Proc. nº 1402/20.1PAPTM.S1
5ª Secção Criminal
Supremo Tribunal Justiça
Recurso Penal de Acórdão da 1ª Instância
(crime de homicídio; qualificação jurídica; nulidade da decisão por omissão de fundamentação relativamente à qualificação de especial censurabilidade; atenuação especial da pena; medida da pena)
Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal, do Supremo Tribunal de Justiça:
I - RELATÓRIO
1. O arguido AA, foi submetido a julgamento, em 04/11/2021, no Proc. Comum Colectivo nº 1402/20…, do Juízo Central Criminal ... - Juiz ..., da Comarca ..., tendo sido condenado pela prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, p. p. pelas disposições conjugadas dos arts. 131º, e 132º, nº 1, e nº 2, al. b), ambos do Cod. Penal, na pena de 16 (dezasseis) anos de prisão.
2. O arguido AA interpôs recurso deste acórdão directamente para o Supremo Tribunal de Justiça, questionando a qualificação jurídica dos factos por si praticados, que entende subsumirem-se à previsão do art. 131º do Cod. Penal, invocando a falta de fundamentação da decisão recorrida quanto à qualificação de especial censurabilidade do nº 2, do art. 132º do Cod. Penal, pugnando pela aplicação do instituto da atenuação especial da pena regulado no art. 72º do Cod. Penal, e pela redução da medida da pena para o seu mínimo legal.
3. O recurso foi admitido com subida imediata directamente para este Supremo Tribunal, nos próprios autos, e com efeito suspensivo (arts. 399º, 401º, al. b), 407º, nº 2, al. a), 408º, nº 1, al. a) a contrario, e 411º, nº 1, todos do Cod. Proc. Penal) – cfr. despacho de 13/12/2021.
4. O Ministério Público em 1ª Instância respondeu ao recurso, considerando que o mesmo deveria ser julgado improcedente.
5. O Sr. Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça emitiu parecer, nos termos do art. 416º, nº 1, do Cod. Proc. Penal, pronunciando-se pela manutenção da decisão recorrida, aderindo à resposta ao recurso apresentada em 1ª Instância.
6. O arguido AA foi notificado nos termos do art. 417º, nº 2, do Cod. Proc. Penal, e nada disse.
7. Colhidos os vistos, e uma vez que não foi requerida a realização de audiência, o processo foi presente à conferência para a emissão de decisão.
II - FUNDAMENTAÇÃO
O objecto do recurso e os limites cognitivos do Supremo Tribunal de Justiça são delimitados pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, nas quais o mesmo sintetiza as razões de discordância com o decidido, e resume o pedido por si formulado (art. 412º, nº 1, do Cod. Proc. Penal)[1], sem prejuízo da pronúncia sobre questões de conhecimento oficioso.
O arguido AA interpôs recurso do acórdão condenatório questionando a qualificação jurídica dos factos por si praticados, por entender subsumirem-se à previsão do art. 131º do Cod. Penal, invocando a falta de fundamentação da decisão recorrida quanto à imputação da qualificativa, a que alude o nº 2, do art. 132º do Cod. Penal, pugnando pela aplicação do instituto da atenuação especial da pena, regulado no art. 72º do Cod. Penal, e pela aplicação de uma pena não superior a 6 (seis) anos de prisão (caso se considere ter praticado um crime de homicídio simples), e de uma pena não superior a 9 (nove) anos de prisão (caso se considere ter praticado um crime de homicídio qualificado), e caso não beneficie de atenuação especial da pena pugna pela sua condenação em pena de prisão não superior a 12 (doze) anos.
O arguido AA apresenta as seguintes conclusões (transcrição):
1. O Recorrente vem interpor recurso do douto acórdão proferido em primeira instância, que o condenou na pena de (16) dezasseis anos de prisão, pela prática em autoria material de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelo art.º 131.º e 132.º n.º 1 e n.º 2 al. b) do Código Penal.
2. No modesto entendimento do Recorrente, não houve, por parte do Tribunal recorrido um entendimento correto da Lei, o Direito não foi bem aplicado, os factos julgados provados não foram corretamente qualificados, devendo subsumir-se ao tipo do Homicídio Simples, deveria ter sido aplicado o instituto da atenuação especial da pena previsto no art.º 72.º do Código Penal, bem como a pena aplicada é excessiva, e não visa a finalidade das penas.
3. O Arguido/Recorrente não concorda com a subsunção dos factos ao tipo qualificado do crime, entendendo que os factos devem ser subsumidos ao crime de homicídio simples.
4. No que diz respeito à qualificação do artigo 132.º, do Código Penal, cumpre referir, que a mesma apenas se verifica quando a morte tenha sido “produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade” sendo que, as diferentes alíneas referidas no n.º 2, são meros indícios que podem levar, ou não, a essa verificação.
5. Como refere Silva Dias, a verificação do exemplo padrão do n° 2 do artigo 132.° não implica, apenas indicia, a presença de um caso de especial censurabilidade ou perversidade – no mesmo sentido, Figueiredo Dias – sendo que, tal indício, não mais do que isso, tem de ser confirmado através de uma ponderação global das circunstâncias de facto e da atitude do agente nele expressas, um especial tipo de culpa.
6. Tal como não oferece dúvida que o artigo 132.º do Código Penal não limita taxativamente os factos que constituem as circunstâncias qualificadoras, também é certo que os padrões de uma acrescida censurabilidade ou perversidade do agente, decorrentes dos exemplos padrão do n.º 2, constituem elementos da culpa e, como tal, não operam automaticamente.
7. Assim vem prevalecendo, quer na doutrina quer na jurisprudência, o entendimento de que qualificação do homicídio opera ao nível da culpa, assentando num tipo de culpa agravado que necessariamente se terá de reconduzir à cláusula geral inserta no n.º 1, ou seja à especial perversidade ou censurabilidade do agente.
8. É pacífico na Jurisprudência e na Doutrina que casos há em que se pode verificar qualquer das circunstâncias referidas nas várias alíneas do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal e ainda assim não ser de concluir pela especial censurabilidade ou perversidade do agente.
9. Os exemplos-padrão prendem-se essencialmente coma questão da culpa, mais do que com a ilicitude, pois ainda que se refiram a um maior desvalor da conduta (por exemplo, o homicídio cometido na pessoa do pai, do filho, ou do cônjuge), não é essa circunstância, por si, que determina a qualificação do crime, antes a especial censurabilidade ou perversidade do agente, isto é, o especial tipo de culpa.
10. Tem sido entendido que «A comprovação, no facto, de circunstâncias que preenchem um dos exemplos-padrão tem um efeito de indício de especial censurabilidade ou perversidade, efeito de indício esse que, todavia, pode ser afastado mediante a verificação de outras circunstâncias que o anulem (…)» - [cf. o acórdão do STJ de 21.06.2012 (proc. n.º 525/11.2PBFAR.S1; no mesmo sentido, entre outros, o acórdão do STJ de 10.12.2008 (proc. n.º 08P3703)].
11. O facto de o Tribunal a quo ter dado como provado que o Arguido era casado e vivia com a ofendida, não pode levar à verificação automática do preenchimento do n.º 1 do artigo 132.º, do CP. Para tanto, torna-se absolutamente necessário que se verifique uma culpa agravada, que corresponde a um tipo de culpa – e não apenas culpa, sob pena de esta norma se mostrar sempre preenchida e, por isso, esvaziada de conteúdo.
12. Para que se verifique uma culpa agravada, torna-se necessário demonstrar – o que não foi feito na decisão em crise – que o Arguido, no momento da prática do facto, e não em qualquer outro, podia, tinha capacidade suficiente, de agir de outro modo.
13. O Tribunal recorrido concluiu que se verifica a especial censurabilidade pelo simples facto de o Arguido ter matado a sua mulher, devido à relação conjugal (vide fundamentação da decisão recorrida).
14. Não adianta qualquer outro fundamento que não seja este –relação conjugal– estando a decisão recorrida inquinada de falta de fundamentação nos termos disposto no art.º 374.º e 379.º do CPP.
15. Contudo, salvo melhor opinião, o simples facto de ter matado a mulher não basta para que se demonstre a especial censurabilidade. Para tanto, torna-se necessário demonstrar a culpa agravada, o que, não se basta com a demonstração da existência de culpa – esta sempre existe, caso contrário não haveria condenação.
16. Para se perceber o estado de espírito do Arguido há a sopesar:
17. O facto de o Arguido se ter envolvido em confronto físico com a ofendida, na sequência duma discussão;
18. A confusão gerada na luta entre o casal;
19. A disputa pela faca;
20. A circunstância da ofendida ter dito ao arguido que o matava descrita pelo arguido e pela Testemunha BB;
21. O facto do Arguido apresentar um atraso de desenvolvimento - uma Perturbação de Desenvolvimento Intelectual - que lhe pode condicionar alguma vulnerabilidade e, potencialmente, colocá-lo numa situação de maior desvantagem face a terceiros, podendo também reflectir-se numa maior dificuldade em lidar com o stress e gerir situações de vida mais exigentes em termos emocionais, até por uma eventual tendência a interpretar as situações de forma enviesada, em prol da sua limitação cognitiva.
22. O facto de associado a uma relativa limitação das capacidades cognitivas, na sua dinâmica vivencial AA sempre mostrou dificuldades de resposta a situações mais exigentes e stressantes, tendendo a buscar segurança nas relações, sendo um indivíduo tendencialmente submisso e dependente, com um elevado desejo de agradar os outros.
23. O facto das características de personalidade do Arguido, no contexto da relação conjugal, que nos últimos tempos era vivenciada como na iminência de uma separação, faziam-no atingir maiores níveis de stress, para os quais falhavam os mecanismos cognitivos e comportamentais.
24. O facto da atribuição de significações de hostilidade, desprezo e rejeição aos comportamentos da vítima que foram assumindo uma progressiva intensidade e frequência, assim como as dificuldades do Arguido em ultrapassar ou modificar a situação, por medo da separação.
25. Ora, de tais factos e circunstâncias, não resulta, salvo melhor opinião, uma culpa agravada – nem o Acórdão em crise adianta quais sejam.
26. Como refere Figueiredo Dias, a lei pretende imputar à especial censurabilidade aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refração ao nível da atitude do agente, de formas de realização do ato especialmente desvaliosas e à especial perversidade aquelas em que o juízo de culpa se fundamenta diretamente em qualidades do agente especialmente desvaliosas – no caso dos autos, resultou provado que o arguido não apresenta uma conduta desvaliosa, pelo contrário sempre pautou a sua vida pelo cumprimento normativo, e bem inserido na sociedade, sendo pessoa respeitada e bem acolhida por todos.
27. O homicídio não foi um ato friamente calculado, antes resultou de algum estado de desassossego e perturbação adensados pelas limitações cognitivas do arguido e associadas dificuldades em lidar com as situações de maior stresse, embora longe da existência da “compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral”, referidos no art.º 133.º do C. Penal.
28. A situação dos presentes autos deixa transparecer uma determinação do arguido, formada ao momento, em escassos segundos, no meio duma discussão, com confronto físico, portanto num quadro onde não se descortina um processo de reflexão maturado, não sendo de excluir nas circunstâncias em que atuou – no meio duma discussão, com ofendida a dizer que o matava, que ia ficar sem os filhos, durante um confronto físico – alguma desorientação emocional.
29. Sendo este o cenário, apesar de a vítima revestir a qualidade de cônjuge do arguido, e, assim, se incluir na qualificativa da alínea b), do n.º 2 do artigo 132.º do C. Penal, indiciadora de uma especial censurabilidade, afigura-se-nos, em consequência das concretas circunstâncias da ação, ser de afastar o seu funcionamento por se mostrar a conduta do arguido ainda a coberto da censura típica do crime de homicídio
30. Não se mostra preenchida a qualificação do n.º 1, do artigo 132.º, do CP, conquanto o Arguido não agiu com especial censurabilidade ou perversidade, devendo ser absolvido nesta parte.
31. Pelo que deverá decidir-se pela subsunção dos factos ao crime de homicídio simples, posto que se mostram presentes os respetivos elementos típicos objetivos e subjetivos – artigos 131.º do Código Penal e consequentemente ajustada a pena a aplicar considerando a moldura penal entre os 8 e os 16 anos de prisão nos moldes que infra se explanará.
32. Decidiu o Tribunal a quo não ser de aplicar ao Arguido, ora Recorrente o instituto da atenuação especial da pena, previsto no art.º 72.º do código Penal concluído “Não se verificam, pois, circunstâncias que possam atenuar especialmente a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.”
33. Ora, salvo devido respeito, que é muito, não pode o Recorrente concordar com tal entendimento.
34. O instituto da atenuação especial da pena tem em vista casos especiais expressamente previstos na lei, bem como, em geral, situações em que ocorrem circunstâncias anteriores, contemporâneas ou posteriores ao crime que diminuem de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade de pena – art.º 72.º, n.º 1, do CP.
35. Pressuposto material da atenuação especial da pena é, pois, a ocorrência de acentuada diminuição da culpa ou das exigências de prevenção, sendo certo que tal só se deve ter por verificado quando a imagem global do facto, resultante das circunstâncias atenuantes, se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respetivo. Por isso, a atenuação especial da pena só em casos extraordinários ou excecionais pode ter lugar.
36. Só aplicável a situações que, pela sua excecionalidade, não se enquadram nos limites da moldura penal aplicável ao respetivo crime, ou seja, a situações em que se mostra quebrada a relação/equivalência entre o facto cometido e a pena para o mesmo estabelecida, consabido que entre o crime e a pena há (deve haver) uma equivalência, (Cfr.: FIGUEIREDO DIAS, As Consequências Jurídicas do Crime, página 306).
37. Ainda que, como considerou o Tribunal a quo, que da realidade factológica julgada provada não ressalte qualquer circunstância que diminua por forma acentuada a ilicitude do facto e a culpa do agente, atentas, designadamente, as que, a título exemplificativo, se referem no n. 2 do artigo 72, do Código Penal.
38. Escreveu o citado mestre na mencionada obra (página 305) que "princípio regulador da apreciação do regime de atenuação especial é a diminuição acentuada não apenas da ilicitude do facto ou da culpa do agente mas também da necessidade da pena".
39. E à diminuição da necessidade da pena alude, também, a parte final do n.º 1 do artigo 72.º, do Código Penal.
40. Para efeitos de atenuação especial, encarou o legislador um fator importante: o da necessidade da pena, entrando aqui claramente no domínio específico das finalidades das penas e das exigências da prevenção.
41. E quando se fala em necessidade da pena, não pode, ao hipotizar-se a diminuição acentuada dessa necessidade, olvidar-se uma atenta ponderação da graduação da mesma necessidade.
42. Importa também não esquecer que a enumeração das circunstâncias feita no n.º 2 do art.º 72.º, do Código Penal é meramente exemplificativa, como logo incontroversamente decorre da locução adverbial "entre outras" usada no corpo do aludido n. 2.
43. O instituto da atenuação especial, envolvido por vários cambiantes e apelando a diversas vertentes, não inibe, na peculiaridade dos seus pressupostos, no rigor dos seus ditames e na inconveniência da sua vulgarização, uma certa flexibilidade do julgador conducente a admitir, em certos casos concretamente muito especiais e mesmo que aparentemente não parecesse dever ser admitida, a possibilidade da sua aplicação.
44. O que salvo melhor opinião sucede na hipótese destes autos.
45. Considerando as conclusões da perícia médico-legal, designadamente que o Arguido ora Recorrente apresenta uma perturbação do desenvolvimento intelectual, o que o torna mais vulnerável, e reflete-se em maior dificuldade em lidar com stress e gerir situações mais exigentes em termos emocionais, tem tendência a interpretar as situações de forma enviesada, o facto não haver perigo do arguido cometer factos da mesma natureza, e os demais factos julgados provados, factos 11 a 25 inclusive.
46. E ainda que, nenhuma incidência criminal macula a vida do Recorrente;
47. Estamos em presença de um delinquente ocasional que cedeu a uma solicitação criminosa.
48. É facto que bem pode acontecer em tipos delituosos como o que está em causa, para mais não se desconhecendo que os conflitos interiores podem subitamente vir à superfície, através de descargas emocionais violentas (cfr., a este propósito o Relatório da Royal Comission de 1953 e o Homicídio Privilegiado, de AMADEU FERREIRA).
49. As limitações cognitivas ajudaram ao alimentar de suposições erradas e a um menor discernimento na disciplina volitiva.
50. Tais matrizes depreendem-se, sem esforço, da matéria de facto dada como provada: não justificam a ação mas de algum modo explicam o impulso que a ela conduziu.
51. Não existe, na lei penal vigente, disciplina normativa que especificamente contemple os agentes criminosos com as características reveladas na perícia à personalidade do arguido, porquanto não é inimputável.
52. De resto, cumpre referir que não será propriamente sob o prisma de uma imputabilidade diminuída que justificará especial tutela a perturbação do desenvolvimento intelectual do agente delitivo mas antes atendendo a que se a prevenção especial vai deixando progressivamente de relevar como condimento temperador da sanção ou do juízo de censura que através dela se exprime, não é menos certo que as exigências da prevenção geral também vão cedendo ante a personalidade do prevaricador, reduzindo o perigo que, para a ordem jurídica e para estabilidade social, sempre representa a comissão de um crime.
53. Esta realidade não deixará de estar subjacente ao consignado aditamento normativo da "necessidade da pena", pois que esta "necessidade" se afirma em consonância com a defesa da comunidade face ao que real e efetivamente a coloque ou possa colocar em causa, na segurança e integralidade dos seus bens e valores jurídicos.
54. Ora, é precisamente a inexistência de um esquema normativo que albergue os condicionalismos da simbiose menor perigosidade - menor necessidade de prevenção geral, a forçar, por via dessa lacuna, uma busca de soluções alternativas que assegurem a efetivação daquela simbiose fora -ou para além- dos quadros usualmente estabelecidos para a criminalidade em geral.
55. No caso em apreço, não há que secundarizar a gravidade do facto praticado, o Arguido e ora Recorrente atingiu, suprimindo-o, o bem supremo que é o da vida humana.
56. Há, por isso, que emitir juízo de censura adequado que recomponha o vetor abalado. De qualquer forma, é pressentível, nos factos julgados provado, uma certa diminuição ou limitação intelectuais do Arguido que o terá conduzido ao reprovável ato que cometeu, impedindo um raciocínio mais claro sobre as suas consequências e, sobretudo, sobre a necessidade subjetiva de o cometer.
57. Estamos em crer que não será despropositado aplicar ao presente caso a atenuação especial da pena.
58. Assim, será de aplicar ao Arguido a especial atenuação da pena que lhe foi aplicada, ou que venha a ser aplicada em face da alteração da qualificação jurídica supra mencionada, nos termos do n. 1 do artigo 72.º do Código Penal.
59. Ao não atenuar especialmente a pena ao arguido o tribunal "a quo" violou o disposto no n. 1 do artigo 72.º do Código Penal;
60. Deve a pena de prisão aplicada ao arguido ser especialmente atenuada, nos termos do n. 1 do artigo 72, do Código Penal.
61. No que à medida concreta da pena respeita, o art.º 70.º do Código Penal cuja epígrafe é Critério de Escolha da Pena estatui, como critério de orientação geral para a escolha da pena, que «Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.». Ou seja, sempre que possível, deverá o Tribunal optar pela aplicação de uma pena não privativa da liberdade em detrimento da privativa da liberdade.
62. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo o Tribunal a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor ou contra ele. (art.º 71.º, n.º 1 e 2 do Código Penal).
63. Por respeito à eminente dignidade da pessoa a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa (art.º. 40.º, n.º 2 do C.P.), designadamente por razões de prevenção.
64. O Arguido ora Recorrente é pessoa de modesta condição social, trabalhador, humilde, não regista qualquer antecedente de agressividade, está familiar e socialmente inserido, tem três filhos menores com os quais mantem laços afetivos mesmo após os factos, o que permite a realização de um juízo de prognose favorável – vide factos provados do acórdão recorrido, factos 11 a 28 inclusive.
65. Visando, a aplicação de penas, a reintegração do agente na sociedade, será de considerar que a aplicação de qualquer pena de prisão superior ao limite mínimo da moldura penal abstrata aplicável, ao ora Recorrente, irá comprometer, irremediavelmente, o seu percurso de vida, do qual não consta qualquer reparo, pois está integrado, social, familiarmente, sendo favorável o Relatório Social e Relatório Pericial, prova documental que constados autos e erradamente valorada pelo Tribunal a quo.
66. Ressocializar/reintegrar, não tem que implicar muitos anos de reclusão, geradora de reação social de carácter negativo, provocadora de um estigma absolutamente desnecessário para um indivíduo com estabilidade social e familiar, que teve um percalço na sua vida.
67. O arguido não tem antecedentes criminais.
68. Merecendo provimento as questões colocadas pelo Recorrente no que se refere à alteração da qualificação jurídica dos factos julgados provados, sendo o Recorrente condenado pela prática do crime de homicídio simples p. e p. pelo art.º 131.º do Código Penal a pena a aplicar fixa-se entre 8 a 16 anos de prisão.
69. Sendo aplicado o instituto da atenuação especial da pena previsto no art.º 72.º do Código Penal, nos termos do disposto no art.º 73.º do Código Penal, a pena a aplicar ao Arguido será fixada entre 1 ano, 6 meses e 28 dias e 10 anos e 8 meses, entendendo como justa e adequada a aplicação duma pena nunca superior a 6 anos de prisão.
70. Merecendo provimento o recurso do arguido somente no que respeita à qualificação jurídica dos factos, sendo condenado pela prática do crime de homicídio simples, p. e p. pelo art.º 131.º do Código Penal, deverá a pena a aplicar ao arguido situar-se no mínimo legal, 8 anos de prisão.
71. Mantendo-se a subsunção jurídica dos factos julgados provados ao crime de homicídio qualificado, a que corresponde uma pena de prisão fixada entre os 12 e os 25 anos de prisão, contudo merecendo provimento o recurso no que respeita à atenuação especial da pena nos termos do art.º 72.º e 73.º do Código Penal, a pena será fixada entre os 2 anos, 4 meses e 26 dias de prisão e os 16 anos e 8 meses de prisão, entendendo-se como justa e adequada a aplicação duma pena nunca superior a 9 anos de prisão.
72. Mantendo-se a qualificação jurídica dos factos julgados provados, isto é, sendo o Recorrente condenado pela prática do crime de homicídio qualificado p. e p. pelo art.º 131.º e132.º, n. º1 e 2 al. b) do Código penal, e não havendo lugar à atenuação especial da pena, sempre se dirá que a pena aplicada pelo Tribunal a quo, 16 anos de prisão é excessiva, e não respeitas as finalidades das penas.
73. Considerando a factualidade julgada provada no que à personalidade do arguido respeita, à sua inserção familiar, social e laboral, aos laços afetivos do arguido com os filhos, e todas as considerações supra tecidas quanto às finalidades e necessidade da pena, entende-se que deverá a decisão recorrida ser revogada, aplicando-se ao Recorrente uma pena de prisão inferior à aplicada, a qual se deverá fixar no mínimo legal, 12 anos de prisão.
74. Por tudo o exposto, e com vista a alcançará os fins primordiais das penas, a reinserção social do agente do crime, deverá esse Colendo Tribunal corrigir a decisão proferida nos moldes modestamente propostos, reduzindo a pena de prisão aplicada ao Arguido/Recorrente.
75. O acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 131.º, 132.º, art.º 40.º, 70.º, 71.º, 72.º, 73.º do Código Penal, 127.º; 374.º e 379.º do Código de Processo Penal, art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que, se requer a V. Exas., a reparação do douto Acórdão de acordo com as premissas modestamente supra expostas, fazendo-se assim a habitual, sã e serena Justiça”
Dos Factos
Com interesse para a decisão da causa foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
1. O Arguido AA e CC eram casados entre si, tendo dessa relação nascido três filhos, DD, nascida a .../.../2007 e EE e FF, nascidos a .../.../2008.
2. O casal residia com dois dos três filhos menores na residência sita na ..., ..., ..., em ....
3. No dia 26 de Novembro de 2020, pelas 09h22m, o Arguido e CC iniciaram uma acesa discussão por motivos relacionados com um eventual divórcio, a que aquele se opunha.
4.No decurso dessa discussão, quando ambos se encontravam na sala e após confronto físico, o Arguido muniu-se de uma faca de cozinha em serrilha, com o comprimento total de 29,5cm, com 16,5cm de lâmina e, fazendo uso da mesma, golpeou várias vezes CC, atingindo-a no rosto, pescoço, na zona torácica e abdominal, causando-lhe feridas perfurantes e extensas lesões, que determinaram a sua morte.
5.Como consequência directa e necessária da conduta do Arguido, CC sofreu as seguintes lesões:
- Na cabeça: várias equimoses de cor arroxeada e azulada dispersas pela face; hematomas periorbitais bilaterais;
- No pescoço: vários ferimentos dispersos, em particular duas feridas lineares, incisas nas faces antero-lateral e anterior do pescoço, paralelas, que distam entre si 2,5cm, a superior com 11cm e a inferior com 13,5cm;
- No tórax: várias equimoses de cor arroxeada e azulada dispersas; múltiplos ferimentos dispersos, em particular duas feridas corto-perfurantes a nível da região external, a maior com 3cm de comprimento e 1,5 cm de largura;
- No abdómen: várias equimoses de cor arroxeada e azulada dispersas; múltiplos ferimentos dispersos, em particular três feridas corto-perfurantes na região umbilical, a maior com 1,8cm de comprimento e 0,6cm de largura;
- Membro superior direito: várias feridas compatíveis com lesões de defesa no braço e na mão;
- Membro superior esquerdo: várias feridas compatíveis com lesões de defesa no antebraço e na mão, sendo a maior no terço distal da face anterior do antebraço, medindo 8cm de comprimento por 2,5cm de largura, com visualização de secção de músculos e tendões;
- Membro inferior direito: várias equimoses de cor arroxeada e azulada dispersas;
- Membro inferior esquerdo: várias equimoses de cor arroxeada e azulada dispersas;
6. No local compareceu uma equipa do INEM, que efectuou manobras de suporte avançado de vida, sem sucesso, tendo o óbito de CC sido declarado pelas 10h15m.
7. A morte de CC foi consequência directa e necessária das graves lesões traumáticas, crânio-encefálicas, torácicas e abdominais sofridas, na sequência das agressões de que foi vítima.
8. O Arguido atingiu a Ofendida em zonas do corpo vulneráveis – como são o pescoço, o tórax e o abdómen – zonas essas que alojam órgãos vitais e que sabia poderem ser letais, com o propósito de tirar a vida a CC, o que conseguiu.
9. O Arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com intenção de matar a Ofendida, querendo atingi-la nas zonas do corpo indicadas, bem sabendo que as lesões assim provocadas eram adequadas a retirar-lhe a vida.
10. O Arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Mais se apurou que
11. O Arguido apresenta um atraso de desenvolvimento - uma Perturbação de Desenvolvimento Intelectual - que lhe pode condicionar alguma vulnerabilidade e, potencialmente, colocá-lo numa situação de maior desvantagem face a terceiros, podendo também reflectir-se numa maior dificuldade em lidar com o stress e gerir situações de vida mais exigentes em termos emocionais, até por uma eventual tendência a interpretar as situações de forma enviesada, em prol da sua limitação cognitiva.
12. Tal Perturbação de Desenvolvimento Intelectual é ligeira e não o impede de avaliar a ilicitude dos factos e de se autodeterminar de acordo com essa avaliação.
13. De acordo com o Relatório de Perícia Médico-Legal “Não se crê que, por via dessa doença, haja perigo considerável de o arguido voltar a cometer factos da mesma natureza. A ausência de qualquer tipo de comportamentos violentos no passado, a ausência de história de hábitos toxifílicos, a boa integração em família e sociedade (percecionados pelo examinado da mesma forma) e o bom suporte sociofamiliar são fatores protetores nesse sentido).”
14. AA nasceu e cresceu em ... num contexto familiar estruturado, com desafogo económico, garantido pela actividade empresarial do pai, como .... Foi o primeiro de quatro irmãos, todos rapazes. A mãe surge como o elemento mais presente, exclusivamente dedicada à organização da casa e cuidado dos filhos. Ao pai são atribuídos hábitos menos positivos para o grupo, como o consumo desregulado de bebidas alcoólicas e o esbanjamento financeiro, que o obrigou ao encerramento da empresa por volta do ano 2007. Em alternativa, tirando partido das competências para a ... da mãe, terão investido num ..., que igualmente se vêm obrigados a encerrar dois anos depois. Em 2009, a família muda-se para ..., onde avistavam mais oportunidades de trabalho e aqui permanecem até agora, salvo dois dos irmãos do Arguido que se organizaram geograficamente mais afastados.
15. Tal como os irmãos, AA frequentou o sistema de ensino privado (...) em ..., mas foi sinalizado com algumas limitações cognitivas que justificaram a sua inclusão num regime especial. Não chegou a concluir o 2º ciclo por falta de capacidades.
16. Saiu da escola aos 18 anos, motivado para ingressar no mercado de trabalho, o que se veio a verificar ininterruptamente. Começou por trabalhar na ..., a par de biscates ocasionais de ... com o pai e dos 24 aos 26 anos trabalhou na ... do ... da família. Quando da mudança para o ..., foi admitido como ... no grupo “...”, onde ficou durante 10 anos. Terá saído depois de não ter aceite proposta de readmissão pela via da subcontratação de uma empresa de trabalho temporário, mas iniciou de imediato funções na ... de um supermercado “...”, empresa em que se encontrava à data dos factos.
17. Em termos afectivos, há menção a um único casamento e experiência de namoro, iniciada cerca dos 20 anos, com a vítima identificada, CC. Desta união, mantida ao longo de 15 anos, nasceram os 3 filhos, DD, agora com 13 anos e os gémeos, FF e EE, de 12 anos.
18. À data dos factos e da prisão daí decorrente, em Novembro/2020, o Arguido vivia com a família constituída com a esposa e os dois filhos mais novos. A filha, embora houvesse um contacto próximo, praticamente desde que os gémeos nasceram ficou a cargo da avó paterna, tendo em conta as dificuldades do casal em gerir os cuidados das três crianças com tão pouca diferença de idades. AA sempre contou com um suporte funcional e efectivo por parte da sua família de origem, na proximidade de quem sempre viveu, embora em condições independentes.
19. Ambos os elementos do casal se encontravam profissionalmente activos, AA como operador de ..., a esposa empregada ... do polo de .... Os recursos económicos constituíam, ainda assim, um factor de stress para o casal, na medida em que se debatiam com penhoras no vencimento, por empréstimos contraídos, no caso do Arguido, para ajudar a família de origem, na altura em que o pai encerrou a empresa e se debatia com dívidas.
20. Da inserção no meio socio-residencial em ..., existem de relações positivas, em contexto de trabalho e de vizinhança, pela habitual atitude prestável, calorosa e de grande proximidade demonstrada pelo Arguido nas relações interpessoais em geral.
21. Especial importância na vida do Arguido terá sido a experiência de ter filhos, descrevendo-se sempre participativo nos seus cuidados, mas sendo também factor de stress no casal as divergências quanto a práticas parentais. AA tende a interpretar como maltratantes alguns comportamentos atribuídos à vítima, como não ter paciência, gritar, descuidar-se com a alimentação e pontualmente bater ou beliscar os filhos, referindo que muitas vezes se meteu na frente deles não serem agredidos.
22. Eventualmente associado a uma relativa limitação das capacidades cognitivas, na sua dinâmica vivencial, AA sempre mostrou dificuldades de resposta a situações mais exigentes e stressantes, tendendo a buscar segurança nas relações, sendo um indivíduo tendencialmente submisso e dependente, com um elevado desejo de agradar os outros.
23. Estas características, no contexto da relação conjugal, que nos últimos tempos era vivenciada como na iminência de uma separação, faziam-no atingir maiores níveis de stress, para os quais falhavam os mecanismos cognitivos e comportamentais.
24. A atribuição de significações de hostilidade, desprezo e rejeição aos comportamentos da vítima foram assumindo uma progressiva intensidade e frequência, assim como as dificuldades do Arguido em ultrapassar ou modificar a situação, por medo da separação.
25. Sem registo a antecedentes de comportamentos agressivos ou outras práticas criminais, este processo, pela gravidade dos factos que lhe são imputados e inerente privação de liberdade, revestiu-se de um forte impacto aos vários níveis pessoal, familiar e social. AA expressa uma narrativa nalguns aspectos divergente da acusação, relatando confrontos mútuos e uma reação absolutamente descontrolada da sua parte, como uma ocorrência cognitivamente confusa e de grande impacto emocional, ainda que reconheça a oportunidade do confronto com o sistema da administração da justiça penal.
26. Em meio prisional revela um comportamento ajustado, acata as regras e mantém-se participativo nas actividades que lhe têm sido colocadas ao dispor – faxina e frequência de algumas acções pedagógicas. Beneficia de apoio psicológico individual. Conta com o apoio exterior, traduzido em visitas regulares principalmente da mãe e dos três filhos, a quem o Arguido telefona diariamente.
27. Expressa elevada preocupação pelo impacto causado à família, em particular pela privação da sua presença junto dos filhos. Entretanto, foi atribuída a guarda oficial dos três à avó paterna, GG. Em sede de GASMI decorre o acompanhamento das crianças em conjunto com a avó, onde é notória a preservação da ligação afectiva ao Arguido e o desenvolvimento de estratégias de entreajuda como forma de lidar com a situação traumática.
28. Do Certificado de Registo Criminal do Arguido nada consta.
B. Factos Não Provados
Não se provaram os seguintes factos:
a) - O Arguido agiu da forma descrita em 4. sem que nada o fizesse prever”.
Questões suscitadas:
A - A qualificação jurídica dos factos que o recorrente entende deverem ser integrados na previsão da prática do crime de homicídio simples p. p. pelo art. 131º do Cod. Penal;
B - A nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação relativamente à verificação do requisito de especial censurabilidade, de forma a enquadrar a previsão da prática do crime de homicídio qualificado p. p. pelo art. 132º, do Cod. Penal;
C – A não aplicação do instituto da atenuação especial da pena do art. 72º do Cod. Penal, invocando o recorrente a ausência de antecedentes criminais e sofrer de uma perturbação do desenvolvimento intelectual geradora de mais vulnerabilidade e de mais dificuldades em lidar e em gerir situações mais exigentes em termos emocionais;
D – A medida da pena aplicada que o recorrente considera excessiva.
Relativamente a estas questões, o Sr. Procurador-Geral Ajunto neste Supremo Tribunal, na sua resposta ao recurso, subscreveu as considerações expressas pelo Ministério Público em 1ª Instância, e concluiu “(…) ter o recorrente incorrido na prática do crime de homicídio, qualificado, pelo qual foi condenado em 1ª instância1, seja no que se refere à correcção jurídico formal da decisão recorrida, que obedece a todas as exigências legais, não se lhe podendo assacar a menor falta de fundamentação, seja, por fim, no que concerne à inalterabilidade da pena concretamente aplicada, por não haver lugar nem a uma atenuação especial, nem concorrerem razões que justifiquem a sua redução (…)”[2].
Apreciação
A - Da qualificação jurídica dos factos
O arguido AA insurge-se contra a sua condenação pela prática de um crime de homicídio qualificado p. p. pelos arts. 131º, e 132º, nº 2, al. b), do Cod. Penal, referindo não se mostrar preenchida a qualificação do nº 1, do citado art. 132º, por considerar que não agiu com especial censurabilidade ou perversidade, pretendendo a convolação da qualificação jurídica da sua conduta para o crime de homicídio simples.
Ora, o art. 132º do Cod. Penal confere uma particular gravidade ao crime de homicídio simples qualificando-o e agravando a sua punição designadamente quando é susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade, sendo susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade, e nos termos do seu nº 2, al. b), a circunstância do crime ter sido cometido na pessoa do cônjuge.
Fazendo uma breve resenha sobre a jurisprudência deste Supremo Tribunal e a doutrina relativamente a esta questão, temos que:
Como se salienta no Ac. do STJ de 28/09/2011, in Poc. nº 68/08.1GAMGR.C1.S1, “O homicídio qualificado é construído a partir do tipo-matriz base, do art.º 131.º, do CP, pela adição de circunstâncias especializadoras que relevam de uma culpa agravada, retratada nos exemplos-padrão, descritos no n.º 2 , do art.º 132.º , do CP”
E, como se refere no Ac. STJ de 26/06/2019[3], esta qualificação do crime de homicídio pressupõe a mediação de determinadas circunstâncias:
“I - Seja mediada pelas circunstâncias referidas nos exemplos-padrão, ou por outros elementos de idêntica dimensão quanto ao desvalor da conduta do agente, o que releva e está pressuposto na qualificação é sempre a manifestação de um especial e acentuado «desvalor de atitude», que se traduz na especial censurabilidade ou perversidade, e que conforma o especial tipo de culpa no homicídio qualificado;
II - A qualificação do homicídio do artigo 132º do Código Penal supõe, pois, a imputação de um especial e qualificado tipo de culpa, reflectido, no plano da atitude do agente, por uma conduta em que se revelam «formas de realização do facto especialmente desvaliosas (especial censurabilidade), ou aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas””.
E, em concreto, quanto à circunstância prevista na al. b), prossegue este aresto:
“IV – Ao cônjuge exige-se uma especial e recíproca protecção, pelo que a atitude de actuar, lesando a vida do outro, é reveladora de uma energia criminal susceptível de um elevado grau de censura. A decisão de matar o cônjuge traduz, desde logo, a manifestação de um comportamento especialmente grave, próprio de quem vence contra-motivações acrescidas, manifestando um elevado grau de culpa, na medida em que o agente ao cometer tal facto, contraria, em absoluto, aquela que deveria ser a sua atitude perante o seu cônjuge”.
E, como refere o Professor Figueiredo Dias[4], é exacto (…) que muitos dos elementos constantes das diversas alíneas do art. 132º 2, em si mesmo tomados, não contendem diretamente com uma atitude mais desvaliosa do agente, mas sim com um mais acentuado desvalor da ação e da conduta, com a forma de cometimento do crime. Ainda, nestes casos, porém, não é esse maior desvalor da conduta determinante da agravação, antes ele é mediado sempre por um mais acentuado desvalor da atitude: a especial censurabilidade ou perversidade do agente, é dizer, o especial tipo de culpa do homicídio agravado Só assim se podendo compreender e aceitar que haja hipóteses em que aqueles elementos estão presentes e, todavia, a qualificação vem em definitivo a ser negada”.
E, mais adiante[5] “o pensamento da lei é, na verdade, o pretender imputar à «especial censurabilidade» aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refração, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à «perversidade» aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta diretamente na documentação do facto de qualidades de personalidade do agente especialmente desvaliosas”.
Assim, a verificação dos “exemplos-padrão” enunciados no art. 132º do Cod. Penal não funciona automaticamente, em termos de se dar desde logo como demonstrada a especial censurabilidade ou perversidade do agente ao nível da culpa, sendo necessário proceder-se a um exame global dos factos, de modo a chegar à conclusão sobre o preenchimento ou não de tais elementos da culpa.[6]
E, os factores determinantes para aferir da verificação da especial censurabilidade ou perversidade do agente ao nível da culpa terão de ser ponderados à luz das regras específicas em que decorreu o crime de homicídio, de forma apurar da aplicabilidade da sua qualificação nos termos do citado art. 132º do Cod. Penal.
No caso dos autos considerou-se que a conduta do arguido AA integrava a agravante decorrente da al. b), do nº 2, do art. 132º do Cod. Penal, da qual decorre que entre os cônjuges existem particulares deveres de cooperação, de respeito, e de protecção, sendo que ”(…) a severidade da lei penal não tem apenas como fundamento esses deveres mas também uma situação de confiança própria de quem vive em conjunto, por isso se despojando das cautelas que em geral se adotam em relação a terceiros, no pressuposto de que se desfruta de uma situação de segurança (…)”- cfr. o Ac. STJ de 7/11/2019[7].
Colocada esta introdução, e relativamente à subsunção jurídica dos factos cometidos pelo arguido AA ao crime de homicídio qualificado, o acórdão recorrido fez constar que (transcrição)[8]:
“É imputada ao Arguido a prática de um crime de Homicídio Qualificado previsto e punível pelos artigos 131º e 132º, nº 2, al. b) ambos do Código Penal.
Dispõe o primeiro dos artigos que “quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos”, preceituando, logo a seguir, o artigo 132º que
“1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.
2 - É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
a) Ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima;
b) Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau (…)
O bem jurídico tutelado nas normas incriminadoras do homicídio é a vida humana inviolável, correspondendo à tutela constitucional da vida.
Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 2007, vol. I, pp. 446/7, explicam-nos que “O direito à vida é um direito prioritário, pois é condição de todos os outros direitos fundamentais, sendo material e valorativamente o bem mais importante do catálogo de direitos fundamentais e da ordem jurídico-constitucional no seu conjunto”.
Efectivamente, o direito à vida é conditio sine qua non do gozo de todos os outros direitos.
Por seu lado, o crime de homicídio qualificado previsto e punível pelo referido artigo 132°, constitui uma forma agravada do crime de homicídio simples previsto e punível no artigo 131°, que constitui o tipo de ilícito, agravamento esse que se produz não através da previsão de circunstâncias típicas fundadas em maior ilicitude do facto, mas antes em função de uma culpa agravada, isto é, de uma “especial censurabilidade ou perversidade” da conduta (cláusula geral enunciada no nº 1), revelada pelas circunstâncias indicadas no nº 2.
Tais circunstâncias constituem “exemplos-padrão”, ou seja, indícios da culpa agravada referida no nº 1, que constitui o elemento típico do homicídio qualificado. Ainda que essas circunstâncias envolvam eventualmente uma maior ilicitude do facto, não é o simples acréscimo de ilicitude que determinará a qualificação do crime. Só se as ditas circunstâncias revelarem uma maior censurabilidade ou perversidade da conduta se verificará a dita qualificação.
A este respeito, escreve-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18.01.2012, disponível na Internet, in www.dgsi.pt o seguinte:
“Como tivemos ocasião de afirmar em Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Maio de 2010 a qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua actuação sendo um tipo de culpa.
Refere Silva Dias, a verificação do exemplo padrão do n° 2 do art. 132° não implica, apenas indicia, a presença de um caso de especial censurabilidade ou perversidade. Tal indício não mais do que isso e tem de ser confirmado através de uma ponderação global das circunstâncias de facto e da atitude do agente nele expressas.
Indubitavelmente que o apelo a exemplos padrão, como exemplificadores de uma intensidade qualitativa da culpa, reflecte uma técnica de tipos abertos que apenas pode ser compreendida dentro dos limites por alguma forma propostos pelo princípio da legalidade.
Assim, o julgador deverá subsumir à qualificação do artigo em causa apenas as condutas que, embora não abrangidas pelo perfil especificado, normativamente correspondem á estrutura de sentido e ao conteúdo de desvalor de cada exemplo padrão.
Outro entendimento não podia decorrer do pressuposto de que nos encontramos perante uma qualificação assente no tipo de culpa. O que determina a agravação é sempre um acentuado desvalor da atitude do agente, quer o mesmo se exprima numa maior intensidade do desvalor da acção, quer numa motivação especialmente desprezível.
Nas palavras de Margarida Silva Pereira, a caracterização do art. 132° do CP passa pela intersecção de três eixos fundamentais, a saber: a exclusão da aplicação automática; a aferição da qualificação por um critério de culpa no sentido de que se utilize os parâmetros consagrados e tipificados para aquilatar se no caso concreto existe de igual forma uma culpa especial e a permissão do recurso á analogia pois que ao juiz cabe sempre a possibilidade de construir em concreto os pressupostos da afirmação de uma especial censurabilidade, ou perversidade, os quais, embora não subsumíveis aos exemplos padrão, constituem, ainda assim, a demonstração de uma especial intensidade da culpa. Todavia, importa salientar que a valoração da culpa operada pelo art. 132º do CP não aparece desligada de uma ilicitude qualitativamente mais intensa. Como refere a Autora citada o que o legislador comanda não é que se considere uma culpa sem suporte de ilicitude aumentada, mas sim que de tal ilicitude maior não se retirem quaisquer efeitos a menos que se acompanhe de um acréscimo de culpa. A ilicitude superior é aqui um pressuposto de culpa.
O artigo 132 do Código Penal define o tipo de crime de homicídio qualificado constituindo uma forma agravada de crime em relação em relação ao tipo do artigo 131 do mesmo diploma. Objectivamente o tipo de crime assenta nos mesmos factos dos que estão previstos no artigo 131 funcionando a qualificação assente na combinação de um critério de culpa com a técnica dos exemplos padrão.
O critério da qualificação está definido no nº 1 do artigo 132 e consiste em tirar a vida a outrem em circunstâncias que revelem uma especial censurabilidade ou perversidade. Algumas das circunstâncias que são susceptíveis de revelar especial censurabilidade, ou perversidade, estão enumeradas no nº 1 do mesmo normativo.
A qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua actuação sendo um tipo de culpa. Seguindo Roxin, por tipo de culpa entende-se aquele que, na descrição típica da conduta, contem elementos da culpa que integra factores relativos à actuação do agente que estão relacionados com a culpa mais grave ou mais atenuada. A culpa consiste no juízo de censura dirigido ao agente pelo facto deste ter actuado em desconformidade com a ordem jurídica quando podia, e devia, ter actuado em conformidade com esta, sendo uma desaprovação sobe a conduta do agente. O juízo de censura, ou desaprovação, é susceptível de se revelar maior ou menor sendo, por natureza, graduável e dependendo sempre das circunstâncias concretas em que o agente desenvolveu a sua conduta, traduzindo igualmente um juízo de exigibilidade determinado pela vinculação de cada um a conformar-se pela actuação de acordo com as regras estipuladas pela ordem jurídica superando as proibições impostas. Em suma, o agente actua culposamente quando realiza um facto ilícito podendo captar o efeito de chamada de atenção da norma na situação concreta em que desenvolveu a sua conduta e, possuindo uma capacidade suficiente de auto controlo, e poderia optar por uma alternativa de comportamento.
O especial tipo de culpa do homicídio qualificado é conformado através da especial censurabilidade ou perversidade do agente. Como refere Figueiredo Dias a lei pretende imputar à especial censurabilidade aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção ao nível da atitude do agente de formas de realização do acto especialmente desvaliosas e à especial perversidade aquelas em que o juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades do agente especialmente desvaliosas. Enumera o normativo em análise um catálogo dos exemplos padrão e o seu significado orientador como demonstrativo do especial tipo de culpa que está associado à qualificação”.
No mesmo sentido, escreve Teresa Serra, in Homicídio Qualificado – Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 2000, pp. 63/65 que “Como se sabe, a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito. No artigo 132°, trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores (...)
Com a referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade. Significa isto pois, um recurso a uma concepção emocional da culpa e que pode reconduzir-se «à atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor, de que fala BINDER. Assim, poder-se-ia caracterizar uma atitude rejeitável como sendo aquela em que prevalecem as tendências egoístas do autor. Especialmente perversa, especialmente rejeitável, será então a atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e determinaram quase exclusivamente a conduta do agente (...).
Importa salientar que a qualificação de especial se refere tanto à censurabilidade como à perversidade. A razão da qualificação do homicídio reside exactamente nessa especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas circunstâncias em que a morte foi causada. Com efeito, qualquer homicídio simples, enquanto lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana, revela já a censurabilidade ou perversidade do agente que o comete. No homicídio qualificado, o que está em causa é uma diferença essencial de grau que permite ao juiz concluir pela aplicação do artigo 132.º, ao caso concreto, após a ponderação da circunstância indiciadora presentou ou e outra circunstância susceptível de preencher o chamado Leitbild dos exemplos-padrão que, de alguma maneira, faz com que o caso deva ainda ser considerado como pertencente a um grupo de valoração (…) estratificado a partir do tipo fundamental”.
No que ao homicídio praticado contra cônjuge toca, «À medida que vão ganhando eco, os casos de “violência doméstica” - exercidos contra a pessoa do cônjuge, quer de direito quer de facto, ainda que já tenha havido separação ou divórcio - encontram uma crescente reprovação, não só pela consciência do seu elevado número e frequência, como também pela interiorização de que o cônjuge maltratado é, frequentemente, uma pessoa indefesa ou economicamente dependente e, portanto, merece a mais ampla proteção humanitária e jurídica.
Por isso, a introdução da alínea b) pela reforma do Código Penal de 2007, ao criar um novo exemplo-padrão, procurou responder à censurabilidade social das situações de violência doméstica, na consideração de que, como anota Paulo Pinto de Albuquerque (Código Penal Anotado, pág. 349), os laços familiares básicos com a vítima devem constituir para o agente fatores inibitórios acrescidos, cujo vencimento supõe uma especial censurabilidade”, mesmo nas situações em que tiverem cessado as relações matrimoniais, pois os laços familiares devem continuar a impor-se ao respeito dos que naquelas intervieram (Cfr. Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, Código Penal – Anotado e Comentado, pág. 344).» - vide, acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25.10.2016, de que é relator o Exmo. Sr. Juiz Desembargador Dr. Carlos Berguete Coelho, disponível na Internet, in www.dgsi.pt.
No caso concreto, verifica-se que a conduta do Arguido descrita nos factos dados como provados em 4. a 10. integra os elementos objectivo e subjectivo que tipificam o crime de Homicídio, que se julga verificado, já que, no decurso de uma discussão, o Arguido muniu-se de uma faca de cozinha em serrilha, com o comprimento total de 29,5cm, com 16,5cm de lâmina e, fazendo uso da mesma, golpeou várias vezes CC, atingindo-a no rosto, pescoço, na zona torácica e abdominal, causando-lhe feridas perfurantes e extensas lesões, que determinaram a sua morte. (…)
Vejamos agora a qualificativa imputada prevista na al. b) do nº 2 do artigo 132º.
Resultou provado que o Arguido praticou os factos supra descritos sobre a sua mulher com quem era casado e residia juntamente com dois dos três filhos, na sequência de uma discussão por motivos relacionados com um eventual divórcio, a que aquele se opunha.
Tal actuação merece um acréscimo de censurabilidade, reflectindo a capacidade do Arguido de vencer as inibições naturalmente decorrentes dos laços familiares básicos com a vítima, praticando os factos precisamente por causa da relação conjugal que tinha com a mesma (ou o fim dela).
Considerando, deste modo, que o Arguido agiu da forma supra descrita, livre, deliberada e conscientemente, com intenção de matar a Ofendida, com quem era casado e por questões relacionadas com um eventual divórcio a que se opunha, querendo atingi-la em zonas do corpo vulneráveis – como são o pescoço, o tórax e o abdómen - , com o propósito concretizado de lhe tirar a vida, encontra-se verificada a circunstância qualificativa prevista na al. b) do nº 2 do artigo 132º, do Código Penal.
Assim e não se verificando quaisquer causas que justifiquem a ilicitude do facto ou excluam a culpa do agente, importa concluir que o Arguido cometeu o crime de Homicídio Qualificado, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 131º e 132º, nº 1 e nº 2, al. b), todos do Código Penal, pelo qual irá condenado”.
Ora, resulta da matéria de facto dada como provada que o arguido AA e a ofendida CC eram casados entre si, e dessa relação tiveram três filhos, DD, nascida em .../.../2007 e EE e FF, nascidos em .../.../2008, residindo todos na mesma casa, e que no dia dos factos, cerca das 09H22, iniciaram uma discussão na sala, por motivos relacionados com um eventual divórcio, a que aquele se opunha, e no decurso dessa discussão e após confronto físico o arguido muniu-se de uma faca de cozinha em serrilha, com o comprimento total de 29,5cm, com 16,5cm de lâmina e golpeou por várias vezes a ofendida atingindo-a no rosto, pescoço, na zona torácica e abdominal, e nos membros superior direito e esquerdo, e inferior direito e esquerdo, causando-lhe feridas perfurantes e extensas lesões, que determinaram a sua morte[9].
E, também resulta da matéria de facto dada como provada que o arguido AA com os golpes desferidos provocou lesões à ofendida CC na cabeça (várias equimoses de cor arroxeada e azulada dispersas pela face; hematomas periorbitais bilaterais), no pescoço (vários ferimentos dispersos, em particular duas feridas lineares, incisas nas faces antero-lateral e anterior do pescoço, paralelas, que distam entre si 2,5cm, a superior com 11cm e a inferior com 13,5cm), no tórax (várias equimoses de cor arroxeada e azulada dispersas; múltiplos ferimentos dispersos, em particular duas feridas corto-perfurantes a nível da região external, a maior com 3cm de comprimento e 1,5 cm de largura), no abdómen (várias equimoses de cor arroxeada e azulada dispersas; múltiplos ferimentos dispersos, em particular três feridas corto-perfurantes na região umbilical, a maior com 1,8cm de comprimento e 0,6cm de largura), no membro superior direito (várias feridas compatíveis com lesões de defesa no braço e na mão), no membro superior esquerdo (várias feridas compatíveis com lesões de defesa no antebraço e na mão, sendo a maior no terço distal da face anterior do antebraço, medindo 8cm de comprimento por 2,5cm de largura, com visualização de secção de músculos e tendões), no membro inferior direito (várias equimoses de cor arroxeada e azulada dispersas) e no membro inferior esquerdo (várias equimoses de cor arroxeada e azulada dispersa), tendo comparecido uma equipa do INEM, que efectuou manobras de suporte avançado de vida, mas sem sucesso, tendo o óbito da ofendida ocorrido em consequência directa e necessária das graves lesões traumáticas, crânio-encefálicas, torácicas e abdominais sofridas, na sequência das agressões de que foi vítima, e sido declarado pelas 10H15.[10]
O acórdão recorrido fez constar que esta actuação do arguido AA merece um acréscimo de censurabilidade por ter praticado os factos precisamente por causa da relação conjugal que tinha com a vítima.
E, o acórdão recorrido também fez constar que a forma como o arguido agiu livre, deliberada, e conscientemente, com intenção de matar a ofendida com quem era casado, por questões relacionadas com um eventual divórcio a que se opunha, atingindo-a em zonas do corpo vulneráveis, o pescoço, o tórax e o abdómen, com o propósito concretizado de lhe tirar a vida, preenchem a circunstância qualificativa prevista na al. b), do nº 2, do art 132º, do Cod. Penal, não se verificando quaisquer causas que justifiquem uma menor ilicitude do facto ou excluam ou atenuem a sua culpa.
Ora, o especial e acentuado desvalor da conduta do arguido AA, traduzido na especial censurabilidade em que se conforma o tipo especial de culpa do crime de homicídio qualificado pelo qual foi condenado, manifesta-se através de todos os actos por si praticados (múltiplos golpes praticamente em todas as partes do corpo da ofendida, estando esta completamente desprotegida para se poder defender), estando-se indubitavelmente perante uma conduta altamente reprovável consubstanciada na prática de factos especialmente desvaliosos, dignos de especial censurabilidade, e que demandam que se proceda a um especial juízo ao nível da culpa, sendo que ao actuar como actuou, lesando a vida da sua mulher de uma forma tão brutal, tal facto não poderá deixar de ser susceptível de um elevado grau de censura.
Para além do mais, a decisão do arguido AA de matar a sua mulher porque esta mostrou intenção de se querer divorciar consubstancia desde logo a manifestação de um comportamento especialmente grave pois, ao cometer tal facto, o arguido AA contrariou, em absoluto, aquela que deveria ser a sua atitude perante a ofendida sua mulher, e que era um dever acrescido de não atentar contra a sua vida.
Assim, a conduta do arguido AA revela especial perversidade e censurabilidade, integrando a qualificativa prevista na al. b), do nº 2, do art. 132º, do Cod. Penal, sendo que o especial tipo de culpa se verifica através da realização dos factos especialmente desvaliosos e já descritos.
B - Da nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação relativamente à verificação do requisito de especial censurabilidade
O arguido AA alega que o acórdão recorrido concluiu verificar-se a especial censurabilidade pelo simples facto de ter matado a sua mulher, ou seja, o acórdão recorrido invoca tão-somente a existência de uma relação conjugal e não adianta qualquer outro fundamento para justificar aquela circunstância, encontrando-se o mesmo inquinado de falta de fundamentação, nos termos disposto nos arts. 374º e 379º ambos do Cod. Proc. Penal, uma vez que este facto não basta para que se demonstre a especial censurabilidade, tornando-se necessário demonstrar a culpa agravada.
Ora, a nulidade como tal invocada, de omissão de pronúncia, verifica-se quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questão ou questões que oficiosamente deva pronunciar-se. No caso, embora o acórdão recorrido não seja exuberante na sua fundamentação uma vez que cita muita doutrina e jurisprudência relativamente a esta questão da especial censurabilidade, entende-se que a fundamentação apresentada é suficientemente reveladora do juízo a que procedeu para qualificar o especial e acentuado desvalor da conduta do arguido AA, enunciando os factos especialmente desvaliosos por si praticados, dignos de especial censurabilidade, e que demandaram que se procedesse a um especial juízo ao nível da sua culpa.
É o que tanto basta para se concluir pela não verificação da invocada nulidade por falta de omissão de pronúncia do acórdão recorrido relativamente à menção dos concretos pontos de facto atinentes à verificação do crime de homicídio qualificado.
Daí que se entende não proceder a invocada nulidade que importa desde já indeferir.
C – Da aplicação do instituto da atenuação especial da pena
O arguido AA pugna pela atenuação especial da pena de prisão, nos termos do art. 72º, nº 1, do Cod. Penal, invocando o facto de ser primário, e as conclusões da perícia médico-legal realizada referirem que o mesmo apresenta uma perturbação do desenvolvimento intelectual que o torna mais vulnerável, reflectindo-se numa maior dificuldade em lidar com stress e em gerir situações mais exigentes em termos emocionais, tendo tendência para interpretar as situações de forma enviesada, não existindo perigo em vir a cometer factos da mesma natureza.
Entende-se que esta fundamentação não pode de qualquer forma amparar a pretensão atenuativa especial da pena reclamada pelo arguido AA.
Com efeito, a atenuação especial da moldura penal de um crime só funciona em situações muito especiais, ou seja, quando se verifica a existência de circunstâncias que diminuam de forma acentuada as exigências de punição do facto, de forma que a imagem global dos factos apareça especialmente atenuada, tendo em conta a moldura penal que o legislador considerou para a punição desses mesmos factos[11].
Assim, estabelece o art. 72º, nº 1, do Cód. Penal que, fora dos casos especialmente previstos, a substituição da moldura penal do tipo de ilícito cometido pelo agente por uma moldura especialmente atenuada, só pode dar-se quando no caso concreto existam circunstâncias anteriores, contemporâneas ou posteriores “que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena”.
Desta forma, a aplicação do regime da atenuação especial da pena tem como fundamento uma diminuição acentuada não apenas da ilicitude do facto e/ou da culpa do agente, mas também uma diminuição acentuada da pena por se verificarem diminuídas as respectivas exigências de prevenção.
No Ac. do STJ de 07/09/2016, sustenta-se que o aditamento da necessidade da pena “veio esclarecer que o princípio basilar que regula a atenuação especial é a diminuição acentuada não só da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena, e consequentemente das exigências de prevenção”[12]
E, no Ac. STJ de 09/12/2020 diz-se que: “Doutrina e jurisprudência coincidem em que não é suficiente a verificação das circunstâncias indicativamente enunciadas pelo legislador ou outras de igual densidade para que o tribunal deva atenuar especialmente a pena. Decisiva é “a imagem global do facto, a gravidade do crime como um todo”[13] ou a desnecessidade da pena pela acentuada diminuição das exigências de prevenção geral de integração[14].
Assim, o critério decisivo para a aplicação da atenuação especial da pena terá de aferir-se através da verificação de circunstâncias concorrentes que, pela sua especial intensidade, configurem ao caso uma gravidade acentuadamente diminuída, seja ao nível da ilicitude, seja ao nível da culpa, seja ao nível da desnecessidade de aplicação de uma pena, circunstâncias estas que escapam à previsão do tipo de ilícito que o legislador definiu e que levam a considerar que seria injusto punir de acordo com a moldura penal aplicável ao crime (sublinhando-se que no caso do crime de homicídio qualificado a moldura máxima mais do que duplica a moldura mínima).
O art.º 72º, nº 2, do Cód. Penal indica exemplificativamente a existência de circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime ou contemporâneas deste que, concorrendo num determinado caso, podem diminuir por forma acentuada a ilicitude dos factos, a culpa do agente ou a necessidade da pena, e que são:
a) Ter o agente atuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.
Relativamente a esta questão, o acórdão recorrido fez constar que[15]:
Esta norma constitui uma cláusula geral de atenuação especial da pena destinada a evitar que, para além dos casos expressamente previstos na lei não seja determinada uma pena superior à que é permitida pela culpa e imposta pelas exigências de prevenção.
Para que opere a atenuação especial da pena necessário é que se esteja perante circunstâncias anteriores, contemporâneas ou posteriores ao crime que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
Fica, desde logo, arredada a circunstância atenuativa contida na alínea d), considerando que ainda nem decorreu um ano desde a prática do crime.
No que tange às circunstâncias previstas nas alíneas a) e b), damos aqui por reproduzidas as considerações supra exaradas quanto à não verificação do privilegiamento do crime de Homicídio. Isto é, não resultou demonstrada a existência de ameaça grave ou comportamento provocatório com relevância que fundamente uma diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena.
Também a admissão dos factos não pode ser tida como acto demonstrativo de arrependimento sincero, sendo certo que, tendo reconhecido os factos em 1º Interrogatório Judicial, já não o veio a fazer em audiência de julgamento, onde procurou destacar apenas a “culpa da vítima” e diminuir o valor das declarações anteriormente prestadas com base num alegado estado de choque e confusão.
E mesmo os factos que admitiu perante Juiz de Instrução Criminal não foram muito mais além do que resultava evidente da panóplia da prova recolhida, não se podendo afirmar que contribuiu de forma relevante para a descoberta da verdade.
Por outro lado, quanto a um arrependimento genuíno, também não se denotou um mea culpa sincero, mas tão-só o arrependimento naturalmente decorrente da situação de privação de liberdade, com tudo o que isso implica em termos familiares, pessoais, sociais.
Não se verificam, pois, circunstâncias que possam atenuar especialmente a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena”.
No caso, tal como consta do acórdão recorrido, não se verificam quaisquer circunstâncias que pudessem dar uma imagem global dos factos que pudesse de alguma forma justificar como desproporcionada a punição do arguido AA pela prática do crime de homicídio qualificado fora da sua moldura penal normal.
Assim, improcede, também esta pretensão do arguido AA
D – Da medida da pena
O arguido AA foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de homicídio qualificado, p. p. pelas disposições conjugadas dos arts. 131º e 132º, nº 1, e nº 2, al. b), todos do Cod. Penal, na pena de 16 (dezasseis) anos de prisão.
O arguido AA entende que, mantendo-se a qualificação jurídica dos factos julgados provados, e sendo condenado pela prática do crime de homicídio qualificado p. e p. pelos arts. 131º, e 132º, n º 1, e nº 2, al. b) do Código Penal, e não havendo lugar à atenuação especial da pena, deveria ser condenado na pena mínima de 12 (doze) anos de prisão.
Os arts. 131º e 132º, nº 1, do Cod. Penal estipulam que ao crime de homicídio qualificado corresponde a pena abstracta de 12 a 25 anos de prisão.
A aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art. 40º, nº 1, do Cod. Penal), sendo que as exigências de prevenção geral constituem uma finalidade de primordial importância nos casos dos crimes de homicídio.
Com efeito, a vida humana é o bem supremo, o valor fundamental, e inviolável, conforme resulta do art. 24º, nº 1, da Constituição da República, sendo a comunidade abalada de forma muito intensa quando, por acto voluntário, se ofende a vida de um dos seus membros.
Como sublinham Gomes Canotilho e Vital Moreira “o direito à vida é um direito prioritário, pois é condição de todos os outros direitos fundamentais, sendo material e valorativamente o bem mais importante do catálogo de direitos fundamentais e da ordem jurídico-constitucional no seu conjunto”[16].
Ora, a determinação da medida da pena, dentro dos limites fixados na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa, sendo esta vista enquanto juízo de censura em face do desvalor da acção praticada (arts. 40º e 71º, ambos do Código Penal).
E, na determinação concreta da medida da pena, como impõe o art. 71º, nº 2, do Código Penal, o tribunal tem de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor do agente ou contra ele, designadamente as que a título exemplificativo estão enumeradas naquele preceito, bem como as exigências de prevenção que, no caso, se façam sentir, incluindo-se tanto as exigências de prevenção geral como as exigências de prevenção especial.
E, enquanto a primeira exigência de prevenção geral se cinge ao restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime, que corresponde ao indispensável para a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, a segunda exigência visa a reintegração do arguido na sociedade (prevenção especial positiva) e evitar a prática de novos crimes (prevenção especial negativa), impondo-se uma consideração relativamente à conduta e à personalidade do agente.
Conforme salienta o Prof. Figueiredo Dias[17], a propósito do critério da prevenção geral positiva, “A necessidade de tutela dos bens jurídicos – cuja medida ótima, relembre-se, não tem de coincidir sempre com a medida culpa – não é dada como um ponto exato da pena, mas como uma espécie de «moldura de prevenção»; a moldura cujo máximo é constituído pelo ponto mais alto consentido pela culpa do caso e cujo mínimo resulta do «quantum» da pena imprescindível, também no caso concreto, à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias. É esta medida mínima da moldura de prevenção que merece o nome de defesa do ordenamento jurídico. Uma tal medida em nada pode ser influenciada por considerações, seja de culpa, seja de prevenção especial. Decisivo só pode ser o quantum da pena indispensável para se não ponham irremediavelmente em causa a crença da comunidade na validade de uma norma e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penal”.
E, relativamente ao critério da prevenção especial, escreve o Prof. Figueiredo Dias que: “Dentro da «moldura de prevenção acabada de referir atuam irrestritamente as finalidades de prevenção especial. Isto significa que devem aqui ser valorados todos os fatores de medida da pena relevantes para qualquer uma das funções que o pensamento da prevenção especial realiza, seja a função primordial de socialização, seja qualquer uma das funções subordinadas de advertência individual ou de segurança ou inocuização”[18].
A pena a aplicar terá também que ter uma função de prevenção especial negativa, ou seja, terá de dissuadir o agente da prática de futuros crimes, daí que a medida das necessidades de socialização do agente deva ser, em princípio, o critério decisivo das exigências de prevenção especial para efeito de medida da pena.
O Ac. do STJ de 02/10/2019[19], no seguimento de demais jurisprudência deste Supremo Tribunal refere que o crime de homicídio qualificado, p. p. pelos arts. 131º e 132º do Cod. Penal, constitui um tipo qualificado por um critério generalizador de especial censurabilidade ou perversidade, determinante de um especial tipo de culpa mediante uma cláusula geral concretizada na enumeração dos exemplos-padrão enunciados no nº 2 deste preceito, indiciadores daquele tipo de culpa, projectada nos factos, cuja confirmação se deve obter, no caso concreto, pela ponderação, na sua globalidade, das circunstâncias dos factos e da atitude do agente[20] .
Para a determinação da medida concreta da pena aplicada ao arguido AA, o acórdão condenatório fez constar que[21]:
Tendo presente o modelo adoptado, importa de seguida eleger, no caso concreto, os critérios de aquisição e de valoração dos factores da medida da pena referidos nas diversas alíneas do nº 2 do artigo 71º do Código Penal.
Será, assim, de considerar o seguinte:
As necessidades de prevenção geral são gritantes, desde logo, pelo bem jurídico supremo tutelado com a incriminação em apreço que é a vida humana, ao que se soma o aumento da criminalidade praticada em contexto conjugal motivada pelo ciúme e/ou não aceitação do fim da relação (muitas vezes já como culminar de situações de violência doméstica).
O alarme social provocado é elevado, devendo a pena restabelecer a tranquilidade e a expectativa comunitárias na vigência e validade das normas violadas. É, pois, imperativo deixar um sinal claro à comunidade de que não são tolerados factos como os em apreço como forma de resolver eventuais problemas conjugais e familiares.
O Arguido agiu com dolo directo, sendo o grau de ilicitude dos factos elevado, dado o modo de execução do facto, a intensidade e a quantidade dos golpes perpetrados e as zonas corporais atingidas.
De resto, o Arguido revela um percurso familiar, social e profissional isento de reparos, dispõe de apoio familiar, goza de forte ligação afectiva com os seus filhos e não tem antecedentes criminais (…).
É certo que pesam a favor do Arguido o percurso pessoal normativo, com elevada ligação e sentido de entreajuda com a família de origem, a integração positiva no meio e as características de prestabilidade e boa disposição.
Porém, não podemos deixar de considerar igualmente a dificuldade do Arguido em lidar com o stress e gerir situações de vida mais exigentes em termos emocionais, bem como a tendência a interpretar as situações de forma enviesada, em prol da sua limitação cognitiva. Denota-se, deste modo, alguma impreparação para gerir sentimentos exacerbados e incapacidade de autocontrole, reclamando apertadas necessidades de prevenção especial.
Deste modo e ponderando todas as considerações numa visão de conjunto, julga-se adequado aplicar ao Arguido a pena de 16 (dezasseis) anos de prisão”.
No caso, a decisão recorrida ponderou as necessidades de prevenção geral que o crime de homicídio qualificado pelo qual o arguido AA foi condenado demandam (face ao bem jurídico supremo tutelado com a incriminação, que é a vida humana, e ao aumento da criminalidade praticada em contexto conjugal, no caso motivada pela não aceitação do fim da relação), e também ponderou as necessidades de prevenção especial que se verificam (dificuldade em lidar com o stress e gerir situações de vida mais exigentes em termos emocionais, bem como a tendência a interpretar as situações de forma enviesada, em prol da sua limitação cognitiva).
Ora, a decisão de matar foi livre e consciente, uma vez que o arguido AA só apresenta um atraso de desenvolvimento - uma Perturbação de Desenvolvimento Intelectual – que lhe pode condicionar alguma vulnerabilidade e, potencialmente colocá-lo numa situação de maior desvantagem face a terceiros, contudo esta Perturbação de Desenvolvimento Intelectual é ligeira e não o impede de avaliar a ilicitude dos factos e de se autodeterminar de acordo com essa avaliação[22].
E, não se retira da matéria de facto dada como provada que o arguido AA estivesse por alguma forma afectado com algo que o perturbasse, ou que existisse uma situação exterior que lhe tivesse causado um estado emocional que pudesse diminuir a ilicitude dos factos por si praticados.
De todo o modo, o arguido AA não podia exercer qualquer tipo de violência sobre a sua mulher, muito menos levar esta violência ao extremo de lhe tirar a vida, sendo que esta conduta nunca poderá ser ponderada em sede de redução da medida da pena, nem sequer o facto de não aceitar um eventual divórcio poderia de alguma forma atenuar a sua conduta.
Assim, procedendo à análise do comportamento do arguido AA, ao nível do conteúdo da culpa, resulta dos factos provados que o mesmo tinha plena consciência da ilicitude e da forte censurabilidade da sua conduta, tendo agido com dolo directo e intenso.
E, conjugando a personalidade do arguido AA com o quadro das circunstâncias em que actuou (na intimidade da casa de morada família, pressuposto de um local seguro, o arguido tirou a vida à sua mulher através de vários golpes com uma faca em múltiplas partes do seu copo, algumas delas em zonas vitais), são muito elevadas as exigências de prevenção especial que se fazem sentir.
A gravidade e a natureza dos factos cometidos demandam também elevadas necessidades de prevenção especial de ressocialização, sublinhando-se a atitude altamente desvaliosa da sua conduta ao nível da culpa, tendo cometido o crime na sequência de uma discussão por não concordar com um eventual divórcio, situação que desaconselha vivamente uma redução da pena, sob pena de ser violado o critério de proporcionalidade que se impõe com vista à realização das finalidades que presidem à sua aplicação.
E, o facto de o arguido AA vir alegar ser trabalhador, ser de modesta condição social, não registar qualquer antecedente de agressividade, estar familiar e socialmente inserido, ter três filhos menores com os quais mantem laços afectivos mesmo após os factos, não pode por si só permitir a formulação de um juízo de prognose favorável no sentido de lhe ser aplicada uma pena de prisão correspondente ao limite mínimo da moldura penal abstracta aplicável.
Com efeito, o arguido AA cometeu um acto voluntário grave, através do qual retirou a vida à sua mulher, com quem viveu durante 15 anos, e de quem tinha três filhos menores, na sequência de uma discussão pelos motivos já enunciados, em que se envolveram em confronto físico, tendo este ido buscar uma faca de cozinha em serrilha, com o comprimento total de 29,5cm, e com 16,5cm de lâmina, com a qual golpeou por várias vezes a ofendida atingindo-a no rosto, pescoço, na zona torácica, abdominal, e em ambos os membros, e causando-lhe feridas perfurantes e extensas lesões que determinaram a sua morte.
O modo de actuação do arguido AA, através da prática de factos de natureza marcadamente violenta que provocaram necessariamente um elevado estado de sofrimento à vitima, revela uma frieza e uma insensibilidade demonstrativa de uma personalidade que despreza o valor da vida humana, sendo que os seus juízos de censura são dignos de pouco relevo, entendendo-se que a aplicação da pena de 16 anos de prisão imposta pela 1ª instância (que não ultrapassa a medida da sua culpa), irá contribuir para a sua reintegração social e satisfazer as finalidades das penas.
A pretendida redução da pena mostra-se desajustada e comprometia irremediavelmente a crença da comunidade na validade das normas incriminadoras violadas, não sendo comunitariamente suportável aplicar pena inferior à imposta pela 1ª Instância.
No caso, a aplicação de uma pena inferior à aplicada no acórdão recorrido não implicaria para o arguido AA uma dissuasão necessária para nele reforçar o sentimento da necessidade de se auto-ressocializar, ou seja, de não reincidir, seria mesmo banalizar o seu comportamento, assim como o de outros que agissem como ele, em circunstâncias semelhantes.
E, no caso de infractores ocasionais, como é o caso do arguido AA, a pena a aplicar deverá conter uma mensagem que lhe permita a sua auto-ressocialização e, ao mesmo tempo, lhe permita interiorizar o desvalor da sua conduta e o vá dissuadir da prática de novos crimes (assim se evitando igualmente o perigo da reincidência), de forma a fazer sentido em sede de prevenção especial.
Assim, ponderando todas estas circunstâncias, e tendo em conta os critérios estatuídos no art. 71º do Cod. Penal, entende-se que a pena de 16 (dezasseis) anos de prisão, situada num 1/3 dentro da moldura penal aplicável revela-se justa e adequada, e não ultrapassa a medida da sua culpa, pelo que a mesma não comporta qualquer intervenção correctiva.
Cabe tributação, nos termos prevenidos no art. 513º, do Cod. Proc. Penal, e no art. 8º e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.
III - DECISÃO
Pelo exposto, acordam na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:
a) Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido.
b) Condenar o arguido nas custas, com a taxa de justiça em 5 (cinco) UC´s.
Supremo Tribunal de Justiça, 17 de Fevereiro de 2022
[Processado em computador, revisto pela relatora (art. 94º, nº 2, do Cod. Proc. Penal)
Adelaide Sequeira (Relatora)
Maria do Carmo Silva Dias
______________________________________________________
[1] Cfr. Ac. STJ de 09/10/2019, in Proc. nº 3145/17.4JAPRT.S1, Relator Cons. Raúl Borges
[2] Cfr. 2º § da pag. 15 do seu Parecer
[3] In Proc. nº 763/17.4JALRA.C1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[4] Cfr. Prof. Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág. 25-26; Teresa Serra, in Homicídio Qualificado. Tipo de Culpa Medida da Pena, 1990, pág. 27.
[5] Cfr. obra citada pag. 29.
[6] Cfr. neste sentido o Ac. do STJ, de 07/12/1999, in CJ, e Acs. do STJ de 1999, Tomo III, pág. 235, e acórdãos aí citados.
[7] In Proc. nº 139/18.6JAFUN.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[8] Cfr. pag. 12 a pag. 16, do acórdão recorrido, nos excertos do texto que interessam para a apreciação.
[9] Cfr. Factos dados como provados 1 a 4.
[10] Cfr. Factos dados como provados 5 a 7.
[11] Neste sentido cfr. J. Figueiredo Dias, As Consequências Juridicas do Crime, Noticias Editorial, pag. 302.
[12] In Proc. nº 232/14.4JABRG.P1.S1
[13] Cfr. J. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Noticias Editorial, pag. 312.
[14] Cfr. Ac. STJ de 09/12/2020, in Proc. nº 1289/08.2PHLRS.L2.S1, acessível em www.dgsi.pt
[15] Transcrição de parte da pag. 13, e parte da pag. 14
[16] Cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, 2007, Vol. I, pag. 446-447.
[17] In Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Ed. Notícias, pág., 241-244
[18] Também citado e referenciado no Ac. STJ de 20/05/2020, in Proc. nº 404/17.0GBMFR.S1, acessível em www.dgsi.pt
[19] In Proc. nº 3622/17.7JAPRT.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt
[20] Neste sentido cfr., igualmente Ac. STJ de 20/06/2018, in Proc. 3343/15.5JAPRT.G1.S2, o Ac. STJ de 05/07/2017, in Proc. nº 1074/16.8JAPRT.P1, o Ac. STJ de 19/02/2014, in Proc. nº 168/11. 0GCCUB.S1
[21] Transcrição de parte da pag. 13, 14 e 1º § da pag. 15.
[22] Cfr. facto dado como provado no ponto 12.