentória, atípica ou inominada, carecida de alegação, uma vez que o âmbito de cobertura da apólice de seguro em apreço não é um direito indisponível, mas antes um direito submetido à autonomia privada e ao princípio da liberdade contratual. Ao tomar posição sobre o facto de o contrato de seguro supostamente não abranger o ressarcimento de danos emergentes de responsabilidade contratual, o Tribunal recorrido incidiu sobre matéria que não lhe era lícito conhecer e, desse modo, cometeu a nulidade prevista na al. d) do nº 1 do art. 615º do CPC. Para que uma tal decisão tivesse sido tomada teria de ser invocado que com a celebração do contrato de seguro, as partes não visaram o ressarcimento de danos decorrentes da relação de arquitetos com clientes, o que não ocorreu, sendo violado o disposto no art. 5º, nº 1, do CPC. Além disso, o caso dos autos é inequivocamente um daqueles em que se verifica simultaneamente responsabilidade civil contratual e extracontratual, tanto assim que o 2º R. foi disciplinarmente punido pela Ordem dos Arquitetos. Por isso, ainda que se adote o entendimento do Tribunal recorrido, de que o objeto do contrato de seguro só abrange o ressarcimento de danos emergentes de responsabilidade extracontratual, os factos apurados são também geradores de responsabilidade extracontratual, estando abrangidos pelo contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil previsto na Lei nº 31/09, de 3-7. A alegada verificação das condições de exclusão previstas na cláus. 5ª, nº 1, als. p) e r), das condições particulares da apólice, porque exclusivamente imputáveis ao tomador ou beneficiário do seguro, não são oponíveis aos AA., nos termos do art. 101º, nº 4, da LCS. O facto de um seguro obrigatório não estar regulamentado não lhe retira essa natureza, permitindo apenas às partes convencionar o âmbito da cobertura, desde que o contrato de seguro cumpra a obrigação legal e não contenha exclusões contrárias à natureza dessa obrigação, tendo por consequência a inoponibilidade ao lesado de condições gerais e particulares da apólice que diminuam ou excluam as garantias daquele com fundamento no incumprimento de deveres do tomador do seguro ou do seu beneficiário para com seguradora, nos termos do art. 146º, nº 5, da LCS. A previsão de cláusulas contratuais que excluem a responsabilidade da seguradora no caso de o beneficiário não comunicar ao lesado, com base em documentos, pareceres, conselhos ou relatórios, os erros cometidos, ao deixar exclusivamente na disponibilidade do beneficiário a responsabilidade da seguradora, é claramente contrária à natureza da obrigação de celebração do seguro aqui em causa. Na realidade, se está em causa um seguro obrigatório, facilmente se constata que a previsão de cláusulas dessa natureza, ao deixar exclusivamente na mão do tomador do seguro a possibilidade de o lesado não ser ressarcido, é claramente contrária a esse propósito, pois deixa na disponibilidade de terceiros (o causador do dano) a possibilidade de o seguro não poder ser acionado. Semelhante raciocínio é também válido para a instituição de um capital contratado de € 25 000,00, o que contraria a norma do art. 146º, nº 5, da LCS, não sendo a cláusula oponível aos AA. A decisão é errada ainda na parte em que considerou que o 2º R. arquiteto não estava obrigado à celebração de contrato de seguro de responsabilidade civil profissional. Só em Dezembro de 2015 é que os AA. tomaram conhecimento de factos ocorridos até essa data, geradores de responsabilidade civil por parte do R. arquiteto, sendo que em 27-9-15 entrou em vigor o Estatuto da Ordem dos Arquitetos aprovado pela Lei n.º 113/15, de 28-8, em cujo art. 51º, nº 1, se prevê a subscrição obrigatória de contrato de seguro de responsabilidade civil adequado à natureza e à dimensão do risco, ou prestação de garantia ou instrumento equivalente. Tendo parte dos factos relatados na p.i. ocorrido já após a entrada em vigor de tal diploma, terá de se concluir que, independentemente da qualificação da responsabilidade do R. arquiteto como contratual ou extracontratual, sempre se estaria no âmbito de aplicação de um contrato de seguro obrigatório, com as consequências daí decorrentes, já expostas no precedente ponto destas alegações. A designação do contrato de seguro em apreço – Responsabilidade Civil Profissional (cf. cabeçalho das condições gerais e particulares da apólice) – leva a concluir que se está perante um típico seguro de responsabilidade civil profissional, como, por exemplo, os habitualmente celebrados com médicos, advogados e respetivas ordens profissionais. Tanto as condições gerais como as particulares se referem à garantia da responsabilidade civil, sem destrinçar, restringir ou excluir qualquer uma das suas variantes – contratual ou extracontratual. Se o próprio contrato se refere genericamente a responsabilidade civil (que abrange, em termos genéricos, a contratual e a aquiliana), mal se compreende que o intérprete tenha retirado do texto das condições gerais e particulares um alcance que elas claramente não têm, sequer perfunctoriamente – a exclusão do seu âmbito de danos emergentes de responsabilidade contratual. Independentemente da qualificação do contrato de seguro em referência como obrigatório ou facultativo e, bem assim, da consideração da responsabilidade do 2º R. como contratual ou aquiliana, terá forçosamente de se concluir que os danos em discussão nestes autos estão abrangidos pelo âmbito de aplicação do referido contrato de seguro e que, por inerência, a R. Seguradora não poderia deixar de ser responsabilizada. Contrariamente ao sustentado pela R. Seguradora, não se verifica nenhuma das condições de exclusão da responsabilidade por si invocados, já que não se provou que os AA. celebraram com o R. arquiteto contrato de prestação de serviços para fiscalização da referida obra, tendo sido convencionada, tão-somente, a elaboração e apresentação do projeto de arquitetura e a direção técnica da obra. Não estando em causa, no caso dos autos, a prestação de serviços na vertente de fiscalização, não se poderia ter por aplicável a condição de exclusão prevista na al. p) do n.º 1 do cláus. 5ª das condições particulares da apólice. Os danos resultantes da atuação do 2º R. ocorreram já na fase de execução da obra, em resultado da inobservância de deveres de acompanhamento correto da obra (chamando a atenção do empreiteiro para o facto de não estar a seguir o projeto de arquitetura e de estabilidade e de estar a implantar o edifício acima da cota), pelo que as omissões do R. arquiteto também não se enquadram na prática de atos respeitantes à obtenção de licenciamento, nos termos referidos na al. r) da cláus. 5ª. Além disso, a inclusão de uma cláusula de exclusão que está na dependência de um conduta do agente causador do dano praticamente esvazia de sentido o próprio contrato de seguro, já que, na generalidade dos casos, esse agente, perante um incumprimento, não se apressa a apresentar ao dono da obra e demais intervenientes “conselhos, relatórios e comunicações escritas” para atestar o seu próprio incumprimento, a sua própria incompetência. Por isso, cláus. 5ª, al. p), ainda que porventura fosse oponível aos AA., seria nula, por desrespeitar o princípio fulcral de lisura contratual, ao retirar, praticamente, a utilidade ao seguro contratado, arredando do âmbito da cobertura da apólice as causas mais comuns dos danos produzidos, e, nessa medida, contender com o disposto nos arts. 280º, nº 1, do CC. A R. Seguradora contra-alegou e concluiu no essencial que: Os recorrentes tinham a obrigação de prever a possibilidade de se julgar a ação improcedente, por entender-se que o contrato de seguro não inclui no seu objeto a responsabilidade contratual, uma vez que, foi a interpretação das disposições legais invocadas como fundamento do recurso de apelação que permitiu à Relação justificar o decidido. O fundamento da propositura da ação contra a aqui recorrida é a celebração do contrato de seguro com a Ordem dos Arquitetos Portugueses, sendo lícito ao tribunal corrigir a qualificação jurídica dada aos factos alegados pelas partes, convolando-a para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, como fez a Relação, sem que tal represente qualquer excesso de pronúncia. A interpretação do contrato de seguro e a fixação do seu objeto constitui uma estrita questão de qualificação jurídica e enquadramento dos factos alegados pelas partes nos seus articulados. Analisada a relação jurídica que se estabeleceu entre os AA. e o 2º R., não subsistem quaisquer dúvidas de que os prejuízos cujo ressarcimento se pretende com a presente ação emergem da violação de deveres de conduta inerentes ao cumprimento da prestação, que é o objeto imediato do contrato celebrado. Não há concurso de responsabilidades, sendo que os factos provados apenas se subsumem às disposições próprias da responsabilidade contratual. Do art. 24º da Lei nº 31/09 resulta a obrigação de celebrar um contrato de seguro para garantia de danos causados a terceiros, tratando-se de um seguro obrigatório de responsabilidade civil extracontratual; a responsabilidade civil contratual é assegurada através da constituição de garantia financeira. A responsabilidade civil que nos presentes autos é imputada ao segurado da aqui recorrida resulta do incumprimento do contrato celebrado com os recorrentes, pelo que tal responsabilidade nunca estaria transferida para contrato de seguro obrigatório. O art. 101º, nº 4, da LCS, aplica-se quando está em causa o incumprimento por parte do tomador do seguro ou do seu beneficiário da obrigação de participação do sinistro, o que não ocorre no caso. Do art. 146º, nºs 5 e 6, da LCS, extrai-se que, enquanto o seguro obrigatório não for regulamentado, as partes podem convencionar o âmbito da cobertura, acrescentando-se que, sendo celebrado um contrato de seguro com carácter facultativo, que não cumpra a obrigação legal ou contenha exclusões contrárias à natureza do seguro obrigatório, não se considera cumprido o dever de cobrir os riscos de um seguro obrigatório. O ónus do cumprimento do dever de segurar os riscos impenderia sobre o arquiteto, não se podendo impor à Seguradora tal responsabilidade, podendo o esta, de acordo com o art. 147º, opor ao lesado os meios de defesa derivados do contrato de seguro, nomeadamente, as condições contratuais e o limite do capital seguro. Nos termos do contrato, a referência a terceiros e a menção a lesões corporais ou materiais, particularmente quando está em causa o exercício da atividade profissional de arquiteto, não podem deixar de significar ser o objeto do contrato de seguro a responsabilidade delitual ou extracontratual. Verifica-se a cláus. exclusão da al. r), segundo a qual ficaram excluídas as reclamações derivadas de perdas e danos relacionadas com a concessão de licenças, sendo que o auto de embargo das obras foi devido ao facto de estarem a ser executadas “sem autorização municipal”. Também se verifica a exclusão prevista na al. p), uma vez que os AA. não foram alertados para os vícios de construção, significando que a atividade de acompanhamento e fiscalização não se fundamentava em documentos, pareceres conselhos, relatórios ou outras comunicações escritas enviadas ao dono da obra e demais intervenientes. Não pode ser suscitada na revista a questão nova relacionada com a nulidade das referidas cláusulas contratuais de exclusão. II – Factos provados (limitados aos que relevam para apreciação do objeto do recurso de revista circunscrito á improcedência da ação relativamente á R. Seguradora): … 2. A 1ª R. é uma sociedade comercial que se dedica, com fins lucrativos, à atividade de construção civil e é titular do certificado de classificação de industrial da construção civil nº 7…16, conforme doc. fls. 36. 3. O 2º R. é licenciado em arquitetura e está inscrito na Ordem dos Arquitetos com o nº 2…7, conforme doc. fls. 24. 4. E exerce, com fins lucrativos, a atividade de prestação de serviços de arquitetura, tendo gabinete na R. …, nº …, 3º Piso, em … . 5. Em 4-8-14, os AA. e a 1ª R. celebraram um acordo escrito, através do qual a R. se obrigou à construção de uma habitação unifamiliar no prédio identificado em 1., conforme doc. fls. 25 a 32. 6. Paralelamente, os AA. celebraram com o 2º R. um acordo escrito que denominaram de contrato de prestação de serviços, com vista à elaboração de projeto de arquitetura e, bem assim, à instrução e acompanhamento do processo camarário de licenciamento de obras particulares, conforme doc. fls. 140 a 141. 7. Em 15-1-15 AA. e 1ª R. celebraram um outro acordo escrito, através do qual a 1ª R. se obrigou a construir uma cave na moradia unifamiliar acima referida, conforme doc. de fls. 33 a 35v. 8. Também aí, paralelamente à celebração desse contrato, os AA. celebraram com o 2º R. um acordo, com vista à elaboração de projeto de arquitetura, e, bem assim, à instrução e acompanhamento do processo camarário de licenciamento de obras particulares. 9. Em cumprimento do acordado, o 2º R. elaborou o projeto de arquitetura e reuniu a documentação necessária para a apresentação e acompanhamento do pedido de licenciamento de obras particulares, junto da Câmara Municipal de … . 10. O pedido de licenciamento de obras deu origem ao processo de obras particulares n.º 1…9/14, conforme doc. fls. 36. 11. No âmbito desse processo de obras, em 10-7-15, foi emitido o alvará de licenciamento de obras de edificação nº 2…9/15, conforme doc. fls. 36. 12. Conforme acordado com os AA., o 2º R. foi nomeado técnico responsável pelo acompanhamento da obra, junto da Câmara Municipal de ..., conforme doc. fls. 36. 13. Ainda em cumprimento do acordado, entre Agosto de 2014 e Julho de 2015, a 1ª R. levou a cabo trabalhos de movimentação e terraplanagem e posterior construção da estrutura da moradia, em grosso e sem quaisquer acabamentos. 14. O 2º R., por sua vez, instruiu e deu entrada ao processo camarário de obras particulares, respondeu à correspondência enviada pela Câmara Municipal no âmbito desse processo, acompanhou os trabalhos de execução da obra e, de um modo geral, levou a cabo todos os atos inerentes à direção técnica da referida obra. … 17. Em 24-6-15, pelas 16h30, os serviços de fiscalização da Câmara Municipal de … deslocaram-se ao prédio dos AA. e, após vistoria à obra, elaboraram auto de embargo de obras, com fundamento no facto de as obras estarem a ser executadas “sem autorização municipal”, conforme doc. fls. 43 a 46. 18. Os AA. só tomaram conhecimento do embargo de obra em Dezembro de 2015, numa deslocação a Portugal para gozo de férias, através dos 1ª e 2º RR. 19. Por essa altura, os AA. foram também informados de que o embargo se teria ficado a dever, além do mais, ao facto de a implantação das fundações da moradia ter sido executada a uma cota superior, em cerca de 95,00 cms, à prevista no projeto aprovado pela Câmara Municipal de … . 20. As obras de construção da moradia unifamiliar foram construídas e implantadas pela 1ª R. 95,00 cms acima da cota prevista no projeto camarário aprovado pela Câmara Municipal de …, sem conhecimento e autorização dos AA. 21. O 2º R., enquanto diretor técnico da obra, não alertou a 1ª R. para o erro de construção nem deu ordem para os trabalhos pararem, com vista à regularização desse erro na cota de implantação. 22. Apesar de estarem cientes do referido erro na execução da obra, a 1ª e o 2º RR. omitiram esse facto aos AA. e continuaram a executar a obra até ao mês de Dezembro de 2015. … 28. A obra executada pela 1ª R. e dirigida pelo 2º R. padecia, na referida data de 24-2-16, e padece, na presente data, das seguintes anomalias: i) compactação e vibração inadequadas do betão assim como fissuras na alvenaria; ii) substituição de lajes maciças (previstas no projeto) por lajes aligeiradas com reforços não perpendiculares, o que não é tecnicamente viável; iii) em vários pontos não foram executadas as sapatas e as vigas de fundação; iv) substituição de paredes de betão armado por alvenaria de blocos, sem explicação aparente; v) ausência de vigas de apoio e de laje na parte da garagem e corredor de acesso; vigas no quarto do R/C; vi) ausência de vigas no topo das lajes assim como flechas injustificadas a meio vão e tarugos com espaçamento incorreto; vii) ausência de pelo menos um pilar que estava previsto; viii) ausência de pelo menos duas vigas previstas no piso 2; ix) vigas com apoio de alvenaria de blocos, sem pilares; x) ausência de pelo menos uma viga de fundação; xi) sapata com 30x30 cm quando o projeto preconizava 120x20 cm; xii) ausência de ligação entre uma viga e um pilar; xiii) armaduras à vista sem reparação; xiv) emulsão aplicada sem prévia reparação do betão. 29. Tais anomalias põem em causa a sustentabilidade da obra e aumentam o risco de ruína, por parte da mesma, sendo necessário proceder à demolição dos trabalhos já executados. 30. Nem a 1ª R., nem o 2º R. informaram os AA. que a obra padecia das anomalias acima elencadas e que as mesmas punham em causa a sustentabilidade da obra, existindo risco de ruína. … 34. Na mesma data, os AA. remeteram ao 2º R., por via postal registada, comunicação com o seguinte teor: “Exmº Senhor Arquiteto, Pela presente, damos conhecimento do teor da missiva que, nesta data, foi enviada à sociedade comercial …, relacionada com a empreitada de construção de uma moradia unifamiliar na freguesia de …, em …, da qual o Senhor Arquiteto é o diretor técnico (doc. n.º 1, que se anexa). Considerando a extensão dos defeitos que foram detetados e considerando ainda que, parte deles, se deve ao incumprimento das obrigações que o Senhor assumiu, enquanto Diretor Técnico, estamos a ponderar seriamente proceder à resolução contratual do contrato de empreitada. Se tal vier a suceder, não deixaremos de assacar responsabilidades, tanto à referida sociedade comercial como ao Senhor Arquiteto. Por ora fixamos um prazo de 60 dias corridos para nos ser apresentado o resultado dos exames laboratoriais à estabilidade do da obra, realizados a vossas expensas, sendo certo que apenas teremos interesse no seu prosseguimento caso sejam asseguradas as condições de segurança que a obra teria em caso de observância escrupulosa do projeto de arquitetura. Decorrido esse prazo sem que o resultado dos referidos testes nos seja apresentado, perderemos, definitiva e irremediavelmente, o interesse no cumprimento do contrato de empreitada e iremos proceder à respetiva resolução, com a consequente obrigação de demolirem os trabalhos feitos até à data e de nos restituírem todas as quantias que foram pagas. Por fim, aproveitamos o envio desta missiva para remeter, em anexo, a carta que nos foi enviada pela Câmara Municipal de … (que já é do vosso conhecimento), em que é proposto o indeferimento das alterações ao projeto de arquitetura – doc. n.º 2. Sem mais, de momento, subscrevemo-nos”, conforme docs. fls. 63v a 65. … 49. O 2º R. é, desde data anterior ao ano de 2010, arquiteto inscrito na Ordem dos Arquitetos Portugueses. 50. A Ordem dos Arquitetos Portugueses celebrou com a 3ª R. um contrato de seguro de responsabilidade civil, válido para todos os arquitetos validamente inscritos, através do qual a 3ª R. assumiu, até ao limite do capital contratado, a obrigação de responder por todos os prejuízos causados a terceiros pelo 2º R., no exercício da sua atividade profissional de arquiteto, titulado pela apólice nº 008…00, conforme doc. fls. 109v a 116. III – Decidindo: 1. A primeira questão que se suscita é de natureza formal: existe ou não violação do contraditório por parte da Relação, tendo em conta que apreciou a questão da amplitude do contrato de seguro suscitada pela R. nas contra-alegações da apelação sem ouvir os AA. a tal respeito? É esta a tese advogada pelos AA. sustentada no facto de a R. Seguradora não ter suscitado tal questão na sua contestação, fazendo-o apenas nas contra-alegações do recurso de apelação que incidiu sobre a sentença que absolveu a R. Seguradora com fundamento numa cláusula de exclusão da responsabilidade profissional do R. arquiteto. Consideram os AA. que tal questão não poderia ser apreciada pela Relação sem que lhes fosse permitido exercer o contraditório. Acrescentam que a amplitude do contrato constitui matéria de facto e que, por isso, não tendo sido alegada pela R. Seguradora na contestação a exclusão da responsabilidade civil contratual, tal questão não poderia ser apreciada pela Relação. Já a R. Seguradora defende que se trata de mera qualificação jurídica dos factos alegados, sendo o Tribunal livre nessa qualificação, e que, além disso, os AA. estavam bem cientes de que tal qualificação poderia ser apreciada pelo Tribunal, não ocorrendo violação do contraditório. 2. Antes de mais exponham-se os elementos fundamentais para a apreciação das referidas questões: - Na petição os AA. limitaram-se a alegar que a R. Seguradora havia celebrado com a Ordem dos Arquitetos um contrato de seguro de responsabilidade civil, abarcando “os prejuízos causados a terceiros pelo 2º R., no exercício da sua atividade profissional de arquiteto” (art. 111º). - A R. Seguradora reconheceu a outorga desse contrato de seguro, cuja cópia apresentou (fls. 109, vº e ss.), alegando que “aceita a responsabilidade que assumiu com a celebração do contrato de seguro”, embora a seguir tenha invocado a exclusão da responsabilidade pelos prejuízos invocados pelos AA. a partir do teor da cláus. 5ª, nº 1, als. r) e p). Subsidiariamente alegou a limitação da sua responsabilidade ao valor de € 25.000,00, com dedução de uma franquia de 10%. - Nada mais de relevante a R. Seguradora invocou na sua contestação, e foi por isso que na sentença se considerou que o contrato de seguro abarcava a “obrigação de responder por todos os prejuízos causados a terceiros pelo 2º R., no exercício da sua atividade profissional de arquiteto”, sem qualquer distinção em função da origem dos danos em responsabilidade civil contratual ou extracontratual. Responsabilidade que, no entanto, a 1ª instância foi excluiu por outra via, ou seja, pelo funcionamento de duas cláusulas de exclusão: pelo facto de a responsabilidade ser assacada ao 2º R. por danos relacionados com a concessão de licenças e de, na vertente da fiscalização, a responsabilidade não se mostrar consubstanciada em documentos, pareceres, conselhos, relatórios e comunicações escritas que tivessem sido enviadas ao dono da obra (als. r) e p) da cláus. 5ª. - A questão da amplitude do contrato de seguro, na perspetiva da responsabilidade civil contratual e extracontratual ou apenas extracontratual, apenas surgiu nas contra-alegações da R., ainda assim, em termos de mera impugnação da pretensão recursória dos AA. e sem traduzir uma verdadeira ampliação do objeto do recurso, que seria viável, nos termos do art. 636º do CPC. 3. O mero enunciado evolutivo das posições manifestadas pelas partes revela, de forma manifesta, que a possibilidade de a Relação apreciar a questão a amplitude do contrato de seguro estava, à partida, condicionada pela concessão aos AA. do direito de apresentarem os seus argumentos em confronto com os argumentos que, independentemente da sua oportunidade, haviam sido expostos pela R. Seguradora nas contra-alegações. Este é um dos casos paradigmáticos em que se descobre a necessidade e a utilidade na observância do contraditório, nos termos previstos no art. 3º, nº 1, do CPC, de forma a permitir à parte interessada pronunciar-se sobre alguma questão suscitada pela outra numa peça processual relativamente à qual não se preveja explicitamente qualquer resposta. Por isso, entendendo a Relação que podia sustentar a apreciação do mérito da pretensão dos AA. nesse aspeto relacionado com o âmbito objetivo do contrato de seguro, apesar de tal questão não ter sido invocada no local apropriado, ou seja, na contestação da R. Seguradora, deveria ter assegurado o debate necessário através da audição dos AA. O princípio do contraditório é aflorado em diversas disposições do CPC e constitui uma das pedras angulares do sistema ao qual repugnam todas as decisões tomadas à revelia de algum dos interessados, sofrendo apenas desvio quando outros interesses se sobreponham (v.g. art. 3º, nº 2). Posto que a necessidade da sua observância seja replicada em diversos preceitos avulsos, tal não diminui o relevo da sua enunciação como princípio geral, nos termos do art. 3º, nºs 1 e 3, impondo-se em todas as fases processuais, sem exclusão, é claro, dos recursos. Também em sede de recursos, sem embargo das normas que especificamente vinculam os Tribunais Superiores ao seu acatamento (v.g. arts. 654º, nº 1 e 655º, nº 1), deve ser observado nos termos gerais que emergem do art. 3º, nºs 1 e 3. Tal dever está especialmente consagrado no art. 665º, nº 2, em casos em que o Tribunal Superior pretenda apreciar questões que o tribunal recorrido tenha considerado estarem prejudicadas, mas deve aplicar-se sempre que se pretenda avançar para a apreciação de alguma questão suscitada por alguma das partes numa peça processual, como as contra-alegações, sem que à contraparte tenha sido ainda assegurada a possibilidade de contraditar. Numa outra perspetiva ainda mais ampla, o contraditório deve ser assegurado em relação a ambas as partes quando se trate de questão cuja apreciação seja da iniciativa do tribunal, salvo quando o processo revelar a desnecessidade dessa audição, nos termos da norma geral do art. 3º, nº 3. Ora, no caso concreto, na ausência de qualquer exceção aplicável, a clareza do que se dispõe no art. 3º, nº 1, do CPC, impunha que a Relação conferisse aos AA. e efetiva possibilidade de se pronunciarem sobre a referida questão, de modo que, tendo sido omitida essa formalidade, o acórdão recorrido está ferido de nulidade, por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº 1, al. d), 2ª parte, do CPC. Porém, os autos permitem agora reapreciar a referida questão em termos que favorecem os AA., o que se fará ao abrigo do art. 684º, nº 1, do CPC. 4. Está em causa um Contrato de Seguro de Grupo outorgado entre a R. Seguradora e a Secção Regional da Ordem dos Arquitetos, esta na qualidade de Tomadora, tendo como Segurados todos os membros efetivos da referida agremiação, entre os quais o 2º R. As Condições Especiais Particulares são enunciadas sob a epígrafe de um Contrato de Seguro de “Responsabilidade Civil Profissional dos Arquitetos Inscritos na Ordem dos Arquitetos – Secção Regional do Norte”, delas constando, como “Garantia Base”, a “Responsabilidade Civil Profissional”, ao abrigo da qual a R. Seguradora, assumiu que, “de harmonia com as Condições Gerais da apólice e nos limites estabelecidos nas Condições particulares …, pagará aos terceiros as indemnizações a que tenham direito, por danos patrimoniais e não patrimoniais, em consequência de lesões corporais e materiais, incluindo danos indiretos e consequentemente causados, provenientes de erros, omissões ou atos negligentes praticados pelo Segurado no exercício da atividade profissional de Arquitetura …” (realce nosso). Não existe qualquer outro elemento extraído do teor do contrato que permita restringir a responsabilidade que foi transferida para a Seguradora aos danos emergentes da responsabilidade civil extracontratual. Pelo contrário, os termos amplos que foram empregues na definição do âmbito objetivo do contrato, designadamente a assunção de que se inscreve no âmbito da “responsabilidade civil profissional” dos arquitetos, reforça a conclusão de que estavam abarcadas ambos os tipos de responsabilidade civil. O acórdão recorrido, na esteira dos argumentos expostos pela R. Seguradora nas contra-alegações da apelação (e não, como seria natural, na contestação), rejeitou esta conclusão a partir da consideração de que o contrato se seguro previa o pagamento de indemnizações por danos patrimoniais e não patrimoniais a “terceiros”, termo que, na perspetiva adotada, não se dirigiria aos terceiros em relação ao contrato de seguro, mas aos terceiros por reporte aos contratos profissionais celebrados entre o arquiteto segurado e os respetivos clientes. Esta conclusão – tomada, como se disse, à revelia dos AA. que nem sequer puderam contribuir para a clarificação de um ponto tão importante - não encontra nas regras de interpretação das declarações negociais qualquer sustentação. Repare-se: a partir de uma menção, aparentemente inócua ou pleonástica, de que as indemnizações a suportar pela Seguradora, num seguro de responsabilidade profissional, são obviamente pagas a “terceiros”, e não ao segurado, a Relação extrapolou para a conclusão de que, afinal, o contrato não abarcava as reclamações deduzidas pelos clientes do arquiteto relativamente aos prejuízos decorrentes do modo como desempenhou as suas obrigações contratuais, enquanto autor do projeto e diretos técnico da obra, circunscrevendo-as às reclamações de terceiros relativamente a atos inscritos na sua responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana do mesmo arquiteto. Esta asserção/ilação foi extraída da mera análise do clausulado contratual que, como se referiu, não estabelece qualquer distinção entre responsabilidade civil extracontratual e contratual, tratando a matéria da garantia e da transferência do risco em sede de “responsabilidade civil profissional dos arquitetos”. Ora, o simples facto de a R., principal interessada na referida interpretação restritiva, ter omitido semelhante tese na contestação – local ajustado à apresentação dos meios de defesa - deveria deixar de sobreaviso uma tal interpretação. Além de outros aspetos formais, ligados à extemporaneidade da suscitação da questão nas contra-alegações da apelação, é manifesto o artificialismo da construção jurídica, a qual não encontra nem no texto convencionado ou nas normas sobre a interpretação de declarações negociais a mais ligeira sustentação. Perante o teor do contrato, o que dele decorre é que se pretende abarcar a “responsabilidade civil profissional”, sem discriminação do tipo, envolvendo, pois, os danos imputados ao segurado tanto a título de responsabilidade civil extracontratual como contratual O facto de se aludir a “terceiros” não privilegia de modo algum a responsabilidade civil extracontratual. Tratando-se de uma cláusula que regula as reclamações no âmbito de um contrato de seguro de responsabilidade civil, e não as reclamações que podem ser apresentadas pelo segurados quando estejam em causa seguros de danos próprios, é natural (ainda que dispensável) que, na definição do âmbito de cobertura, se aluda às reclamações apresentadas por “terceiros”, isto é, por pessoas que não sejam parte no contrato de seguro de transferência da responsabilidade civil em geral, como tomadores ou como segurados, sem que tal legitime uma interpretação de pendor restritivo que a Seguradora, aliás, nem sequer alegou no local oportuno para a exposição dos seus meios de defesa. 5. É claro que as partes que outorgaram o contrato de seguro dos autos – a Seguradora e a associação pública Tomadora - eram livres de regular o seu conteúdo, podendo restringir a transferência para a Seguradora da responsabilidade “extracontratual” dos arquitetos, o que nos remeteria unicamente para os danos causados a terceiros em relação aos contratos celebrados com os respetivos clientes ou, porventura, ainda, para os danos extra rem causados a esses clientes no exercício da atividade profissional. Mas para que um tal sentido pudesse ser extraído do concreto contrato de seguro de grupo era necessário que dele emergisse algum elemento que permitisse tal resultado, em função das regras próprias da interpretação de declarações negociais, nos termos dos arts. 236º e ss. do CC. No caso, na falta de qualquer outro elemento – note-se, mais uma vez, que a R., na contestação, nem sequer negou a abrangência mais ampla do contrato, limitando-se a invocar uma cláusula de exclusão – a cláusula respeitante à amplitude do contrato, à luz de um normal declaratário (art. 236º, nº 1, do CC), remete-nos singelamente para as indemnizações decorrentes da responsabilidade profissional, expressão que obviamente abarca, sem distinção, tanto a responsabilidade civil extracontratual como contratual, como é exigido pelo art. 238º, nº 1. Acresce ainda que, tratando-se de um clausulado geral, a referida interpretação literal é aquela que mais favorece o segurado, devendo por isso prevalecer em casos de ambiguidade (art. 11º, nº 2, do DL nº 446/85, de 25-10). Por conseguinte, para rematar este ponto, o contrato de seguro em causa abarca as indemnizações imputadas ao 2º R. quer a título de responsabilidade civil contratual quer extracontratual ou aquiliana. 6. A R. Seguradora, arrolou nas contra-alegações do recurso de apelação argumentos que foram aproveitados pela Relação para “mudar a agulha” do processo e, em lugar de reapreciar o mérito da sentença, tendo em conta a aplicação de alguma cláusula de exclusão da responsabilidade da Seguradora, nos termos em que esta o alegara na contestação e em função do que a tal respeito decidiu a 1ª instância, passou a apreciar o mérito da pretensão indemnizatória sob uma perspetiva totalmente diversa daquela que foi objeto de discussão, ou seja, sob o prisma da amplitude objetiva do contrato de seguro. Não se concebe esta opção, como legitimamente o referem os AA. A amplitude do contrato de seguro começa por constituir uma questão de facto, na medida em que, como decorre dos arts. 236º e ss., do CC, mesmo quando estejam em causa declarações negociais formais, não é indiferente o sentido que lhes é atribuído pelas partes, como o revela o nº 2 do art. 238º, o nº 1 do art. 236º e, para casos duvidosos, o disposto no art. 237º. Nesta perspetiva, para além da precipitação revelada pela Relação ao apreciar tal questão sem ouvir os AA., nos termos já referidos, incorreu numa outra falha não menos grave, na medida em que, ultrapassando os efeitos preclusivos que decorrem do art. 573º, nº 1, do CPC (toda a defesa deve ser deduzida na contestação …), passou a incidir sobre matéria nova em sede de recurso. Ora, é doutrina assente, e constitui jurisprudência generalizada e elementar, que os recursos têm por desiderato essencial a reapreciação de questões que tenham sido anterior e oportunamente suscitadas, regra que apenas pode ser ultrapassada em casos-limite, como ocorre quando esteja em causa matéria ou questões de conhecimento oficioso, nos ternos do art. 5º, nº 3 (ainda assim, tendo sempre presente a necessidade de assegurar o contraditório, nos termos do art. 3º, nº 3, do CPC). Ora, como se referiu, a amplitude do contrato é, na sua génese, uma questão de facto relativamente à qual se aplicam os efeitos preclusivos já referidos, motivo pelo qual não podia ser suscitada nas contra-alegações da apelação nem, obviamente, podia ser objeto de apreciação, a não ser quando se convertesse numa questão de direito, designadamente por estar em causa o sentido normativo das declarações negociais. Só este motivo impunha a revogação do acórdão, efeito que, contudo, encontra ainda um apoio adicional. 7. A Seguradora, seguida pela Relação, invocou nas contra-alegações da apelação o disposto no art. 24º, nº 1, da Lei nº 31/09, de 3-7, nos termos do qual: “1 - Os técnicos responsáveis pela coordenação, elaboração e subscrição de projetos, pela fiscalização de obra pública e particular e pela direção de obra a que se refere o art. 1º, estão obrigados a celebrar contrato de seguro de responsabilidade civil extracontratual, destinado a garantir o ressarcimento dos danos causados a terceiros por atos ou omissões negligentes, nos termos da legislação em vigor. 3 - As condições mínimas do seguro de responsabilidade civil, o âmbito temporal de cobertura, os termos de reclamação de sinistros, os termos das exceções ao âmbito da cobertura e os montantes são fixados, tendo em conta a qualificação detida, as funções desempenhadas, o valor dos projetos ou obras em que podem intervir e as obrigações a que estão sujeitos, por Portaria conjunta dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das obras públicas e particulares e da atividade seguradora, ouvidas as associações públicas profissionais de arquitetos, engenheiros e engenheiros técnicos. … 6 - O ressarcimento de danos decorrentes de responsabilidade civil contratual pode ser assegurado através da constituição de garantia financeira, que pode assumir a forma de depósito em dinheiro, seguro-caução ou garantia bancária”. É verdade que tal preceito pretende distinguir, dentro da responsabilidade civil dos arquitetos, entre a responsabilidade civil contratual e a extracontratual. Todavia, existe um obstáculo formal que impede a extração de qualquer apoio a partir dessas normas: segundo o art. 29º desse diploma, “as disposições relativas ao seguro de responsabilidade civil profissional, previsto no art. 24º, e aquelas respeitantes à sua comprovação entram em vigor no prazo de 3 meses após a data da entrada em vigor da Portaria referida naquele artigo”. Ou seja, uma vez que ainda não foi publicada a Portaria a que se refere o nº 3 do art. 24º, destinada a regular as “condições mínimas do seguro de responsabilidade civil extracontratual”, não é possível extrair daqueles preceitos qualquer argumento que favoreça a tese assumida no acórdão recorrido, pela singela razão de que ainda não se encontram em vigor. Resta, assim, a norma de enquadramento especificamente reportada à responsabilidade profissional dos arquitetos e que está contida no art. 51º do Estatuto da Ordem dos Arquitetos, republicado pela Lei nº 113/15, de 28-8, nos termos do qual “o arquiteto com inscrição em vigor está obrigado a garantir a responsabilidade civil emergente do exercício da atividade profissional, mediante subscrição de seguro de responsabilidade civil adequado à natureza e à dimensão do risco, ou prestação de garantia ou instrumento equivalente”. Trata-se de um preceito que deu sequência ao que está genericamente previsto no art. 31º da Lei nº 2/13, de 10-1 (Regime Jurídico das Associações Profissionais), nos termos do qual os estatutos das associações públicas profissionais podem fazer depender o exercício da profissão da subscrição de um seguro obrigatório de responsabilidade civil profissional ou a prestação de garantia ou instrumento equivalente, os quais devem ser adequados á natureza e à dimensão do risco …”. Por esta via, acabamos por desembocar na mesma conclusão que, afinal, já se extraiu do texto do contrato e que a R. não questionou no articulado de contestação, no sentido de fazer corresponder a amplitude do contrato de seguro com o que decorre do seu elemento literal. Na medida em que o art. 51º do referido Estatuto não estabelece qualquer distinção, dentro da responsabilidade civil profissional, entre responsabilidade civil extracontratual e contratual, reportando-se, de forma genérica, à responsabilidade civil emergente do exercício da atividade profissional, somos levados a afirmar, ainda com mais vigor, que, até que venha a ser publicada a Portaria referida no art. 24º da Lei nº 31/09, os arquitetos devem ser parte num contrato de seguro que garanta o pagamento de indemnizações decorrentes da sua “responsabilidade civil profissional”. Foi, aliás, para esse desiderato que concorreu a extensão ao 2º R. arquiteto do âmbito subjetivo do contrato de seguro de grupo que foi outorgado pela Secção Regional Norte da Ordem dos Arquitetos. E para que não reste qualquer ponta solta diremos ainda o seguinte: Nenhuma das partes, nem as instâncias, aludiram ao regime previsto no Decreto Regulamentar nº 11/92, de 16-5, alterado pelo Decreto Regulamentar nº 32/92, de 28-11, em conjugação com a Portaria nº 245/93, de 4-3, nos termos do qual é obrigatório o seguro de responsabilidade civil extracontratual por parte dos profissionais que subscrevam projetos de obras privadas, o que nos aproxima da situação configurada nos autos. Todavia, no caso concreto, a reclamação apresentada pelos AA. relativamente a danos não decorre da responsabilidade civil (contratual ou extracontratual) do 2º R. associada a “defeitos do projeto” que o mesmo elaborou e cuja aprovação promoveu junto da entidade municipal. Em causa estão danos que são imputados a uma outra faceta da atividade profissional do arquiteto, colocada a jusante, tendo por base o seu desempenho relativamente ao cargo de “diretor de obra” que assumiu perante os AA. Trata-se de uma função que é definida pela al. g) do art. 3º da Lei nº 31/09 (“técnico habilitado a quem incumbe assegurar a execução da obra, cumprindo o projeto de execução e, quando aplicável, as condições da licença ou comunicação prévia, bem como o cumprimento das normas legais e regulamentares em vigor”), e que, ademais, não se confunde com a de “diretor de fiscalização da obra”, a que se referem a al. f) do art. 3º e o art. 16º do mesmo diploma. 8. Por conseguinte, por qualquer das vias referidas, somos levados a concluir que não pode manter-se o acórdão da Relação, na parte em que julgou a ação improcedente relativamente à R. Seguradora, a partir de uma interpretação do contrato de seguro, nos termos da qual apenas abarcaria reclamações respeitantes a danos decorrentes da responsabilidade civil extracontratual do 2º R. Todavia, uma vez que, pelos motivos inovadores que foram assumidos, a Relação não se debruçou sobre as questões que foram suscitadas no recurso de apelação, por referência ao teor da sentença da 1ª instância, os autos terão devolvidos para esse efeito. Na verdade, na sentença, a R. Seguradora foi absolvida do pedido pelo facto de o 2º R. nunca ter informado os AA. dos problemas havidos com o licenciamento da obra, nem com os defeitos de construção, suscitando a aplicação das cláusulas de exclusão previstas nas als. p) e r) do ponto 5. do contrato. Em concreto, segundo a al. p), estão excluídas as reclamações “relacionadas com a vertente de fiscalização de obras quando a mesma não se fundamente e consubstancie em documentos, pareceres, conselhos, relatórios e comunicações escritas enviadas ao dono da obra e demais intervenientes”. Tal sentença foi impugnada no precedente recurso de apelação, mas a Relação, dando prioridade ao outro argumento ligado à amplitude do contrato, não apreciou a argumentação exposta pelos AA. no sentido de afastar a intervenção de qualquer das referidas cláusulas de exclusão. Nestas circunstâncias, impõe-se a remessa dos autos à Relação, a fim de serem apreciadas as questões que foram suscitadas pelos AA. na apelação e que ficaram prejudicadas pela resposta que foi dada à referida questão relacionada com amplitude do contrato de seguro, sendo designadamente visíveis a aplicação ou não de alguma cláusula de exclusão (para o que relevará a função desempenhada pelo 2º R. e a origem dos danos), a oponibilidade aos AA. de eventuais cláusulas de exclusão, a natureza jurídica do contrato de seguro que foi celebrado ou a oponibilidade aos AA. da limitação do capital seguro. IV – Face ao exposto, acorda-se em revogar o acórdão da Relação, determinando-se a remessa à Relação para os fins expostos. Custas da revista a cargo da R. Seguradora. Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos restantes juízes que compõem este coletivo. Notifique. Lisboa, 11-11-20 Abrantes Geraldes (Relator) Tomé Gomes Maria da Graça Trigo |