Acordam em conferência na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,
1. AA, BB, CC e DD, Réus/Recorridos na acção de condenação com processo comum intentada por EE, FF e mulher, GG, vêm reclamar do acórdão (de 02-06-2020) proferido por este tribunal, com fundamento em nulidade de decisão por:
- omissão de pronúncia quanto à questão da inconstitucionalidade por violação do artigo 201.º, n.º1, da Constituição da República Portuguesa;
- falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito na decisão de admissão da revista;
- contradição entre os fundamentos e a decisão ao considerar inexistir casos julgado, identidade da causa de pedir e do pedido.
2. Autores e Interveniente pronunciam-se pelo indeferimento da reclamação.
II - Apreciando
1. Da nulidade por omissão de pronúncia
De acordo com o artigo 615.º, n.º1, alínea d), 1ª parte, do Código de Processo Civil (doravante CPC), aplicável às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal de Justiça por força do disposto no artigo 685.º, do mesmo Código, é nulo o acórdão quando “deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”.
Esta nulidade decorre da exigência prescrita no n.º2 do artigo 608.º, do CPC, nos termos do qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.
Relativamente ao sentido exacto a dar ao termo legal “questões”, quer a doutrina quer a jurisprudência fazem apelo à necessidade de se proceder à distinção entre “questões”, “argumentos” ou “razões”, concluindo que só a ausência de apreciação das primeiras é determinante da nulidade em referência.
Com efeito, mostra-se uniforme o entendimento quanto a considerar que na expressão «questões» não se incluem os elementos, argumentos ou raciocínios utilizados, quer pelas partes, quer pelo tribunal, para a resolução das questões que efectivamente cumpre apreciar.
Igualmente tem vindo a ser pacificamente entendido que não há omissão de pronúncia sempre que a matéria tida por omissa ficou implícita ou tacitamente decidida no julgamento da matéria com ela relacionada.
Acresce que nada obriga a que o tribunal aprecie todos os argumentos invocados pelas partes, impondo-se apenas que indique a razão que serve de fundamento à decisão proferida.
1.2. Pugnam os Reclamantes pela nulidade do acórdão considerando que se impunha a este tribunal emitir juízo sobre a questão da inconstitucionalidade material por violação do artigo 205.º, n.º1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), relativamente à falta de fundamentação do voto de vencido por parte de um dos Juízes Desembargadores que compunham o colectivo que proferiu o acórdão recorrido.
Carecem de razão.
1.3 Os Réus/Recorridos, nas contra alegações de revista, vieram pôr em causa a admissibilidade do recurso defendendo que a declaração de voto por parte de um dos juízes do colectivo que proferiu o acórdão recorrido não consubstanciava um efectivo voto de vencido válido e eficaz (por não conter o mínimo de fundamentação exigida para se concluir pela divergência do colectivo) por forma a ultrapassar a situação de dupla conformidade de julgados impeditiva da revista, nos termos do artigo 671.º, n.º3, do CPC.
Consideraram que o voto de vencido padecia de falta de fundamentação em desrespeito ao dever constitucionalmente previsto no artigo 205.º, n.º1, da CRP, para as decisões judiciais, mostrando-se inconstitucional qualquer interpretação do referido dever em sentido diverso.
O acórdão reclamado, apreciando previamente a não admissibilidade da revista suscitada pelos Recorridos, fez consignar:
“Ao invés do defendido pelos Recorridos, o voto de vencido em causa cumpre as exigências determinadas pelo n.º1 do artigo 663.º do CPC, pois que a Exma. Desembargadora ao declarar-se vencida quanto à decisão proferida consignado “porquanto considero não se verificar a excepção de caso julgado quanto ao pedido subsidiário. Com efeito, quer o pedido, quer a causa de pedir não foram objecto da acção anterior” indicou, sucintamente, mas plenamente perceptível (tendo presente o contexto da fundamentação do aresto e bem como as considerações que no caso se colocam tendo em atenção a questão a apreciar) as razões da discordância do sentido da decisão que fez vencimento quanto ao pedido subsidiário.
Assim, considerando o disposto no artigo 671.º, n.ºs 1 e 3, do CPC, mostrando-se a revista admissível cabe conhecer do objecto da mesma.”
Assim sendo, tendo sido colocada para apreciação a (in)admissibilidade da revista por dupla conformidade de julgados face à invalidade do voto de vencido por um dos membros do colectivo de juízes, cabia ao acórdão, enquanto questão a apreciar, valorar da legalidade/eficácia da declaração de voto de vencido.
Por conseguinte, de acordo com o fundamento da decisão proferida – suficiência de fundamentação do voto de vencido – estando-lhe subjacente um juízo de legalidade quanto à declaração de voto (necessariamente de conformidade com o dever ínsito no artigo 205.º, n.º1, da Lei Fundamental), não se encontrava o tribunal adstrito ao dever de tecer considerações e/ou apreciações quanto à argumentação dos Recorridos ao pugnarem pelo incumprimento do dever de fundamentação invocando violação daquele preceito constitucional.
Não padece pois o acórdão da nulidade invocada.
2. Da nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito
Os Requerentes justificam a arguição desta nulidade do acórdão alegando que não se mostram concretizadas as razões por que se concluiu que o voto de vencido respeita as exigências legais de fundamentação.
Ainda quanto a este aspecto carecem de razão.
Se é certo que o dever de fundamentar as decisões se impõe ao juiz por imperativo constitucional e legal, mostra-se pacificamente aceite na doutrina e jurisprudência que só a falta absoluta de fundamentação (fáctica ou jurídica) conduz à nulidade da decisão, não integrando tal vício, uma fundamentação deficiente.
Assim sendo, tendo em linha de conta o teor do acórdão proferido e as razões nele exaradas (supra transcritas) em termos de justificar o conhecimento da revista por inexistência de dupla conformidade de decisões, atenta a forma como os Recorridos fundamentam o vício apontado, somos de entender que se mostra plenamente evidenciada a não verificação da nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
3. Da nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão
Esta nulidade - contradição entre os fundamentos e a decisão – verifica-se na construção lógica da decisão e ocorre quando o julgador concluiu num sentido oposto/ou diverso do que resultaria face aos fundamentos nela indicados enquanto alicerces da própria decisão.
Defendem os Réus/Reclamantes que o acórdão, em oposição aos elementos fácticos nele indicados e às razões jurídicas nela expendidas, concluiu pela inexistência de caso julgado (por falta de identidade de pedido e causa de pedir) quando tal fundamentação apontava necessariamente para a conclusão contrária (verificação da excepção de caso julgado por repetição da causa).
As razões por que o acórdão concluiu pela inexistência de causa julgado (defendendo a inexistência de identidade de causa de pedir e de pedido) mostram-se explanadas no acórdão, conforme aqui se deixa transcrito um seu excerto e onde não conseguimos vislumbrar o alegado vício.
Ponderando a inexistência de identidade de causa de pedir refere o acórdão:
“No processo n.º 404/2001 os Réus/Reconvintes fundamentaram o pedido de indemnização pela exploração ilícita do prédio em montante a liquidar em execução de sentença na responsabilidade civil dos Autores por violação do direito de propriedade (artigo 483.º, do Código Civil), pedido que foi julgado improcedente por inverificação de um dos pressupostos da responsabilidade civil (culpa dos Autores) – cfr. pontos 3, 4, 5, 6 e 7 dos factos provados.
Alegaram para o efeito a factualidade indicada no ponto 12 da matéria de facto provada.
Na presente acção, agora Autores, em pedido subsidiário e fundados no enriquecimento sem causa por parte dos Réus, pediram que lhes fosse restituída quantia (que indicaram de 909 661,00€) correspondente aos proventos que estes retiraram da exploração da pedreira existente no prédio (lucros da venda e comercialização dos blocos de pedra mármore – moca creme) sem a autorização e/ou consentimento dos respectivos proprietários, bem sabendo que o prédio não lhes pertencia (cfr. artigos 11.º, 12.º e 13.º da petição).
Evidencia-se pois que embora a presente acção parta de uma realidade fáctica comum (ocupação ilegítima de imóvel alheio) encontram-se invocados no pedido subsidiário factos constitutivos de um título jurídico diverso.
Com efeito, a ocupação ilegítima do imóvel pelos Réus mostra-se na presente acção configurada com uma utilização não autorizada e gratuita que os mesmos fizeram do prédio consubstanciando uma vantagem patrimonial (enriquecimento decorrente dos lucros da comercialização da pedra que extraiam do imóvel) à custa dos Autores proprietários traduzida na privação de aumento do respectivo património através da rentabilização do imóvel em causa através da exploração da pedreira.
Desta forma, não obstante a via legal utilizada pelos Autores no pedido subsidiário redundar num idêntico resultado prático (pagamento pelos Réus de determinada quantia), assume relevância para efeitos de admissibilidade de nova acção a circunstância de se encontrarem invocados outros factos identificadores das normas aplicáveis que não foram alegados na primeira acção (que como vimos se cifrava na exploração ilícita de prédio alheio e nos prejuízos decorrentes para os respectivos proprietários) nem objecto de conhecimento por parte do tribunal.
Cabe, por isso, excluir a existência de identidade das causas de pedir”.
E relativamente à falta de identidade dos pedidos:
“(…) considerando que a identidade de efeito jurídico para efeitos de caso julgado não se esgota na identidade formal, mas circunscreve-se à coincidência entre o objectivo fundamental em que se apoia o êxito de cada uma das acções em causa, somos de entender que na situação sub judice, não ocorre uma efectiva identidade (ainda que relativa) do efeito jurídico pretendido pois que na presente acção o que se encontra fundamentalmente submetido à apreciação do tribunal é a restituição das vantagens obtidas com a utilização da exploração da pedreira e não o ressarcimento de qualquer indemnização.
Assim sendo e ainda que se tenha presente que a identidade do efeito jurídico prescrito no n.º 3 do art.º 581.º do CPC, se basta numa identidade relativa, não podemos deixar de concluir que o núcleo essencial de que emerge a pretensão dos Recorrentes nesta e na outra acção não é o mesmo, pelo que não se poderá falar da existência da mesma tutela jurisdicional.”
Conforme denuncia o posicionamento dos Requerentes, a questão que pretendem colocar sob as vestes de nulidade do acórdão situa-se em parâmetro que não assume assento no domínio dos vícios de decisão, mas do erro de julgamento uma vez que a sua discordância se reporta à solução de direito por que o acórdão enveredou.
Não padece, pois, o acórdão da nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão, nem nele ocorre qualquer ambiguidade ou obscuridade que não o torne perceptível.
III – Decisão
Termos em que se acorda em indeferir as nulidades suscitadas.
Custas pelos Requerentes com taxa de justiça que se fixa em 2 UC’s.
Lisboa, 7 de Setembro de 2020
Graça Amaral - Relatora
Henrique Araújo
Maria Olinda Garcia
Tem voto de conformidade dos Senhores Conselheiros Adjuntos (artigo 15ºA, aditado ao DL 10-A/2020, de 13/3, pelo DL 20/2020, de 1/5).
Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).