Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
420/06.7GAPVZ.P1.S2
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: PIRES DA GRAÇA
Descritores: CONTRADIÇÃO INSANÁVEL
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
MATÉRIA DE FACTO
NULIDADE DA SENTENÇA
PRINCÍPIO DA VERDADE MATERIAL
PROVA
REENVIO DO PROCESSO
REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM
Data do Acordão: 01/22/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL - PROVA - AUDIÊNCIA / PRODUÇÃO DE PROVA - RECURSOS ORDINÁRIOS.
Doutrina:
- Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 3ª ed., p. 347.
- Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal”, Anotado – Legislação Complementar, 17ª edição, 2009, p. 781.
- Pietro Prieto Castro y Fernandiz e Gutierrez de Cabiedes, Derecho Penal, II , p. 252.
- Vaz Serra, Direito Probatório Material, in BMJ, nº 112, p. 190.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 349.º.
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 74.º, 125.º, 126.º, 127.º, 335.º, N.ºS 1 E 2, 340.º, 426.º, N.ºS 1 E 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 28.04.99, CJ/STJ, ANO DE 1999, P. 196 E JURISPRUDÊNCIA ALI CITADA.
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ACÓRDÃO STJ PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA Nº 7/95, DE 19/10/95, PUBLICADO NO DR, SÉRIE I-A DE 28/12/95.
Sumário :

      

I  -   O acórdão recorrido bastou-se com os elementos existentes que motivaram o anterior acórdão do Tribunal da Relação, mas não reponderou, em novo julgamento, de harmonia com o anterior acórdão do STJ, mediante toda a prova possível, que possa configurar-se necessária e valorando subsequentemente toda a prova, se existe dúvida inultrapassável perante as regras da experiência, ou se estas, podem gerar presunções naturais, perante factos ainda que assentes em indícios coerentes e consistentes.

II -  No sistema processual penal, vigora a regra da livre apreciação da prova, em que conforme o art. 127.º do CPP, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.

III - Distingue-se entre prova directa e prova indiciária, referindo-se aquela ao thema probandum, aos factos a provar, enquanto que a prova indirecta respeita a factos instrumentais, mas que possibilitam, pelo uso das regras da experiência, extrair ilações no domínio do thema probandum, de convicção racional e objectivável do julgador.

IV - As regras da experiência não exigem certezas científicas, não são perícias, nem exames donde resultem aquelas certezas, mas informações reais que a vida ensina na verificação empírica de resultados produzidos.

V - Como o acórdão recorrido não alcançou o determinado pelo acórdão do STJ que ordenou o reenvio, continuando a subsistir o vício assinalado, perspectivado pela contradição intrínseca, segundo as regras da experiência, há que reenviar de novo o processo, nos termos do n.º 1 do art. 426.º do CPP, para novo julgamento da matéria de facto, sem prejuízo da produção da prova necessária à decisão nos termos do art. 340.º do CPP.

      

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


Como consta do relatório do acórdão recorrido:

           

No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular que corre termos no 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Póvoa de Varzim com o nº 420/06.7GAPVZ foi submetido a julgamento o arguido AA, tendo a final sido proferida sentença que condenou o arguido pela prática de um crime de ofensas à integridade física negligente p. e p. no artº 148º nºs 1 e 3, com referência ao artº 144º als. a) e b), todos do Código Penal na pena de 2 anos e 2 meses de prisão suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo.

                Foi ainda condenada a demandada Companhia de Seguros..........., SA. a pagar ao ofendido BB, as quantias de € 959,99 a título de despesas, € 20.000,00 de lucros cessantes e € 35.000,00 a título de danos morais, quantias estas acrescidas de juros de mora à taxa legal, a contar da notificação do pedido e até efetivo e integral pagamento.

                O arguido e a demandada cível interpuseram recurso para este Tribunal da Relação que, na sequência da respetiva apreciação decidiu:

    • declarar a nulidade insanável por falta de apresentação de queixa e , em consequência, extinto o procedimento criminal contra o arguido AA;
    • alterar a matéria de facto provada e, em consequência, julgar improcedente o pedido de indemnização cível deduzido contra a seguradora.
Inconformado com o acórdão desta Relação, o ofendido/demandante dele interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão proferido a fls. 765 a 793, determinou “o reenvio para novo julgamento da matéria de facto, no tocante ao factualismo impugnado e alterado […] nos termos do artº 426º nºs 1 e 2 do CPP, em ordem a produzir-se um julgado claro e preciso”.

Realizado de novo o julgamento, foi proferido acórdão em 12 de Setembro de 2012 que decidiu “conceder provimento ao recurso interposto pela demandada Companhia de Seguros.........., SA., revogando a sentença recorrida e julgando improcedente o pedido de indemnização cível deduzido por BB.

                Sem tributação. “

            De novo inconformado, recorre o ofendido e demandante civil BB, para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando as seguintes conclusões:

1.°

A decisão recorrida, não obstante as desenvolvidas considerações sobre a formação da convicção do julgador e sobre a apreciação da prova, cujo teor doutrinário não se contesta, aplica erradamente ao caso presente os princípios enunciados, e acaba por decidir da mesma forma que anteriormente, ignorando ou mesmo colocando-se em clara oposição face aos termos proferidos pelo Supremo, incorrendo dessa forma nos mesmos vícios do acórdão anteriormente proferido pelo tribunal a quo.

2.°

Nos termos dos arts. 426.°, n.º 2 e 430.° do CPP a Relação devia ter ou admitido a renovação da prova ou reenviado o processo para novo julgamento em 1.a instância, em todo o caso de forma a que o julgamento da matéria de facto, «no tocante ao factualismo impugnado e alterado», não viesse a sofrer dos vícios que o ST] apontou. Mas a Relação não realizou a renovação da prova, nem recolheu os depoimentos do referido BB e do demandante, nem das demais testemunhas, nem reenviou o processo para novo julgamento em 1ªinstância.

3.°

O acórdão recorrido não respeitou as considerações que esse ST] desenvolveu sobre a apreciação da prova produzida nos autos, negando abertamente que existisse um «campo de convergência indiciária, firme e precisa», conforme se julgava no aresto do ST] de acordo com aquilo que resultava dos factos provados e do texto do acórdão anteriormente proferido pela Relação.

4•°

Certo é que:

a) entre os dias 22 e 30 de Julho de 2006 a segurada da demandada civil lançou vários foguetes de artifício num terreno contíguo ao do pai do recorrente;

b) poucos dias depois o recorrente pegou num engenho explosivo que lhe rebentou na mão direita, decepando-lhe a mão e provocando-lhe as demais lesões descritas no acórdão recorrido;

c) no dia a seguir ainda se encontravam no local pelo menos três sacos de material pirotécnico, onde é visível a designação da segurada da demandada civil; d) as lesões sofridas pelo recorrente são típicas do rebentamento de material pirotécnico;

e) que não se encontra nas lojas, nem é fácil de obter ou fabricar.

a que conjugado com as demais circunstâncias apuradas no presente processo, salientadas também por esse Supremo Tribunal, e na completa ausência de quaisquer indícios que forneçam uma explicação alternativa para o sucedido, mesmo que especulativa, só permite afirmar que o engenho explosivo que deflagrou na mão do recorrente era proveniente do lançamento de fogo de artifício, no mesmo local, realizado alguns dias antes.

A questão de saber o local exacto onde o recorrido apanhou o explosivo, salientada pelo tribunal a quo, é totalmente acessória.

6.°

Encontrar aqui um estado de dúvida, que haja de ser decidido a favor do arguido, e por conseguinte a favor da demandada cível, traduz uma aplicação indevida do princípio in dubio pro reo.

O acórdão recorrido enferma dos vícios do art. 410.°, n.º 2, do CPP, em especial de erro notório na apreciação da prova, conforme resulta manifestamente do texto do acórdão.

8.°

o acórdão recorrido viola os arts. 342.°, 344.°, n.º 1,483.°, n.º 1,486.°, 487.° e 493.°, n.2 2 do Código Civil, bem como os arts 426.º, n.º 2 e 430.0 do CPP.

9.°

Por desrespeitar decisão superior do Supremo Tribunal de Justiça, o acórdão recorrido viola também o art. 210.°, n.º 1 da Constituição e o art. 4.°, n.º 2 da LOFT].

j

Termos em que deve ser dado integral provimento ao presente recurso, e em consequência condenar-se a demandada..........., S. A. como na primeira instância, ou, se assim se entender, nos termos do art. 426.° do CPP, determinar o reenvio do processo para novo julgamento, relativamente ao pontos 10, 14, 16, 17 e 20 da matéria de facto, que a Relação modificou.



            Não houve resposta à motivação do recurso.

-

            Neste Supremo, o Exmo. Magistrado do Ministério Público explicitou que “o presente recurso apenas pode circunscrever-se, definitiva e inexoravelmente, ao aspecto cível da causa.”

Neste âmbito porém, e porque nele se dirimem direitos disponíveis, apenas às partes – que o Ministério Público não representa – cabe decidir da disposição ou não dos mesmos, bem como do exercício dos meios de tutela que a lei lhes faculta (assim, Germano Marques da Silva, In “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 2000, vol. III, pág. 327/328).

                2.2. Donde, e por carecer para tanto da necessária legitimidade, não cumpra ao Ministério Público pronunciar-se, motivo pelo qual não podemos deixar de abster-nos de emitir parecer sobre o mérito do recurso.”

            Não  tendo sido requerida audiência, foram os autos à conferência, após vistos.


A)

            Consta da fundamentação de facto do acórdão recorrido:

            “A sentença recorrida tinha considerado provados os seguintes factos: (transcrição)
1. O CC em 2006 exercia as funções de Juiz da Comissão de Festas da N.ª Sr.ª da Boa viagem, freguesia de Aguçadoura, Póvoa de Varzim, e nessa qualidade era o responsável pelas festa nesse ano, a qual se realiza anualmente, e que decorre entre os dias 22 a 31 de Julho.
2. Para o efeito, o CC, obteve a licença n. 55/06, para o lançamento do fogo junto da PSP de Vila do Conde e a de ruído, junto da Câmara Municipal de Póvoa de Varzim.
3. O Comando Metropolitano do Porto, secção policial de Vila do Conde, emitiu um aviso para ser afixado, publicitando o lançamento de fogo de artifício, nas festividades da N.ª Sr.ª. Da Boa Viagem, na Aguçadoura, e chamando a atenção das pessoas para o perigo que constituem as bombas que sejam encontradas no solo por deflagrar.
4. Para os respetivos festejos do ano 2006, o DD contratou com a “EE, Lª”, que se dedica à atividade de fabrico e lançamento de fogo de artifício, da qual é sócio-gerente FF, o fornecimento de fogo de artificio, para ser lançado durante aquelas festividades.
5. A EE, Lª emitiu declaração de fornecimento de fogo de artifício para essa festa, indicando como lançador: GG
6. Foram passadas as credenciais n. 2436, de 12/06/06, e 789, de 20/07/06, que habilitava a EE, através dos seus funcionários, designadamente o aqui arguido, a proceder ao lançamento de artefactos pirotécnicos.
7. A EE, Lª, transferiu a sua responsabilidade civil, até ao limite de € 250.000,00, por danos decorrentes de lesões corporais e/ou materiais causados a terceiros em consequência do lançamento de fogo de artifício e foguetes na localidade de Aguçadoura, por ocasião das festividades da N.ª Sr.ª da Boa Viagem, em Aguçadoura, com inicio no dia 22 de Julho de 2006 e termo no dia 31 de Julho de 2006, para a Companhia de Seguros...........l, S.A., através da Apólice nº 0000000.
8. A partir do dia 22 e até ao dia 30 de Julho de 2006, o arguido AA, que trabalhava por conta da sociedade “EE, Lª”, procedeu ao lançamento, para o ar, de vários foguetes de artifício, num terreno agrícola contíguo ao do pai do ofendido, em Aguçadoura, Póvoa de Varzim.
9. Os foguetes foram lançados no local previamente determinado pela Comissão de festas.
10. Uma das bombas desses foguetes não deflagrou, por causas não concretamente apuradas, e permaneceu no local, em Aguçadoura.
11. No final de cada lançamento o arguido com três elementos, pertencentes à comissão de festas, apanhava o lixo pirotécnico que era colocado em sacos.
12. No último dia das festividades, em 30/07/06, nenhum dos membros da comissão de festas participou na limpeza do terreno após os lançamentos do fogo seco.
13. No dia 12/08/06 encontravam-se, pelos menos, três sacos de lixo pirotécnico no local.   
14. No dia 11 de Agosto de 2006, cerca das 20h45m, o BB encontrava-se nesses terrenos, sitos em Aguçadoura, e em circunstancias não apuradas pegou numa bomba que lhe rebentou na mão direita.
15. Com tal explosão, ouviu-se o barulho do rebentamento e os gritos do ofendido.
16. Ao agir do modo descrito, o arguido descurou as mais elementares regras legais, pois sabia que a isso estava obrigado, atenta a atividade perigosa que exercia, ou seja, após o lançamento dos foguetes (fogo de artificio) deveria ter recolhido os foguetes que não tivessem sido deflagrados bem como as sobras do restante lançamento dos foguetes, sob pena de causar perigo e atingir a integridade física ou a vida de outras pessoas, caso estas viessem a encontrar e manusear tais foguetes, o que veio a acontecer com o ofendido.
17. Com tal conduta, o arguido fez com que o ofendido fosse atingido com a explosão do referido foguete, tendo resultado para estes lesões e sequelas físicas, consequências que o arguido não quis.
18. O ofendido no dia dos factos foi assistido no Centro Hospitalar de Vila do Conde/Póvoa de Varzim.
19. Em resultado da explosão sofreu as seguintes lesões: esfacelo do membro superior direito, com exposição óssea até à articulação rádio – cárpica e perda extensa de substancia, com perdas totais do 1.º, 2.º e 3.º dedos e com fraturas múltiplas dos restantes, o que determinou a amputação traumática da mão direita, e várias feridas corto-contusas no outro antebraço e mão.
20. Como consequência direta e necessária da explosão daquele foguete resultaram para o ofendido a amputação da mão direita pelo nível da articulação rádio-cárpica; no coto da amputação contém cicatrizes resultante da intervenção cirúrgica a qual é linear e não apresenta dismorfias nem pontos dolorosos, mobilidade articular do cotovelo preservada e simétrica e atrofia do antebraço de 1cm relativamente ao contra lateral.
21. E tais lesões determinaram ao ofendido o período de 64 dias para a consolidação médico-legal, com afetação da capacidade de trabalho geral e trabalho profissional, também em 64 dias.
22. A amputação à mão direita desfigura o ofendido e é causa importante de afetação a nível funcional e situacional.
23. O Demandante foi submetido a cirurgia para amputação da mão direita para com regularização do coto, no Centro Hospitalar de Vila do Conde/Póvoa de Varzim, ali permanecendo internado até 25/08/06, data em que lhe foi dada alta.
24. Em 4 de Setembro e 22 de Novembro de 2006, gastou em medicamentos a quantia de € 27,35.
25. Entre o dia 6 de Setembro de 2006 e 17 de Novembro do mesmo ano, o Demandante realizou tratamentos na Clínica de Santo André na Aguçadoura, Póvoa de Varzim, durante quatro horas diárias, sendo duas das 8h às 10h e as restantes entre as 17h e as 19h.
26. Nesses tratamentos despendeu a quantia de € 131,00.
27. Em deslocações da sua residência até à Povoa de Varzim, entre o dia 2 de Março de 2007 e 19 de Setembro do mesmo ano, para receber tratamentos médicos, despendeu a quantia de € 530,19.
28. Em deslocações da sua residência até ao Centro de Reabilitação de Vila Nova de Gaia, para receber tratamentos, entre o dia 7 de Março de 2007 até 10 de Maio do mesmo ano, durante quatro vezes, gastou a quantia de € 179,05.
29. Pagou de consultas médicas, uma na Santa Casa da Misericórdia de Esposende, em 25 de Junho de 2007, e duas da especialidade de otorrinolaringologia, a quantia, respetivamente, de € 10,60 e 81,80.
30. À data dos factos, o Demandante trabalhava, de forma irregular, em biscates, na construção civil, no que auferia quantia não superior a € 200,00, por mês.
31. Em resultado da amputação da mão direita o Demandante tem dificuldade na realização dos gestos da vida diária, designadamente necessita do auxílio de outra pessoa para a confeção dos alimentos e da sua colocação no prato.
32. Em resultado da explosão, o Demandante sofreu uma otite crónica bilateral, com perfuração mesotimpanica e hipoacusia mista bilateral e acufenos.
33. O Demandante tem audição diminuída, apresentando uma incapacidade permanente parcial de 35%.
34. Sofreu dores em resultado das lesões sofridas e nas intervenções médicas a que teve de se sujeitar.
35. O Demandante sente-se desgostoso por lhe ter sido amputada a mão direita e pela perda de audição.
36. O Demandante, à data dos factos, tinha 49 anos de idade.
37. Era saudável.
38. É dextro.
39. Vivia com os pais de idade avançada.
40. O arguido é possuidor de carta de Queimador de Fogos de Artificio.
41. Aufere o SMN.
42. Tem dois filhos de 16 e 4 anos de idade.
43. A mulher é funcionária têxtil e aufere o SMN.
44. Aufere o SMN.
45. Vive  em casa própria.
46. Paga € 300,00 de prestação bancária.
47. Possui o 4.º ano de escolaridade.
48. Não regista antecedentes criminais.


*

                Foi considerado não provado o seguinte facto:
49. Ficaram espalhadas várias bombas nos terrenos da freguesia de Aguçadoura relativas ao lançamento do fogo das festas da N. Sr.ª da Boa Viagem.

-

B)


No recurso interposto para a Relação, eram do seguinte teor as conclusões das motivações do recurso interposto pela Companhia de Seguros..........., SA. a fls. 559 a 594, sobre as quais incidiu a Relação:

1. O Tribunal a quo errou, quer quanto à apreciação da prova efetivamente produzida, uma vez que a mesma é claramente insuficiente para a decisão tomada e impõe mesmo uma decisão diversa, quer quanto à subsequente aplicação do direito;

2. Quanto à matéria de facto, considera a recorrente que foram incorretamente julgados os pontos identificados pelo Tribunal sob os nºs. 10, 12, 14, 16, 17 e 20 dos factos provados;

3. A convicção do Tribunal fundou-se nas declarações do arguido, no depoimento das testemunhas FF, HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN e OO, bem como nos docs. Fls. 14, 20, 22, 23, 24, 29, 40, 41 a 51, 60, 62, 80, 88, 97, 136 a 161, 162 a 164, 218 a 220 e 334, fotografias de fls. 3, 4 e 364; e auto de exame ao local;

4. É indiscutível que houve um rebentamento de um engenho explosivo, que provocou as lesões e sequelas verificadas no ofendido;

5. Bem como é indiscutível, que ninguém para além do ofendido, presenciou a explosão, ou os momentos que a antecederam;

6. Quanto aos pontos 10, 14 e 20 dos factos provados, há que considerar que o arguido negou que tenha deixado qualquer bomba de foguete por deflagrar no local do acidente;

7. Relativamente a esta matéria prestaram ainda depoimento as testemunhas HH, agente da GNR e II irmão do ofendido;

8. No entanto tendo sido evidentes as contradições verificadas entre estes dois depoimentos, não resolvidas mesmo após acareação, e atendendo igualmente à não comprovação do por estas testemunhas afirmado pelas fotografias juntas aos autos, nem pelo auto de ocorrência, outra conclusão não poderá ser tirada que não seja a de que estes depoimentos não poderão merecer credibilidade nesta parte;

9. Aliás, isso mesmo coincide com a resposta dada ao ponto nº 45 da matéria de facto - não provado;

10. Não existe, assim, prova bastante e suficiente que permita concluir nos termos efetuados pela Meritíssima Juiz a quo relativamente aos pontos 10, 14 e 20 dos factos provados, pelo que se concluiu necessariamente que errou;

11. Ao invés, apenas se apurou que houve um rebentamento de um engenho explosivo, não se sabendo se o ofendido efetivamente pegou numa “bomba” ou se a transportou de local não apurado para o terreno onde se deu o acidente;

12.  O facto do rebentamento ter ocorrido em local próximo do utilizado nos lançamentos efetuados pelo arguido 11 dias antes, é apenas um indício circunstancial, não suportado por quaisquer outras provas ou factos;

13. Tanto mais, que se apurou que o ofendido tinha o “vício do fogo”, ou seja, gostava de manusear material pirotécnico e tinha por hábito acompanhar lançadores de fogo-de-artifício;

14. Não há, pois, elementos nos autos que permitam segurar com o mínimo de certeza que explodiu na mão do ofendido uma bomba de foguete proveniente dos lançamentos efetuados pelo arguido, que lhe seja imputável, seja por ação, seja por omissão;

15. Esta conclusão é obtida pela análise de toda a prova produzida, devidamente conjugada com as regras da experiência comum, e que impõe uma decisão diversa da recorrida, devendo, para tanto, ser renovados e reapreciados as declarações prestadas pelo arguido e ainda os depoimentos das testemunhas HH, II e JJ;

16. Quanto ao ponto 12 dos factos provados, o mesmo foi, do mesmo modo, incorretamente julgado, uma vez que não há nos autos matéria suficiente para tal;

17. Como elemento de prova relevante para esta matéria, há que considerar, desde logo, as declarações prestadas pelo arguido, que afirmou ter recebido a ajuda na limpeza no terreno pelos elementos da Comissão de Festas, bem como de seus colegas de trabalho;

18. É certo que a testemunha OO referiu que no último dia da festa no ano de 2006, o arguido não foi ajudado na limpeza do local de lançamento por elementos da Comissão de Festas, que andavam muito ocupados;

19. No entanto, referiu igualmente, que o local de lançamento do fogo-de-artifício nesse último dia de festa foi outro, mais perto da Igreja;

20. Estes os últimos elementos de prova quanto a este facto e que impõe, como referido, uma decisão diversa;

21. Atendendo ao exposto, e aos elementos de prova referidos, o Tribunal a quo errou, no que concerne ao ponto 12, por defeito, pois deveria ter feito menção que o arguido foi ajudado nesse último dia por colegas seus de trabalho e ainda que, nesse dia, o fogo-de-artifício foi lançado de outro local, perto da Igreja da localidade;

22. Os meios d eprova que impõem decisão diversa e que deverão ser alvo de reapreciação são as declarações do arguido e o depoimento da testemunha OO;

23. Relativamente aos pontos 16 e 17 dos factos provados, a prova produzida no seu conjunto conduz necessariamente a uma decisão diversa e designadamente que o arguido usou de todo o cuidado e atenção que lhe eram exigíveis, na preparação,, no lançamento e na limpeza do terreno em causa;

24. Sintomático é o facto da testemunha KK prima e vizinha do arguido[1] ter afirmado no seu depoimento gravado nos autos que nunca viu ou ouviu relatar o aparecimento de qualquer bomba de foguete não deflagrada nos terrenos da vizinhança;

25. Quanto à forma de execução dos trabalhos de limpeza, a testemunha OO foi claro e inequívoco no cuidado demonstrado pelo arguido em toda a sua atuação, incluindo a preparação do terreno;

26. Daí que não exista nenhum elemento de prova nos autos que leve à conclusão efetuada pelo Tribunal, que o arguido tenha violado elementares regras legais;

27. Pelo contrário: a prova produzida impõe uma decisão diversa e oposta, para tal bastando a reapreciação das declarações prestadas pelo arguido e o depoimento da testemunha OO;

28. Quanto à aplicação do direito aos factos, sempre se dirá que o julgador está irremediavelmente condicionado pela ausência de prova sobre a origem e as circunstâncias em que ocorreu o rebentamento na mão do ofendido;

29. Por outro lado, há sempre que considerar que o arguido cumpriu todas as precauções e cuidados que lhe eram humanamente exigíveis;

30. Pelo que, jamais poderá ser imputada à entidade patronal do arguido e, por via do contrato de seguro descrito nos autos, à recorrente, qualquer obrigação de indemnizar o ofendido pelos seus danos;

31. A douta sentença fundou-se num erro de raciocínio e que consistiu em presumir que o engenho explosivo não apurado que rebentou estava relacionado com a atividade da EE, Lda.;

32. Na ausência de prova que permita imputar ao arguido ou à sua entidade patronal, por via de ação ou de omissão, o dano sofrido pelo ofendido, sempre a recorrente deverá ser absolvida do pedido cível contra si formulado;

33. Ao condenar a recorrente, o tribunal a quo violou o disposto no artigo 483º do Código Civil;

34. Subsidiariamente, caso assim não seja entendido, sempre se dirá que a indemnização fixada se apresenta excessiva e desconforme os factos apurados e a jurisprudência nacional maioritária;

35. Considerando o rendimento anual do ofendido, a sua idade à data dos factos e a IPP constatada, afigura-se adequada à recorrente a fixação de uma indemnização pelos lucros cessantes não superior a € 14.000,00;

36. Do mesmo modo, a compensação atribuída pelos danos morais se mostra desadequada, por excessiva, na douta sentença;

37. Com efeito, atendendo às circunstâncias que rodearam este lamentável evento e os valores praticados habitualmente nos nossos tribunais, considera a recorrente adequada uma compensação não superior a € 20.000,00.”

C)

Conhecendo da matéria de facto, a Relação tinha sentenciado, como referiu o acórdão deste Supremo, de 18 de Maio de 2011:

-Manter inalterada a matéria dos artigos 1º a 9º da matéria de facto provada na sentença da primeira instância, que também não foi colocada em causa.

-Deu como não provado o artigo 10º da matéria de facto provada na sentença da primeira instância, que passa assim a fazer parte do elenco dos factos Não Provados.

- Manter a matéria de facto provada nos artigos 11º, 12º e 13º da matéria de facto provada, que também não foi posta em causa, no que respeita aos artigos 11º e 13º e pelas razões supra referidas em relação ao artigo 12º, que foi colocado em causa.

-Alterar a redacção do artigo 14º da matéria de facto, que passou a ter a seguinte redacção:

-No dia 11 de Agosto de 2006, cerca das 20h45m, o BB encontrava-se nuns terrenos próximos do local onde deflagrou o fogo seco, sitos em Aguçadoura~ e em circunstâncias que não foi de todo possível apurar rebentou-lhe na mão direita um engenho explosivo.

-Manter sem alteração a matéria de facto provada no artigo 15º, da matéria de facto provada, que também não foi posta em causa.

-Alterar a redacção do artigo 16º da matéria de facto, passando a ter a seguinte redacção:

o arguido sabia que estava obrigado, atenta a actividade que exercia consistente no lançamento de foguetes (fogo de artifício) a recolher os foguetes que não tivessem deflagrado bem como as sobras do restante lançamento dos foguetes, e sabia que se o não fizesse podia causar perigo e atingir a integridade física ou a vida de outras pessoas, caso estas viessem a encontrar e manusear tais foguetes.

-Alterar a redacção do artigo 17° da matéria de facto, que passa a ter a seguinte redacção:

Com a explosão do engenho explosivo na sua mão resultaram para o ofendido lesões e sequelas físicas que a seguir melhor se descriminarão.

-Manter a matéria de facto provada nos artigos 18°, 19°, da matéria de facto provada, que também não foi posta em causa.

- Alterar a redacção do artigo 20° da matéria de facto, que passou a ter a seguinte redacção:

Como consequência directa e necessária da explosão do engenho explosivo resultaram para o ofendido a amputação da mão direita pelo nível da articulação rádio-cárpica; no coto da amputação contém cicatrizes resultantes da intervenção cirúrgica a qual é linear e não apresenta dismorfias nem pontos dolorosos, mobilidade articular do cotovelo preservada e simétrica e atrofia do antebraço de tcm relativamente ao contralateral.

Mas inalterar a matéria dos artigos 210 a 48° da matéria de facto provada na sentença da primeira instância, que também não foi colocada em causa.

-Por fim, julgou improcedente o pedido de indemnização civil deduzido contra a seguradora.

D)

            O mesmo acórdão deste Supremo, debruçando-se sobre o objecto do recurso então interposto desse acórdão da Relação, assinalou em diversos passos:

“O recurso é restrito à apreciação da responsabilidade civil da seguradora, Companhia de Seguros...........l,SA, para a qual a sociedade EE, Ld.a transferiu até ao limite de € 250.000,00, a responsabilidade civil por danos decorrentes de lesões corporais e/ou materiais causados a terceiros em consequência do lançamento de fogo de artifício e foguetes na localidade de Aguçadoura, por ocasião das festividades da N.n Sr.a da Boa Viagem, em Aguçadoura, com início no dia 22 de Julho de 2006 e termo no dia 31 de Julho de 2006, S.A., através da Apólice n 0000000.

A partir do dia 22 e até ao dia 30 de Julho de 2006, o arguido AA, que trabalhava por conta da sociedade "EE, Lda, procedeu ao lançamento, para o ar, de vários foguetes de artifício, num terreno agrícola contíguo ao do pai do ofendido, em Aguçadoura, Póvoa de Varzim.

O Tribunal em 1ª instância deu como provado que uma das bombas desses foguetes não deflagrou, por causas não concretamente apuradas, e permaneceu no local, em Aguçadoura e , mais que , no dia 11 de Agosto de 2006, cerca das 20h45m, o demandante cível BB encontrava¬se nesses terrenos sitos em Aguçadoura, e em circunstancias não apuradas pegou numa bomba que lhe rebentou na mão direita.

E vendo na permanência no local de lançamento desse artefacto, uma omissão do especial dever de cuidado do lançador do fogo, ao serviço da empresa encarregada de fornecer o fogo a deflagrar naquela festa, e ainda que, em razão daquele abandono, o ofendido, em condições inapuradas lhe pegou, rebentando-lhe na mão, originando-lhe graves ferimentos na mão direita, e fazendo funcionar a presunção de culpa emergente no art.° 493.° n.º 2 , do CC , nela fundou a obrigação de indemnizar da seguradora que a Relação afastou.

Isto porque a Relação, modificando a matéria de facto, pela via da impugnação da matéria de facto, de certos dos seus pontos, fez transitar o ponto de facto sob o n. 10, ao elenco dos factos não provados, assim excluindo que uma das bombas de foguete dentre os lançados, porém não deflagradas, seja a que rebentou na mão do ofendida, como a 1.ª instância fixou.

O recorrente assinala à modificabilidade operada erro notório na apreciação da prova, argumentando que não é qualquer engenho explosivo que provoca as lesões sofridas pelo recorrente: estas são típicas do rebentamento de material pirotécnico.

E estes engenhos não se compram nas lojas, nem são fáceis de fabricar ou de obter, lícita ou ilicitamente.

Assim sendo, atendendo aos demais factos dados como provados, o tribunal recorrido devia ter concluído, aplicando um raciocínio lógico-dedutivo, conjugado com as regras da experiência comum, que o engenho que rebentou na mão do recorrente fosse originário do lançamento efectuado pelo arguido alguns dias antes.”

                Com fundamento no princípio in dubio pro reo, " o Tribunal da Relação alterou a matéria de facto, após reexame dos segmentos de gravação que lhe foram fornecidos, e, após declarada sucumbência a dúvida sobre a pertinência da bomba de foguete, cuja explosão decepou a mão ao desafortunado ofendido, ao fogo de artifício lançado e fazendo uso do princípio citado arredou a responsabilidade penal do arguido AA e civil da seguradora demandada, antes condenada em 1ª instância.”

“O tribunal de 1ª instância socorreu-se da presunção de culpa estabelecida no art.º 493.º n.º 2 ,do CC, uma presunção natural (hominis) de culpa ,ao atribuir responsabilidade à seguradora da entidade que promoveu o lançamento do fogo, baseada no especial perigo que deriva da coisas aptas - os foguetes- a prejudicar por si mesmas, aliada à particular vantagem que delas pode tirar aquele que tem a sua disponibilidade , por isso se estabelece aquele regime severo, se o agente não provar que adoptou todas as medidas capazes d e evitar o dano ,in casu por não demonstrar que diligenciou até onde lhe fosse possível no sentido de evitar que a bomba de foguete abandonada fosse parar às mãos da vítima ,onde deflagrou com danos corporais muito graves.

Na responsabilidade delitual é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, enquanto facto constitutivo do direito à indemnização ,salvo no caso de o lesado beneficiar de uma presunção de culpa - art.º 487.° do CC . -, somente se libertando o suposto lesante provando que agiu sem culpa ou que os danos sempre teriam ocorrido mesmo sem culpa, mas no caso de danos causados no exercício de actividades perigosas " ... 0 lesante só poderá exonerar-se de responsabilidade provando que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias para os evitar" , doutrina o Prof. Antunes Varela , in Das Obrigações em Geral, I , pág. 477/478. A previsibilidade do dano está, então, in " re ipsa " e o sujeito deve agir tendo em conta o perigo para terceiros.

"Desde que o queixoso alegue e prove que os danos foram causados no exercício de uma actividade perigosa (por sua natureza ou pela natureza dos meios utilizados), a lei (art. 493°, nº2, do Código Civil) presume, a partir desse facto (base de presunção), que o acidente foi devido a culpa do agente". -cfr., ainda, o Prof. Antunes Varela , in R L J , ano 122 , 217.

 O dever especial de evitar o dano torna-se, então, mais rigoroso quando se tem a nítida previsão dessa possibilidade de perigo , por isso se deve provar que se adoptaram as cautelas especialmente exigidas , e acrescidas , para afastar o resultado. Neste sentido, cfr. Prof. Vaz Serra, BMJ 85. 376/380, in Estudo sobre a responsabilidade pelos danos causados às coisas, repercutindo o art.o 493.° n.o 2, do CC , a sua teorização.

Essa definição de perigosidade acrescida é de ponderação casuística ( AC. do STA , de 29.6.72, BMJ 2220/197) .

Ora o lançamento de explosivos, de foguetes, é, à luz do entendimento comum, normal e corrente, uma actividade perigosa, como é reconhecido, desde logo, no artº 35.°, n.º 1 , do Regulamento sobre o Fabrico, Armazenagem, Comércio e Emprego de Produtos Explosivos, aprovado pelo Dec. -Lei n.o 376/84 , de 30/11 , dispondo que as entidades que utilizam produtos explosivos sejam responsáveis por quaisquer acidentes que resultam do seu emprego.

Em torno dos locais onde se empregam esses produtos deverá montar-se um serviço de vigilância e sinalização de modo a evitar que as pessoas se aproximem e possam sofrer qualquer acidente no momento em que se executam os rebentamentos -art.° 36º”

“Mas a imputação desse resultado não abdica do estabelecimento de um claro nexo causal entre o agente e o facto danoso, em que esteve presente dolo ou negligênci daquele, pois se está em presença de responsabilidade por facto ilícito, entre os seus pressupostos à luz do art.° 483.0 , do CC; se compendiando , além do mais, o facto e o nexo de causalidade entre aquele e o resultado.

Não é pelo facto da presunção que se destrói esse nexo de imputação do facto material , o que vale dizer que só depois de provado o facto com origem numa conduta humana, se avança para o estabelecimento da presunção de culpa, que se ilidirá ou não.”

 “Ora o Tribunal da Relação afastou esse nexo de causalidade entre o dano e a conduta do arguido ao dar como não provado o facto 10. ou seja que uma das bombas desses foguetes lançados na quadra festiva da Nossa Senhora da Boa Viagem, da freguesia de Aguçadoura , no Verão do já longínquo ano de 2006 não deflagrou, por causas não concretamente apuradas,e ao dar como assente ,após alteração factual, que no dia 11 de Agosto de 2006, cerca das 20h45m, o BB encontrava-se nuns terrenos próximos do local onde deflagrou o fogo seco, sitos em Aguçadoura, e em circunstâncias que não foi de todo possível apurar rebentou-lhe na mão direita um engenho explosivo.”

Mais referiu o aludido acórdão deste Supremo:

“Isto posto considere-se que, à luz das regras da experiência comum, o lançamento dos foguetes , é uma actividade perigosa, pelos danos materiais que provoca nas pessoas e coisas, bastando lembrar o considerável número de incêndios florestais a que dão causa, sujeitando o seu lançamento a apertadas regras de Iicenciamento, sem abdicar da obrigatoriedade de seguro pelo lançador.

O explosivo em causa não é de aquisição acessível a qualquer pessoa e, menos ainda ,a alguém portador de deficiência mental, como era o caso da vítima.

E embora a infeliz vítima se sentisse deslumbrada pelo fogo, gostasse de o ver deflagrar, de acompanhar o fogueteiro, de carregar sacos de bombas e canas, não vem demonstrado que se tivesse apropriado de bombas, noutro local, além de que transparece com clareza que o responsável pelo lançamento não lhe facultava o seu lançamento ou manuseamento.

A única entidade que, por intermédio de pessoal seu, lançou foguetes nos dias 22 a 31 de Julho de 2006, durante a festividade da de Nossa Senhora da Boa Viagem, em Aguçadoura-Póvoa do Varzim, foi a sociedade EE Lda, a quem a comissão de festas adquiriu o fogo de artifício, que preencheu toda a burocracia para o lançamento, transferindo a responsabilidade civil pelos danos emergentes do lançamento para a demandada seguradora.

É, na verdade, de excluir, em absoluto, que a bomba que explodiu nas mãos da vítima, fosse arrastada até ao local dos factos em consequência de 30 dias antes, durante um festival de folclore, na praia, terem sido lançados foguetes.

Um parêntesis: O acórdão da Relação vai ao ponto, a fls . 722, sem qualquer razão, sem a mais leve prova, de suscitar a hipótese de o ofendido ter estado nesse local de lançamento no dia do festival ou depois dele para justificar a posse de bomba e a subsequente explosão.

O lançamento do fogo de artifício pelo que foi arguido neste processo, AA durante aquele período, processou-se num terreno agrícola contíguo ao do pai do ofendido.

A empresa fornecedora e lançadora do fogo, com três elementos da comissão de festas comissão de festas procediam, no final de cada lançamento, à recolha do lixo pirotécnico, depositado entretanto em sacos de lixo.

Treze dias após as festividades em honra de Nossa Senhora da Boa Viagem, ou seja no dia 12.8.2006, ainda estavam no local três sacos de lixo pirotécnico, por não terem sido retirados pela empresa de pirotecnia.

O ofendido foi visto a deslocar-se do fundo do quintal, próximo do local onde se achavam os sacos, com o rosto e a mão ensanguentada.

O irmão da vítima II asseverou que, no dias seguinte aos factos, viu no topo dos sacos, 2 a 3 bombas não deflagradas, desenhando-se a partir da casa de habitação da vítima um rasto de sangue no chão até à caixa de saneamento, ao fundo do quintal da casa , ali se achando um chapéu da vítima e um seu dedo polegar.

A elevada temperatura que então se fazia sentir não impedia que a bomba de foguete pudesse explodir por fricção ou mesmo combustão ,passados 12 dias sobre o último dia de lançamento, ou seja 11/8 /2006 ,data da explosão da bomba.

A autoridade policial que elaborou o auto de notícia não mencionou aí que detectou no dia do sinistro, em 11.8.2006, bombas e sacos de lixo, acabando em julgamento por consignar que, e junto aos sacos, e perto da caixa de saneamento, bombas não deflagradas de pequena dimensão e dedos humanos, e, como consta, da motivação também estes despojos foram localizados pela testemunha KK prima da vítima, relativamente à qual foi dito depôs de forma credível. Isto, diz a Relação, não obstante não ter visto" nem isqueiro, nem fósforos, nem bombas, nem bomba rebentada, exigência despida de lógica, pois se rebentou como era possível vê-Ia(s) ou ser submetida a perícia.

O depoimento da autoridade de polícia mereceu reservas face a tal omissão, e, também, pela entrega dos sacos à empresa de pirotecnia ,em lugar da apreensão, mas não deixa de ser um depoimento com uma fidedignidade maior do que se lhe empresta ,porque se traduz numa versão autoincriminante, em termos funcionais, assumindo a omissão no que é favorável à vítima e no que lhe é benéfico.

De forma insistente a testemunha em causa repetiu ter visto bombas em cima de uma caixa de saneamento e dedos da vítima, referindo, com segurança, que lhes foram tiradas fotografias desconhecendo a razão da sua não junção aos autos, não se percebendo, também , a afirmação, a fls . 726, pela Relação de que tal depoimento não merece qualquer tipo de credibilidade e mais que, " ... dizem as regras da experiência que mesmo os agentes mais novos e inexperientes -( ... ) não cometeriam tal aberração ( sic ) e sublinhado nosso ), ao omitirem aquela menção.

O erro notório na apreciação da prova não se restringe ao puro do exame dos factos provados, com toda a sua singeleza, como uma decorrência desinserida do contexto em que são produzidos os diversos meios de prova , antes ,e pelo contrário, não dispensa uma análise racional ,em globo, ou seja uma visão de conjunto das provas , tal como se produziram e em que é fundamental ,para declarar tal vício ,0 olhar desapaixonado do homem médio sobre o texto da decisão recorrida, considerando que o texto da decisão recorrida corresponde a visão compósita dos seus elementos estruturantes ,à luz doart.o374.on.ol ,do CPP .

Retornando à sentença recorrida, de 1ª instância, e passe algum vulgarismo nela emprestado- "aquele tipo de produto não cai do céu" ,disse-se a fls . 395 ( fls .16 do acórdão ) - , ao ofendido não era acessível a sua aquisição , a vítima foi vista a sair ,já ferida, próximo do local do lançamento e onde vivia, que a segurada na demandante civil abandonou sacos com sobras de material pirotécnico e ela, só ela , procedeu ao lançamento ,com exclusão de outrem ,há um campo de convergência indiciária ,firme e precisa ,não autorizando ,numa primeira abordagem ,a um observador médio , e sem mais , a exclusão da pertinência da bomba ao material de fogo fornecido pela firma EE ,Lda

Os elementos de facto dados como provados, e sua valoração, sem descurar a alusão ao depoimento de OO que, segundo a narração sintética que se faz na sentença a f1s . 393 ( fls .14 ) e fragilizando a tese da máxima eficiência na recolha do resto do material lançado , tal recolha era subsequentemente processada em circunstância difíceis, dificultando a sua visualização, temos que a Relação, conduzindo-se para o princípio "in dubio pro reo " ,fez dele, salvo melhor entendimento , uma aplicação indevida ; o acórdão proferido , com o respeito devido, atenta contra a lógica e conduz a uma decisão , em desconformidade com a prova , a pedir "correcção modificativa" (cfr. Ac. deste STJ, de 24.2.93 , in CJ , STJ, 1993 , I , 201 ), a que se não pode aderir, pelo erro evidente, notório, nos termos do art.o 410.° n.o 2 c} ,do CPP, de que facilmente se dá conta, a uma simples leitura, de tão manifesto que é.

Não se alcançando factos ou circunstâncias, com peso, sobeja e objectivamente convincentes, interferindo no nexo causal entre o lançamento e os graves danos corporais sofridos pela vítima , excluindo aquele nexo , a Relação fez funcionar aquele princípio sem se descortinar uma dúvida irremovível , para além da lógica ,embrenhando-se em suposições sem apoio, de algum modo inquinando aquela ( lógica ).

Justifica-se, de pleno, uma reponderação dos factos alterados por um outro colectivo, no Tribunal da Relação, para onde se reenvia o julgamento da matéria de facto, no tocante ao factualismo impugnado e alterado -sendo que a sua indagação em julgamento foi amputada do depoimento de BB, juiz daquela festividade e o demandante ofendido é doente mental - nos termos do art.º 426.º n.ºs 1 e 2, do CPP , em ordem a produzir-se um julgado claro e preciso

Concede-se provimento ao recurso, revogando-se o acórdão da Relação. Sem tributação.”

E)

Na sequência do reenvio, veio a ser proferido o acórdão recorrido, em 12 de Setembro de 2012, no qual se refere:

“O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[2], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[3].

Considerando, porém, que no caso sub judice, o Supremo Tribunal de Justiça ordenou o reenvio para novo julgamento da matéria de facto no tocante ao factualismo impugnado e alterado, o objeto do presente recurso cingir-se-á a essa apreciação, sem prejuízo, naturalmente, das consequências jurídico-processuais que uma eventual alteração da matéria de facto possam vir a produzir.

                Antes de mais, importa porém referir que não é possível a este Tribunal proceder à audição do “depoimento da testemunha BB, juiz daquela festividade”, conforme sugerido no Ac. do STJ, pelo facto de o mesmo não ter sido inquirido em audiência de julgamento – cfr. fls. 341 e 347. E o mesmo se passa relativamente ao ofendido BB.

                  Refere-se no douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que “as presunções naturais arrancam das regras da experiência, daquilo que é normal acontecer na maior parte dos casos e por meio delas o juiz prevalece-se de um facto conhecido e conclui um desconhecido” […] e que no que ao caso em apreço importa “há um campo de convergência indiciária, firme e precisa, não autorizando numa primeira abordagem, a um observador médio, e sem mais, a exclusão da pertinência da bomba ao material de fogo fornecido pela firma EE, Lda.”.

Na verdade, no caso em apreço resulta da própria fundamentação de facto da decisão recorrida que inexiste prova direta que permita, sem mais, imputar ao arguido AA a autoria dos factos de que resultou o evento lesivo.

Porém, é em situações como a presente que o indício se apresenta de grande importância no processo penal, já que nem sempre se têm à disposição provas directas que autorizem a considerar existente a conduta perseguida e então, ante a realidade do facto criminoso, é necessário fazer uso dos indícios, como o esforço lógico-jurídico intelectual necessário antes que se gere impunidade[4].

[…]
Ora, fundamentando-se a condenação na prova indiciária, a interpretação da prova e a fixação dos factos concretos terá, também, como referência as regras gerais empíricas ou as máximas da experiência que o juiz tem de valorar nos diversos momentos de julgamento.
[…]
Usando tais regras de experiência entendemos que o juiz pode utilizar livremente, sem necessidade de prova sobre elas, as regras de experiência cujo conhecimento se pode supor numa pessoa com a sua formação (concretamente formação universitária no campo das ciências sociais). O próprio ordenamento jurídico parte da liberdade do juiz para utilizar estas máximas da experiência de conhecimento geral sem que as mesmas se inscrevam no processo através da produção de prova.
As razões que fundamentam a liberdade do juiz para a utilização dos seus conhecimentos de máxima da experiência são as mesmas que impõem a desnecessidade de fixação de factos notórios. Em qualquer um destes casos o que se pede ao juiz é que utilize os seus conhecimentos sobre máximas da experiência comum sem que importe a forma como os adquiriu.
A necessidade de controle dos instrumentos através dos quais o juiz adquire a sua convicção sobre a prova visa assegurar que os mesmos se fundamentam em meios racionalmente aptos para proporcionar o conhecimento dos factos e não em meras suspeitas ou intuições ou em formas de averiguação de escassa ou nula fiabilidade. Igualmente se pretende que os elementos que o julgador teve em conta na formação do seu convencimento demonstrem a fidelidade às formalidades legais e às garantias constitucionais.
                As regras da experiência, ou regras de vida, como ensinamentos empíricos que o simples facto de viver nos concede em relação ao comportamento humano e que se obtém mediante uma generalização de diversos casos concretos tendem a repetir-se ou reproduzir-se logo que sucedem os mesmos factos que serviram de suporte efetuar a generalização.

[…]

Ora, da fundamentação da decisão recorrida, pode concluir-se que a Srª. Juíza a quo admitiu uma multiplicidade de probabilidades, mas não conseguiu chegar a um estado de certeza sobre o facto probando: a imputação ao arguido da autoria do facto, ou seja, que o engenho que explodiu na mão do ofendido tenha tido proveniência no material utilizado pelo arguido no lançamento do fogo nas festividades da Nª. Srª. da Boa Viagem no período compreendido entre os dias 22 e 30 de Junho.

E isto porque, como resulta da análise dos depoimentos das testemunhas inquiridas e a cuja audição procedemos, nenhuma delas demonstrou conhecer o concreto objeto que deflagrou na mão do ofendido. Saber se o mesmo foi retirado pelo ofendido do interior dos sacos que continham lixo pirotécnico, se foi apanhado por aquele junto à tampa de saneamento ou se, pelo contrário, foi encontrado entre a erva do rego que ladeia o terreno ou entre a erva existente junto ao muro confinante com o terreno do pai do ofendido, constituiria um facto indício relevante, concordante com os restantes e de cuja conjugação seria lícito concluir que pertencia ao material pirotécnico utilizado pelo arguido nos dias de lançamento do fogo nas festas da Nª. Srª. Da Boa Viagem.

Porém, nada disso se conseguiu apurar. Talvez pela circunstância de a única pessoa que tinha conhecimento desse facto (o próprio ofendido) não ter sido ouvido em audiência de julgamento.

O certo é que os indícios existentes são manifestamente insuficientes para se  concluir que o engenho deflagrado e que provocou lesões no ofendido integrava o material levado pelo arguido para aquelas festividades. Desconhecendo-se, por outro lado, a natureza do engenho que explodiu, também por aí a prova se revela parca. Se tivesse sido feita prova desse facto, no sentido da similitude do engenho com os foguetes utilizados pelo arguido, seria possível concluir, juntamente com os restantes indícios, que o engenho havia sido ali abandonado (ainda que inadvertidamente) pelo arguido.   

Daí que inexista fundamento para alterar a matéria de facto fixada no acórdão desta Relação de fls. 679 a 732.

Pelo exposto, altera-se a matéria de facto fixada na 1ª instância, nos seguintes teemos:

· considera-se como não provado o artº 10º da matéria de facto provada da sentença recorrida, que passa a fazer parte do elenco dos factos não provados;

· mantém-se o artº 12º da matéria de facto provada;

· o artº 14º da matéria de facto provada passa a ter a seguinte redacção: “No dia 11 de Agosto de 2006, cerca das 20h45m, o BB encontrava-se nuns terrenos próximos do local onde deflagrou o fogo seco, sitos em Aguçadoura e, em circunstâncias que não foi possível apurar, rebentou-lhe na mão direita um engenho explosivo”;

· o artº 16º da matéria de facto provada passa a ter a seguinte redacção: “O arguido sabia que estava obrigado, atenta a atividade que exercia consistente no lançamento de foguetes (fogo de artifício) a recolher os foguetes que não tivessem deflagrado, bem como as sobras do restante lançamento dos foguetes e sabia que se o não fizesse podia causar perigo e atingir a integridade física ou a vida de outras pessoas, caso estas viessem a encontrar e manusear tais foguetes”;

· o artº 17º da matéria de facto provada passa a ter a seguinte redacção: “com a explosão do engenho explosivo, referido no ponto 14º, na sua mão, resultaram para o ofendido lesões e sequelas físicas adiante descriminadas”;

· o artº 20º da matéria de facto provada passa a ter a seguinte redacção: “como consequência direta e necessária da explosão do engenho referido no artº 14º resultaram para o ofendido a amputação da mão direita pelo nível da articulação radio-cárpica; no coto da amputação contém cicatrizes resultantes da intervenção cirúrgica a qual é linear e não apresenta dismorfias nem pontos dolorosos, mobilidade articular do cotovelo preservada e simétrica e atrofia do antebraço de 1 cm relativamente ao contralateral”.

Efetuada a alteração da matéria de facto provada nos termos supra referidos, não sendo possível imputar ao arguido a autoria do evento lesivo, inexiste obrigação de indemnizar por parte da demandada seguradora para quem fora transferida a responsabilidade por força do contrato de seguro celebrado.

Razão por que o pedido de indemnização civil tem necessariamente de soçobrar, prejudicando o conhecimento das restantes questões suscitadas no recurso.

                IV – DECISÃO

                Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pela demandada Companhia de Seguros..........., SA., revogando a sentença recorrida e julgando improcedente o pedido de indemnização cível deduzido por BB.

                Sem tributação.”


F)

     Analisando

1. O acórdão deste Supremo, de 18 de Maio de 2011, determinou o reenvio para julgamento da matéria de facto. no tocante ao factualismo impugnado e alterado.

O reenvio implica novo julgamento, relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão do reenvio – nº 1 do artº 426º do CPP.

O reenvio decretado pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito de recurso interposto, em 2ª instância, de acórdão da relação, é feito para este tribunal, que admite a renovação da prova ou reenvia o processo para novo julgamento em 1ª instância - n~º 2 do preceito.

2. Não é verosímil que não possa proceder-se à inquirição “da testemunha BB, juiz daquela festividade”, conforme sugerido no Ac. do STJ, pelo facto de o mesmo não ter sido inquirido em audiência de julgamento – cfr. fls. 341 e 347. E o mesmo se passa relativamente ao ofendido BB.”

È que, conforme artº 340º do CPP, que versa sobre o princípio da investigação, ou da verdade material:

1. O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.

2. Se o tribunal considerar necessária a produção de meios de prova não constantes da acusação, da pronúncia ou da contestação, dá disso conhecimento, coma antecedência possível, aos sujeitos processuais e fá-lo constar da acta.”

Como refere Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado – Legislação Complementar, 17ª edição – 2009, p. 781:

“Os meios de prova admissíveis são aqueles cujo conhecimento se afigure necessário para a descoberta da verdade e boa decisão da causa (nº 1). É afloramento do princípio da necessidade.”

A disciplina sobre a produção dos meios de prova constante do artº 340º do CPP, tanto pode abranger a responsabilidade criminal como o pedido de indemnização civil formulado no processo e fundado na prática do crime.

3. Sendo certo que, por outro lado, como se sabe, em processo penal, inexiste ónus da prova, e, conforme artº 74º do CPP:

1. (….)

2. A intervenção processual do lesado restringe-se à sustentação e à prova do pedido de indemnização civil, competindo-lhe, correspondentemente, os direitos que a lei confere aos assistentes.

3. Os demandados e os intervenientes têm posição processual idêntica à do arguido quanto à sustentação e à prova das questões civis julgadas no processo, sendo independentes cada uma das defesa.

Apenas não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência - artº 335º nº 1 – sem prejuízo do nº 2 -do CPP

4. O acórdão recorrido bastou-se com os elementos existentes que motivaram o anterior acórdão, mas não reponderou, em novo julgamento, nos termos exigíveis e possíveis, de harmonia com o acórdão do Supremo, de 18 de Maio de 2011, mediante toda a prova possível, que possa configurar-se necessária e valorando subsequentemente toda a prova, face aos elementos indiciários relevantes e regras da experiência, de forma a saber-se se existe estado de dúvida inultrapassável perante as regras da experiência, ou se estas, podem gerar presunções naturais, perante factos ainda que assentes em indícios coerentes e consistentes.

Não basta dizer-se, como diz o acórdão recorrido que:

 «da fundamentação da decisão recorrida, pode concluir-se que a Srª. Juíza a quo admitiu uma multiplicidade de probabilidades, mas não conseguiu chegar a um estado de certeza sobre o facto probando: a imputação ao arguido da autoria do facto, ou seja, que o engenho que explodiu na mão do ofendido tenha tido proveniência no material utilizado pelo arguido no lançamento do fogo nas festividades da Nª. Srª. da Boa Viagem no período compreendido entre os dias 22 e 30 de Junho.

E isto porque, como resulta da análise dos depoimentos das testemunhas inquiridas e a cuja audição procedemos, nenhuma delas demonstrou conhecer o concreto objeto que deflagrou na mão do ofendido. Saber se o mesmo foi retirado pelo ofendido do interior dos sacos que continham lixo pirotécnico, se foi apanhado por aquele junto à tampa de saneamento ou se, pelo contrário, foi encontrado entre a erva do rego que ladeia o terreno ou entre a erva existente junto ao muro confinante com o terreno do pai do ofendido, constituiria um facto indício relevante, concordante com os restantes e de cuja conjugação seria lícito concluir que pertencia ao material pirotécnico utilizado pelo arguido nos dias de lançamento do fogo nas festas da Nª. Srª. Da Boa Viagem.

Porém, nada disso se conseguiu apurar. Talvez pela circunstância de a única pessoa que tinha conhecimento desse facto (o próprio ofendido) não ter sido ouvido em audiência de julgamento.

O certo é que os indícios existentes são manifestamente insuficientes para se  concluir que o engenho deflagrado e que provocou lesões no ofendido integrava o material levado pelo arguido para aquelas festividades. Desconhecendo-se, por outro lado, a natureza do engenho que explodiu, também por aí a prova se revela parca. Se tivesse sido feita prova desse facto, no sentido da similitude do engenho com os foguetes utilizados pelo arguido, seria possível concluir, juntamente com os restantes indícios, que o engenho havia sido ali abandonado (ainda que inadvertidamente) pelo arguido.”, para depois concluir: “Daí que inexista fundamento para alterar a matéria de facto fixada no acórdão desta Relação de fls. 679 a 732.»

A localização, e, a natureza ou características constituintes, do explosivo que produziu o resultado não é essencial à decisão da causa, pois que o que está em causa é averiguar da causalidade da produção do facto danoso por um explosivo nas circunstâncias concretas do respectivo contexto.

5. Como se sabe, no sistema processual penal, vigora a regra da livre apreciação da prova, em que conforme artº 127º o CPP, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.

São admissíveis as provas que não forem admitidas por lei.- artº 125º do CPP

            Costuma distinguir-se entre prova directa e prova indiciária, referindo-se aquela ao thema probandum, aos factos a provar, e respeitando a prova indirecta ou indiciária a factos diversos (instrumentais) do tema probatório, mas que possibilitam, pelo uso das regras da experiência, extrair ilações no domínio do thema probandum, de convicção racional e objectivável do julgador.

Ao apreciar-se o processo de formação da convicção do julgador, não pode pois  ignorar-se que a apreciação da prova obedece ao disposto no art. 127.º do CPP, ou seja, assenta (fora das excepções relativas a prova legal), nas regras da experiência e na livre convicção do julgador.

6. As regras da experiência não exigem certezas científicas, não são perícias, nem exames donde resultem aquelas certezas, mas informações reais que a vida ensina na verificação empírica de resultados produzidos, valendo a máxima de Cícero de que a experiência é a mestra da vida.

Como explicita, a propósito o acórdão recorrido:

“Para avaliar da racionalidade e da não arbitrariedade (ou impressionismo) da convicção sobre os factos, há que apreciar, de um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção), e de outro, a natureza das provas produzidas e dos meios, modos ou processos intelectuais, utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção de determinada conclusão.

Relevantes neste ponto, para além dos meios de prova diretos, são os procedimentos lógicos para prova indireta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido: as presunções.

A noção de presunção (noção geral, prestável como definição do meio ou processo lógico de aquisição de factos, e por isso válida também, no processo penal) consta do artigo 349º do Código Civil: «presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido».

Importam, neste âmbito, as chamadas presunções naturais ou hominis, que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido.

As presunções naturais são, afinal, o produto das regras de experiência; o juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto. «Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência [...] ou de uma prova de primeira aparência»[5].

A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerumque accidit) certos factos são a consequência de outros. No valor da credibilidade do id quod, e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção, e na medida desse valor está o rigor da presunção.

Usando tais regras de experiência entendemos que o juiz pode utilizar livremente, sem necessidade de prova sobre elas, as regras de experiência cujo conhecimento se pode supor numa pessoa com a sua formação (concretamente formação universitária no campo das ciências sociais). O próprio ordenamento jurídico parte da liberdade do juiz para utilizar estas máximas da experiência de conhecimento geral sem que as mesmas se inscrevam no processo através da produção de prova.
As razões que fundamentam a liberdade do juiz para a utilização dos seus conhecimentos de máxima da experiência são as mesmas que impõem a desnecessidade de fixação de factos notórios. Em qualquer um destes casos o que se pede ao juiz é que utilize os seus conhecimentos sobre máximas da experiência comum sem que importe a forma como os adquiriu.

                As regras da experiência, ou regras de vida, como ensinamentos empíricos que o simples facto de viver nos concede em relação ao comportamento humano e que se obtém mediante uma generalização de diversos casos concretos tendem a repetir-se ou reproduzir-se logo que sucedem os mesmos factos que serviram de suporte efetuar a generalização.
Estas considerações facilitam a lógica de raciocínio judicial porquanto se baseiam na provável semelhança das condutas humanas realizadas em circunstâncias semelhantes a menos que outra coisa resulte no caso concreto que se analisa ou porque se demonstre a existência de algo que aponte em sentido contrário ou porque a experiência ou perspicácia indicam uma conclusão contrária.

O princípio da causalidade significa formalmente que a todo o efeito precede uma causa determinada, ou seja, quando nos encontramos face a um efeito podemos presumir a presença da sua causa normal. Dito por outra forma, aceite uma causa, normalmente deve produzir-se um determinado efeito e, na inversa, aceite um efeito deve considerar-se como verificada uma determinada causa. “

Não é, porém, a possibilidade teórico-prática de explicação alternativa que fundamenta a valoração dos indícios relevantes, mas sim, se estes, pelas regras da experiência, convocam um estado de dúvida insuperável na sua valoração factual, ou se perante eles, qualquer cidadão admite como certo a verificação de determinado facto.

O acórdão recorrido não alcançou o determinado pelo acórdão deste Supremo que ordenou o reenvio, continuando a subsistir o vício assinalado, objectivamente perpectivado pela contradição intrínseca, segundo as regras da experiência, da conjugação global do disposto nos artºs 8º a 13º, com o disposto nos artºs 14º e 16º, dos factos provados, e 10º dos factos não provados.

Há pois que reenviar de novo o processo para os fins já determinados no acórdão deste Supremo de 18 de Maio de 2011.

Termos em que, decidindo:

Acordam os deste Supremo – 3ª Secção – em dar provimento ao recurso e, consequentemente, ordenam o reenvio do processo para o Tribunal da Relação do Porto, nos termos do artº 426º nº 1 do CPP, para “julgamento da matéria de facto, no tocante ao factualismo impugnado e alterado”, nos termos aludidos pelo acórdão deste Supremo de 18 de Maio de 2011, sem prejuízo da produção de prova considerada necessária à decisão da causa nos termos do artº 340º do CPP, nomeadamente deve inquirir-se BB, então juiz da festividade supra mencionada.(v. nº 2 do artº 426º do CPP).

Sem custas

Supremo Tribunal de Justiça, 22 de Janeiro de 2013

 Elaborado e revisto pelo relator

Pires da Graça

Raul Borges

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[1] Certamente por lapso escreveu-se “arguido” quando a referida testemunha é prima e vizinha do ofendido.
[2] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[3]  Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.

[4] V. Pietro Prieto Castro y Fernandiz e Gutierrez de Cabiedes, “Derecho Penal”, II , pág. 252.
[5] Cfr., v.g. Vaz Serra, “Direito Probatório Material”, in BMJ, nº 112, pág. 190.