Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1372/19.9T8VFR.P1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: CHAMBEL MOURISCO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 10/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

I- Quando o conjunto de factos impugnados se refere à mesma realidade e os concretos meios de prova indicados pelo recorrente sejam comuns a esses factos, a impugnação dos mesmos em bloco não obstaculiza a perceção da matéria que se pretende impugnar, pelo que deve ser admitida a impugnação.

II- É excessiva a rejeição da impugnação da matéria de facto feita em «blocos» quando tais blocos são constituídos por um pequeno número de factos ligados entre si, tendo o Recorrente indicado os meios de prova com vista à sua pretensão.

Decisão Texto Integral:



Processo n.º 1372/19.9T8VFR.P1-A. S1(Revista) - 4ª Secção

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

                                                                       I

1. AA intentou ação especial de impugnação da regularidade e licitude do despedimento contra Solverde, Sociedade de Investimentos Turísticos da Costa Verde, SA, pedindo a declaração da ilicitude ou a irregularidade de tal despedimento, com as legais consequências.

2. Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, tendo sido proferida sentença que decidiu, em síntese:

̶ Declarar a ilicitude do despedimento do Autor e, em consequência, condenar a Ré a reintegrá-lo;

̶ A pagar ao Autor todas as retribuições vencidas desde a data do despedimento e que se vençam até ao trânsito em julgado desta decisão, deduzindo-se ao montante obtido o valor que o trabalhador tenha recebido com a cessação do contrato de trabalho e que não teria recebido se não fosse o despedimento, bem como qualquer quantia que o trabalhador tenha recebido a título de subsídio de desemprego, sendo a quantia entregue pela empregadora à Segurança Social;

̶̶  A pagar ao Autor a quantia de € 2.500,00 a título de danos não patrimoniais.

3. A Ré interpôs recurso de apelação, tendo, para além do mais, impugnado a decisão relativa à matéria de facto. Por seu turno, o Autor interpôs recurso subordinado da parte da sentença que lhe foi desfavorável.

4. O Tribunal da Relação decidiu os recursos interpostos da seguinte forma:

Recurso da Ré:

a) Rejeita-se parcialmente a apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

b) Na parte admitida, julga-se parcialmente procedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

c) Julga-se improcedente o recurso na vertente da impugnação por erro de direito, confirmando a sentença na parte recorrida.

Recurso subordinado do autor:

Julga-se improcedente, confirmando a sentença na parte recorrida.

5. A Ré interpôs recurso de revista, que foi admitida, tendo formulado as seguintes conclusões:

A) O recurso de revista é admissível porque, não obstante a Relação ter confirmado a decisão da Primeira Instância, fê-lo rejeitando parcialmente conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto, por entender que, na parte em que a Recorrente pugnou pela alteração dos factos dados como não provados n.º 1, 2 e 3; 6 e 10; 4, 5, 7, 8 e 9 para provados e integrados na matéria de facto assente e pela inclusão nesta do facto instrumental referido na conclusão QQ), a recorrente não observou integralmente os ónus de impugnação, nomeadamente os decorrentes da alínea b), do n.º 1, do art.º 540.º do CPC”, por alegadamente não fazer uma impugnação individualizada, especificando os concretos meios probatórios para cada um, nem um juízo crítico nos mesmos termos, para justificar uma decisão diferente (a de alteração), e, não obstante ter concedido parcial provimento ao recurso da matéria de facto, não ter retirado daí as necessárias consequências jurídicas.

B) A decisão da Relação quanto a esta questão, interpretando e aplicando (erradamente, no entender da Recorrente) a norma do artigo 662.º do CPC, é uma decisão que versa sobre uma questão nova, que não foi apreciada nem decidida em Primeira Instância, pelo que não há dupla conformidade entre as decisões das Instâncias e, por isso, a Recorrente não está impedida de impugnar, por via do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o decidido pela Relação.

C) Na verdade, e conforme tem entendido e decidido o Supremo Tribunal de Justiça, com apoio da doutrina, quando seja invocada no recurso de revista a violação de normas adjetivas relacionadas com a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto, não existe dupla conforme.

D) A fundamentação de facto é igualmente alterada pelo Tribunal da Relação num ponto que se reputa essencial, pelo que não há, também por esta via, dupla conforme.

E) Assim, o Tribunal de 1.ª instância deu como provado no ponto 17: "Estas instruções foram comunicadas pelo Serviço de Jogos a alguns dos operadores de CCTV", sendo que o Tribunal da Relação alterou a redação deste facto, dando como provado que:

"Estas instruções foram comunicadas pelo Inspetor de Jogos BB, a exercer funções no Casino ……, inicialmente ao Chefe do CCTV, CC, e posteriormente aos operadores que se encontravam na sala de CCTV— DD, EE, FF e BB; mais tarde, por aquele Chefe do CCTV foi dado conhecimento delas ao autor".

F) Esta alteração controvertida relativa ao conhecimento, por parte do Recorrido, das instruções que foram comunicadas aos operadores de CCT é relevante para a questão que se discute nos autos - a existência de justa causa - porquanto permite aferir o grau de culpa com que o Recorrido atuou e que poderá implicar uma modificação da motivação jurídica.

G) Não se verifica igualmente dupla conforme pois o Tribunal da Relação, apesar de ter confirmado, sem voto de vencido, a sentença recorrida, os fundamentos do acórdão proferido são essencialmente distintos dos fundamentos da decisão proferida na 1.ª instância, pelo que, nos termos do disposto no art. 671.º, n.º 3, do CPC, é admissível o recurso de revista.

H) Na verdade, o Tribunal de 1.ª instância considerou que o Recorrido não atuou com culpa ("Excluímos, assim, a prática dos factos com negligência (...), e, consequentemente, a existência de um ato ilícito e culposo, no sentido de lhe ser censurável") e o Tribunal da Relação entendeu que o Recorrido tinha atuado culposamente, a título de negligência ("No caso concreto concluímos que o autor violou o dever de diligência e, pelas razões que enunciámos, a título negligente e com um grau de culpa que reputamos a nível médio ").

I) Constituindo a culpa do trabalhador um dos pressupostos da justa causa de despedimento n.º 1 do art. 351.º do Código do Trabalho, é evidente que a fundamentação das duas instâncias é distinta: para o Tribunal de 1.ª instância nunca poderia existir justa causa pois não se verificava um dos pressupostos desta (a culpa). Diferentemente, o Tribunal da Relação considerou existir um "comportamento culposo do trabalhador", ou seja, que estava preenchido aquele requisito da justa causa de despedimento, embora tenha concluído pela inexistência de justa causa, mas por outro motivo: o de que "não há fundamento para concluir pela impossibilidade prática e imediata da relação de trabalho em concreto".

J) Assim, verificou-se uma diversidade de fundamentação num dos aspetos/pressupostos essenciais de noção de justa causa: a culpa.

K) Para a eventualidade, que por dever de patrocínio se considera, de o recurso de revista "normal" acima interposto não ser admitido por se considerar existir a situação de dupla conformidade do art. 671.º, n.º 3, do CPC, é também interposta revista excecional, ao abrigo do disposto no art. 672.º, n.º 1, al. a), do CPC.

L) O fundamento da revista excecional está no facto de estar em causa uma questão que, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

 M) In casu, as Instâncias desvaloram a exposição factual detalhada e circunstanciada, exigindo, para que se possa concluir pela imputação de factos a título doloso, que o empregador caracterize relevantes comportamento adotado pelo Trabalhador/Recorrido através de fórmulas linguísticas conclusivas (utilizando o termo "dolo").

N) É indispensável para o garante da certeza e segurança jurídicas obter resposta à questão de saber quais são os elementos necessários e suficientes que deve conter a descrição factual em sede disciplinar para se afirmar a imputação de uma conduta infratora a título de dolo.

O) Sem conceder, é igualmente fundamental apurar se o empregador está submetido em sede disciplinar ao mesmo rigor (ou, como decidiram as Instâncias, a rigor superior) no preenchimento do elemento subjetivo do ilícito a que está o Ministério Público aquando da elaboração da Acusação.

P) A questão jurídica cuja apreciação se requer é inédita e paradigmática no âmbito processual laboral, porquanto não é objeto de qualquer corrente doutrinal ou jurisprudencial consolidada.

Q) Em lugar paralelo, questão análoga é discutida, sendo a (in)suficiência da Acusação pública quanto à densificação factual do elemento subjetivo do ilícito doloso imputado ao Arguido uma questão controversa e amplamente debatida na doutrina e nos Tribunais, afirmando-se de grande complexidade, por estar intimamente ligada a elementos internos e reservados ao agente do crime.

R) A jurisprudência penal é unânime ao afirmar a inexistência de fórmulas para a densificação do elemento subjetivo do ilícito doloso, exigindo, ao invés, a descrição factual dos vários elementos que compõem o dolo.

S) In casu, as Instâncias exigem em sede processual disciplinar o cumprimento de requisitos mais rigorosos para o preenchimento do elemento subjetivo do ilícito do que aqueles que têm vindo a ser exigidos pela jurisprudência em sede processual penal, o que não se aceita.

T) A elucidação sobre a que exigências tem de corresponder o empregador na imputação dos factos a título doloso em sede disciplinar é de importância primordial para qualquer titular de uma relação jurídica laboral, quer empregador, para elaboração da nota de culpa, quer trabalhador para apresentar a sua defesa, transcendendo os limites do caso concreto e os interesses inter partes.

U) O esclarecimento da questão jus laboral controvertida assume igual relevância para os Tribunais, permitindo que sejam orientados na apreciação da (in)suficiência da acusação disciplinar no tocante à concretização do elemento subjetivo de ilícito e esclarecidos se o deverão fazer com a mesma exigência e rigor com que apreciam a Acusação pública em sede processual penal.

V) Deve, pois, admitir-se o presente recurso como revista, ao abrigo do disposto no art. 672.º, n.º 1, al. a), do CPC.

W) O acórdão recorrido é nulo, por omissão de pronúncia sobre questão que deveria ter apreciado (art. 615.º, n.º 1, al. d) do CPC), porquanto não se pronunciou sobre o pedido da Recorrente da revogação da sua condenação no pagamento de indemnização a título de danos não patrimoniais.

X) A aqui Recorrente teve, em consideração, na preparação da impugnação da matéria de facto a estrutura da sentença [veja-se a este propósito as páginas 17 (passagem sobre a motivação para não ter julgado como provados os factos 1 a 3) e 21 (passagem sobre a motivação para não ter julgado como provados os factos 4 a 10), sendo que a própria sentença os analisa em conjunto] e a circunstância de determinados factos estarem de tal maneira intrinsecamente interligados (no limite, até se poderiam aglutinar alguns deles) que o seu tratamento independente faria perder o seu cariz de sequencial e/ou complementar.

Y) Na apreciação da modificabilidade da matéria de facto, o Tribunal da Relação ……. não admitiu o recurso quanto à integração dos factos não provados n.º 1, 2 e 3; 6 e 10; 4, 5, 7, 8 e 9 na matéria de facto assente, dizendo, nomeadamente, que a Recorrente "não faz uma impugnação individualizada e concreta'' em relação a cada um dos factos impugnados, "especificando e delimitando as partes do testemunho que relevam para cada um dos factos impugnados, considerados individualmente, nem procede aos respetivos juízos críticos nos mesmos termos" para "justificar, facto a facto, a pretendida alteração", e, nessa medida, rejeitando a impugnação sobre a matéria de facto, por inobservância dos ónus devidos (artigo 640.º, n.º 1, alínea b) do CPC). Idêntica conclusão seguiu para o facto instrumental referido na conclusão QQ).

Z) A fundamentação do Tribunal da Relação ……. foi apresentada de forma sucinta, sem especificar em concreto o que seria esperado da Recorrente, incluindo argumentações subsidiárias e a menção de que Recorrente pretendia um segundo julgamento da causa:

AA) Em resumo, o Tribunal da Relação ……. não fez uso dos poderes/deveres previstos no artigo 662.º do CPC, com o que privou a Recorrente de um segundo grau de jurisdição.

BB) Para rejeitar a impugnação da matéria de facto, a Relação invocou o incumprimento do ónus referido na alínea b), do n.º 1, do artigo 640.º do CPC - posição com a qual a Recorrente discorda -, mas o que se afigura é que o Tribunal a quo, na realidade, não terá concordado com o mecanismo de agregação de factos, pelo menos, nesta parte.

CC)    Em relação aos factos não provados n.ºs 1, 2 e 3, estes factos são conexos e sequenciais, podendo até ser aglutinados num facto único que se sintetizam na circunstância de, ao contrário do que era habitual com este trabalhador/Recorrido, este colocar uma questão ao Senhor CC sobre se um dos dias era mesmo para ver à qual o mesmo responde, tendo achado estranha esta conduta devido ao perfil minucioso do Recorrido, evitando-se, também, deste modo, um excesso transcrições (repetidas para cada facto) sobre as mesmas matérias.

DD) Quanto a esses mesmos factos, a Recorrente procedeu à: a) identificação dos factos objeto de impugnação (ponto 108. das alegações), b) abordagem da motivação da sentença (essencialmente nos pontos 109. e 110. das alegações), c) ponderação de um juízo crítico e indicação dos concretos meios de prova (pontos 111. a 128. das alegações, em que os concretos meios de prova encontram-se indicados nos pontos 113., 115., 123., 124.), seguido da d) conclusão (ponto 129. das alegações).

EE) Como se pode comprovar pela leitura da fundamentação apresentada pela Relação - sem prejuízo do breve enquadramento jurídico feito na parte introdutória do ponto II.4. da decisão -, a Relação não concretiza, de forma pormenorizada, o incumprimento do ónus de impugnação por parte da Recorrente.

FF) Em relação aos factos não provados n.ºs 6 e 10, estes factos são conexos, sendo que, no limite, poderiam até ser considerados como sobrepostos, na medida em que o facto é este: a conduta ilícita do trabalhador ser suscetível de prejudicar a imagem do estabelecimento e de causar graves prejuízos para a Recorrente e criar sérias contingências junto do Estado (representado pelo Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos), não sendo exigível a ocorrência de danos.

GG) Quanto a esses factos que versam exatamente sobre a mesma matéria, a Recorrente procedeu à: a) identificação dos factos objeto de impugnação (ponto 131. Das alegações), b) abordagem da motivação da sentença (essencialmente nos pontos 132. e 135. das alegações), c) ponderação de um juízo crítico e indicação dos concretos meios de prova (pontos 136. a 144. das alegações, em que os concretos meios de prova encontram-se indicados nos pontos 142. e 143.), seguido da d) conclusão (ponto 145. das alegações).

HH) Da fundamentação apresentada pela Relação - sem prejuízo do breve enquadramento jurídico feito na parte introdutória do ponto II.4. da decisão -, resulta que a Relação não concretiza, de forma pormenorizada, o incumprimento do ónus de impugnação por parte da Recorrente, tendo decidido fazer apenas uma referência aos pontos de impugnação e passagens utilizados para concluir pela rejeição, mas aparentemente sem os analisar.

II) A Relação vem ainda dizer que a Recorrente não alegou em concreto os prejuízos e contingências que foram gerados e somente estes seriam suscetíveis de ser objeto de produção de prova, porém, certamente por lapso, olvidou o facto de a Recorrente não ter alegado esses prejuízos e contingências, pois estes não ocorreram, devido à intervenção de outros trabalhadores da Recorrente que ratificaram a situação antes da investigação do Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos (e não da Recorrente) ter sido dada como concluída.

JJ) A referida suscetibilidade é passível de produção de prova, foi provada e deve ser tida em consideração para efeitos de ponderação da decisão disciplinar a aplicar, como tem vindo a ser entendimento da Doutrina e Jurisprudência.

KK) No que concerne aos factos não provados n.ºs 4, 5, 7, 8 e 9, estes factos são conexos e sequenciais, sendo que, no limite, podendo até ser aglutinados num facto único, ainda que dividido em duas partes: i) a infração e ii) consciência de que os seus comportamentos violavam as normas aplicáveis.

LL) Quanto a esses factos que versam exatamente sobre a mesma matéria, a Recorrente procedeu à: a) identificação dos factos objeto de impugnação (ponto 146. das alegações), b) abordagem da motivação da sentença (essencialmente nos pontos 148. a 152. das alegações), c) ponderação de um juízo crítico e indicação dos concretos meios de prova (pontos 153. a 191. das alegações, sendo que, quanto ao facto não provado n.º 4, correspondem os pontos 153. e 154.; aos factos não provados n.º 8 e 9, correspondem os pontos 155. a 166., 169. e seguintes; e aos factos não provados e conexos 7., 8. e 9. e ainda 5, correspondem os pontos 175. a 191., estando os respetivos meios de prova indicados nos pontos 154., 156., 157., 158., 159., 161., 162., 164., 166., 171., 180., 184. e 189.), seguido da d) conclusão (ponto 192. das alegações).

MM) Como se pode comprovar pela leitura da fundamentação apresentada pela Relação - sem prejuízo do breve enquadramento jurídico feito na parte introdutória do ponto II.4. da decisão -, a Relação não concretiza, de forma pormenorizada, o incumprimento do ónus de impugnação por parte da Recorrente, limitando-se a apresentar excertos das alegações de recurso da Recorrente, não fazendo, contudo, referência aos sucessivos juízos críticos apresentado pela Recorrente (e diversas vezes para afastar a apreciação feita pelo Tribunal de Primeira Instância e, bem assim, justificar o seu entendimento/apreciação quanto aos mesmos factos), nem a indicação de prova devidamente contextualizada, e optando por recorrer a uma formulação genérica complementada pela decisão do Supremo Tribunal de Justiça que versa sobre realidade distinta.

NN) Ao exacerbar as formalidades da impugnação da matéria de facto e invocar a solução dada na referida decisão do Supremo Tribunal de Justiça, cuja realidade era essencialmente distinta da do presente, o Tribunal da Relação, salvo o devido respeito, demitiu-se dos seus poderes/deveres e incorreu em denegação de justiça.

OO) Ao contrário do defendido pelo Tribunal da Relação, a Recorrente não pretende um segundo julgamento, pretende tão-só que a apreciação dos factos e respetiva qualificação como provados ou não provados tenha em consideração a real produção de prova feita em julgamento - o que não veio a ser apreciado pela Relação.

PP) Contudo, a Recorrente ficou privada de conhecer o juízo valorativo do Tribunal da Relação (que até poderia ser, em tese, idêntico ao do tribunal de 1.ª instância), visto que este se absteve de analisar a prova com base em argumentos puramente formais e, na opinião da Recorrente, desfasados daquele que deve ser o melhor entendimento das normas processuais aplicáveis.

QQ) A Recorrente pugnou pela inclusão na matéria do seguinte facto instrumental: "o Trabalhador informou a Dra. GG, filha do Visado, que este ia ser expulso", tendo o Tribunal da Relação se recusado a apreciar esta questão.

RR) Ao contrário do defendido pelo Tribunal da Relação, a Recorrente requereu o seu aditamento à matéria de facto como facto instrumental e não como facto essencial, sendo que, tratando-se este de um facto instrumental, parece à Recorrente não ser correta a afirmação de que o mesmo deveria constar da decisão final de despedimento da qual apenas constam os factos essenciais

SS) A Recorrente também aqui cumpriu os ónus de impugnação, tendo indicado os concretos pontos, feito o juízo crítico e concluindo pelo aditamento deste facto instrumental, podendo tudo ser encontrado nos pontos 184. - que contém transcrição de depoimento nesse sentido - 185., 186., 187., 188. em conjugação com o 189. e 194. das alegações, sendo que, neste último ponto, a Recorrente até refere que "considerando o sms enviado pelo Apelado afilha do Visado".

TT) Nesta medida, e quanto a todos os factos aludidos acima, a Recorrente cumpriu todos os ónus previstos no artigo 640.º do CPC, apesar de proceder à agregação de factos intrinsecamente interligados.

UU) A título subsidiário, mesmo que se admitisse que a Recorrente não cumpriu esses ónus, o Tribunal da Relação tem poder para alterar, por si, a matéria de facto (poder de que o Tribunal da Relação ……… fez uso ao "expurgar" da matéria assente expressões que considerava conclusivas - nos factos provados n.º s 10, 11, 12, 40, 47, 48 e 50).

W) Posto isto resulta evidente que, em relação a todos os factos acima indicados, a Relação violou os seus poderes/deveres previstos no artigo 662.º do CPC, com o que privou a Recorrente de um segundo grau de jurisdição.

WW) Em conformidade com todo o exposto, deve ser anulada a decisão da Relação e ordenado que seja proferido novo acórdão que aprecie integralmente o recurso da decisão sobre a matéria de facto.

XX) A Recorrente não se conforma com o entendimento do Tribunal Recorrido que corroborou a posição da Primeira Instância ao afirmar que a Recorrente não imputou ao Recorrido os factos disciplinarmente relevantes a título de dolo.

YY) A Recorrente imputou ao Recorrido uma conduta voluntária e consciente das circunstâncias do facto ilícito, ao afirmar que "O TRABALHADOR agiu voluntária e conscientemente" , que "O TRABALHADOR tinha e tem conhecimento das regras de funcionamento dos sistemas de CCTV e de investigações em curso, tendo a obrigação de as seguir escrupulosamente, não só para evitar situações fraudulentas e evitar prejuízos ao seu empregador e ao Estado, mas também por ser uma obrigação legal, tendo omitido informações relevantes no âmbito da investigação em curso ". que "Agindo desta forma, o TRABALHADOR mostrou um total desprezo pelos seus deveres de executar o trabalho com zelo e diligência e de obedecer às regras emanadas pelo Empregador, pelo Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos e decorrentes da lei que" O TRABALHADOR sabia que, com os comportamentos descritos supra, incumpria as normas do Regulamento dos CCTV, além do Decreto-Lei n. ° 422/89 e respetiva regulamentação, por si conhecida" e que "Com esta conduta, o TRABALHADOR sabia que, ao atuar como atuou, violava os referidos deveres laborais e as regras definidas pelo Empregador, pelo Serviço de Inspeção de Jogos e decorrentes da lei, bem como que poderia causar graves prejuízos a estes."

ZZ) Sem que lhe fosse exigido, a Recorrente cumpriu o ónus de alegação e concretização factual dos elementos em que se decompõe o dolo - elemento volitivo, elemento intelectual e consciência da ilicitude - com o mesmo rigor que é exigido ao Ministério Público aquando da elaboração da Acusação em processual penal.

AAA) Por maioria de razão, a Recorrente preencheu devida e suficientemente o elemento subjetivo do ilícito de natureza disciplinar, tendo imputado ao Recorrido a prática de condutas infratoras a título doloso.

BBB) O entendimento da jurisprudência penal é unânime ao pronunciar-se no sentido de que não existem fórmulas sacramentais para consubstanciar devida e suficientemente o elemento subjetivo do ilícito doloso.

CCC) Contrariamente ao que parece sugerir o Tribunal Recorrido é inexigível que o empregador tenha de afirmar taxativamente que o trabalhador agiu com dolo ou de adjetivar a sua conduta como dolosa, sendo, ao invés, suficiente que se extraia essa conclusão através da descrição e concretização factual detalhada e circunstanciada da conduta infratora.

DDD) A Recorrente demonstrou factualmente, com o mesmo rigor exigido no âmbito do Direito Processual Penal, que o Recorrido sabia e quis omitir informações relevantes no âmbito do processo de investigação em curso, bem sabendo que com esta conduta violava normas e instruções cujo cumprimento se lhe impunha.

EEE) De uma análise cabal e integrada dos elementos que compõem o processo disciplinar resulta claro e evidente o entendimento da Recorrente de que os atos ilícitos foram praticados pelo Recorrido voluntária, deliberada e intencionalmente, não sendo crível, face ao ali evidenciado, que se tenham devido apenas a um mero descuido ou falta de zelo no exercício das suas funções.

FFF) Ao afirmar que " [o]s referidos factos provados permitem concluir pela existência [de] uma conduta consciente e culposa por parte do Trabalhador Arguido" a Recorrente imputa ao Recorrido uma conduta dolosa.

GGG) Impõe-se conclusão diversa daquela a que chegou o Tribunal Recorrido, porquanto os factos praticados pelo Recorrido lhe foram imputados, quer no articulado de motivação, quer na decisão final de despedimento, a título doloso e não, tão-só, título negligente.

HHH) O Recorrido incumpriu, de forma consciente e deliberada ou, caso assim não se entenda, com negligência consciente, os seus deveres laborais, conhecendo as normas legais e regras internas da Recorrente que estabeleciam os parâmetros da atuação devida.

III) Na verdade, o Recorrido, pelo cargo que desempenhava e pela antiguidade na empresa e naquelas funções, sabia que perante as suspeitas da Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos da possível prática de um crime (ou contraordenação) por parte de um cliente, e do pedido para realizar a investigação descrita, teria que cumprir diligentemente as respetivas funções, analisando com o cuidado "normal", de um operador médio, as imagens gravadas no último mês, o que se absteve de fazer.

JJJ) Se o tivesse feito, teria, tal como todos os outros operadores, relatado dezenas de episódios suspeitos do Visado. Não o tendo feito, omitiu, pelo menos, 8 situações suspeitas, como decorre dos relatórios que elaborou, respeitantes aos dias 22.12.2018, 13.01.2019 e 17.01.2019, em que não reportou condutas clamorosamente irregulares do Visado, o que levou o Tribunal da Relação …….. a reconhecer o seu comportamento culposo.

KKK) Salvo o devido respeito, é incompreensível para a Recorrente o entendimento de que a não deteção de oito (8) situações em três (3) dias diferentes possa ser qualificada somente como uma atitude negligente do Recorrido, pois, por um lado, tratava-se de situações evidentes e, por outro, o Recorrido era um operador de CCTV experiente e com competências técnicas para a deteção de situações irregulares (factos provados n.°s 11 e 12).

LLL) De notar que, não obstantes todos os indícios, a prova do facto de que o Recorrente viu os comportamentos do frequentador visado e não os relatou revela-se particularmente difícil (quase uma probatio diabólica), que, no limite, só poderia ser possível mediante confissão do Recorrido.

MMM)   Sendo certo que, atendendo às regras da experiência comum e à prova produzida em audiência de julgamento, pode-se concluir que o Recorrido "quis diretamente realizar o facto ilícito'" (i.e., não relatar o que tinha visto). Na verdade, com a sua experiência e provas dadas na atividade de visualização (cfr. factos provados n.ºs 10 a 13), não podia ter deixado de ver os comportamentos suspeitos do Visado, pelo que necessariamente os viu optou por não os reportar, o que revela uma atitude dolosa.

NNN) Acresce que outro aspeto desvalorizado pelo tribunal de 1.ª instância e desconsiderado (omitido) pelo Tribunal da Relação, - não obstante constar das alegações apresentadas no recurso de apelação - mas que não pode deixar de se ponderar, é a amizade do Recorrido pela filha do Visado, a quem não quis "desagradar", optando por não reportar os factos mais graves praticados pelo frequentador visado, pai daquela.

OOO) Mas, mesmo que não se considere que o Recorrido "quis diretamente praticar o facto ilícito", o certo é que, como, de resto, foi reconhecido no acórdão em crise, o Recorrido "admitiu a possibilidade de erro ", e, ainda assim, terá visualizado imagens de forma rápida e displicente, o que revela que agiu com dolo eventual. Ou seja, se não viu foi porque não terá querido ver..., demonstrando uma insensibilidade perante "os valores que violou", sendo a sua conduta passível de um juízo de forte reprovação.

PPP) Com efeito, é seguro que o Recorrido não atuou com a diligência que se exigia, atendendo à gravidade dos factos que estavam a ser alvo de investigação, e, por outro, às funções que desempenhava, assumindo aqui particular relevo a comparação da sua conduta com a forma como os seus outros colegas, operadores de CCTV, atuaram. E não se duvida de que há culpa por parte de quem não atua com a diligência média (art. 487.º, n.º 2, do Código Civil).

QQQ) Da mesma forma, analisando os relatórios minuciosos elaborados pelos demais operadores de CCTV é patente a diferença no padrão de atuação do Recorrido em relação àqueles (padrão normal), e por demais evidente que o Recorrido atuou dolosamente ou, pelo menos, com negligência consciente!...

RRR) As "circunstâncias do caso" são aferidas no âmbito da atividade profissional em questão, e, naturalmente, não se pode deixar de considerar que o "homem médio", neste caso, é um operador de CCTV; que a estes técnicos é exigida uma especial capacidade técnica de visualização, análise e ulterior reporte; que os mesmos têm formação técnica específica na área da videovigilância e sobre as regras de execução e prática dos jogos de fortuna ou azar - art. 19.º do Regulamento de CCTV; e que, diferentemente do Recorrido, os outros operadores de CCTV conseguiram ver sempre comportamentos suspeitos do Visado (entre 23 de dezembro de 2018 e 17 de janeiro de 2019) e incluíram-nos nos seus relatórios (não só nos dias em que o Recorrido não reportou - quando as imagens desses dias foram revistas - mas igualmente nos dias que os próprios analisaram e elaboraram os respetivos relatórios).

SSS) Salvo o devido respeito, os circunstancialismos apontados pelo Tribunal da Relação no sentido de diminuir a culpa do Recorrido — ou seja, o "método" de visionamento de gravações em simultâneo com o exercício da atividade habitual de serviço diário — não são válidos, por essa simultaneidade não se verificar de facto, como é manifesto, e tendo em conta que os outros Operadores de CCTV, que estavam nas mesmas condições daquele, conseguiram realizar corretamente o serviço de que haviam sido incumbidos e elaboraram relatórios pormenorizados nos quais indicaram as situações suspeitas que detetaram e que conduziram à abertura de um processo de contraordenação.

TTT) É pacífico, quer na doutrina quer na jurisprudência nacionais, o entendimento de que, para haver justa causa de despedimento, não é necessária a existência de dolo, bastando a negligência do trabalhador que, in casu, configuraria negligência consciente.

UUU) No que respeita à gravidade dos factos praticados pelo Recorrido e, consequentemente, ao juízo sobre a licitude do despedimento, analisando toda a factualidade assente à luz dos deveres que impendem sobre os trabalhadores e ao conceito de justa causa, terá que se chegar a uma conclusão diversa daquela a que chegou o tribunal recorrido.

VW) Da matéria dada como assente pelo Tribunal da Relação ……. resulta a violação pelo Recorrido dos deveres previstos no artigo 128.º, n.º 1, alíneas c), e) e h), do Código do Trabalho e a gravidade dos factos por este praticados.

WWW)   Os factos dados como provados nos autos revelam, indubitavelmente, que a relação de confiança ficou irremediavelmente comprometida.

XXX) As funções desempenhadas pelo Recorrido no Casino ………, há mais de 20 anos, correspondem a posto de trabalho de elevado grau de responsabilidade e para o qual se exige uma especial qualificação/formação (art. 19.º, n.º 2 do Regulamento de CCTV).

YYY) São os operadores de CCTV que desempenham o papel crucial em todos os processos de investigação levados a cabo quer pela Direção de Jogo quer pelo Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos, como resulta de vários preceitos do Regulamento dos CCTV.

ZZZ) Trata-se assim de uma função na qual o empregador deposita a máxima confiança pois os Operadores de CCTV são incumbidos da atividade de fiscalização das irregularidades cometidas no Casino, ou pelo Estado (através do Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos) ou pela Direção de Jogo do Casino, sendo que o sistema CCTV das salas de jogo dos casinos é propriedade do Estado (facto provado n.º 8).

AAAA)   Dos factos assentes e da matéria dada como provada (mormente a constante dos factos provados n.ºs 6, 9 a 15, 17, 18 a 21, 26 a 29 e 31 a 34), resulta a violação, por parte do Recorrido, de diversas disposições do Regulamento dos CCTV e a gravidade dos factos por ele praticados.

BBBB)   Os factos de que o Visado na investigação era suspeito (concessão de empréstimos e usura) revestiam especial gravidade, sendo suscetíveis de configurar contraordenação ou crime, o que era do conhecimento de todos os operadores de CCTV da Recorrida, cabendo ao Serviço de Inspeção de Jogos a análise das situações suspeitas reportadas.

CCCC)  Note-se que o incorreto desempenho das funções por parte dos operadores de CCTV pode acarretar, não só responsabilidade contraordenacional dos Operadores, mas sanções para o próprio concessionário, pelo facto de poder haver suspeita de que este oculta irregularidades cometidas no Casino que explora. O facto de, in casa, tal não ter sucedido, não retira qualquer gravidade à conduta do Recorrido.

DDDD) O que se pretendia dos operadores de CCTV foi definido pelo Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos que "solicitou que fosse efetuado um acompanhamento pormenorizado do referido frequentador HH, através do referido sistema de CCTV na sala de jogo, desde a sua entrada até à sua saída das instalações do Casino, para verificação da existência de comportamentos irregulares e suspeitos, dentro da metodologia habitual destes casos, devendo ser reportadas quaisquer situações relacionadas com esse Visado, incluindo compra e venda de fichas nas caixas, a entrega ou recebimento de fichas/dinheiro de outros frequentadores" (facto provado n.º 15)

EEEE)   O Recorrido omitiu todos os factos que indiciavam a existência de empréstimos por parte do Visado nos dias 22 de dezembro de 2018 e no dia 17 de janeiro de 2019 e omitiu os mais relevantes que ocorreram no dia 13 de janeiro de 2019.

FFFF) Parece evidente que é inadmissível e mina por completo qualquer relação de confiança do empregador na pessoa que tem funções de confiança e que assume um papel relevante em qualquer investigação, como é caso do Recorrido, que este, perante as suspeitas da Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos da possível prática de um crime (ou contraordenação) por parte de um cliente, e do pedido desta entidade para realizar a investigação, tivesse ocultado as ocorrências, i.e. elaborado relatórios que se revelaram falsos, i.e. contrários à verdade.

GGGG) Este tipo de comportamento quebra, de forma irremediável, a confiança que deve pautar a relação entre empregador e trabalhador e, ao ocultar factos que devia ter relatado, poderia ter colocado ainda em sério risco a imagem e o bom nome da Recorrente, podendo esta vir a ser sancionada e, no limite, perder a concessão (art. 119.º do DL n.º 422/89, de 2 de dezembro - Lei do Jogo), caso se verificasse violação reiterada da legislação do jogo [al. f)] ou a inexecução continuada das obrigações contratuais assumidas peia concessionária [al. g)].

HHHH) Na apreciação que o Tribunal da Relação ……… fez sobre a existência de justa causa é dada grande relevância à circunstância de o Recorrido ter uma antiguidade de 31 anos, sem qualquer antecedente disciplinar.

IIII) Não obstante esta circunstância assumir, em regra, relevância, o certo é que em situações como a dos presentes autos em que se verifica uma quebra total da relação de confiança torna-se irrelevante a antiguidade do trabalhador pois o seu comportamento foi de tal forma grave que fez quebrar de forma irremediável a relação de confiança., o que, aliás, tem sido a posição da jurisprudência dos nossos tribunais.

JJJJ) Ou seja, a quebra de confiança não deixa de existir (ou é menor) pelo facto de o trabalhador estar há largos anos ao serviço do empregador. Antes pelo contrário!...

KKKK)  Ficou assim cabalmente demonstrado que o Recorrido não exerceu as suas funções com zelo e diligência, não cumpriu as ordens e instruções do empregador respeitantes a execução ou disciplina do trabalho, não guardou lealdade ao empregador nem promoveu ou executou todos os atos tendentes à melhoria da produtividade da empresa e não executou as funções previstas no Regulamento do CCTV da forma prevista neste e na Lei do Jogo.

LLLL) Com a sua conduta, o Recorrido poderia ter causado prejuízos à Recorrente mas, ainda que tal não tenha ocorrido in casu, afetou, de fornia irremediável, a confiança que esta nele depositava.

MMMM) Ao trair essa confiança, o Recorrido deu causa à cessação do seu contrato de trabalho.

NNNN)  O Tribunal da Relação não atendeu à circunstância de o exercício das funções de Operador de CCTV requerer a confiança absoluta do empregador no    trabalhador, não só pelas finalidades do sistema de CCTV, nomeadamente assegurar o interesse e ordem pública da atividade concessionada, como pelo facto de esse sistema ser propriedade do Estado.

OOOO) In casu, é inequívoco que o Recorrido comprometeu, de forma irremediável, aquela confiança. Não é exigível que o empregador mantenha ao serviço um trabalhador que, conhecendo a importância das visualizações requeridas pelo representante do Estado no Casino (o Inspetor do Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos), mostra um total desinteresse pelo cumprimento das suas obrigações, não analisando com o cuidado que lhe era exigido (ou até analisando, mas não reportando) as imagens gravadas relativas ao comportamento de um suspeito.

PPPP) Em suma, perante a gravidade dos vários factos praticados pelo Recorrido e a especial confiança que se exige a um trabalhador com as funções deste, não é exigível que o empregador mantenha a relação laboral porquanto os mesmos implicaram uma perda total de confiança no Recorrido, gerando dúvidas fundadas sobre o comportamento futuro deste. Os comportamentos do Recorrido foram aptos a defraudar e a abalar seriamente a confiança que a Recorrente nele depositava, pressuposto básico da manutenção do vínculo laboral. Desaparecendo tal confiança não é, de todo, exigível à Recorrente, que mantivesse o contrato de trabalho com o Recorrido.

QQQQ) A Recorrente agiu proporcional e adequadamente, dentro dos estritos limites legais, pois não havia outra sanção que valorasse a conduta do Recorrido.

RRRR)   O despedimento do Recorrido foi lícito, porque com justa causa, pelo que a decisão a que chegou o Tribunal da Relação deve ser revogada e substituída por outra que considere o despedimento lícito.

SSSS) O douto acórdão recorrido violou, por errada interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 483.º e 487.º, n.º 2, do Código Civil, 330.º, n.º 1, 351.º e 381, n.º 1 e n.º 2, als. a), d) e e) do Código do Trabalho e 607.º, 640.º e 662.º, do Código de Processo Civil

6. O Autor apresentou resposta, tendo concluído:

1. A lei, no n.º 1 do artigo 639.º do CPC impõe que as conclusões tenham a forma sintética  ̶  o que manifestamente não acontece nas conclusões da recorrente (recurso de 142 páginas em 96 conclusões confusas).

2. O Tribunal da Relação confirmou a decisão da 1.ª instância — pelo que existe dupla conforme.

3. A dupla conforme afere-se em função da decisão final e não de partes da fundamentação da decisão ou de matérias ou questões apreciadas (Ac. STJ de 14-01-2021 - relatora Maria da Graça Trigo)

4. O acórdão recorrido não se estriba decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1.ª instância  ̶   pelo que é irrecorrível.

5. Salvo situações de exceção, o Supremo Tribunal de Justiça só conhece matéria de direito, sendo as decisões proferidas pela Relação no plano dos factos, em regra, irrecorríveis (art.º 46.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário - Lei n.º 62/13, de 26 de agosto - e arts. 662.º, n.º 4, 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 2 do CPC).

6. Não sendo admissível a revista, não haverá lugar à apreciação da eventual existência de erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais, nos termos do n.º 3 do citado art.º 674.º, por este não constituir um fundamento autónomo de admissibilidade da revista. — Ac. de 17-11-2020 (relator Fernando Samões)

7. De acordo com o disposto no artigo 682.º, n.º 2, do CPC, no recurso de revista, não é consentido ao Supremo Tribunal de Justiça alterar a decisão proferida pelo Tribunal recorrido quanto à matéria de facto.

8. No nosso sistema de recursos em processo civil, o qual se aplica subsidiariamente ao processo laboral, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça está em princípio reservada ao conhecimento da matéria de direito, funcionando como última instância de controle da fixação da matéria de facto os Tribunais da Relação. (Ac. do Tribunal Constitucional n° 561/2014 de 27-11-2014). Aí se refere que a nossa Constituição não garante um segundo grau de jurisdição.

9. A definitividade do julgamento da matéria de facto no tribunal da relação só conhece as duas exceções consagradas no art. 674.º-3 CPC, sem prejuízo de o STJ poder, nos termos do art. 682.º-3 CPC, ordenar a baixa do processo ao tribunal recorrido quando haja contradição nas respostas por este dadas às questões de facto.

10. No presente recurso não está em causa a ofensa expressa de lei que exija prova vinculada ou que estabeleça o valor de determinado meio probatório (n.º 3 do art. 674.º e n.º 2 do art. 682°, ambos, do CPC) que justifique a revista acessória.

11. Dos alegados vícios que a recorrente imputa ao acórdão da relação apenas caberia reclamação para o próprio Tribunal da Relação nos termos do n.º 4 do artigo 615° (o que a recorrente não fez)

12.  As expressões adverbiais empregues na formulação normativa do n.1, e alínea a) do artigo 672.º ("excecionalmente" e "claramente necessária") não consentem que se invoque como fundamento da revista excecional a mera discordância quanto ao decidido pela Relação. Não é suficiente a verificação de uma qualquer divergência interpretativa, sob pena de vulgarização do referido recurso em situações que não estiveram no espectro do legislador. O que a recorrente pretende é um terceiro grau de jurisdição!

13. Constituindo um instrumento processual em que fundamentalmente se pretendem tutelar interesses ligados à "melhor aplicação do direito", a intervenção do Supremo apenas se justifica em face de questões cujo relevo jurídico seja indiscutível — o que não sucede no caso presente.

14. A questão jurídica suscitada pela recorrente (além de ser uma questão nova) não apresenta um carácter paradigmático, e exemplar, que possa ser transponível para outras situações, não assumindo relevância autónoma e independente em relação aos interesses das partes nestes autos, não se verificando também, pelas mesmas razões, que os interesses que estão em causa tenham a particular relevância social exigida pela lei, na medida em que os valores a ponderar, não se sobrepõem ao mero interesse subjetivo da parte interessada no acesso a um terceiro grau de jurisdição.

15. Portugal ratificou a Convenção n.º 158 da OIT sobre a cessação da relação do trabalho por iniciativa do empregador (Resolução n.º 55/94 da Assembleia da República e Decreto do Presidente da República n.º 68/94 publicados no DR, 1.ª série A, n.º 198 de 27/08/1994), estando-lhe associada a Recomendação n.º 166 (1982) da OIT que identifica não. só procedimentos que o empregador deve adotar antes de efetivar o despedimento, como a necessidade de dirigir um aviso prévio escrito ao trabalhador cujo desempenho se revele insatisfatório, concedendo-lhe um prazo razoável para modificar a sua conduta.

7. Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que

8. Nas suas conclusões, a recorrente suscita as seguintes questões que cumpre solucionar:

a) Saber se o Tribunal da Relação violou o disposto no art.º 662.º do CPC, ao rejeitar parcialmente a apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, no que respeita aos factos que foram dadas como não provados 1,2 e 3; 6 e 10; 4, 5, 7, 8, e 9, que no entender da recorrente deviam ter sido considerados provados;

b) Saber se o acórdão recorrido enferma de nulidade, por omissão de pronúncia sobre o pedido da Recorrente de revogação da sua condenação no pagamento de indemnização a título de danos não patrimoniais;

c) Saber se o despedimento foi lícito por ter existido justa causa.

                                                           II
A) Fundamentação:

Como já se referiu, a recorrente começa por suscitar a questão de saber se o Tribunal da Relação violou o disposto no art.º 662.º do CPC, ao rejeitar parcialmente a apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, no que respeita aos factos que foram dadas como não provados 1,2 e 3; 6 e 10; 4, 5, 7, 8, e 9, que no seu entender deviam ter sido considerados provados.

Para apreciar esta questão não se apresenta relevante a transcrição da matéria de facto dada como provada, importando sim averiguar se a recorrente cumpriu ou não os ónus impostos pelo art.º 640.º do Código de Processo Civil.

O referido artigo 640.º do Código de Processo Civil, com a epígrafe «Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto» estatui o seguinte:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 - O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.

A atual redação desta disposição legal foi introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, e encontra correspondência, embora com algumas alterações, no art.º 685.º do anterior Código de Processo Civil, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24/8.

António Santos Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016 – 3.ª Edição, Almedina, pág. 136 e seguintes) refere que as alterações mais salientes introduzidas na nova redação caracterizam-se pelo reforço do ónus de alegação, devendo o recorrente, sob pena de rejeição, indicar a resposta que, no seu entender, deve ser dada às questões de facto impugnadas, e relativamente a provas gravadas basta ao recorrente a indicação exata das passagens da gravação, não sendo obrigatória em caso algum a sua transcrição.

O citado autor, numa apreciação da evolução histórica do instituto da «Modificabilidade da decisão de facto», sublinha que a possibilidade de alteração da matéria de facto deixou de ter carácter excecional para se assumir como uma função normal do Tribunal da Relação, verificados que estejam os requisitos impostos pela lei. No entanto, adverte que «Nesta operação foram recusadas soluções que pudessem reconduzir-nos a uma repetição do julgamento, tal como foi rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, tendo o legislador optado por abrir apenas a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente».

O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se, em diversos acórdãos, sobre o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, firmando uma linha jurisprudencial que iremos procurar sintetizar.

No que diz respeito ao enquadramento processual da rejeição da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, o Supremo Tribunal de Justiça considerou no acórdão de 3/12/2015, proferido no processo n.º 3217/12.1TTLSB.L1.S1 (Revista-4.ª Secção), que se o Tribunal da Relação decide não conhecer da reapreciação da matéria de facto fixada na 1.ª instância, invocando o incumprimento das exigências de natureza formal decorrentes do artigo 640.º do Código de Processo Civil, tal procedimento não configura uma situação de omissão de pronúncia.

No mesmo acórdão refere-se que o art.º 640.º, do Código de Processo Civil exige ao recorrente a concretização dos pontos de facto a alterar, assim como dos meios de prova que permitem pôr em causa o sentido da decisão da primeira instância e justificam a alteração da mesma e, ainda, a decisão que, no seu entender deve ser proferida sobre os pontos de facto impugnados.

Acrescenta-se que este conjunto de exigências se reporta especificamente à fundamentação do recurso não se impondo ao recorrente que, nas suas conclusões, reproduza tudo o que alegou acerca dos requisitos enunciados no art.º 640.º, n.ºs 1e 2 do CPC.

Por fim, conclui-se que versando o recurso sobre a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, importa que nas conclusões se proceda à indicação dos pontos de facto incorretamente julgados e que se pretende ver modificados.

A propósito do conteúdo das conclusões, o acórdão de 11-02-2016, proferido no processo n.º 157/12.8 TUGMR.G1.S1 (Revista) – 4.ª Secção, refere que tendo a recorrente identificado no corpo alegatório os concretos meios de prova que impunham uma decisão de facto em sentido diverso, não tem que fazê-lo nas conclusões do recurso, desde que identifique os concretos pontos da matéria de facto que impugna (Cfr. no mesmo sentido acórdãos de 18/02/2016, proferido no processo n.º 558/12.1TTCBR.C1.S1, de 03/03/2016, proferido no processo n.º 861/13.3TTVIS.C1.S1, de 12/05/2016, proferido no processo n.º 324/10.9TTALM.L1.S1 e de 13/10/2016, proferido no processo n.º 98/12.9TTGMR.G1.S1, todos da 4.ª Secção).

No que diz respeito à exigência prevista na alínea b), do n.º 1, do art.º 640.º do Código de Processo Civil, o acórdão de 20-12-2017, proferido no processo n.º 299/13.2TTVRL.C1.S2 (Revista) - 4ª Secção, afirma com muita clareza que quando se exige que o recorrente especifique «[o]s concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida», impõe-se que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos.

Quanto ao caso em análise no aludido acórdão referiu-se que não cumpre aquele ónus o apelante que, nas alegações e nas conclusões, divide a matéria de facto impugnada em três «blocos distintos de factos» e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna.

Acerca da natureza do ónus de alegação, quando se pretenda impugnar a matéria de facto, o acórdão de 09-02-2017, proferido no processo n.º 471/10.7 TTCSC.L1.S1 (Revista – 4.ª Secção), sublinhou que «Ao impor um ónus especial de alegação quando se pretenda impugnar a matéria de facto, com fundamento na reapreciação da prova gravada, o legislador pretendeu evitar que o impugnante se limite a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo simplesmente a reapreciação de toda a prova produzida em primeira instância, daí que o prazo acrescido de 10 dias só seja aplicável quando o recorrente o use efetivamente para impugnar a matéria de facto».

Finalmente, na linha da doutrina (Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016-3.ª Edição, Almedina, pág. 142), o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que quando o recorrente não cumpra o ónus imposto no art.º 640.º do Código de Processo Civil não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento, que está reservado para os recursos da matéria de direito (Cfr. acórdãos de 7/7/2016, proferido no processo n.º 220/13.8TTBCL.G1.S1 e de 27/10/2016, proferido no processo n.º 110/08.6TTGDM.P2.S1, ambos da 4.ª Secção).

Mais recentemente, a propósito desta problemática, a Secção Social deste Supremo Tribunal voltou a sublinhar:

- A alínea b), do n.º 1, do art.º 640.º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique “[o]s concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”, impõe que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos.

- Não cumpre aquele ónus o apelante que, nas alegações e nas conclusões, agrega a matéria de facto impugnada em blocos ou temas e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna. (Acórdão de 19-12-2018, proferido no Proc. n.º 271/14.5TTMTS.P1. S1 e Acórdão de 05-09-2018, proferido no Proc. n.º 15787/15.8T8PRT.P1. S2.)

- Da conjugação do art.º 640.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código de Processo Civil, com o disposto no art.º 639.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, resulta que o recorrente que pretenda impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto tem de fazer consignar nas suas conclusões os concretos pontos de facto que pretende impugnar e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida. (Acórdão de 31-10-2018, proferido no Proc. n.º 2820/15.2T8LRS.L1. S1.)

- Na verificação do cumprimento dos ónus de alegação previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

- Limitando-se o Recorrente a afirmar, tanto na alegação como nas conclusões, que, face aos concretos meios de prova que indica, “se impunha uma decisão diversa”, relativamente às questões de facto que impugnara, deve o recurso ser rejeitado quanto à impugnação da matéria de facto, por não cumprimento do ónus processual fixado na alínea c), do n.º 1, do artigo 640.º, do Código de Processo Civil. (Acórdão de 06-06-2018, proferido no Proc. n.º 1474/16.3T8CLD.C1. S1.)

- Não cumpre o ónus imposto pelo n.º 2, al. a), do artigo 640.º do Código de Processo Civil - indicação exata das passagens da gravação em que se funda a sua discordância - o recorrente que nem indicou as passagens da gravação, nem procedeu à respetiva transcrição e se limitou a fazer um resumo, das partes pertinentes desses depoimentos. (Acórdão de 06-06-2018, proferido no Proc. n.º 125/11.7TTVRL.G1. S1.)

 

- Sendo as conclusões não apenas a súmula dos fundamentos aduzidos nas alegações stricto sensu, mas também e sobretudo as definidoras do objeto do recurso e balizadoras do âmbito do conhecimento do tribunal, no caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente indicar nelas, por referência aos concretos pontos de facto que constam da sentença, aqueles cuja alteração pretende e o sentido e termos dessa alteração.

- Por menor exigência formal que se adote relativamente ao cumprimento dos ónus do art.º 640.º do Código de Processo Civil e em especial dos estabelecidos nas suas alíneas a) e c) do n.º 1, sempre se imporá que seja feito de forma a não obrigar o tribunal ad quem a substituir-se ao recorrente na concretização do objeto do recurso.

- Tendo o recorrente nas conclusões se limitado a consignar a globalidade da matéria de facto que entende provada, mas sem indicar, por referência aos concretos pontos de facto que constam da sentença e que impugna, os que pretende que sejam alterados, eliminados ou acrescentados à factualidade provada, não cumpriu o estabelecido no art.º 640.º, n.º 1, als. a) e c) do Código de Processo Civil, devendo o recurso ser liminarmente rejeitado nessa parte. (Acórdão de 16-05-2018, proferido no Proc. n.º 2833/16.7T8VFX.L1. S1.)

- A exigência, imposta pelo art.º 640.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Civil, de especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, determina que essa concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, e quando gravados com a indicação exata das passagens da gravação em que se funda o recurso.

- Não cumpre aqueles ónus o apelante que, nas alegações não especificou os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou de gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida sobre os pontos da matéria de facto que pretendia impugnar, limitando-se a transcrever as declarações, a mencionar documentos, tomando como referência determinados tópicos que elencou. (Acórdão de 11-04-2018, proferido no Proc. n.º 789/16.5T8VRL.G1. S1.)

̶  As coordenadas estabelecidas pelo Supremo Tribunal de Justiça no que concerne à interpretação do disposto no artigo 690.º do Código de Processo Civil, referente ao ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, visam evitar soluções que possam conduzir a uma repetição total do julgamento, em virtude de recursos genéricos contra uma decisão da matéria de facto alegadamente errada, observando-se assim a opção do legislador de viabilizar apenas uma reapreciação de questões concretas, relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente, permitindo deste modo um efetivo exercício do contraditório por parte do recorrido.

̶ A verificação do cumprimento dos ónus de alegação previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil, no que respeita aos aspetos de ordem formal, deve ser norteada pelo princípio da proporcionalidade e da razoabilidade.

̶ Não cumprem o ónus imposto pelo art.º 640.º, n.º 1, alíneas b) e c) e n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil os recorrentes que não concretizaram, por referência a cada um dos mencionados factos que impugnaram, quais os meios probatórios que, no seu entender, imporiam decisão diversa daquela que foi dada pelo Tribunal de 1.ª Instância, não indicando também a decisão que, no seu entender, devia ser proferida sobre a matéria de facto, relativamente a determinados factos impugnados (Acórdão do STJ de 6/11/2019, Processo n.º 1092/08.0TTBRG.G1.S1).

̶ A exigência, imposta pelo art.º 640.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil, de especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, determina que essa concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, e quando gravados com a indicação exata das passagens da gravação em que se funda o recurso.

̶  Quando o conjunto de factos impugnados se refere à mesma realidade e os concretos meios de prova indicados pelo recorrente sejam comuns a esses factos, a impugnação dos mesmos em bloco não obstaculiza a perceção da matéria que se pretende impugnar, pelo que deve ser admitida a impugnação (Acórdão do STJ de 19/5/2021, Processo 4925/17.6T80AZ.P1.S1)

          ̶  É excessiva a rejeição da impugnação da matéria de facto feita em “blocos” quando tais blocos são constituídos por um pequeno número de factos ligados entre si, tendo o Recorrente indicado com precisão os meios de prova e as formulações alternativas que pretendia ver adotadas. (Acórdão de 14-07-2021, Proc. n.º 19035/17.8T8PRT.P1.S1)

                                                           *

Na verdade, toda a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça sobre a problemática em causa é norteada pelo princípio da proporcionalidade, havendo sempre a preocupação de efetuar uma análise rigorosa em face de cada caso concreto.

Nessa linha, as coordenadas estabelecidas pelo Supremo Tribunal de Justiça visam evitar soluções que possam conduzir a uma repetição total do julgamento, em virtude de recursos genéricos contra uma decisão da matéria de facto alegadamente errada, observando-se assim a opção do legislador de viabilizar apenas uma reapreciação de questões concretas, relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente, permitindo deste modo um efetivo exercício do contraditório por parte do recorrido.

Atenta a doutrina e jurisprudência que foram sendo firmadas, podemos concluir que o recorrente que pretenda impugnar a decisão da matéria de facto, deve:

– Concretizar cada um dos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

– Especificar os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, sendo que essa concretização deve ser feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos;

– Enunciar a decisão alternativa que propõe; 

– Indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda a sua discordância com o decidido (tratando-se de prova gravada).

                                                           *

Vejamos a argumentação que o Tribunal da Relação utilizou para rejeitar parcialmente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

«II.4.1.6 Segue-se a impugnação relativa aos factos não provados n.ºs 1, 2 e 3 [Conclusão I], nos quais lê-se o seguinte:

- “1. O Senhor CC, Chefe de Secção dos CCTV, notou que o Autor não demonstrou o empenho a que habitou os seus Colegas, chegando mesmo o Autor a perguntar ao referido Chefe de Secção, quanto ao dia 17 de janeiro de 2019, se este dia era mesmo para ver.

2. Perante esta pergunta, o Senhor CC respondeu que esse era um dos dias que necessitava de ser visto”.

3. O Senhor CC estranhou o comportamento do Autor, pois noutras situações era muito rigoroso e minucioso”.

A recorrente estriba-se nos testemunhos do Sr. CC e da Sra. Dra. II.

Quanto ao primeiro, transcreve vários extratos e identifica a sua localização na gravação, para com base neles defender que “(..) ao desvalorizar o depoimento da testemunha Sr. CC em prol das declarações de parte do Apelado, o Tribunal a quo decidiu dar mais importância “à versão dos factos” do Apelado (..).  .. [..] Por outro lado, tendo em conta os depoimentos transcritos anteriormente, não se compreende, igualmente, a segunda parte da fundamentação da decisão recorrida (…)”.

No que concerne à segunda testemunha, limita-se a dizer “Relativamente a esta questão ver, igualmente, depoimento prestado pela Sra. Dra. II transcrito infra no ponto 180”.

Prossegue, depois, com várias considerações que se reportam genericamente aos três factos não provados, para concluir como segue:

- «128. A comparação da atitude habitual do Apelado e o pouco afinco que foi percecionado pelo Sr. CC na situação referente às visualizações dos movimentos do Visado levariam qualquer pessoa a considerar estranho o comportamento do Apelado.

129. Tendo em conta a prova produzida, incluindo o depoimento prestado pela testemunha, os factos dados como não provados n.ºs 1, 2 e 3 devem ser considerados por provados e como tal devem ser incluídos na lista dos factos provados para devida ponderação na decisão de direito».

Verifica-se, pois, que a recorrente não faz uma impugnação individualizada e concreta relativamente a cada um dos factos impugnados, especificando e delimitando as partes do testemunho que relevam para cada um dos factos impugnados, considerados individualmente, nem procede aos respetivos juízos críticos nos mesmos termos, para desse modo justificar, facto a facto, a pretendida alteração. Diversamente, impugna esses factos em conjunto, isto é, num só bloco.

Assim sendo, nesta parte rejeita-se a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, por inobservância dos ónus devidos (art.º 640.º, n.º 1, alínea b), do CPC).

II.4.1.7 Prosseguimos para a impugnação dirigida aos factos não provados n.ºs 6 e 10, onde se lê:

-“6. A conduta do Autor é suscetível de gerar prejuízos não só para a Empresa como para o Estado.”

“10. A conduta do trabalhador é suscetível de prejudicar a boa imagem do estabelecimento e de causar graves prejuízos ao empregador, bem como criar sérias contingências com o Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos e o Estado.”.

A recorrente deveria que tal deve considerar-se provado, “pelas razões constantes supra nos pontos 130 a 145 destas alegações, atendendo nomeadamente ao depoimento de parte da Apelante [prestado no dia 13 de novembro de 2019, (..) e ao depoimento do Sr. BB”, inspetor do serviço de jogos.

Verifica-se, também aqui, que a recorrente não faz uma impugnação individualizada e concreta relativamente a cada um dos pontos impugnados, especificando e delimitando as partes do testemunho que relevam para cada um deles, considerados individualmente, nem procede aos respetivos juízos críticos nos mesmos termos, para desse modo justificar, distintamente para cada um deles, a pretendida alteração. Pelo contrário, impugna-os em conjunto, isto é, num só bloco.

Assim, a apreciação desta parte da impugnação deve ser rejeitada por inobservância dos ónus devidos (art.º 640.º, n.º 1, alínea b), do CPC).

Mas ainda que assim não fosse, sempre improcederia a impugnação.

Com efeito, o que se pretende provado enquadra-se manifestamente no que se entende como alegações conclusivas. Em qualquer dos pontos nada se precisa nem concretiza, apenas resultando a afirmação genérica de juízos valorativos, sobre a suscetibilidade da conduta do autor gerar prejuízos para a Empresa e para o Estado, assim como de criar sérias contingências com o Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos e o Estado.

Cabia à recorrente alegar concreta e precisamente, quais os prejuízos e contingências que foram gerados. Só a alegação de factos concretos nesse sentido era suscetível de prova.

II.4.1.8 Avançamos para impugnação sobre a matéria de facto na parte em que visa os factos não provados n.ºs 4, 5, 7, 8 e 9, onde consta o seguinte:

-4. O Autor sabia que, com os comportamentos descritos supra, incumpria as normas do Regulamento dos CCTV, além do Decreto-Lei n.º 422/89 e respetiva regulamentação, por si conhecida.

5. O Autor tem conhecimento de que os comportamentos do frequentador/Visado são passíveis de constituir infrações, no âmbito de responsabilidade criminal e contraordenacional.

7. Com esta conduta, o Autor sabia que, ao atuar como atuou, violava os referidos deveres laborais e as regras definidas pelo Empregador, pelo Serviço de Inspeção de Jogos e decorrentes da lei, bem como que poderia causar graves prejuízos a estes.

8. O Autor omitiu informações relevantes no âmbito da investigação em curso.

9. O Autor não verificou sistematicamente, de forma rigorosa, as imagens, não tendo detetado situações irregulares, omitindo essas informações, considerando principalmente a sua experiência na área e capacidade técnica.

Defende a Recorrente que esses pontos devem ser dados como provados, atendendo nomeadamente aos depoimentos das testemunhas do Sr. CC, do Sr. FF, da Sra. Dra. II, da Sra. Dra. GG e do Sr. BB.

Alega que da conjugação de tais depoimentos resulta inequívoca a verificação dos pontos de facto em questão.

A impugnação dirigida a estes factos inicia-se no art.º 146 das alegações e estende-se até ao art.º 192.º, constando de fls. 62 a 116.

Ao longo desses artigos, a recorrente procura pôr em causa a convicção afirmada pelo Tribunal a quo na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, fazendo considerações sobre as mesmas no sentido de manifestar a sua discordância, para depois invocar em abono da sua convicção, que contrapõe àquela, extensos extratos dos testemunhos que invoca. Por exemplo, a transcrição do depoimento da testemunha FF inicia-se a fls. 70 e termina a fls. 88, abrangendo, em termos práticos, a quase totalidade das respostas que deu às questões colocadas pela ilustre mandatária da recorrente, situadas na gravação entre os minutos 17:44 e o minuto 46:32.

No extenso percurso alegatório com aquele propósito, refere, no essencial, que [art.º 155º] “as condutas que não foram reportadas e que o Apelado omitiu nos seus relatórios “e que [art.º 164.º] “os operadores que procederam à visualização das imagens claramente disseram em sede de audiência de julgamento que aquelas imagens eram claras”, vindo a concluir [art.º 165.º] que “Desta (longa, mas elucidativa) transcrição [refere-se à transcrição do depoimento da testemunha FF] resulta inequivocamente a prova de que as irregularidades não eram difíceis de ver/detetar”.

Mais adiante, passa a dizer que [art.º 172.º] “Do exposto resulta que, precisamente por ser bastante difícil detetar situações em direto (pelas limitações técnicas e de gestão de trabalho diário dos CCTV), foi necessário fazer um visionamento das imagens gravadas”, para depois salientar [art.º 175.º] “que, desde o início, foram bem estabelecidas as finalidades da investigação e o cuidado que se deveria ter na visualização das imagens – tarefa essa concreta e que consistia no acompanhamento daquele específico frequentador e das suas condutas, sabendo de antemão o que tinham que procurar (e consequentemente reportar)”.

Numa outra referência, [art. º182.º] diz que “A circunstância de se invocar as especiais competências do Apelado serve tão-só para demonstrar que operadores com menos capacidades detetaram as irregularidades, pelo que, tendo o Apelado mais capacidades, era impossível não ter visto as irregularidades e, nessa medida, optou por deliberadamente não as reportar e/ou ver”.

Mais adiante, refere que [art.º185] “Existe, assim, um indício claro de que essa amizade faz o Apelado quebrar as instruções dadas pelo Inspetor de Jogos, dado que, quando o frequentador ia ser expulso, o Inspetor de Jogos comunicou aos operadores que iria expulsar esse frequentador e pediu confidencialidade aos operadores (ver infra ponto 189) e o Apelado optou por deliberadamente violar esse dever sigilo em prol de uma “proteção” ou especial “cuidado” relativamente à filha do Visado, Sra. Dra. GG”, para depois afirmar que o autor atuou “[art.º 188] Claramente com uma intenção de proteção da filha do Visado (caso contrário também teria cumprido as ordens do Inspetor de Jogos de não divulgar que o Visado iria ser expulso)

… É evidente que esta relação de amizade terá feito com o que o Apelado violasse de forma flagrante e grave os seus deveres para com a Apelante e o próprio Estado.

E, para sustentar essa afirmação, prossegue [art.º 189.º], fazendo apelo a passagens do testemunho do Inspetor de Jogos, Sr. BB – que depois transcreve extensamente (de fls. 107 a fls. 115), não sem antes referir que aquele “desde o início não pretendia que o Apelado participasse nessa investigação – porque desconfiava dele por causa de comentário que este tinha feito dizendo que o Inspetor de Jogos estava a expulsar muitos frequentadores – e que, quando o Inspetor decidiu expulsar o Visado, pediu confidencialidade aos operadores de CCTV, incluindo o Apelado, e, no dia da expulsão, o Visado simplesmente desaparece do interior do casino, após receber uma chamada telefónica”.

Conclui a alegação que sustenta esta parte da impugnação, nos termos seguintes:

191. A verdade dos factos é que o Apelado omitiu (palavra que demonstra intenção e que não pode ser confundida com preterir ou olvidar como se afirma na sentença – até por todo o enquadramento que é dado no articulado motivando o despedimento) factos, não reportou situações que estava obrigado a incluir no seu relatório, incumprindo deliberadamente os seus deveres laborais e os previsto no regulamento de CCTV, não verificando de forma rigorosa as imagens com vista a detetar situações irregulares e tendo conhecimento de que os comportamentos do frequentador eram passíveis de constituir infrações.

192. Face ao exposto, e à prova produzida, devem dar-se como provados os factos não provados n.ºs 4, 5, 7 a 9 da sentença recorrida.

Em suma, como procurámos ilustrar, a impugnação destes factos também é feita em bloco, sem especificação dos concretos meios probatórios, nomeadamente, das passagens dos testemunhos que invoca, devidamente individualizadas relativamente a cada um deles, acrescendo que não existe também uma análise critica, facto a facto, visando demonstrar a este Tribunal ad quem as razões concretas e precisas que, facto a facto, justificariam as alterações no sentido pretendido.

No rigor das coisas, o que a recorrente pretende é um segundo julgamento da causa quanto àquele leque de questões, para que sejam apreciadas no conjunto e atendendo globalmente a determinados meios de prova.

Assim, também aqui, considera-se que a recorrente não observou integralmente os ónus de impugnação, nomeadamente, os decorrentes da alínea b), do n.º 1, do art.º 640.º do CPC. Parafraseando o já citado acórdão do STJ de 05-09-2018 [Proc.º 15787/15.8T8PRT.P1. S2, Conselheiro Gonçalves Rocha, disponível em www.dgsi.pt]:

I - A alínea b), do nº 1, do art. 640º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, exige que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos.

II - Não cumpre aquele ónus o apelante que, nas alegações e nas conclusões, divide a matéria de facto impugnada em vários blocos de factos e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna.

Concluindo, nesta parte rejeita-se a apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.»

(fim da transcrição parcial da fundamentação do acórdão do Tribunal da Relação).

                                                           *

O Tribunal da Relação, na análise que efetuou, agrupou os factos em causa, em três grupos, o primeiro referente aos factos 1, 2 e 3, o segundo referente aos factos 6 e 10 e o terceiro referente aos factos 4,5,7,8 e 9.

Os factos 1,2 e 3, referem-se a uma ocorrência que teve lugar no dia 17 de janeiro de 2019 protagonizada pelo Chefe de secção dos CCTV e o Autor, e estão ligados entre si, tendo a Recorrente indicado os meios de prova que, no seu entender, habilitam a considerá-los provados.  

Os factos 6 e 10 prendem-se com uma mesma realidade que tem a ver com os efeitos da alegada conduta do Autor em relação à Empresa e ao Estado, tendo a Recorrente indicado a prova que considera pertinente para que sejam dados como provados.

Os factos 4,5,7,8 e 9 referem-se também a uma mesma realidade inerente à conduta do Autor e aos seus conhecimentos para o exercício das funções que desempenhava, tendo a Recorrente indicado os meios de prova com vista à sua pretensão.

Refira-se que embora alguns destes factos tenham uma componente conclusiva, como refere o Tribunal da Relação, ainda encerram um substrato que pode relevar para a decisão da causa.

Ora, como já se afirmou no Acórdão deste STJ de 19/5/2021, Processo 4925/17. 6T80AZ.P1. S1, quando o conjunto de factos impugnados se refere à mesma realidade e os concretos meios de prova indicados pelo recorrente sejam comuns a esses factos, a impugnação dos mesmos em bloco não obstaculiza a perceção da matéria que se pretende impugnar, pelo que deve ser admitida a impugnação.

Na linha deste Acórdão, foi reafirmado pelo mesmo Tribunal em 14-07-2021, Proc. n.º 19035/17.8T8PRT.P1. S1, que é excessiva a rejeição da impugnação da matéria de facto feita em “blocos” quando tais blocos são constituídos por um pequeno número de factos ligados entre si, tendo o Recorrente indicado com precisão os meios de prova e as formulações alternativas que pretendia ver adotadas.

Entendemos, assim, que o Tribunal da Relação deve apreciar a impugnação da matéria de facto deduzida pela apelante no que concerne aos factos referidos.

Atenta a solução dada a esta questão ficam prejudicadas as restantes questões objeto da presente revista.

III

Decisão:

Face ao exposto, acorda-se em conceder a revista, devendo os autos baixar ao Tribunal da Relação, para que seja proferida nova decisão após a apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto referida.

Custas pela parte vencida a final.

Anexa-se sumário do acórdão.

Lisboa, 27 de outubro de 2021.

Chambel Mourisco (Relator)

Maria Paula Moreira Sá Fernandes

Leonor Maria da Conceição Cruz Rodrigues