Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
18905/19.3T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: DOMINGOS JOSÉ DE MORAIS
Descritores: ACÓRDÃO
REFORMA
NULIDADE
Data do Acordão: 06/01/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO.
Sumário :

I– A reforma de acórdão apenas tem cabimento num erro de julgamento grosseiro, num evidente engano.


II– A nulidade da alínea b) do n.o 1 do artigo 615.o do CPC exige a falta absoluta de fundamentos, e não a deficiente justificação.

Decisão Texto Integral:

Proc. n.o 18905/19.3T8LSB.L1.S1


Revista excecional


Relator Conselheiro Domingos Morais


Adjuntos Concelheiro Mário Morgado


Conselheiro Júlio Gomes


Acordam os Juízes na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I.Relatório


1. - A Recorrente, Lusitânia - Companhia de Seguros, S.A., requereu a reforma do acórdão proferido nos autos, em 29 de março de 2023, nos termos do artigo 616.o, n.o 2, alínea a), e arguiu a nulidade do mesmo, nos termos do artigo 615.o, n.o 1, al. b), ambos do CPC, nos seguintes termos:


2.o - A Recorrente alegou que o sinistro estava descaracterizado como acidente de trabalho porque o sinistrado actuou com exclusiva negligência grosseira.


3.o - E entende que de acordo com a factualidade provada está demonstrado que o acidente resultou exclusivamente de negligência grosseira da vítima.


4.o - Factualidade essa que se encontra na fundamentação de facto, essencialmente sob os números 17 a 32.


5.o - Apesar de resultar dessa fundamentação de facto que o sinistrado saltou da plataforma de embarque para a linha de comboio para ir apanhar o seu telemóvel, na fundamentação de direito é referido que o acto temerário seria permitido se justificadamente necessário e se cumpridas todas as regras de segurança, atento o disposto nos art.os 19.o e 20.o do Decreto-Lei n.o 276/2003, de 04/11.


6.o - Acontece que, aquelas disposições legais referem-se à proibição e possibilidade de circulação, trânsito a pé, estacionamento ou atravessamento de linhas férreas, não abrangendo a conduta do sinistrado.


7.o - A invocada excepção à proibição ou possibilidade de circulação desde que resultante de "justificada necessidade", onde é ancorada a posição defendida no Acórdão, refere-se tão só à travessia da linha.


8.o - Ora, o sinistrado não estava a atravessar a linha férrea, atirou-se para a linha férrea, pelo que, o disposto nos art.os 19.o e 20.o do Decreto-Lei n.o 276/2003, de 04/11, não é aplicável à factualidade provada nos autos.


9.o - Logo, a apelidada "justificada necessidade" não tem aplicação ao caso concreto, por falta de previsão legal que autorizasse ou legitimasse o acto tresloucado do sinistrado.


10.o - O comportamento do sinistrado era proibido e não admitia excepção!


11.o - Face à proibição, a eventual recuperação do telemóvel teria de ser sempre efectuada por agente ferroviário.


13.o - A consideração e aplicação do disposto no art.os 19.o e 20.o do Decreto-Lei n.o 276/2003, de 04/11, constitui simultaneamente nulidade por oposição dos fundamentos e o decidido e erro na determinação da norma aplicável.


14.o - Por outro lado, mesmo admitindo a aplicação das referidas normas à conduta do sinistrado, verifica-se haver manifesta violação das regras do ónus da prova, quando a justificação do não cumprimento de uma proibição é matéria de excepção e que obviamente terá de ser alegada e provada por quem pretender prevalecer-se da mesma, o que necessariamente não cabe à Recorrente.


15.o - Se é verdade que a prova da materialidade da descaracterização do sinistro como acidente de trabalho compete à entidade responsável, já os factos referentes à verificação, ou não, de justificações ou atenuantes não podem também correr por sua conta.


16.o - Porém, para legitimar ou desculpar o acto do sinistrado foi valorada a relevância pessoal e social do telemóvel em detrimento da vida humana e da segurança, sem necessidade do cumprimento de qualquer ónus de alegação ou de prova por parte dos interessados-Autores.


17.o - E, de igual modo, imputou-se à Recorrente o ónus da alegação e da prova de que o sinistrado não cumpriu todas as regras de segurança ferroviárias impostas pelas circunstâncias no local do acidente, em vez de imputar tal ónus aos interessados-Autores.


18.o - Ou seja, à Recorrente imputou-se incorrectamente o impossível ónus da alegação e da prova de que o imprudente sinistrado não tinha tempo para saltar da plataforma de embarque para a linha de comboio, apanhar o telemóvel e regressar em segurança, dando uma desmedida relevância a um bem absolutamente fungível em detrimento da vida humana.


20.o - A factualidade provada, especialmente o vertido nos factos provados números 17 a 32, é mais que suficiente para demonstrar a negligência grosseira do sinistrado e descaracterizar o sinistro como acidente de trabalho à luz do disposto no art.o 14.o, n.o 1, al. b), da LAT.


21.o - As exigências de alegação e prova exigidas no Acórdão para qualificar o comportamento do sinistrado temerário em alto e relevante grau como negligência grosseira excede os requisitos da qualificação jurídica da descaracterização de um sinistro como acidente de trabalho e que resulta da referida norma e da Jurisprudência do presente Tribunal.


22.o - Tratou-se da exigência de ónus acrescidos e que desrespeitaram manifestamente os cânones legais, como o disposto no art.o 14.o, n.o 1, al. b), da LAT e no art.o 342.o, n.o 2, do Código Civil.


23.o - Houve assim um manifesto erro na qualificação jurídica dos factos apurados e quanto à suficiência dos mesmos para se considerar descaracterizado o sinistro como acidente de trabalho.


24.o - O exposto teve manifesta influência no decidido e não constitui mera discordância com o decidido.


25.o - Pelo exposto, verifica-se que no Acórdão:


a) A fundamentação de direito e o decidido está em oposição com a fundamentação da matéria de facto;


b) Houve manifesto erro na determinação das normas aplicáveis e na qualificação jurídica dos factos apurados quanto à conduta do sinistrado e a mesma ter descaracterizado o sinistro como acidente de trabalho.


26.o - A oposição dos fundamentos com a decisão e o erro na determinação da norma aplicável e na qualificação jurídica dos factos apurados constituem nulidade atento o disposto nos art.os 195.o, n.o 1, 615.o, no. 1, al. b), e 616.o do CPC e violação do disposto no art.o 14.o, n.o 1, al. b), da LAT e art.o 342.o, n.o 2, do Código Civil.


2. - As Recorridas, patrocinadas pelo Ministério Público, responderam, pugnando pelo indeferimento do pedido de reforma e da nulidade do acórdão.


II. - Decidindo:


1. - Da reforma do acórdão:


O artigo 616.o - Reforma da sentença – do CPC, dispõe:


“1 – (...).


2 - Não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz:


a) Tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos;”.


No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10.05.2023, processo n.o 645/21.5T8TMR.E1.S1 (Ramalho Pinto), in www.dgsi.pt, foi consignado:


“Como resulta desta disposição legal, o erro na interpretação de uma norma não constitui fundamento de reforma nos termos e para os efeitos desse arto 616o, no 2, al. a), do CPC, onde apenas se prevê o erro na determinação da norma aplicável, o erro na qualificação jurídica de factos e a presença no processo de meios de prova impositivos de diferente decisão.”.


Como se pode ler no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27.01.2022, processo n.o 1292/20.4TBFAR-A.E1.S1 (Rosa Tching), in www.dgsi.pt, “Trata-se, no dizer do Acórdão do STJ, de 12.02.2009 (processo no 08A2680), de uma faculdade excecional que «deve conter-se nos apertados limites definidos pela expressão “manifesto lapso”, reportada à determinação da norma aplicável, à qualificação jurídica dos factos ou à desconsideração de elementos de prova conducentes a solução diversa», não devendo, por isso, o incidente da reforma «ser usado para manifestar discordância do julgado ou tentar demonstrar “error in judicando” (que é fundamento de recurso) mas apenas perante erro grosseiro e patente, ou “aberratio legis”, causado por desconhecimento, ou má compreensão, do regime legal».


No mesmo sentido, afirmou-se no acórdão do STJ, de 04.05.2010, processo no 361/04.4TBPVC.C1.S1), in www.dgsi.pt, que «a reforma da decisão não é, nem pode coincidir, com um recurso, pelo que não poderá servir para manifestar discordância do julgado, mas apenas tentar suprir uma eficiência notória ou clara».


«É uma forma de se corrigir, no fundo, um erro de julgamento, correcção que só será possível se ocorrer um erro resultante de um “lapso manifesto”. E lapso manifesto será o erro grosseiro, um evidente engano, um desacerto total no regime jurídico aplicável à situação ou na omissão ostensiva de observação dos elementos dos autos».”.


Assim, no entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, a reforma da decisão prevista nos termos do artigo 616.o, n.o 2, alínea a), do CPC, tem como objetivo a reparação de lapsos, manifestamente, óbvios na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos, que, só por si, impliquem, necessariamente, decisão diversa da proferida, e não uma reapreciação ou reexame do recurso.


Qualquer decisão judicial, incluindo a da descaracterização de acidente de trabalho por negligência grosseira do sinistrado, é um processo de convicção complexo – cfr. artigo 607.o, n.o 5 CPC - , que implica a subsunção dos factos ao direito e não uma linear leitura dos factos dados provados, como pretende a Recorrente no seu requerimento de reforma – cf. o seu artigo 20.o - , tanto mais que não indicou na sua contestação, nem no agora requerimento de reforma, qual o diploma que “proibia, sem excepção”, a ida do sinistrado à linha férrea para recuperar o telemóvel, como alegou no artigo 10.o do mesmo requerimento: “O comportamento do sinistrado era proibido e não admitia excepção!”.


O novo regime jurídico dos bens do domínio público ferroviário, incluindo as regras sobre a sua utilização pela população em geral, publicado pelo DL n.o 276/2003, de 04 de novembro, é aplicável, quer fora, quer dentro das Estações Ferroviárias, diploma e artigo 20.o, n.o 2, que, por sinal, a Recorrente invoca agora no artigo 11.o do requerimento de reforma, mas sem o mencionar expressamente, ao afirmar: “a eventual recuperação do telemóvel teria de ser sempre efectuada por agente ferroviário.”.


A Recorrente “esqueceu-se”, porém, foi de alegar e provar, no momento processual próprio, se a ... estava aberta ao público no dia e hora do acidente e qual o funcionário ou funcionários da empresa Comboios de Portugal (CP) disponíveis para recuperarem o telemóvel do sinistrado: “sempre que possível” é a expressão usada no artigo 20.o, n.o 2, DL n.o 276/2003, de 04 de novembro, e não obrigatoriamente.


Por outro lado, no âmbito da alegada violação do ónus da prova, em relação à descaracterização do acidente de trabalho, e porque a mesma é impeditiva do direito do sinistrado, esse ónus cabe à entidade responsável pela reparação do acidente, nos termos do artigo 342.o, n.o 2, do CC, como é jurisprudência unânime, alguma dela citada no acórdão sob censura.


Constata-se, ainda, que a Requerente formula pedido de reforma do acórdão sem indicar qualquer norma proibitiva absoluta dos utentes das estações ferroviárias irem à linha férrea para recuperação de objectos de interesse justificado, antes se limitando a manifestar a sua discordância com o sentido da decisão de mérito.


Em síntese: os fundamentos invocados para suportarem o pedido de reforma do acórdão proferido por este Tribunal, em 29 de março de 2023, que julgou improcedente o recurso de revista excepcional interposto pela Ré, não configuram uma situação de lapso manifesto na qualificação jurídica dos factos.


E na medida em que, nos termos do artigo 613.o, n.o 1, do CPC, aplicável ao recurso de revista ex vi artigo 679.o e artigo 666.o do mesmo Código, proferido o acórdão se esgota o poder jurisdicional, encontra-se este Tribunal impedido de alterar tal decisão.


Improcede, pois, a requerida reforma do acórdão do STJ, de 29 de março de 2023.


2.Da nulidade do Acórdão


O artigo 615.o, n.o 1, alínea b), do CPC estatui: “É nula a sentença ... quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.


É entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência que a nulidade da alínea b) apenas se verifica quando haja falta absoluta de fundamentos, e não quando a justificação seja apenas deficiente, visto o tribunal não estar adstrito à obrigação de apreciar todos os argumentos das partes.


[Cf., entre outros, acórdãos do STJ, de 15.12.2011, proc. n.o 2/08.9TTLMG.P1.S1 (Pereira Rodrigues); de 15.05.2019, processo n.o 835/15.0T8LRA.C3.S1 (Ribeiro Cardoso); ambos disponíveis em www.dgsi.pt].


Na doutrina:


Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil anotado, Vol. V, pág. 140: “Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.


Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade (...)”.


Antunes Varela e Outros, in Manual de Processo Civil, 2a edição, págs. 686 a 691: “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário”. (...); “não basta que a justificação seja deficiente, incompleta, não convincente. É preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito.”.


Lebre de Freitas, in Código Processo Civil, pág. 297: “há nulidade quando falte em absoluto indicação dos fundamentos de facto da decisão ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão, não a constituindo a mera deficiência de fundamentação”.


Ora, atenta a estrutura do acórdão sob censura, consideramos que não se verifica a nulidade prevista na alínea b), n.o 1 do artigo 615.o, porque contém motivação de facto e de direito.


Se essa motivação será, eventualmente, insuficiente, é outro problema que não cabe no conteúdo desta norma.


Improcede, também, a arguida nulidade do acórdão.


III.Decisão


Atento o exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Social em indeferir a reclamada reforma e nulidade do acórdão, de 29 de março de 2023.


Custas pela Reclamante, fixando em 3 UCs a taxa de justiça.


Lisboa 01 de junho de 2023


Domingos José de Morais (Relator)


Mário Belo Morgado


Júlio Gomes