Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4539/21.6T8GMR.G1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ISABEL SALGADO
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
QUESTÃO NOVA
CONHECIMENTO OFICIOSO
ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
DEFEITOS
REPARAÇÃO
BOA -FÉ
ANULAÇÃO DA VENDA
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 07/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. O escrutínio do Supremo acerca do dever de fundamentação da decisão de facto da Relação, consiste em atestar se, a mesma evidencia em suficiência que empreendeu à análise da prova, exteriorizando o percurso de formação da sua convicção, no caso de provas sujeitas à livre apreciação do julgador.

II. O princípio estabelecido no artigo 660º, nº 2, do C.P.C, levará a considerar que não ocorre obstáculo ao conhecimento pelo Supremo Tribunal das questões não submetidas à apreciação da Relação, no caso de matérias de apreciação oficiosa, como o abuso de direito trazido à revista.

III. Ao interpor a acção, expirado o prazo derradeiro consensualizado entre as partes, confiando a Autora na seriedade do propósito de correcção pela Ré do vício da máquina, limitou-se a exercer o direito positivado de reaver o valor do preço da compra, de acordo com a finalidade da sua atribuição, face à incapacidade da Ré em prover a reparação, procedendo em consonância com o padrão de diligência do homem médio.

Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório

1. Da acção

Selma e Tiago – Indústria Têxtil, Unipessoal, Lda. intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Fitextron – Importação e Exportação de Máquinas para a Indústria Têxtil, Lda., pedindo:

a) a declaração de anulação do negócio de compra e venda da máquina corte transversal semiautomática, melhor identificada nas faturas juntas sob os documentos n.º 1 e 5, com a entrega da máquina à Ré e a restituição do preço por esta recebido, acrescido dos juros de mora, desde a data em que ocorreu o pagamento até à restituição efetiva e integral desse valor; e b) a condenação da ré no pagamento à autora de uma indemnização em consequência dos prejuízos por esta sofridos, em quantia a liquidar no respetivo incidente.

Em fundamento sintetizado alegou, que em 2018 comprou à Ré uma máquina industrial destinada à confeção de bainhas e colocação de etiquetas, convicta, de acordo com as informações prestadas, atingiria maior qualidade e celeridade na tarefa.

Pago o preço, a Ré atrasou a entrega e colocação da máquina , que nunca funcionou com regularidade e motivando paragens no trabalho; seguindo-se sucessivas reparações que não produziram efeito, até à desmontagem e paragem definitiva.

A Ré contestou, impugnou os invocados vícios da máquina que impeçam o seu normal funcionamento, alegando que resolveu todos os constrangimentos detectados, estando em perfeitas condições de funcionamento.

Pediu, ainda, a condenação daquela como litigante de má-fé, por ter omitido factos essenciais à decisão da causa.

Em resposta, a Autora manteve a petição, contrapondo a condenação da Ré como litigante de má-fé.

Seguindo a instância os normais trâmites, realizada a audiência de discussão e julgamento, proferiu-se sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo a Ré dos pedidos e improcedentes os pedidos recíprocos de condenação por litigância de má-fé.

2. Da apelação

Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação que obteve provimento a parcial , conforme o dispositivo do acórdão da Relação - « Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, e, em consequência, declarar a anulação do negócio de compra e venda da máquina corte transversal semiautomática, com a entrega da máquina à ré e a restituição do preço por esta recebido, acrescido dos juros de mora, desde a data em que ocorreu o pagamento até à restituição efetiva e integral desse valor. No mais, mantém-se a sentença recorrida. Custas a cargo da recorrente e recorrida, em partes iguais.»

3. Da revista

Inconformada, agora, a Ré, interpôs recurso de revista, terminando as suas alegações com as conclusões que se transcrevem:

I - O princípio da livre apreciação da prova não tem uma amplitude tal que permita que as conclusões retiradas da análise da prova pelo tribunal não tenham de ser acompanhadas da inerente justificação das razões/motivos que levaram a aquele a chegar às referidas conclusões.

II - No caso de alteração da matéria de facto assente em sede de 1ª instância, a Relação tem de fazer um novo julgamento, sendo que no mesmo não consegue, por razões óbvias, lançar da mão dos princípios da imediação, da oralidade e da concentração.

III - Por isso, a alteração da matéria de facto pela Relação é uma tarefa que tem uma exigência dupla que se traduz não só na realização do novo julgamento, como também na justificação pormenorizada, em sede de fundamentação, das razões que a levam a concluir de forma distinta da 1ª instância, sendo que a necessidade da referida pormenorização tem por origem a circunstância de só esta última poder elaborar a sua decisão, com recurso directo aos princípios da imediação, da oralidade e da concentração.

IV - A referida justificação pormenorizada permitirá aferir das razões/motivos que levaram a Relação a concluir de forma distinta da 1ª instância em sede de matéria de facto, bem como sindicar se houve o cuidado de analisar criticamente todos os meios de prova carreados para o processo.

V - Na falta de análise, e sem estarem justificadas na fundamentação, de forma pormenorizada, as razões/motivos que levaram a Relação a concluir de forma distinta da 1ª instância em sede de matéria de facto, a decisão da Relação viola o disposto nas disposições conjugadas dos artºs.663º, nº2, e 607º, nºs.4 e 5, ambos do Cód. Proc. Civil.

VI - No que concerne aos pontos 25 e 27 dos factos provados em 1ª instância, a sua exclusão pelo Venerando Tribunal a quo é sustentada numa fundamentação que é totalmente omissa quantos aos concretos meios de prova que determinaram a mesma.

VII - Uma coisa é existirem defeitos que são reconhecidos por quem vende uma máquina, outra, totalmente diferente, é o reconhecimento de que todos os defeitos reclamados existem e são da responsabilidade de quem procedeu à venda.

VIII - A comprovação factual de qualquer uma das duas hipóteses supra indicadas só pode ser efectuada com recurso à análise e apreciação dos meios de prova concretamente produzidos num processo, e não através do recurso a teóricos institutos jurídicos de natureza probatória, totalmente desacompanhado de fundamentos analíticos da prova efectuada.

IX - Isto porque, sem haver uma concreta indicação dos fundamentos explicativos e comprovativos, de que o tribunal lançou mão das regras da ciência, da lógica e da experiência, para, no âmbito do instituto da livre apreciação da prova, se decidir pela prova, não prova ou exclusão de um determinado facto, não é possível aferir do cumprimento dos critérios impostos pelo artº.607º, nºs.4 e 5º, do Cód. Proc. Civil.

X - Relativamente aos pontos 25 e 27 dos factos provados em 1ª instância, existe na douta sentença que considerou os mesmos provados uma análise crítica da prova, quer a documental junta pelas partes, quer a testemunhal, produzida em sede de audiência de julgamento, referindo expressamente quer os depoimentos das testemunhas AA, BB, CC e do legal representante da Ré, quer o factos de tais depoimentos terem sido confirmados em vários pontos pelas testemunhas arroladas pela recorrida, DD e EE.

XI - Pelo contrário, da leitura da douta decisão aqui em crise, não se consegue sequer perceber as razões/motivos que terão levado o Venerando Tribunal a quo a entender que o facto de as fábricas que utilizam máquinas iguais àquela que se encontra em causa nos presentes autos têm os seus próprios técnicos que adquirem os conhecimentos nas formações dadas pelas empresas vendedoras, só recorrendo a estas últimas nos casos que não podem resolver sozinhos, bem como o facto de a recorrida não ter seus quadros um técnico para fazer o acompanhamento devido à máquina e aos seus acessórios, ou para reportar, em termos técnicos, eventuais problemas de funcionamento, devem ambos ser pura e simplesmente excluídos do processo.

XI - No que respeita ao ponto 28 dos factos provados pelo Meritíssimo Tribunal de 1ª instância, consegue-se perceber, perfeitamente, porque concluiu aquele que a responsabilidade da recorrente incidia apenas sobre parte ( e não todos ) dos defeitos denunciados pela recorrida, sendo a decisão passível de sindicação na medida em que dela consta a análise crítica de todos os elementos probatórios efectuada pelo Meritíssimo Tribunal, de acordo com as regras da ciência, da lógica e da experiência, bem como as razões que levaram aquele a valorar num sentido ou noutro os elementos probatórios relativos a ao facto ora em causa que deu como provado.

XII - Na douta decisão em crise não se consegue sequer perceber por que razão todos os defeitos denunciados pela recorrida eram da responsabilidade da recorrente, nem tão pouco quais os elementos probatórios constantes dos autos em que o Venerando Tribunal a quo se baseou para poder retirar tal conclusão, pois inexiste qualquer referência a um só depoimento ou documento que permita a quem quer seja saber quais os fundamentos da mesma.

XIII - No que concerne aos pontos 48, 49, 50 e 58 dos factos provados em 1ª instância, e considerados como não provados pelo Venerando Tribunal a quo, a posição deste último, pese embora já não sendo totalmente omissa quantos aos concretos meios de prova que determinaram a mesma, limita-se apenas a uma mera conclusão, alicerçada num conceito jurídico que, com todo o respeito, nunca pode servir de fundamento a uma alteração da matéria de facto, provada e não provada.

XIV - O standard de prova é um conceito jurídico que em nada colide com as regras aplicáveis à fundamentação das decisões judiciais, servindo apenas como meio orientador de uma decisão em caso de situações em que os elementos de prova não são totalmente concludentes, devendo o julgador nesse caso optar pela hipótese fáctica que receba apoio (grau de confirmação lógica) relativamente maior dos elementos de prova conjuntamente disponíveis.

XV - Os casos em que se recorra à figura de standard de prova, implicam que fundamentação contenha uma profunda análise de todos os meios de prova relevantes para os respectivos factos e que, de acordo com as regras da ciência, da lógica e da experiência, na dúvida se opte pela hipótese mais plausível de acordo com as referidas regras.

XVI - Na douta decisão aqui em crise o Venerando Tribunal a quo tenha considerou que o depoimento da testemunha EE era, por si só, suficiente para afastar a validade probatória dos depoimentos das testemunhas CC, BB, AA e também do legal representante da Ré, não tendo, no entanto, indicado uma só concreta razão/motivo passível de alicerçar a referida conclusão probatória.

XVII - No que concerne ao ponto 58 dos factos provados em 1ª instância, para além da inexistência que supra se disse relativamente ao depoimento das testemunhas, é importante ainda referir que na declaração efectuada pela recorrente, no âmbito do acordo para que a recorrida lhe concedesse um prazo para proceder às reparações da máquina, consta precisamente que a máquina esteve parada, pelo menos no referido período (cfr. artº.59º da p.i.).

XVIII - Se tal afirmação consta da declaração que a própria recorrida juntou aos autos, e se na sequência da dita declaração a acção que a recorrida havia intentado para resolver o contrato foi objecto de uma transacção na qual se previa a reparação dos defeitos, não se consegue perceber o que terá dito a testemunha EE que coloca em causa o teor do termo de transacção aceite pela própria recorrida.

XIX - Do mesmo modo, no que concerne à alteração da resposta ao ponto 10 da matéria de facto não provada, também se constata que Venerando Tribunal a quo decidiu, única e exclusivamente, com base na conclusão que retirou do depoimento da testemunha EE, não constando da douta decisão recorrida qualquer explicação para que o depoimento desta testemunha se sobrepusesse a todos os restantes elementos probatórios, incluindo o da testemunha AA, que para além de técnico, foi também arrolado como testemunha pela recorrida, sendo, por isso, de presumir que tal apenas aconteceu porque esta última sabia que o mesmo tinha conhecimento directo dos factos.

XX - Pese embora, com excepção dos casos de prova tabelada, o Colendo Supremo Tribunal não tenha competência legal para apreciar matéria de facto, a verdade é que para poder sindicar o cumprimento do disposto no artº.607º, nºs4 e 5, do Cód. Proc. Civil, o mesmo pode aquilatar dos meios de prova existentes nos autos e, face aos mesmos, verificar se a fundamentação do tribunal recorrido cumpre ou não as referidas normas legais na parte referente à realização ( e não apreciação ) da análise probatória de acordo com as regras da ciência, da lógica e da experiência.

XXI - In casu, parece evidente que lendo a douta sentença de 1ª. instância se percebe, de forma cristalina, as razões/motivos porque, com recurso aos princípios da imediação, oralidade e concentração, o tribunal valorou os depoimentos de uma determinada forma, entende-se, claramente, a análise e conjugação dos vários elementos probatórios constantes dos autos, sendo possível sindicar o entendimento e conclusões a que chegou o Meritíssimo Tribunal de 1ª instância em matéria de factos provados e não provados.

XXII - Contudo, o mesmo já não acontece com a douta decisão recorrida, a qual, em termos de análise de matéria de facto é, numa parte, totalmente omissa, e, noutra parte, meramente conclusiva, não se conseguindo sequer perceber quais as razões/motivos que foram determinantes para que apenas o depoimento de uma única testemunha permitisse retirar qualquer valor a todos os restantes meios probatórios existentes nos autos relativamente aos mesmos factos.

XXIII - Por isso, a douta decisão recorrida viola o disposto nas disposições conjugadas dos artºs.663º, nº2, e 607º, nºs.4 e 5, ambos do Cód. Proc. Civil.

SUBSIDIARIAMENTE

XXIV - Ambas as partes, recorrente e recorrida aceitaram que a máquina padecia de alguns defeitos, e que a este último concedeu àquela, em 22 de fevereiro de 2021, um prazo de quatro meses para proceder à reparação dos mesmos.

XXV - Resulta da factualidade provada sob os pontos 22, 23, 24, 26, 32, 34, 35, 36, 37, 38, 40, 42, 43, 44, 45, 46 e 51 dos factos provados, bem como da documentação junta aos autos pela recorrida, que entre 2019 e 2020, foram várias as comunicações eletrónicas daquelas enviadas para a recorrente, no sentido de dar conhecimento de problemas com o funcionamento da máquina.

XXVI - Mais resulta da factualidade provada que, depois de ter assumido a responsabilidade pela reparação dos defeitos da máquina, a recorrente, tal como havia feito no momento da entrega inicial daquela, disponibilizou os técnicos que iriam efectuar a reparação para prestarem todos os esclarecimentos que a recorrida necessitasse – cfr. pontos 22 e 46 dos factos provados -.

XXVII - Resultou também provado que na sequência da reparação ocorrida em maio de 2021 recorrente solicitou expressamente à recorrida que fornecesse todos os artigos cuja produção anterior na máquina tivesse dado problemas, bem como aqueles sobre os quais, porventura, pudessem existir dúvidas quanto à capacidade da máquina para trabalhar com os mesmos – cfr. ponto 46 dos factos provados -.

XXVIII - Dos autos constam 5 e-mails da recorrente para a recorrida, no período compreendido entre 20 de maio de 2021 e 23 e junho de 2021 – cfr. docs.15, 16, 17, 18, 21 e 22 juntos com a p.i. -, a pedir que a recorrida a informasse quando é que iria colocar a máquina a trabalhar, os quais nunca obtiveram resposta, não constando do processo qualquer documento da recorrida nesse sentido.

XXIX - Consta igualmente dos autos um documento datado de 18 de maio de 2021, no qual a M....... explica não só todos os trabalhos de reparações e alterações que fez, como também a constatação pelo representante legal da recorrida de que a máquina não padecia de qualquer defeito, e que a recorrida continuava a não ter nenhum mecânico, nem técnico electrónico, para fazer o acompanhamento da máquina.

XXX - Por fim, está junto ao processo um o e-mail da testemunha AA, datado de 31 de julho de 2021, constante de fls.107 dos autos e que foi expressamente mencionado na douta sentença de 1ª instância, no qual o mesmo declara que após a reparação da máquina, ocorrida em maio de 2021, esteve duas vezes nas instalações da recorrida, sendo que nessas duas vezes a máquina nunca foi colocada a funcionar pela recorrida.

XXXI - Sendo a máquina em causa uma máquina industrial pode-se afirmar que pelas regras da ciência, da lógica e da experiência, para que alguém possa trabalhar com a mesma, bem como tratar da sua programação, acompanhamento e manutenção, tem de ter formação específica para o efeito.

XXXII -É obrigação daquele que vende a máquina ter todos os meios para dar a inerente formação, incumbindo àquele que compra a máquina, ter os recursos humanos adequados para o efeito, pois, se os mesmos não existirem nunca a máquina poderá funcionar normalmente.

XXXIII - Considerando que a máquina sofreu algumas alterações, nomeadamente ao nível da sua alimentação – cfr. pontos 37, 38, 42 e 45 dos factos provados -, os trabalhos que ocorreram em maio de 2021 não foram apenas de simples reparação de defeitos, mas também de alterações e melhoramentos na alimentação da própria máquina.

XXXIV- Sendo a pessoa encarregue da máquina pela recorrida, um administrativo e não um mecânico – cfr. ponto 23 dos factos provados -, a recorrente e a M....... tiveram o cuidado de informar a recorrida da total disponibilidade para serem efectuados todos os testes necessários a apurar o correcto funcionamento da máquina, bem como em disponibilizarem o necessário acompanhamento técnico durante três meses (cfr. ponto 46 dos factos provados e doc. nº18 junto com a contestação).

XXXV - Ao contrário do que se verificou nos anos de 2019 e de 2020, após a transacção judicial por força da qual a recorrida concedeu à recorrente um prazo de 4 meses para esta proceder à reparação da máquina, não há uma só comunicação da recorrida a informar que não consegue trabalhar com a máquina, ou que esta apresenta os mesmos problemas anteriormente reportados.

XXXVI - Depois de recorrente e recorrida terem chegado a um consenso quanto à concessão de um prazo para reparação de máquina, uma execução contratual de boa-fé por parte da recorrida obrigaria sempre a que a mesma, no mínimo, permitisse que o técnico disponibilizado pelo recorrente visse a máquina a trabalhar, bem como que eventuais anomalias que ainda se pudessem verificar fossem de imediato reportadas.

XXXVII - Tal comportamento era exigível não só pelos ditames da boa-fé, mas também pelo facto de terem sido efectuados trabalhos de correcção e de alterações com vista a facilitar o trabalho do operador que iria alimentar a máquina.

XXXVIII - Após os trabalhos de reparação de defeitos e de alterações ocorridos em maio de 2011, a recorrida nunca permitiu ao técnico da recorrente ver a máquina a trabalhar, e não apresentou uma só reclamação por alegado mau funcionamento da máquina.

XXXIX - No dia 27 de maio de 2021 tem conhecimento do relatório elaborado pela M....... – cfr. Docs.18, 19 e 20 juntos com a contestação – e não refuta o teor do mesmo, o que poderia ser feito permitindo que a testemunha AA visse a máquina a trabalhar e pudesse constatar que os alegados ainda se mantinham.

XL - O comportamento da recorrida enferma assim de vício de abuso do direito, o qual desde já aqui se argui para todos os devidos e legais efeitos

*

Na resposta a Autora contraditou a argumentação da recorrente, salientando a rejeição da reapreciação da matéria de facto, e a subsistência do julgado.

II. Admissibilidade e objecto do recurso

Mostram-se preenchidos os pressupostos gerais de recorribilidade-artigo 629º, nº1, do CPC.

As instâncias divergiram no sentido decisório, alegando a Ré recorrente em fundamento da revista, além do mais, que o Tribunal da Relação ao decidir sobre a impugnação da matéria de facto não seguiu as exigências legais na reapreciação da prova previstas no artigo 662º do CPC.

Constituiu entendimento pacífico, que a decisão de facto é da competência das instâncias, não podendo o Supremo Tribunal sindicar, em princípio, o uso feito das competências da Relação na reapreciação das provas previstas no artigo 662º, nº, 1 e nº 2, tendo em conta a regra estabelecida no seu n.º 4.

Solução legal que não impede que o Supremo Tribunal de Justiça possa intervir na deteção de erro de direito e sob o fundamento de revista previsto no artigo 674º, 1, b), do CPC, na situação em que se verifique que a Relação, na apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto fixada na primeira instância, afronte disposição expressa de lei, nomeadamente no caso de mau ou deficiente uso dos poderes deveres atribuídos para a reponderação ou de reexame da prova, ou ainda, verificar se omitiu o exercício de tais poderes que se impunham sobre factos relevantes para a decisão.

Explica Abrantes Geraldes sobre o tópico - “(…) Com efeito, é admissível recurso de revista quando sejam suscitadas questões relacionadas com o modo como a Relação aplicou as normas de direito adjectivo conexas com a apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, maxime quando seja invocado pelo recorrente o incumprimento de deveres previstos no art. 662º” ou quando se trate de “sindicar a decisão da matéria de facto nas circunstâncias referidas no art. 674º, nº 3, e apreciar criticamente a suficiência ou insuficiência da matéria de facto provada e não provada em conexão com a matéria de direito aplicável, nos termos do art. 682º, nº 3.”1

Donde, a revista vai assim admitida, atento o que dispõem os artigos 671.º, n.º 1, e 674.º, n.º 1, als. a) e b), do CPC.

*

Percorrendo as conclusões da recorrente em interface com o acórdão impugnado, salvaguardadas as questões de conhecimento oficioso, importa:

- Saber se, a Relação procedeu à análise crítica e fundamentada da prova na alteração da decisão sobre a matéria de facto, e na afirmativa, se é de revogar o sentido condenatório do acórdão;

- Subsidiariamente, apreciar se a Autora age em abuso de direito ao pedir a anulação do contrato e reclamar indemnização que determine a absolvição da Ré.2

II. Fundamentação de facto

1. A Autora é uma sociedade comercial, unipessoal por quotas, que tem por objeto o fabrico, comércio, importação e exportação de têxteis-lar, artigos de vestuário e acessórios de moda e de tecidos, exercendo essa atividade ininterruptamente desde a sua constituição até à presente data.

2. A Ré dedica-se ao comércio, importação e exportação de máquinas e acessórios para a indústria têxtil.

3. No exercício de ambas as atividades, em janeiro de 2018, a Autora contactou a Ré por estar interessada em adquirir uma máquina para embainhamento, máquina de que a Autora necessitava para a melhoria, quer na qualidade, quer da produtividade, no fabrico de toalhas de banho.

4. A Ré propôs à Autora a máquina corte semiautomática para embainhamentos transversais, fabricada pela M......., sociedade comercial italiana, assegurando à Autora que a mesma ia de encontro ao pretendido, pois confecionava bainhas e colocava etiquetas de vários tipos, em níveis de grande produtividade, satisfazendo as necessidades da Autora.

5. Face às características comunicadas pela Ré, a Autora aceitou adquirir a referida máquina e dois acessórios de coser etiquetas, tendo acordado entre ambas o preço global no montante de 182.500,00 €, acrescido de iva (41.975,00 €) e a Ré emitiu o documento datado de 25 de Janeiro de 2018, aceite pela Autora, junto como documento 1 da p.i. (fls. 14 dos autos) do qual, entre outras coisas, consta MAQUINA CORTE TRANSVERSAL SEMI-AUTOMATICA Alimentação peça única, transporte automático, dispensação etiquetas (opcional), costura, corte e empilhamento. A perfeita solução semi-automática para ter flexibilidade, alta qualidade no produto final, produtividade e desempenho para aumentar eficiência no fluxo de trabalho. 2 Etiquetadoras incluídas… e …VALOR TOTAL CNF V/INSTALAÇÕES de 224.475,00 €, iva incluído.

6. Autora e Ré acordaram que esta procederia à montagem e ao arranque da máquina em julho de 2018, bem como daria formação a colaboradores da autora.

7. Por email do dia 16.07.2018, 17:33, reproduzido no documento 2 da p.i. (fls. 14 v.º dos autos) a Ré informou a Autora de que a máquina estaria pronta para expedir para a fábrica desta no final desse mês ou na primeira semana de agosto.

8. Por conta do preço, a Autora pagou à Ré a quantia de 42.650,25 €.

9. Com vista ao pagamento da parte restante do preço, a Autora celebrou com a Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo, CRL, o contrato de locação financeira mobiliária pelo prazo de 60 meses, (documento número 4 da p.i.- flsls. 15 v.º e ss.); a cláusula 17ª das condições particulares estabelece “1. A garantia do Bem é prestada directamente pelo fornecedor ao locatário. (…) …sempre que, na vigência do presente contrato, surja ou seja identificado qualquer defeito de fabrico ou de montagem do bem, abrangido pela garantia, legal ou convencionalmente establecida, competirá única e exclusivamente ao locatário interpelar directamente o fornecedor, judicial ou extrajudicialmente (…) no sentido de ver reparado ou substituído o bem” …

10. Em cumprimento do contrato de locação financeira e do acordado entre a Autora e a Ré, esta emitiu a favor da Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo, em 8 de outubro de 2018, a fatura n.º 2018/167 referente à venda da identificada máquina, junta como documento 5 da p.i. (fls. 21 v.º dos autos) e recebeu o valor remanescente do preço.

11.A Autora vem procedendo ao pagamento, nas datas dos respectivos vencimentos, das rendas do contrato celebrado com a entidade bancária.

12. Após insistência da Autora, a Ré procedeu à entrega da máquina nas instalações daquela em dezembro de 2018 e à instalação e montagem durante o mês de janeiro de 2019.

12. Em 21 janeiro de 2019, a máquina ainda não funcionava.

13. No dia 21 de janeiro de 2019, a Autora enviou à Ré email reproduzido no documento 6 da p.i. (fls. 22 dos autos) contendo, entre outro, o seguinte teor: A máquina ainda não está a andar. Estão a surgir vários problemas como correias, etc.

14. A Ré deu o arranque da máquina no fim de janeiro de 2019.

15. A Autora remeteu à Ré, entre 30.01.2019 e 18.11.2019, os emails reproduzidos nos documentos 8 a 17 da p.i.

16. No decurso do 1º mês depois do seu arranque, a Autora verificou que o motor da máquina aquecia e abrandava até parar.

17. Na sequência da sua reclamação pela autora, foi considerada necessária pela Ré, a substituição da ventoinha do motor da máquina, o que veio a ser efectuado em março de 2019.

18. Em 18 de Novembro de 2019, pelas 9:26, a Autora remeteu à Ré o email reproduzido no documento 19 da p.i. (fls. 35 dos autos), dando conta de que “numa …obra com 2 bainhas iguais (…) uma das bainhas faz sempre mal… e de que a máquina se desligava …sucessivamente durante o dia até ao ponto de fazer RESET”.

19. Em novembro de 2019, a máquina fazia algumas bainhas tortas ou costuradas por cima do felpo quando trabalhava à velocidade necessária para atingir a produção anunciada pela Ré.

20. A Autora remeteu à Ré o email de 20 de novembro de 2019, 13:49, reproduzido no documento 20 da p.i. (fls. 35 v.º dos autos), do qual, além do mais, consta “Venho por este meio expressar o meu descontentamento em relação à máquina de coser topos”.

21. A Autora enviou à Ré o email de 5 de dezembro de 2019, 11:44, reproduzido no documento 21 da p.i. (fls. 36 dos autos) informando que “A máquina não está a activar sensor de corte…”.

22. A Ré procedeu à montagem da máquina, tendo disponibilizado um técnico para dar formação ao técnico da Autora que iria ser o responsável pela programação, afinação, montagem de acessórios e acompanhamento da produção da mesma.

23. A Autora decidiu incumbir um funcionário administrativo do exercício das funções técnicas mencionadas no facto anterior.

24. Na máquina em apreço, cada vez que a produção é mudada têm de ser efectuadas operações como a colocação dos materiais que vão alimentar a produção, a reprogramação electrónica da máquina, a verificação de que não há qualquer problema mecânico, bem como, por vezes, pequenas verificações e afinamentos.

25. As fábricas que usam máquinas iguais à mencionada, têm os seus próprios técnicos que adquirem os conhecimentos nas formações dadas pelas empresas vendedoras, só recorrendo a estas últimas nos casos que não podem resolver sozinhos. (artigo 45º da contestação) Excluído pelo acórdão recorrido.

26. A máquina em apreço é de carregamento manual, pelo que se o operador não colocar o produto devidamente alinhado com as peças de centragem, para além de potenciar um desgaste anormal, terá como consequência que o produto final não saia em plenas condições.

27.A Autora não tinha nos seus quadros um técnico para fazer o acompanhamento devido à máquina e aos seus acessórios, ou para reportar, em termos técnicos, eventuais problemas de funcionamento. Excluído pelo acórdão recorrido.

28. Parte dos problemas reportados desde o início de operação da máquina até novembro de 2019 deveram-se à falta de técnico mencionada no facto provado anterior. – Considerado não provado pelo acórdão recorrido.

29. A Ré sempre prometeu solucionar os problemas surgidos com a máquina.

30. A Autora remeteu à Ré a carta registada com A/R, datada de 22 de abril de 2020, de que também enviou cópia à Caixa Central – Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo, CRL, cujo teor se reproduz no documento 23 da p.i. (fls. 37 e ss. dos autos), do qual, entre outras coisas, consta …concede-se o prazo de 20 dias para procederem à reparação e eliminação integral dos defeitos de que a máquina padece. Caso não o façam no prazo concedido, será considerado que a máquina não tem as qualidades asseguradas por V. Exªs nem realiza o fim a que se destina, pelo que se desencadeará de imediato o processo com vista à obtenção da declaração de anulação do contrato de compra e venda celebrado, com as legais consequências.

31. Na sequência das comunicações aludidas nos factos provados anteriores, a Ré comprometeu-se a fazer deslocar às instalações da Autora técnicos da M......., fabricante da máquina, para solucionarem os alegados problemas da máquina e para dar mais formação a um técnico da autora.

32. Devido aos problemas relacionados com a epidemia de Covid-19 no início do ano de 2020, só em outubro desse ano, a equipa técnica da M....... veio a Portugal.

33. A Autora enviou à Ré o email de 26 de junho de 2020, 17:17, reproduzido no documento 25 da p.i. -fls. 39 v.º dos autos.

34. A Ré enviou à Autora o email de 1 de junho de 2020, 16:36, reproduzido no documento 26 da p.i. (fls. 40 dos autos) do qual, além do mais, consta “…o assunto não está esquecido. Até à data o espaço aéreo encontrava-se fechado como deve ser do seu conhecimento, pelo que não existia voos de Itália para Portugal. (…) No entanto, está previsto a vinda de um técnico da M....... no início da próxima semana, estamos apenas à espera de confirmação. Assim que obtivermos a confirmação da M......., informaremos de imediato.”

35. A Ré enviou à Autora o email de 20 de outubro de 2020, 14:39, reproduzido no documento 29 da p.i. (fls. 41 v.º dos autos) do qual, consta “Vimos por este meio informar de que Sr. FF pai e o Sr. BB vão-se deslocar às vossas instalações esta quinta-feira de manhã. “

36. Em 22 de Outubro de 2020 deslocaram-se às instalações da Autora duas pessoas provenientes da fabricante da máquina, os Srs. FF e BB, que verificaram o estado da máquina, realizando ensaios e testes.

37. Os ditos técnicos entenderam realizar alterações a peças da alimentação e introdução das toalhas da máquina para melhorar o seu desempenho.

38. Os ditos técnicos verificaram o problema mencionado no facto provado número 19 e entenderam realizar alterações à alimentação e introdução das toalhas da máquina para melhorar o seu desempenho, procedendo à desmontagem da peça de alimentação da máquina que retiraram e levaram com eles.

39. A Autora enviou à Ré o email de 10 de novembro de 2020, 18:44, reproduzido no documento 30 da p.i. (fls. 42 dos autos) do qual, consta …” a nossa empresa continua sem poder utilizar a máquina, não obstante as sucessivas tentativas de a repararem. (…) Deste modo, notificamos V. Exªs. de que dispõem do prazo de quinze dias a contar da presente data, efetuaram a sua desmontagem, para colocar a máquina em funcionamento e sem qualquer defeito que a impeça de executar os serviços para os quais foi adquirida. Decorrido o mencionado prazo sem que procedam da forma exigida, perderemos o interesse em ficar com a máquina, considerando (…) como resolvido o contrato de compra e venda da máquina por incumprimento do v/ parte.”

40. A Ré enviou à Autora o email de 11 de novembro de 2020, 10:34, reproduzido no documento 31 da p.i. (fls. 42 v.º dos autos) do qual, consta “…o assunto está a ser tratado, não estando esquecido e, está a ser a prioridade máxima da M....... e, assim, que tivermos disponível enviaremos fotos das peças que estão a ser desenvolvidas. Poderá verificar na foto abaixo que o departamento técnico está a desenvolver e já está em fabrico uma peça nova para sua máquina.”

41. Por emails remetidos a 2 e a 10 de dezembro de 2020, cujo teor se reproduz no documento número 32 da p.i. (fls. 44 v.º e ss. dos autos), a Ré informou a Autora de que a peça desenvolvida pelo fabricante seria entregue nas instalações da Autora a 10 de dezembro de 2020.

42. No dia 10 de dezembro de 2020 foram entregues nas instalações da Autora, duas embalagens provenientes da M........

43. GG, na qualidade de sócio-gerente da Ré, assinou o documento intitulado “Declaração”, datado de 22 de Fevereiro de 2021, reproduzido com o número 33 da p.i. (fls. 46 dos autos), contendo, entre outro, o seguinte teor: “Reconhece que a referida máquina sofre de defeitos que a impedem de funcionar, os quais, apesar de sucessivas intervenções que foi efetuando na máquina, continuam por reparar e a máquina sem poder ser utilizada pela compradora; É do seu conhecimento que, pelo menos, desde a intervenção dos técnicos da M......., ocorrida por instruções Declarante em 22 de outubro de 2020, a máquina se encontra desmontada nas instalações da Compradora e sem peças que lhe foram retiradas pelos referidos técnicos. Se obriga a proceder à reparação da máquina e a eliminar os defeitos de que a mesma padece e a impedem de funcionar no prazo de 4 meses, a contar da presente data. A presente declaração é efetuada na condição da compradora apresentar a desistência da instância da ação de processo comum que, sob o n.º 985/21.3... corre termos pelo Juízo Central Cível de ... – JUIZ 4.

44. A 7 de Maio de 2021, 10:26 horas, a Ré enviou à Autora o email reproduzido no documento 13 da contestação (fls. 95 dos autos), informando que na segunda-feira seguinte, …ao início da tarde, o técnico da M......., Sr. FF, irá se deslocar às vossas instalações a fim de fazer a modificação na máquina conforme estava previsto.

45. O técnico da M....... deslocou-se às instalações da Autora onde até 12 de maio de 2021 procedeu à montagem das peças que vinham nas embalagens aludidas no facto provado número 42.

46. A 12 de Maio de 2021, 14:51 horas, a Ré enviou à Autora o email reproduzido no documento 14 da contestação (fls. 96 dos autos) contendo, entre outro, o seguinte teor: “…a modificação da máquina já foi feita. A máquina neste momento encontra-se pronta para fazer todos os testes e (…) precisamos da vossa cooperação para fornecer todos os artigos do qual tenham dúvidas ou eventualmente funcionavam mal com a máquina, podendo assim obter todo o esclarecimento enquanto os técnicos estão cá e os mesmos possam informar quanto ao seu bom funcionamento”.

47. A máquina esteve desde finais de outubro de 2020 até 12 de maio de 2021, desmontada e sem possibilidade de ser utilizada por lhe faltar a peça que os técnicos retiraram e levaram com eles.

48. A partir de maio de 2021 a máquina ficou apta a funcionar sem os problemas descritos nos factos provados anteriores. - Considerado não provado pelo acórdão recorrido.

49. A pedido da Ré, o técnico AA indicado pela M......., deslocou-se às instalações da Autora, a fim de dar formação e também apoio técnico necessário ao correcto manuseamento e funcionamento da máquina, tendo verificado que esta se encontrava desligada e que a Autora não tinha intenção de a colocar em funcionamento. (artigo 73º da contestação). Considerado não provado pelo acórdão recorrido.

50. O mesmo técnico voltou a deslocar-se às instalações da Autora, tendo constatado que a Autora não funcionava com a máquina. – Considerado não provado pelo acórdão recorrido.

51. A Autora enviou à Ré a carta registada com A/R, datada de 4 de agosto de 2021, reproduzida no documento 34 da p.i. (fls. 47 v.º e ss. dos autos) contendo, entre outro, o seguinte teor: “Apesar de termos dado todas as possibilidades de eliminarem os defeitos da máquina, o que é certo é que não o conseguiram fazer, sendo evidente que a máquina não possui nem as características nem as qualidades que asseguraram e que determinaram a sua aquisição. Para além do histórico das intervenções sem sucesso na máquina, a última intervenção do técnico comprovou que a máquina nem sequer tem capacidade de executar os trabalhos para que foi adquirida. Por outro lado, terminou o prazo de que dispunham para a eliminação dos defeitos sem o terem conseguido fazer. Deste modo, sem prescindir de outros direitos que nos assistam, comunicamos a V. Exªs de que pretendemos anular o contrato de compra e venda da máquina, nos termos e para os efeitos no disposto no artigo 913º, nº 1, do Código Civil, designadamente a devolução da máquina e a restituição do preço. Assim, solicitamos a V. Exªs que procedam ao levantamento da máquina das nossas instalações, a qual estará a partir da presente data disponível para o efeito. Paralelamente deverão proceder à restituição do valor pago, acrescida dos juros moratórios vencidos, contados desde a data do recebimento do preço até à sua restituição. “

52. A carta referida no facto provado anterior, foi conhecida da Ré em agosto de 2021.

53. O técnico da Ré confirmou a impossibilidade de colocar na máquina etiquetas abertas com dimensão superior a 75 mm.

54. A máquina permite a colocação de etiquetas abertas até 75 mm de comprimento e dobradas até 150 mm.

55. Para que a costura das etiquetas dobradas seja correctamente executada, é necessário que o operador insira as etiquetas de determinada maneira.

56. De acordo com o documento intitulado “Confirmação de ordem CO-11-18” emitido pela Ré, reproduzido no documento 7 da contestação (fls. 81 e 82 dos autos), referente à máquina … o “Dispositivo de Distribuição Etiqueta M-Label” destina-se a: Etiquetas planas: largura: 15-70mm; Comprimento 40-120mm Dobrada: largura: 15-70mm; Comprimento 80-140mm (40-70 uma vez dobrado).

57. A Ré sabia que a Autora adquirira a máquina por estar convicta de que tinha as características e qualidades descritas nos factos provados números 3 a 5.

58. A Autora esteve impossibilitada de utilizar a máquina nos períodos de outubro de 2020 a maio de 2021. Considerado não provado pelo acórdão recorrido.


*


E, não provado que:

1. A montagem da máquina nas instalações da Autora foi realizada em Dezembro de 2018. Facto não provados

2. A Ré não conseguiu dar-lhe o arranque e colocá-la de imediato em funcionamento, porque se deparou com problemas. –Considerado provado pelo acórdão recorrido.

3. Cerca de uma semana depois do seu arranque, a máquina produzia as bainhas com defeito. Considerado provado pelo acórdão recorrido.

4. Em novembro de 2019, a máquina: - efectuava operações de “reset” sem qualquer instrução ou justificação - os motores não aguentavam trabalhar à velocidade necessária para atingir a produção anunciada pela Ré; - desligava-se automaticamente diversas vezes ao dia. Facto não provados

5. A máquina não activava o sensor de corte, provocando o desalinhamento das peças, o que determinava que viessem agarradas outras peças à peça puxada pela máquina.

6.A máquina continua desmontada e sem possibilidade de ser utilizada pela Autora.

7. Ninguém se deslocou às instalações da Autora para proceder à montagem das peças e da máquina, continuando a mesma desmontada.

8. A máquina apresenta problemas com a colocação das etiquetas, pois que aparecem torcidas.

9. A colocação da etiqueta dobrada contraria a pretensão da Autora, bem como a dos seus clientes.

10.A máquina continua sem poder ser utilizada pela Autora. – Considerado provado pelo acórdão recorrido.

11. A Autora sofreu paragens na produção e atrasos na entrega de encomenda resultantes dos problemas da máquina descritos nos factos provados.

12. A Autora procedeu à reparação de peças confeccionadas com defeito.

13. A máquina foi sempre utilizada de forma totalmente incorrecta pela Autora.

14. Todos os problemas que a Autora comunicou à Ré são resultado de má utilização pela primeira.

15. A reparação aludida no facto provado número 45 foi concluída em junho de 2021.


*


B. O Direito

1. Da impugnação da matéria de facto

A primeira questão objeto do recurso prende-se com a alteração introduzida na matéria de facto pelo tribunal recorrido:

- A exclusão dos factos provados dos pontos 25 e 27;

- Os factos provados 28, 48, 49, 50 e 58 -alterou o sentido probatório para factos não provados;

- Os factos provados 2, 3, e 10 -alterou o sentido probatório para factos provados.

1.1. Reconhecendo-se, como já se disse, que a decisão de facto é da competência das instâncias, sublinhando a vocação do Supremo Tribunal de Justiça no conhecimento das questões de direito, a sua intervenção no capítulo da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, queda-se pelas situações em que seja invocado erro de direito, por violação de lei adjetiva civil, ou a ofensa a disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova, ou que fixe a força de determinado meio de prova com força probatória plena – artigo 674.º, n.º 3, do CPC.

Competindo-lhe ainda intervir para aferir se, o tribunal da Relação observou, quer a disciplina processual aludida nos artigos 640º e 662º, nº 1, do CPC, como verificar se cumpriu o ónus de análise crítica da prova – artigo 607º, nº 4 ex vi 663º, nº 2, do CPC.

Nesta matéria «(…) compete ao tribunal de revista ajuizar se o Tribunal da Relação observou o método de análise crítica da prova prescrito no n.º 4 do indicado artigo 607.º, mas já não se imiscuir na valoração da prova feita segundo o critério da livre e prudente convicção do julgador, genericamente editado no n.º 5 do artigo 607.ºdo CPC»3

Posição dominante neste Supremo Tribunal, como ilustram em profusão os acórdãos tirados sobre a matéria, inter alia, os acórdãos de 04-07-2023, Revista n.º 19645/18.6T8LSB.L1. S1; de 15-06-2023, Revista n.º 6132/18.1T8ALM.L1. S2; de 24-10-2023, Revista n.º 24966/19.8T8PRT.P1. S1; de 14-07-2021, Revista n.º 1333/14.4TBALM.L2. S1.4

1.2. É a seguinte a motivação da convicção externada no acórdão em apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto: 5

«A Recorrente considera incorretamente julgada a matéria constante dos pontos 25, 27, 28, 48, 49, 50 e 58 dos factos provados que deveria ser não provada e, por outro lado, os pontos 2, 3, 4, 10, 11 e 12, dos factos não provados deveriam ser considerados provados.

Recai sobre aquele que invoca a prestação inexata, no caso a existência de defeito na coisa, como fonte da responsabilidade, o ónus de demonstrar os factos que integram o incumprimento, competindo à outra parte fazer prova de que o defeito verificado não procede de culpa sua.

Este ónus de prova não se satisfaz com a simples demonstração que o devedor, na realização da prestação, agiu diligentemente, ficando o tribunal na ignorância de qual a causa e quem merece ser censurado pela verificação do defeito.

Nesta situação, continua a funcionar a presunção de que o devedor da prestação é o culpado. O devedor tem de provar a causa do defeito, a qual lhe deve ser completamente estranha. Só assim se exonerará da responsabilidade pelo defeito existente na prestação por si realizada.

Portanto, tendo ficado provado que a máquina padecia de defeito que a impedia de desempenhar a função para a qual foi adquirida, não se pode ter por demonstrado que parte dos problemas reportados desde o início de operação da máquina até novembro de 2019 deveram-se à falta de técnico qualificado para o acompanhamento da máquina.

A realidade de facto que é apreendida pelo tribunal e que como tal deve ser consignada é a que possui significação jurídica, no sentido da sua relevância para a solução jurídico-normativa do caso e não o facto enquanto inocuidade do acontecer.

Donde, os pontos 25, 27, deverão ser excluídos e o facto 28 da matéria provada deve ter-se por não provado.

Quanto aos factos 48, 49, 50 e 58 dos factos provados e os factos 2, 3 e 10 dos factos não provados, também aqui assiste razão à recorrente.

Da prova produzida no seu conjunto resulta a convicção de que a máquina vendida padecia de deficiências que a impossibilitava de proceder ao embainhamento das peças nos termos acordados e que não obstante as várias intervenções para a sua reparação não resultou, com a suficiência e segurança exigíveis, a demonstração de que tivesse ficado a funcionar adequadamente.

Como é sabido, a prova de um facto requer o preenchimento do designado standard mínimo da prova. A este propósito, exige-se que, através dos meios de prova que foram apresentados, seja possível afirmar que o facto é verosímil, no sentido de, como afirma Miguel Teixeira de Sousa, 'excluir, segundo o padrão que na vida prática é tomado como certeza, outra configuração da realidade dada como provada'6. Exige-se também que seja possível elaborar um raciocínio lógico que permita justificar externamente esta verosimilitude, não se limitando ao mero convencimento subjetivo do julgador. A confirmação do facto deverá atingir este patamar mínimo - sufficiency of evidence - sob pena de a parte a quem compete o ónus da prova suportar a consequência jurídica da falta de confirmação.

Ora, o depoimento das testemunhas CC, BB, AA, e mesmo das declarações do legal representante da ré, não permitem concluir que após a vinda dos técnicos da M....... a Portugal a máquina ficou a funcionar normalmente.

Esta conclusão é frontalmente contrariada pela testemunha EE que ademais de evidenciar a impossibilidade de colocar na máquina etiquetas abertas com determinada dimensão, não afastou a persistência das anomalias anteriores.

Quanto aos demais factos impugnados que se reportam às concretas anomalias produzidas pela máquina (ponto 4º não provado) e os impactos na produção (atraso e reparação de peças defeituosas), não houve prova cabal nesse sentido.

Quanto a estes impactos (factos não provados 11 e 12), concorda-se com a decisão recorrida de que não há nos autos reclamações escritas, por parte de clientes da Autora, de atrasos de entregas de produtos dependentes da operação da máquina em apreço, nem tal foi suportado em julgamento pelas testemunhas que esta arrolou. Acresce que, como testemunhou EE, a Autora subcontrata fora 95% do processo de produção das bainhas das toalhas pelo que tem a sua operação montada sem depender do funcionamento da máquina em apreço. Foi insuficiente a prova sobre a reparação de produto com defeito, suportada apenas por testemunho de DD (que pouco tempo trabalhou com a máquina, uma vez que entrou em gozo de licença de maternidade logo após).

Nestes termos, procede parcialmente a impugnação, devendo excluir-se da matéria de facto os factos 25, 27 e dar-se como não provados os factos 28, 48, 49, 50 e 58 do elenco dos factos provados e como provados os factos 2, 3 e 10 contante da matéria não provada. (…).»7

1.3. Afirma a recorrente que, a Relação ao conhecer da impugnação da matéria de facto violou o disposto nos arts. 663.º, n.º 2, e 607.º, n. os 4 e 5, ambos do CPC- “(…) em termos de análise de matéria de facto é, numa parte, totalmente omissa, e, noutra parte, meramente conclusiva, não se conseguindo sequer perceber quais as razões/motivos que foram determinantes para que apenas o depoimento de uma única testemunha permitisse retirar qualquer valor a todos os restantes meios probatórios existentes nos autos relativamente aos mesmos factos.»

O juiz fixará os factos de acordo com a convicção que extrair da prova produzida, analisada de forma racional e lógica, atendendo à qualidade e credibilidade dos meios probatórios apresentados no processo, e de outro passo, no espaço do princípio da livre apreciação, em que se enquadra a prova testemunhal (artigo 396.º do Código Civil) a convicção do julgador assentará em regras da ciência e do raciocínio e em máximas de experiência.

Antecipando a solução, a recorrente não tem razão, a nosso ver, o tribunal a quo exerceu em suficiência e inteligibilidade de fundamentação os poderes-deveres na apreciação da impugnação da matéria de facto, v.g., procedendo à análise crítica da prova objecto, concatenando os factos em apreço.

Lendo a motivação da decisão supra vertida, não podemos deixar de concluir, que o acórdão, no domínio da sua autonomia decisória, valorou os meios de prova, formulando o juízo probatório que entendeu por adequado, ao abrigo do princípio geral da livre convicção, sem desconsideração da prova produzida.

Dito de outro modo, a fundamentação da decisão evidencia que o tribunal da Relação empreendeu na ponderação da prova indicada e disponível no processo, traduzindo o percurso seguido para a formação da sua convicção própria e autónoma relativamente à matéria de facto impugnada.

Detalhando.

A Relação concluiu pela eliminação da matéria de facto sob os pontos 25 e 27 que integravam o elenco dos factos provados, motivada pela sua irrelevância no desfecho da causa, tendo em conta o objecto do litígio – venda de coisa defeituosa e ónus de prova e a matéria de facto provada não impugnada.

Explicitou a posição, referindo que, cabendo à Autora o ónus de prova do facto (que alcançou) - a máquina padecia de defeito - e, à Ré o onus probandi que a causa de tal defeito não lhe é imputável ou devida, tal matéria não ser susceptível de demonstrar através do teor dos pontos 25 e 27 dos factos provados, com apoio na doutrina citada sobre a venda de coisa defeituosa.

No que respeita ao facto provado sob o n.º 28 - “Parte dos problemas reportados desde o início de operação da máquina até novembro de 2019 deveram-se à falta de técnico mencionada no facto provado anterior” – entendeu o acórdão recorrido tratar-se de factualidade não provada.

Neste aspecto seguiu a anterior linha da motivação, i.e, a razão dessa alteração decorreu a pari da prova de - a máquina apresentar defeito de funcionamento, incompatível com o teor do ponto 28 – “.. se deve à falta de técnico ao serviço da Autora”.

Relativamente aos factos provados 48, 49, 50 e 58 o acórdão recorrido alcançou convicção probatória oposta, e quanto ao facto 10, considerou que deveria passar para o elenco de factos provados.

Nas alterações introduzidas neste bloco de facto interdependes, procedeu a uma efectiva reapreciação crítica da prova testemunhal, contextualizando em traços breves, mas suficientes, as razões e motivações que determinaram a alteração do juízo probatório, ao estabelecer o fio condutor entre a decisão sobre os factos e os meios de prova que sustentam a sua convicção, sublinhando os aspetos mais relevantes.

Fê-lo em termos que merecem a nossa concordância e não suscitam dúvida quanto ao sentido do assim ajuizado, quer da sua fundamentação.

Estamos cientes pela análise das alegações, que a Recorrente sobrepôs a sua discordância com o decidido, não sendo sindicável o eventual erro desse julgamento nos domínios da apreciação e valoração da prova livre nem da prudente convicção do julgador.

Ao tribunal de revista compete assegurar a legalidade processual do método apreciativo efectuado pela Relação, mas sem ingerência nos domínios da apreciação e valoração da prova livre, nem da prudente convicção do julgador.

Com pertinência in casu, observou-se no recente acórdão do Supremo Tribunal de 04/04/2024, em torno da definição dos limites do poder/dever de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto e o dever de a Relação fundamentar a reapreciação da prova- « Embora a Relação tenha o poder/dever de modificar a decisão da matéria de facto se e quando for de extrair da reapreciação dos meios de prova um resultado diferente do que lhe foi dado pela 1.ª Instância, o Supremo não pode, tendo sido impugnada a decisão de facto, escrutinar/controlar, “em substância”, o uso (não uso ou uso deficiente) que a Relação fez de tal poder/dever de modificar a decisão da matéria de facto (quando estão em causa provas sujeitas à livre apreciação do julgador).II E se o Supremo não pode escrutinar/controlar, “em substância”, tal poder/dever da Relação, tem o Supremo – para não incorrer em intromissões indevidas em matéria que lhe está vedado escrutinar/controlar – que ser contido no escrutínio/controlo dos aspetos adjetivos em que a decisão de facto (de modificação ou não) proferida pela Relação se exterioriza (quando estão em causa provas sujeitas à livre apreciação do julgador).

III – Assim, no controlo/escrutínio do dever de fundamentação da Relação, não pode/deve o Supremo ir além do que se entende constituir nulidade da sentença/acórdão por falta de fundamentação, ou seja, não pode considerar-se suficiente apenas a fundamentação da Relação que seja sólida, densa e completa, sob pena de, sendo de outro modo, poder estar o Supremo a incorrer em intromissões no que lhe está vedado escrutinar/controlar. interpretação que se faça do art. 662.º/4 do CPC (…)»8


*


Improcede, em consequência, nessa parte, o recurso.

2. Actuação em abuso do direito de açcão

Estabilizada a matéria de facto nos termos sobreditos, a Relação concluiu pela verificação do vício da máquina em mobilização das normas da venda de coisa defeituosa e, como tal, procedente a pretensão de anulação do contrato de compra e venda da máquina, com a restituição do preço pago pela Autora, em aplicação do estabelecido no artigo 913º ex vi artigo 905º do Código Civil.9

A Ré recorrente defende, nesta vertente, que a Autora age em abuso de direito, na modalidade de venire contra factum, pugnando, em consequência, pela revogação do acórdão.

1. A invocação ex-novo do abuso de direito

A excepção da actuação da Autora em abuso de direito vem suscitada na revista pela primeira vez, acolhendo-se a recorrente na doutrina do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-07-2018, cujo sumário pontifica - «(…) o abuso do direito, que é de conhecimento oficioso, não está sujeita ao princípio da preclusão consagrado, quanto aos meios de defesa do réu, no art. 573º do CPC, visto caber nas exceções previstas no seu nº 210

A oportunidade da arguição do abuso de direito em sede de revista, não antecedida da alegação das partes, ou da abordagem oficiosa pelas instâncias, não tem resposta unívoca na jurisprudência do Supremo Tribunal, embora com tendencial acolhimento da tese veiculada naquele douto aresto, ou seja, dando proeminência ao carácter oficioso da excepção.

A título exemplificativo, cfr. o acórdão do STJ de 23-03-2017- “Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais através dos quais se visa reapreciar e modificar decisões proferidas que incidam sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, e não as criar sobre matéria nova, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas, salvo aquelas que são de conhecimento oficioso (art. 627.º, n.º 1, do CPC)”»11

No acórdão do STJ de 11-10-2022, o último ponto do sumário ilustra - “Está vedado ao tribunal superior (ad quem) conhecer de questões novas, isto é, que não tenham oportunamente sido invocadas e submetidas à apreciação do tribunal a quo, salvo tratando-se de questões que a lei impõe/permite o seu conhecimento oficioso.»12

Em igual sentido, destacamos na doutrina Abrantes Geraldes, que afirma neste contexto - «A regra que impede o tribunal de recurso de conhecer de questões novas não vale quanto às questões de conhecimento oficioso de que podem conhecer tanto o tribunal a quo como o tribunal ad quem, ainda que as partes as não tenham suscitado. Ponto é que não esteja precludida essa possibilidade, quer por força de alguma disposição legal, como ocorre com o artigo 97º, nº2, do CPC, acerca da incompetência absoluta na esfera dos tribunais judiciais, ou com o artigo 200º, nº2, sobre a ineptidão da petição inicial e erro na forma de processo, quer por força do caso julgado anteriormente formado, como ocorre nos casos em que as excepções dilatórias foram objecto de impugnação específica no despacho saneador, nos termos do artigo 595º, nº3, 1ª parte.»13

Não oferece dúvida que a função do recurso consiste na reapreciação das questões que tenham sido alegadas e submetidas ao juízo das instâncias recorridas, conhece, contudo, exceções tipificadas na lei, como são as matérias de apreciação oficiosa na previsão do artigo 608º, n.º 2, do CPC.

Justamente, sendo o abuso de direito, excepção de conhecimento oficioso, de acordo com a jurisprudência dominante do Supremo Tribunal de Justiça e, também pela doutrina relevante, o douto e citado aresto admitiu a sua invocação, enquanto direito de defesa do Réu, não abrangido pelo princípio da preclusão da alegação na contestação (artigo 574º, nº2, do CPC).14

Já no caminho da exclusão do abuso de direito suscitado em primeiro mão na revista, enquanto questão nova, pronunciou-se o Acórdão do Supremo Tribunal proferido em 5.05.2007 - «(..) da VI - Se a questão do eventual “abuso de direito” foi uma questão que não foi levada à Relação no recurso de apelação e é uma questão de que ela não conheceu, não pode o STJ conhecer dela porque o recurso de revista é um recurso de revisão ou reponderação e “não é possível reponderar o que não existe”.»15

Noutra perspectiva, o recente Acórdão do Supremo de 20.12.2022, reconhecendo embora a possibilidade de conhecimento oficioso do abuso de direito «(…) não se extrai que exista obrigação de pronúncia sobre a questão do abuso de direito quando, não tendo a questão sido suscitada, o exercício ilegítimo do direito não resulte dos factos apurados nos autos, até porque o dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais se refere apenas às questões controvertidas ou de que cumpra conhecer. 16

E, em passagem adiante, explicita «(..) apesar de se tratar de uma questão nova, no sentido de não submetida ao julgamento ao Tribunal recorrido, o Tribunal de segunda instância está vinculado a tomar conhecimento do abuso de direito se – e só se – do conjunto dos factos alegados e provados resultarem provados os seus pressupostos legais. Em sede de recurso de revista torna-se inútil, sendo acto proibido pela lei processual, ordenar a baixa do processo à segunda instância para apreciar do abuso de direito se dos factos apurados não resulte sequer minimamente indiciado que qualquer das partes actuou em abuso de direito.»

Tomando posição.

O princípio estabelecido no artigo 660º, nº 2, do C.P.C, segundo o qual – “o juiz não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras” – levará a considerar que não ocorre obstáculo ao conhecimento pelo Supremo Tribunal das questões não submetidas à apreciação da Relação, no caso de matérias de apreciação oficiosa.

Acolhendo nós a orientação da admissibilidade do conhecimento do abuso de direito, suscitado em primeira mão pelo recorrente, apreciaremos a excepção invocada na revista.

2.2. Breve aproximação ao instituto do abuso de direito.

A evolução na aplicação da cláusula geral do abuso de direito pela jurisprudência a que assistimos no final do século XX, sinalizou uma miríade de situações tipo que justificam a intervenção daquele instituto. Caminho que a doutrina acompanhou, contribuindo em larga escala para a compreensão e densificação da figura jurídica do abuso de direito.

Conforme jurisprudência deste Supremo Tribunal - «I - O abuso do direito, consagrado no art. 334.º do Código Civil, corresponde, sobretudo, a uma manifestação concreta do princípio da boa-fé. II - O comportamento, manifestamente atentatório da boa-fé, deve ser repudiado pela ordem jurídica, qualificando como ilegítimo o exercício do direito baseado nesse comportamento e obstando à concretização da respetiva pretensão jurídica».17

Antunes Varela lecciona “(..) para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder.”18

Do mesmo autor- “Os tribunais só podem, pois, fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso”.19

Coutinho de Abreu, refere que «(..) há abuso de direito quando um comportamento aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização de interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem.»20

Para Carneiro da Frada - « (…) na concretização dos ditames de um comportamento de boa fé importa obviamente ponderar a normalidade social das condutas e os "papéis" sociais desempenhados pelos contraentes, as representações recíprocas a esse respeito, os usos comerciais, valorações de justiça objectiva (tanto as ligadas às especificidades da relação concreta, como as próprias do género de relação em que aquela se integra, enquanto suas naturalia), critérios de distribuição dos riscos da relação (...). Na extensa panóplia de tópicos utilizáveis avultam, naturalmente, as expectativas informalmente engendradas no contexto da relação contratual concreto, não devendo esquecer-se a ordem de solidariedade mínima que informa o âmbito da relação obrigacional e que restringe a possibilidade de comportamento puramente egoísticos21

Em concreto, o abuso de direito na modalidade alegada pela recorrente - o venire contra factum proprium - constitui uma manifestação da tutela da confiança, atendendo a respetiva concretização a um quadro de proposições enunciadas como, situação de confiança, justificação para essa confiança, investimento de confiança e imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela proteção dada ao confiante, que devendo articular-se entre si, não obedecem a uma hierarquização, não se exigindo, em absoluto, a sua cumulação, pois a falta de um de tais requisitos para a proteção da confiança pode ser compensada pela especial intensidade de outro, ou outros, no atendimento, do caso em concreto.22

2.3.A situação em juízo.

No quadro fáctico provado e traçado, resulta - «A autora contactou a ré por estar interessada em adquirir uma máquina para embainhamento, máquina de que necessitava para a melhoria, quer na qualidade, quer da produtividade, no fabrico de toalhas de banho. A ré propôs à autora a máquina corte semiautomática para embainhamentos transversais, fabricada pela M......., assegurando que a mesma ia de encontro ao pretendido confecionava bainhas e colocava etiquetas de vários tipos, em níveis de grande produtividade, satisfazendo as necessidades da autora. Face às características comunicadas pela ré, a autora aceitou adquirir a referida máquina e dois acessórios de coser etiquetas, e a ré emitiu o documento datado de 25 de janeiro de 2018, aceite pela autora, do qual, entre outras coisas, consta MáQUINA CORTE TRANSVERSAL SEMI-AUTOMATICA Alimentação peça única, transporte automático, dispensação etiquetas (opcional), costura, corte e empilhamento. A perfeita solução semi-automática para ter flexibilidade, alta qualidade no produto final, produtividade e desempenho para aumentar eficiência no fluxo de trabalho. 2 Etiquetadoras incluídas. A ré sabia que a autora adquirira a máquina por estar convicta de que tinha as características e qualidades descritas. No decurso do 1º mês depois do seu arranque, a autora verificou que o motor da máquina aquecia e abrandava até parar e produzia as bainhas com defeito. Em face disso, foi considerada necessária pela ré a substituição da ventoinha do motor da máquina, o que veio a ser efetuado em março de 2019.A máquina continuava a fazer as bainhas tortas ou costuradas por cima do felpo quando trabalhava à velocidade necessária para atingir a produção anunciada pela ré. Os técnicos verificaram o problema e entenderam realizar alterações à alimentação e introdução das toalhas da máquina para melhorar o seu desempenho, procedendo à desmontagem da peça de alimentação da máquina que retiraram e levaram com eles. O técnico da M....... deslocou-se às instalações da autora onde até 12 de maio de 2021 procedeu à montagem das peças. O técnico da ré confirmou a impossibilidade de colocar na máquina etiquetas abertas com dimensão superior a 75 mm. A máquina continua sem poder ser utilizada pela Autora.»

Posto este descritivo, que reflete o desenvolvimento da actuação de cada um dos sujeitos na relação contratual, concluímos que, face à impossibilidade inicial e mantida intermitente ao longo de mais de dois anos em que a Autora tentou operar com a máquina, não logrando a Ré solver a deficiência do seu funcionamento, apesar da extensão do prazo para a reparação, não vemos, onde, no caso vertente, radique a “grosseira ofensa ao sentimento jurídico socialmente dominante”, rectius, actuação da Autora em abuso de direito na demanda judicial da Ré.

A máquina vendida padecia de deficiências que a impossibilitava de proceder ao embainhamento das peças de roupa, finalidade a que se destinava nos termos acordados; e não obstante as várias intervenções da Ré, a reparação nunca resultou, conquanto a Autora tenha suportado o quantitativo inicial do preço e esteja a pagar as prestações devidas no âmbito do contrato de leasing celebrado com o banco.

Reiterando, a Autora foi confrontada com a deficiência inicial da máquina industrial comprada à Ré, que não logrou eliminar, situação que persiste até hoje – a máquina não se encontra apta a ser utilizada – volvidos quase três anos sobre a aquisição. – cfr. pontos 12 a 21, 47 e 51 dos factos provados.

Verificada a deficiência da máquina, que remonta à sua instalação e montagem, inviabilizada a sua utilização para o embainhamento transversal das peças confeccionadas, a Autora foi contemporizando com as sucessivas intervenções e reparações promovidas pela Ré, sem sucesso; tendo, inclusive, no limite, concordado em permitir a reparação no período acrescido de quatro meses, para suprir a deficiência, reconhecida pela Ré, o que, contudo, se gorou decorrido aquele prazo - cfr. factos provados 43 a 51.

A autora que suportou os encargos com o pagamento integral do preço, logo recebido pela Ré- cfr. factos provados 9 a 11- viu -se, porém, defraudada nas legítimas expectativas de usar a máquina para o fim pretendido, ao longo do extenso período temporal.

Apesar de todas as delongas e impedida de utilizar a máquina, a Autora concedeu ampla margem de oportunidade à Ré para satisfazer a sua obrigação contratual, fornecer a máquina em condições de regular funcionamento e para o fim adquirida.

Não se mostra, pois, compatível, à luz dos princípios da boa-fé, num juízo de razoabilidade, entre agentes económicos, que a Ré queira procrastinar a assunção das consequências do cumprimento defeituoso na venda da máquina.

Reafirmando, a Autora ao interpor a acção, após o tempo decorrido e expirado o prazo derradeiro consensualizado entre as partes, confiando na seriedade do propósito de correcção do vício pela Ré - defeito da máquina manifestado ab initio- limitou-se a exercer o direito positivado de reaver o valor do preço da compra, de acordo com a finalidade da sua atribuição, face à demonstrada incapacidade da Ré em prover a reparação.

Neste contexto factual e desenvolvimento temporal, não podia a Ré objectivamente confiar que a Autora tomasse outro rumo, em ordem a tutelar o seu direito.

Para concluir, que a Autora ao enveredar pelo pedido de anulação do contrato, reclamando o preço (e indemnização) - artigos 905°, 247° e 254°, ex vi do n.° 1 do artigo 913º do Código Civil – procedeu em consonância com o padrão de diligência do homem médio, e os cânones para o exercício do direito potestativo de cessação contratual.


*


Claramente soçobra a argumentação da Ré recorrente no segmento recursivo do invocado abuso de direito.

IV. Decisão

Pelas razões expostas, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.

As custas da revista são a cargo da Ré recorrente.

Lisboa, 4.07.2024

Isabel Salgado (relatora)

Catarina Serra

Afonso Henrique

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1. In Recursos em Processo Civil, 7ªedição, pág.363.

2. A questão prévia da oportunidade da pronúncia do STJ sobre o abuso de direito invocado pela primeira vez na revista, será apreciada no ponto III, 2.1.

3. Cfr. Acórdão do STJ de 16-12-2020, proc. n.º 4016/13.9TBVNG.P1. S3, in www.dgsi.pt.

4. Todos in www.dgsi.pt.

5. Unicamente na parte em que precedeu a impugnação.

6. In As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, pág. 201.

7. Transcrição referente à impugnação que procedeu.

8. No proc. nº 2054/21.7T8BRG.G1. S2

9. O pedido de indemnização improcedeu, atenta a falta de alegação e prova de prejuízos.

10. Proc. nº2069/14.1T8PRT.P1. S1, in www.dgsi.pt.

11. Proc. 4517/06.5TVLSB.L1. S1 - in www.dgsi.pt

12. Proc. n.º 3070/20.1T8LLE-A. E1.S1, disponível em www.dgsi.pt,

13. In Recursos no Novo Código de Processo Civil, 7.ª edição, pág. 137, nota 239.

14. Sobre o abuso de direito, enquanto excepção do conhecimento oficioso, na doutrina, Vaz Serra in Revista de Legislação e Jurisprudência ano 112, página 131 e seguintes e ano 113 página 298.

15. No proc nº 57/09 -7, in www.dgsi.pt.

16. No proc. nº 8281/17.4T8LSB.L1. S1, seguindo de perto o Acórdão do STJ de 28.11. 2013, no proc. nº 161/09.3TBGDM.P2. S1, no mesmo sentido da “inutilidade” da remessa à Relação, também o Acórdão do STJ de 04-07-2019, no proc. nº 5762/13.2TBVFX-A. L1.S1 in www.dgsi.pt.

17. Acórdão do STJ de 28-09-2017, proc. n.º 97/14.6T8ACB-A.C1. S1, in www.dgsi.pt

18. In Das Obrigações em Geral”, vol. I, 9ª edição, pág. 564.

19. In Código Civil Anotado, vol. I, 3ª edição, pág. 296.

20. In Abuso do Direito, 1983 pág. 43.

21. In Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Almedina, 2007, pág. 448/9.

22. Cf. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, pág. 290 e seguintes.; Batista Machado, Tutela de Confiança e Venire Contra Factum Proprium, in Obra Dispersa, vol. I, pag. 415 e segs; e inter alia, os Acórdãos do STJ de 5.06.2018, proc. nº 10855/15.9T8CBR-A.C1. S1, e de 8.11.2020, proc. nº 5366/17.0T8GMR.G1. S1, in wwwdgsi.pt.