Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05P4403
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: OLIVEIRA MENDES
Descritores: CASO JULGADO
NON BIS IN IDEM
CRIME CONTINUADO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Nº do Documento: SJ200603150044033
Data do Acordão: 03/15/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :
I - O CPP de 1987, ao contrário do que sucedia com Código de Processo Penal pré-vigente, não regula de forma expressa ou implícita o instituto jurídico do caso julgado ou da exceptio judicati, sendo certo que só em duas disposições a ele se refere, designadamente no art. 84.°, ao estatuir que a decisão penal, ainda que absolutória, que conhece do pedido cível constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis, e no art. 467.°, n.º l, ao estabelecer que as decisões penais condenatórias, uma vez transitadas, têm força executiva.
II - O recurso às normas do processo civil, nos termos do art. 4° do CPP, não se mostra adequado a colmatar esta omissão. Neste sentido se escreveu no Assento do STJ, de 27-01- 1993, publicado no DR I-A, de 10-03-1993, que os princípios que regem o caso julgado penal são produto de uma longa tradição e elaborada evolução, resultante da consideração do especial melindre da defesa dos direitos humanos e não se articulam adequadamente com as regras do caso julgado cível, o que implica que estas últimas não possam ser aplicadas, nos termos do art. 4.° do CPP, pelo que se entende, uma vez que a lei penal ainda não regulamentou os efeitos do caso julgado penal, terem de se considerar como ainda em vigor as disposições regulamentadoras do tema que constavam do anterior CPP, na medida em que traduzem os princípios gerais do direito penal vigente entre nós.
III - É evidente que a circunstância de a lei adjectiva penal vigente não regular o caso julgado não significa que o processo penal prescinde daquele instituto, consabido que nesta concreta área do Direito se sente com muito maior intensidade e acuidade a necessidade de protecção do cidadão contra situações decorrentes da violação do caso julgado, instituto que também encontra fundamento num postulado axiológico, qual seja o da justiça da decisão do caso concreto, para além de outros, com destaque para a garantia da segurança e da paz jurídicas.
IV - Aliás, a nossa Constituição consagra de forma irrefutável o caso julgado penal, ao dispor no seu art. 29.°, n.º 5, que: «Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime».
V - A expressão julgado mais do que uma vez não pode ser entendida no seu estrito sentido técnico-jurídico, tendo antes de ser interpretada num sentido mais amplo, de forma a abranger, não só a fase do julgamento, mas também outras situações análogas ou de valor equivalente, designadamente aquelas em que num processo é proferida decisão final, sem que, todavia, tenha havido lugar àquele conhecido ritualismo. É o que sucede com a declaração judicial de extinção da responsabilidade criminal por amnistia, por prescrição do procedimento ou por desistência de queixa, situações em que, obviamente, o respectivo beneficiário não pode ser perseguido criminalmente pelo crime ou crimes objecto da respectiva declaração de extinção da responsabilidade criminal.
VI - De igual modo, o inciso mesmo crime não deve nem pode ser interpretado no seu estrito sentido técnico-jurídico. Crime significa, aqui, um comportamento de um agente espáciotemporalmente delimitado e que foi objecto de uma decisão judicial, melhor, de uma, sentença ou de decisão que se lhe equipare.
VII - O termo crime não deve ser tomado ao pé-da-letra, mas antes entendido como uma certa conduta ou comportamento, melhor, como um dado de facto ou um acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui crime. É a dupla apreciação jurídico-penal de um determinado facto já julgado - e não tanto de um crime - que se quer evitar.
VIII - Entender o termo crime, empregue no n.º 5 do art. 29.º da CRP, como referência a um determinado tipo legal, a uma certa e determinada descrição típica normativa de natureza jurídico-criminal, seria esvaziar totalmente o conteúdo do preceito, desvirtuando completamente a sua ratio e em frontal violação com os próprios fundamentos do caso julgado. Um tal entendimento seria permitir - o que é inaceitável - que aquele que foi julgado e condenado por ofensas à integridade física (art. 43.° do CP) pudesse, pelos mesmos factos, ser segunda vez submetido a julgamento e eventualmente condenado por homicídio (art. 131.° do CP).
IX - O que referido preceito da CRP proíbe é, no fundo, que um mesmo e concreto objecto do processo possa fundar um segundo processo penal.
X - Fixado o sentido do termo crime, importa, ainda, precisar o que se deve entender por comportamento referenciado ao facto, como expressão da conduta penalmente punível, consabido que o instituto do caso julgado só funciona quando existe identidade de facto e de sujeitos de uma decisão irrevogável sobre a mesma questão, ou, por outras palavras, o que se deve entender por mesmo objecto processual.
XI - Ora, aquele não pode deixar de ser o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade, se submeteu à apreciação e julgamento de um tribunal. Daqui resulta que todos os factos praticados pelo arguido até decisão final e que directamente se relacionem com o pedaço da vida apreciado e que com ele formam uma unidade de sentido haverão de ser considerados como fazendo parte do «objecto do processo».
XII - Deste modo, de acordo com esta visão naturalística, ter-se-á de concluir que ainda que aqueles não tenham sido conhecidos ou tomados em consideração pelo tribunal, certo é não poderem ser posteriormente apreciados, já que a sua apreciação violaria frontalmente a regra ne bis in idem, entrando em aberto conflito com os fundamentos do caso julgado.
XIII - No dizer de Cavaleiro de Ferreira (Curso de Processo Penal, III, 1958, págs. 52-53), «Podem variar as circunstâncias, os elementos acidentais da actividade que constitui objecto do processo, mas não a própria acção. E por isso haverá caso julgado material quando se acusa em novo processo pela mesma acção, embora acrescida de novas circunstâncias, embora seja diferente o evento material que se lhe segue, embora seja diversa a forma de voluntariedade (dolo ou culpa)».
XIV - No mesmo sentido, fazendo porém apelo a um critério não coincidente, já que não naturalístico, mas essencialmente normativo, especialmente no que concerne à problemática atinente aos poderes cognitivos do juiz, pronunciou-se Eduardo Correia (Unidade e Pluralidade de Infracções - Caso julgado e Poderes de Cognição do Juiz), obviamente à luz da lei adjectiva de 1929, afirmando que o objecto ao qual é mister pôr o problema da identidade do facto como pressuposto do caso julgado há-de ser o próprio conteúdo da sentença, não só nos expressos termos em que é formulada, mas ainda naqueles até onde se podia e devia estender o poder cognitivo do tribunal. A força consuntiva de uma sentença relativamente a futuras condenações e processos há-de ser medida pelos devidos limites do seu objecto, ou seja, estender-se até onde o juiz tenha o poder e o dever de apreciar os factos submetidos ao seu julgamento. Pelos limites deste
dever de cognição há que medir o âmbito do conteúdo da sentença e, portanto, os termos da sua força consuntiva relativamente a futuras acusações.
XV - A esta luz, o problema de saber quais os limites da eficácia do caso julgado em matéria penal está, assim, logicamente condicionado por este outro de determinar até que ponto pode e deve ir a actividade cognitiva do juiz.
XVI - Mais adiante, o mesmo autor, ao debruçar-se sobre o conteúdo e âmbito do facto como pressuposto do caso julgado e da actividade cognitiva do juiz relativamente a situações de continuação criminosa refere que: «(…) se algumas actividades que fazem parte da continuação criminosa foram já objecto de sentença definitiva, ter-se-á de considerar consumido o direito de acusação relativamente a quaisquer outras que pertençam a esse mesmo crime continuado, ainda que elas de facto tivessem permanecido estranhas ao conhecimento do juiz. (…) Se o juiz se convence, na verdade, de que tais actividades constituem tão só elementos de um crime continuado, que já foi objecto de um processo, será forçado a concluir que elas deveriam ter sido aí apreciadas. Ainda, pois, que o não tivessem sido, tudo se passa como se assim fosse, estando, por isso, consumido e extinto o direito de as acusar e podendo-se opor sempre ao exercício da respectiva acção penal a excepção ne bis in idem» (ibidem, págs. 304-305).
XVII - «O problema oferece já, entretanto, certas dificuldades quando uma sentença anterior condenou alguém como autor de um crime único simples, ou como agente de um concurso de crimes, e é promovida nova acção penal com fundamento em factos que não foram objecto do conhecimento do primeiro juiz, mas que de harmonia com a convicção do segundo estão com os julgados numa relação de continuação» (ibidem).
XVIII - Semelhante «ponto de vista do segundo tribunal parece clamar pela conclusão de que o direito de acusação contra este novos factos se acha consumido, pois, na medida em que formam com o objecto do primeiro processo uma unidade, aí deveriam ter sido julgados.
(…) Na verdade, quando o juiz investiga e decide que certos factos estão em qualquer relação de unidade com outros apreciados numa sentença anterior, quando, pois, investiga sobre os limites da identidade do objecto processual, não pratica absolutamente nada que contradiga aquela decisão. O que tão-somente faz com isso é integrar o conteúdo de tal sentença, é perguntar até que ponto se deveria ter alargado a cognição do tribunal no primeiro processo, com vista a determinar em que limites se devem entender as coisas como julgadas» (ibidem).
XIX - «Nada impede, por conseguinte, considerar existente, para efeitos de determinação da identidade do objecto do processo, uma relação de continuação entre certos factos e outros já julgados, pois que desta sorte apenas se verificam os limites da unidade jurídica que deveria ter sido conhecida e que, como tal, se deve dizer apreciada e contida na primeira sentença» (ibidem).
XX - No caso dos autos, o arguido foi condenado, para além do mais, com autor de um crime de maus-tratos a cônjuge, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. a), do CP, por factos ocorridos em 2004, designadamente nos dias 5, 17 e 18 de Janeiro, 21 e 28 de Março, 1 de Maio, 3, 4, 9, 12 e 13 de Setembro, 31 de Outubro, e 1 e 6 de Novembro, sendo que havia sido condenado, em 07-06-2004, por sentença transitada em julgado, pela prática, em 10-12-2003, de factos integrantes de um crime de maus-tratos, na pena de 13 meses de prisão, com suspensão da sua execução por dois anos.
XXI - O objecto do processo, como enfaticamente se consignou, é constituído por todos os factos praticados pelo arguido até decisão final que directamente se relacionem com o pedaço da vida apreciado e que com ele formam uma unidade de sentido, razão pela qual, os factos que não tenham sido considerados, devendo tê-lo sido, não podem ser posteriormente apreciados, sob pena de violação da regra ne bis in idem.
XXII - Destarte, constituindo os factos apreciados neste processo ocorridos em Janeiro, Março e Maio de 2004, inequivocamente, uma continuação da actividade pela qual o arguido foi julgado e condenado num outro processo (maus-tratos a cônjuge por factos de 10-12-2003), há que concluir que, do ponto de vista naturalístico, aqueles factos se integram na acção que determinou a condenação do arguido no processo em causa.
XXIII - Deste modo, e no que concerne aos factos ocorridos em Janeiro, Março e Maio de 2004, verifica-se, nos termos apontados, identidade de objecto do processo entre os presentes autos e aqueles outros onde o arguido foi condenado pela prática de um crime de maustratos a cônjuge, pese embora aqueles factos não hajam sido considerados por aquele tribunal - cumpre assinalar que nada obstava a que os mesmos fossem tomados em consideração pelo tribunal do primeiro julgamento, uma vez que a alteração daí decorrente deve ser qualificada como não substancial (art. 358.°, n.º 1, do CPP).
XXIV - Nesta conformidade, certo é não poderem ser agora apreciados aqueles factos, sob pena de violação da regra ne bis in idem.
XXV - Dizendo de outra forma (segundo uma perspectiva normativista), os factos julgados nestes autos perpetrados pelo arguido em Janeiro, Março e Maio de 2004, formam uma unidade com aqueles que foram apreciados e julgados no outro processo, com trânsito em julgado, pelo que não pode deixar de se considerar consumido o respectivo direito de acusação, pois a todos aqueles factos se deve ter por “estendido” o valor daquela decisão.
XXVI - Verifica-se, assim, relativamente àqueles factos a exceptio judicati, razão pela qual não podem ser considerados nos presentes autos.
XXVII - Tal circunstância, porém, em nada afecta a decisão condenatória proferida nestes autos, visto que os demais factos cometidos pelo arguido após a decisão final (proferida, em 07-06-2004, naquele outro processo), integram, por si só, o crime de maus-tratos a cônjuge pelo qual o mesmo foi condenado.
XXVIII - Para aplicação da pena de substituição suspensão de execução da pena de prisão é necessário, em primeiro lugar, que o julgador se convença, face à personalidade do arguido, comportamento global, natureza do crime e sua adequação a essa personalidade, que o facto cometido não está de acordo com essa personalidade e foi simples acidente de percurso, esporádico, e que a ameaça da pena, como medida de reflexos sobre o seu comportamento futuro, evitará a repetição de comportamentos delituosos, e, em segundo lugar, é necessário que a pena de suspensão de execução da prisão não coloque irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias, ou seja, o sentimento de reprovação social do crime ou sentimento jurídico da comunidade.
XXIX - Com efeito, como refere Figueiredo Dias (Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 344), «(…)a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime», ou seja, o valor da socialização em liberdade é limitado perante considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico.
XXX - O arguido foi condenado em 07-06-2004, na pena de 13 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos, pela autoria material do crime de maus-tratos a cônjuge, bem como na pena acessória de proibição de contactar a ofendida, sua mulher, e de se manter afastado da residência desta pelo período de 1 ano. Ora, a verdade é que 3 meses após esta condenação, o arguido, demonstrando um completo desrespeito por aquela decisão, não só passou a seguir a ofendida, como a maltratá-la psíquica e fisicamente, perturbando-lhe o descanso e o sono, injuriando-a, ameaçando-a, atemorizando-a e ofendendo-a corporalmente, o que fez por várias vezes, ao longo de dois meses, o que impõe a formulação de um juízo de prognose negativo relativamente ao comportamento futuro do arguido, a significar que a sua socialização implica uma pena privativa da liberdade, imposição que também resulta de exigências de prevenção geral, posto que o sentimento jurídico da comunidade exige a sua clausura, consabido que só assim se cumprem as exigências mínimas e rrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico.
XXXI - Se «(…) a aplicação de pena suspensa não bastou para “prevenção da reincidência”, como esperar agora que outra dose do mesmo remédio assumisse eficácia curativa, a menos que verificado um verdadeiro milagre?» - Ac. do STJ, de 04.02.12, CJ Ano XII tomo 1, pág. 202.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça.
No âmbito do processo comum com intervenção do tribunal colectivo n.º 00/04, do 1º Juízo Criminal de Barcelos, após realização de contraditório foi proferido acórdão que condenou o arguido AA , com os sinais dos autos, como autor material, em concurso real, de um crime de maus-tratos a cônjuge previsto e punível pelo artigo 152º, n.ºs 1, alínea a) e 2, do Código Penal, e de um crime de violação de proibições previsto e punível pelo artigo 353º daquele diploma legal, nas penas, respectivamente, de 3 anos de prisão com execução suspensa pelo período de 5 anos e de 200 dias de multa à taxa diária de € 3.
Interpôs recurso a Digna Magistrada do Ministério Público.
Na motivação apresentada concluiu:
A. O acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 40º, 50º, 70º e 71º, do Código Penal, sendo que a factualidade dada como provada e todo o circunstancialismo espácio-temporal e concreto que rodeou a prática dos factos, sua sequência, reiteração e desrespeito por anterior advertência e especial aviso do tribunal, de modo nenhum se compaginam com uma situação que justifique ou abalize um juízo de prognose favorável à actuação do arguido no futuro e à determinação da suspensão da pena.
B. Suspensão da pena que ora se impugna, devendo consequentemente manter-se no mais a condenação do arguido nas penas fixadas e pelos crimes que lhe são imputados, naturalmente se revogando e anulando a decisão de suspensão da pena de prisão aplicada pela autoria material de um crime de maus-tratos a cônjuge. Dando-se obviamente provimento ao recurso.
O recurso foi admitido.
Na contra-motivação o arguido formulou as seguintes conclusões:
1. Muito bem decidiu o douto Tribunal recorrido quanto à suspensão da execução da pena de prisão pelo período de cinco anos.
2. Ao contrário do alegado pelo recorrente onde refere que “se perfila de todo incorrecta, não legal e ainda de todo desajustada da factualidade provada e não compaginnável com a realidade constatada”, com o que não concorda o recorrido.
Senão vejamos
3. O arguido foi condenado no processo comum singular n.º 0000GBBCL, que correu termos no 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Barcelos, pelo crime de maus-tratos a cônjuge a 13 meses de prisão e na pena acessória de proibição de contactar a sua mulher e de se manter afastado da residência desta pelo período de dois anos, no dia 17 de Junho de 2004.
4. Ora, alguns dos factos de que o arguido veio acusado nos presentes autos foram praticados, como o Digno Agente do Ministério Público alegou, em Janeiro, Março e Maio de 2004, anteriormente à condenação referida no retro artigo, não se podendo falar de violações das medidas que serviram de base à suspensão da execução da pena de prisão.
5. Por outro lado, na acusação pública dos presentes autos, relativamente ao crime de maus-tratos a cônjuge, o aqui recorrido, só vem acusado de ter “maltratado” a BB no dia de Janeiro de 2004, e no dia 3 de Setembro de 2004 lhe ter dado um pontapé na perna direita, não se querendo com tal “desculpar” a atitude do aqui recorrido, mas tão-somente chamar a atenção de que a acusação pública quanto ao crime de maus-tratos a cônjuge não é muito violenta.
6. Existe caso julgado e violação do princípio ne bis in idem relativamente às situações que o casal viveu desde que se casou, porque o douto acórdão proferido nos presentes autos forma também a sua convicção e dá como provadas tais situações, situações pelas quais o aqui recorrido já tinha sido julgado e condenado no processo 0000GBBCL, ou seja, o arguido foi julgado duas vezes pelos problemas que o casal tinha no seu casamento no decurso do tempo.
7. Na restante parte da acusação pública o arguido vem acusado de violar as medidas que lhe foram impostas no processo singular já atrás referido, concretamente, em dias dos meses de Setembro, Outubro e Novembro de 2004, alturas em que o aqui recorrido estava sob o efeito do álcool e queria visitar os seus filhos.
8. O aqui recorrido aproximou-se da sua esposa, sempre quando estava sob o efeito do álcool, mas também é verdade que já se arrependeu como ficou provado no Douto Acórdão recorrido.
9. Além do arrependimento, pediu perdão à BB e aos seus filhos e indemnizou-os até onde lhe era possível e tem trabalho assegurado, em Espanha, pelos seus antigos patrões, tendo de trabalhar para pagar o sustento se seus filhos.
10. Conforme ficou provado no artigo 40 dos factos provados do Douto Acórdão: “As pessoas que lidam com o arguido têm-no como boas pessoa, bom trabalhador e esperto na arte de serralheiro”.
11. Refere o Digno Agente do Ministério Público que os factos dados como provados e o seu comportamento, de “modo algum se compaginam com um arrependimento que agora se apregoa (porque de todo convém!) e que de modo nenhum são desculpáveis ou minimizados por algumas vezes ter praticado os factos embriagado (…)”
12. O que se esquece é que o recorrido está sob a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação há sete meses, isto é, esteve sete meses preso, privado da sua liberdade, um direito que todo o ser humano tem e que só pode ser retirado em ultima ratio.
13. O recorrido “teve todo o tempo do mundo” para reflectir, ver que errou e para se corrigir para viver uma nova vida, querendo ir trabalhar para Espanha, para refazer a sua vida, recomeçar de novo.
14. Não se deve dar uma nova chance a alguém que sabe que errou e que quer se queira quer não já esteve privado da sua liberdade sete meses?
15. Resultou provado que existiu uma posterior alteração do comportamento do aqui recorrido, portanto, julga-se que a suspensão da execução da pena de prisão, pela segunda vez, constitui protecção suficiente para os bens jurídicos violados pelo arguido – neste sentido o Acórdão da RL, processo número 1087/2003-3, de 17.03.2004.
16. “A pena tem, sempre, o fim de servir para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência de tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal. É o instrumento, por excelência destinado a revelar perante a comunidade que a ordem jurídica é inquebrantável, apesar de todas as violações que tenham lugar” – Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, 74 e ss.
17. In casu, a pena que foi aplicada ao arguido acautela os fins de prevenção, quer gerais quer especiais, além de que, se o recorrido violar qualquer medida imposta no Douto Acórdão irá de seguida cumprir os três anos a que foi condenado.
18. Atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e as circunstâncias deste, conclui-se que a ameaça da prisão e a simples censura do facto realizam de forma adequada as finalidades da punição, artigo 50º, n.º1, do Código Penal.
19. O arguido não infringiu grosseiramente qualquer condição que existia para a suspensão da execução da pena de prisão, sendo que, a infracção grosseira de que se fala no artigo 56º, n.º1, alínea a), do Código Penal, consiste numa actuação indesculpável, em que o comum dos cidadãos não incorre, não devendo por isso ser tolerada.
20. O arguido demonstrou arrependimento e pediu perdão à sua mulher e filhos e mais, deixou de beber, demonstrando assim que houve uma alteração do seu comportamento, justificando-se a suspensão da execução da pena de prisão a que foi condenado.
21. Não foram violadas nenhumas normas legais, concretamente os artigos 40º, 70º e 71º, todos do Código Penal.
22. Pelo que, muito bem decidiu o douto Tribunal a quo.
A Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal, na vista que teve nos autos, consignou nada obstar ao conhecimento do recurso, tendo promovido a designação de dia para julgamento.
Colhidos os vistos e realizada a audiência, cumpre decidir.
Única questão colocada em recurso é a da escolha da pena relativamente ao crime de maus-tratos, entendendo a Digna Magistrada recorrente não se justificar a aplicação ao arguido de uma pena de substituição, devendo ser condenado em pena detentiva.
Paralelamente, em momento prévio, há que apreciar, tanto mais que de conhecimento oficioso, questão suscitada pelo recorrido na contra-motivação, qual seja a da exceptio judicati relativamente a parte dos factos pelos quais foi condenado.
O tribunal colectivo considerou provados os seguintes factos (1):
«1.- O arguido AA e a assistente BB casaram em 10 de Dezembro de 1983, tendo desde então passado a residir no Lugar do 000 , em 000, nesta comarca de Barcelos, até 1994, e desde então, no Lugar de 000, em 000, também nesta comarca de Barcelos.
2.- Logo após o início do casamento, e devido a problemas com a ingestão de bebidas alcoólicas em excesso por parte do arguido, o relacionamento deste com a sua esposa BB deteriorou-se.
3.- Desde então, no interior da residência, o arguido de forma constante e repetida, pelo menos semanalmente, desferia murros e pontapés no corpo da BB, chamava-a de “puta, vaca, badalhoca, rota, estúpida” e outros nomes similares e afirmava à BB que a «ia matar».
4.- No dia 5 de Janeiro de 2004, cerca das 20 horas e 15 minutos, no interior da residência do casal, o arguido desferiu murros na cabeça da sua esposa BB e desferiu-lhe murros no ombro direito e na mão direita.
5.- No dia 17 de Janeiro de 2004, o arguido, sabendo que a sua esposa BB havia fugido de si para a casa do pai dela, sita no Lugar do 000, Casa da 00 em 0000, nesta comarca de Barcelos, colocou-se à porta da residência deste (seu sogro) CC, não deixando ninguém entrar nem sair.
6.- No dia 18 de Janeiro de 2004, o arguido pregou, com pregos, as portas interiores da casa do casal, para evitar que a sua esposa ali entrasse, e mudou as fechaduras das portas de casa.
7.- Desde então o arguido vem seguindo a sua esposa por toda a parte, perseguindo-a mesmo no local de trabalho.
8.- O arguido diz constantemente à sua esposa que a vai matar.
9.- No dia 21 de Março de 2004, no lugar de Moledo, em 000, nesta comarca de Barcelos, junto à Igreja, utilizando uma máquina fotográfica, o arguido tirou diversas fotografias à BB, sem o consentimento desta, quando ela se encontrava no interior do seu veículo automóvel e de seguida, erguendo a máquina fotográfica, disse-lhe «estás aqui filha da puta».
10.- O arguido quase todas as noites, entre as 22 e as 24 horas, ronda a casa dos pais da referida BB, onde esta se refugiou, coarctando a liberdade de movimentação dela, que nem sai de casa com receio que o arguido lhe faça algo de mal.
11.- No dia 28 de Março de 2004, cerca das 15:50 horas, junto da estação da C.P. de Tamel, nesta comarca de Barcelos, o arguido virou-se para a BB e, mostrando-lhe as suas mãos, disse: «as minhas são de trabalho, não são de putedo, como as tuas».
12.- O arguido diariamente, de manhã, persegue a BB desde 000 até ao seu local de trabalho, temendo esta que ele lhe faça algo de mal.
13.- O arguido telefona diversas vezes, a qualquer hora do dia ou da noite, para a BB e para a casa dos pais desta, e chama-lhe “puta” e “vaca”, afirmando que «a vai matar».
14.- No dia 1 de Maio de 2004, no Lugar de 00000, nesta comarca de Barcelos, o arguido, dirigindo-se à BB, disse-lhe que ela andava «metida com o pai», afirmação que vem repetindo, quer a esta quer nos cafés da aldeia que ele frequenta.
15.- No Processo Comum Singular nº. 0000 GBBCL, por sentença proferida em 7 de Junho de 2004, e transitada em julgado em 22 dos mesmos mês e ano, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de maus tratos a cônjuge, na pena de 13 meses de prisão e na pena acessória de proibição de contactar a sua mulher e de se manter afastado da residência desta pelo período de um ano, tendo a execução da pena de prisão sido suspensa pelo período de dois anos.
16.- Todavia o arguido, mesmo após aquela condenação, vem seguindo a assistente BB.
17.- No dia 3 de Setembro de 2004 o arguido, conduzindo uma carrinha, parou junta da casa dos pais da BB, onde a mesma passou a residir, e começou a buzinar, tendo-lhe ainda chamado «puta» e «vaca».
18.- Nesse mesmo dia 3 de Setembro de 2004, cerca das 20:00 horas, quando BB tentou impedir o arguido de arrombar a janela da antiga casa do casal, sita no Lugar de 0000, em 00000, nesta comarca de Barcelos, este desferiu-lhe um pontapé na perna direita.
Mais tarde, quando nessa mesma noite ele regressou a casa, chamou-a de «puta» e «vaca».
19.- No dia 4 de Setembro de 2004, cerca das 13:00 horas, o arguido perseguiu a BB desde Barcelos até ao Lugar do0000, em 000, nesta comarca de Barcelos, conduzindo o veículo automóvel ligeiro de mercadorias, da marca Ford, modelo Transit, de cor branca, de matrícula 00-00-00, tendo imobilizado tal veículo no acesso à residência actual da BB, impedindo-a de estacionar o veículo onde seguia.
20.- E depois, dirigindo-se-lhe, chamou-lhe «puta» e «vaca».
21.- No dia 9 de Setembro de 2004, no Lugar do 0000, em 0000, Barcelos, o arguido disse aos seus filhos DD, EE,FF que ia matar todos, incluindo a BB, tendo estado a rondar a casa, apenas cessando de o fazer graças à intervenção da G.N.R..
22.- Na noite de 12 para 13 de Setembro de 2004, o arguido durante toda a noite rondou a casa dos seus sogros, pais da BB onde esta se encontra a viver, sita naquele Lugar do 0000, tendo cerceado a liberdade de BB, atemorizando-a com tal conduta, face ao que havia afirmado no dia 9 de Setembro.
23.- No dia 31 de Outubro de 2004, entre as 22:00 e as 24:00 horas, o arguido rondou a casa dos seus sogros e onde a BB se encontrava, buzinando constantemente, perturbando o sono e o descanso de todos quantos se encontravam em casa.
24.- No dia 1 de Novembro de 2004, cerca das 12:30 horas, o arguido rondou novamente a casa dos seus sogros, onde a BB se encontrava, tendo colocado na caixa do correio um postal do qual resultava a sua convocatória para comparecer no posto da G.N.R. no passado dia 5 de Outubro.
25.- Cerca das 16:15 horas desse mesmo dia 1 de Novembro o arguido voltou a rondar a casa dos seus sogros, onde a BB se encontrava.
26.- No dia 6 de Novembro de 2004, cerca das 24:00 horas, o arguido dirigiu-se à residência dos pais de BB e, no intuito de perturbar o sossego e a paz de espírito desta, bateu por diversas vezes à porta, tendo de seguida colocado a música alto no carro em que se fazia transportar, e estado a buzinar durante cerca de uma hora.
Ainda nessa mesma noite o arguido telefonou por algumas vezes para a BB, perturbando o seu descanso.
27.- Como consequência directa e necessária do pontapé desferido pelo arguido na perna de BB no dia 3 de Setembro de 2004, advieram para esta traumatismo da perna direita e alteração do seu normal estado de sensibilidade (dor), o que lhe determinou 1 (um) dia de doença, sem afectação da capacidade de trabalho.
28.- Teve a BB que receber tratamento médico no Hospital Santa Maria Maior de Barcelos.
29.- Como consequência directa e necessária dos murros e pontapés desferidos pelo arguido no corpo de BB nas diversas ocasiões relatadas, adveio para esta alteração do seu normal estado de sensibilidade (dor).
30.- O arguido, ao chamar à sua esposa os referidos nomes ofensivos da sua honra e consideração, actuou sempre em livre manifestação de vontade, no propósito concretizado de a atingir na sua honra e consideração, bem como quando afirmava nos cafés que aquela andava metida com o pai.
31.- Ao proferir as referidas expressões indicando a prática futura por si contra a sua esposa de um mal, mal esse consubstanciado na ofensa à sua vida, ao mesmo tempo que sistematicamente a perseguia onde quer que fosse e rondava a sua residência, actuou o arguido em livre manifestação de vontade no propósito concretizado de causar à BB receio pela sua vida, deixando-a num estado de atemorização que lhe prejudicou a sua liberdade de determinação, e bem assim no propósito de lhe perturbar a sua vida, perturbando-lhe a sua tranquilidade.
32.- O arguido, ao actuar como descrito, dando murros e pontapés no corpo da BB e ao perturbar o seu descanso ao bater à porta, colocar a música alta e efectuar telefonemas durante a noite, agiu em livre manifestação de vontade, no propósito concretizado de molestar a integridade física desta. Isto bem sabendo o arguido ser a sua conduta proibida.
33.- E ao impedir a BB de entrar em casa, ao pregar as portas interiores e ao mudar a fechadura da porta da casa, actuou o arguido em livre manifestação de vontade no propósito concretizado de perturbar a paz e a tranquilidade da BB.
34.- O arguido sabia que a sua conduta era proibida e não se absteve de a prosseguir.
35.- O arguido ao perseguir e ao contactar a sua esposa bem como ao rondar a actual residência, actuou em livre manifestação de vontade no propósito concretizado de desrespeitar a ordem que lhe havia sido dada, contactando a sua mulher e não se mantendo afastado da residência desta, bem sabendo que estava proibido, por sentença judicial, de se aproximar da residência da sua esposa e de a contactar por qualquer forma.
36.- O arguido AA foi já condenado, em 13 de Fevereiro de 2002, por sentença transitada em julgado, pela prática, em 10 de Julho de 2000, de dois crimes de injúria, no Processo Comum Singular n.º 000/00.9 GBBCL, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Barcelos, na pena única de 80 dias de multa, à taxa diária de € 2, perfazendo o total de € 160, pena essa que cumpriu.
Como acima se disse, foi ainda condenado, em 7 de Junho de 2004, por sentença transitada em julgado, pela prática, em 10 de Dezembro de 2003, de um crime de maus tratos, no Processo Comum Singular n.º 00000.9 GBBCL, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Barcelos, na pena de 13 meses de prisão, cuja execução foi suspensa por dois anos.
37.- Nos autos de Acção de Divórcio nº. 0000.5TBBCL, do 4º. Juízo Cível deste Tribunal, e em 1 do corrente mês de Junho, o arguido e a ofendida GG decidiram converter o divórcio litigioso em divórcio por mútuo consentimento, celebrando os acordos para tanto necessários, tendo sido de imediato proferida sentença a decretar o divórcio entre ambos, com a consequente dissolução do casamento.
38.- O arguido mostrou-se arrependido, tendo pedido perdão a esta ofendida e aos filhos.
39.- As mais das vezes em que o arguido praticou os factos acima descritos estava embriagado.
O arguido, declarou não mais ter ingerido bebidas alcoólicas desde que foi detido – 23/11/2004.
40.- As pessoas que lidam com o arguido têm-no como “boa pessoa”, bom trabalhador e “esperto” na arte de serralheiro.
O arguido tem trabalho assegurado, em Espanha, onde os antigos patrões trazem obras que contrataram, e ele irá desempenhar a sua profissão de serralheiro, com o ordenado base de € 520. a que acresce o subsídio de estaleiro e ainda outras prestações derivadas da deslocação para o estrangeiro .
Tem como habilitações literárias o 2º. Ano de escolaridade.
41.- O “Hospital de Santa Maria Maior, S. A.” gastou a importância de € 70,90 (setenta euros e noventa cêntimos) em tratamento médico que dispensou à ofendida, em 03/09/2004 e em 07/09/2004, na sequência das agressões e dos factos acima descritos.».
Caso Julgado
Alega o arguido AA que parte dos factos pelos quais foi acusado e veio a ser condenado ocorreram em data anterior à da sua condenação no processo comum singular n.º 00009, do 1º Juízo Criminal de Barcelos, processo este em que foi condenado, também, pela autoria material de um crime de maus-tratos a cônjuge, razão pela qual tais factos, designadamente os verificados em Janeiro, Março e Maio de 2004, se devem ter por abrangidos pelo caso julgado, visto que pelos mesmos foi julgado por duas vezes.
Apreciando, dir-se-á.
O Código de Processo Penal de 1987, ao contrário do que sucedia com o Código de Processo Penal pré-vigente, não regula de forma expressa ou implícita o instituto jurídico do caso julgado ou da exceptio judicati, sendo certo que só em duas disposições se refere àquele instituto, designadamente no artigo 84º, ao estatuir que a decisão penal, ainda que absolutória, que conhece do pedido cível constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis, e no artigo 467º, n.º1, ao estabelecer que as decisões penais condenatórias, uma vez transitadas, têm força executiva.
É evidente que a circunstância de a lei adjectiva penal vigente não regular o caso julgado não significa que o processo penal prescinde daquele instituto, consabido que nesta concreta área do Direito se sente com muito maior intensidade e acuidade a necessidade de protecção do cidadão contra situações decorrentes da violação do caso julgado, instituto que também encontra fundamento num postulado axiológico, qual seja o da justiça da decisão do caso concreto, para além de outros, com destaque para a garantia da segurança e da paz jurídicas.
Aliás, a nossa Constituição Política consagra de forma irrefutável o caso julgado penal, ao dispor no seu artigo 29º, n.º 5, que: «Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime» (2 )
A lei fundamental ao referir-se ao duplo julgamento e ao mesmo crime carece, contudo, de interpretação, a qual, conforme referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (3), deverá ter em especial atenção que os preceitos constitucionais não podem ser considerados isoladamente e interpretados a partir de si próprios, devendo assim considerar-se as conexões de sentido que se estabelecem entre os seus preceitos, bem como a “arquitectura sistemática” de cada divisão da Constituição. Por outro lado, certo é também que a tarefa interpretativa dos preceitos constitucionais não prescinde igualmente de uma visão global dos ramos de direito em que se projectam, e que ao fim e ao cabo pretendem nortear.
Quanto à expressão “julgado mais do que uma vez”, atenta a situação concreta dos autos em que o que está em causa são dois julgamentos e respectivas sentenças, a mesma não suscita nem impõe labor interpretativo. Refira-se, em todo o caso, que a lei fundamental ao aludir ao duplo julgamento não pode ser entendida no seu estrito sentido técnico-jurídico, tendo antes de ser interpretada num sentido mais amplo, de forma a abranger, não só a fase processual “rainha”, isto é, o julgamento, mas também outras situações análogas ou de valor equivalente, designadamente aquelas em que num processo é proferida decisão final, sem que, todavia, tenha havido lugar àquele conhecido ritualismo.
É o que sucede com a declaração judicial de extinção da responsabilidade criminal por amnistia, por prescrição do procedimento ou por desistência de queixa, situações em que, obviamente, o respectivo beneficiário não pode ser perseguido criminalmente pelo crime ou crimes objecto da respectiva declaração de extinção da responsabilidade criminal (4).
Este era o sentido, aliás, expressamente inserto no Código de Processo Penal de 1929 (artigo 149º) que textualmente estabelecia que: «Quando por acórdão, sentença ou despacho, com trânsito em julgado, se tenha decidido que um arguido não praticou certos factos, que por eles não é responsável ou que a respectiva acção penal se extinguiu, não poderá contra ele propor-se nova acção penal por infracção constituída, no todo ou em parte, por esses factos, ainda que se lhe atribua comparticipação de diversa natureza».
Relativamente ao inciso “mesmo crime” também se verifica que o mesmo não deve nem pode ser interpretado no seu estrito sentido técnico-jurídico.
É que o termo “crime” tem, por um lado, como referente, a “acção ou omissão” previamente declarada punível e cujos pressupostos devem estar fixados em lei anterior, ou que seja considerada criminosa segundo os princípios gerais de direito internacional comumente reconhecidos (artigo 29º, nºs 1 e 2, da Constituição), por outro lado, a conduta do agente que se torna como referência (n.º 4 do citado normativo) e por outro, ainda, o acto praticado pelo agente e que é objecto de sentença condenatória (artigo 27º, n.º 2).
Assim, crime significa, aqui, um comportamento de um agente espácio-temporalmente delimitado e que foi objecto de uma decisão judicial, melhor, de uma sentença ou de decisão que se lhe equipare.
Entender o termo “crime” empregue no n.º 5 do artigo 29º, da Constituição, como referência a um determinado tipo legal, a uma certa e determinada descrição típica normativa de natureza jurídico-criminal, seria esvaziar totalmente o conteúdo do preceito, desvirtuando completamente a sua ratio e em frontal violação com os próprios fundamentos do caso julgado. Um tal entendimento, traduzir-se-ia numa insuportável violação da paz jurídica e da segurança do cidadão, ao ponto de afectar e destituir de sentido – ao esvaziar todo o conteúdo útil do caso julgado – a própria estrutura acusatória em que assenta o nosso direito processual pena. Seria permitir – o que é inaceitável – que aquele que foi julgado e condenado por ofensas à integridade física (artigo 143º, do Código Penal), pudesse, pelos mesmos factos, ser segunda vez submetido a julgamento e eventualmente condenado por homicídio (artigo 131º, do Código Penal). O critério do bem jurídico tutelado pela norma, é, aqui, só por si, suficiente, para permitir entender aqueles tipos penais como dois crimes diferentes; ou permitir que aquele que foi absolvido – e portanto não cometeu crime algum – pudesse por esses mesmos factos voltar a ser julgado e eventualmente condenado.
O termo “crime” não deve pois ser tomado ao pé-da-letra, mas antes entendido como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado de facto ou um acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui crime. É a dupla apreciação jurídico-penal de um determinado facto já julgado – e não tanto de um crime – que se quer evitar.
O que o artigo 29º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, proíbe, é, no fundo, que um mesmo e concreto objecto do processo possa fundar um segundo processo penal.(5)
Fixado o sentido do termo “crime”, convirá agora precisar o que se deve entender por comportamento referenciado ao “facto”, como expressão da conduta penalmente punível, consabido que o instituto do caso julgado só funciona quando existe identidade de “facto” e de sujeitos constantes de uma decisão irrevogável sobre a mesma questão ou, por outras palavras, o que se deve entender por mesmo “objecto processual” (6) - Não se aborda aqui a questão da identidade de sujeitos, uma vez que no que a ela concerne inexiste qualquer dúvida sobre a verificação daquela identidade.).
À luz do que ficou dito, decorre que o conteúdo e limites do caso julgado só podem ser fornecidos pelo objecto do processo; sendo o objecto do processo o mesmo estaremos perante a exceptio judicati, caso contrário não ocorrerá violação do princípio in bis in idem.
Ora, comportamento referenciado ao facto, como expressão da conduta penalmente punível, não pode deixar de ser o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade, se submeteu à apreciação e julgamento de um tribunal. Daqui resulta que todos os factos praticados pelo arguido até decisão final e que directamente se relacionem com o pedaço da vida apreciado e que com ele formam uma unidade de sentido haverão de ser considerados como fazendo parte do “objecto do processo”.
Deste modo, de acordo com esta visão naturalística, ter-se-á de concluir que ainda que aqueles não tenham sido conhecidos ou tomados em consideração pelo tribunal, certo é não poderem ser posteriormente apreciados, já que a sua apreciação violaria frontalmente a regra ne bis in idem, entrando em aberto conflito com os fundamentos do caso julgado.
Tal asserção não encerra em si mesma qualquer hipostasia, já que o nosso processo penal, como é sabido, fornece todos os mecanismos necessários para uma apreciação esgotante do facto processual e, portanto, a possibilidade de se alcançar a verdade material e, consequentemente, uma justa decisão do caso concreto (7). Aliás, a não ser assim, far-se-ia responder o arguido pela negligência de outros na prossecução da justiça, ou pelos inevitáveis vícios do sistema, acabando, em última análise, por se frustrarem as legítimas expectativas de quem foi julgado e sentenciado, ou viu a sua responsabilidade criminal extinta por decisão judicial, comprometendo assim, inabalavelmente, o respeito pela própria dignidade da pessoa humana (8 ) e pelos tribunais.
Pronunciando-se sobre esta concreta problemática, obviamente, à luz das disposições legais constantes do Código de Processo Penal de 1929, sem prescindir, porém, de uma visão global sobre o assunto, expressamente refere Cavaleiro de Ferreira (9): «Os “mesmos factos” nos artigos 149º e 150º, serão ainda idêntico facto quando a identidade real não for total, mas apenas parcial. E é de inferir que similar identidade parcial se deve admitir quanto ao artigo 148º e ainda relativamente ao caso julgado condenatório.
Para se dar conta da extensão do caso julgado, em função da identidade do facto, nos dois processos, a doutrina gizou alguns critérios de definição de facto, sob este ponto de vista processual. Para uns o facto seria equivalente a crime; a noção de facto, do ponto de vista do direito penal, seria a mesma.
Não é de aceitar esta orientação, pois que, como já dissemos, o facto é de considerar, processualmente, como uma evento naturalístico, objecto de investigação e de prova. Acresce que a lei é unívoca, ao impedir nova apreciação dos mesmos factos, seja qual for a qualificação jurídica que lhes é atribuída.
E mais adiante textualmente refere: «… a extensão do caso julgado obedece ao princípio de evitar a renovação de processos relativamente a factos que já poderiam ter sido apreciados judicialmente, o que importa é partir da própria lei positiva e esta oferece-nos base orientadora para uma solução.
A identidade parcial pode verificar-se de modo que o facto, objecto de novo processo, seja mais restrito do que o facto apreciado por sentença transitada em processo anterior. Em tal caso, nenhuma dificuldade surge: todo o facto trazido de novo perante a jurisdição cabe no interior do facto apreciado.
E mesmo a hipótese inversa, aquela que consideram os artigos 149º e 150º, do Código de Processo Penal; os factos trazidos ao novo processo vão além, porque só em parte coincidem com o facto já julgado.
De comum, para fundamentar naturalisticamente a identidade, deve atender-se aos factos praticados, ou seja, à acção. Podem variar as circunstâncias, os elementos acidentais da actividade que constitui objecto do processo, mas não a própria acção. E por isso haverá caso julgado material quando se acusa em novo processo pela mesma acção, embora acrescida de novas circunstâncias, embora seja diferente o evento material que se lhe segue, embora seja diversa a forma de voluntariedade (dolo ou culpa)».
E no mesmo sentido, fazendo porém apelo a um critério não coincidente, já que não naturalístico, mas essencialmente normativo, especialmente no que concerne à problemática atinente aos poderes cognitivos do juiz, pronunciou-se Eduardo Correia (10), obviamente à luz da lei adjectiva de 1929.
Refere aquele insigne penalista que o objecto ao qual é mister pôr o problema da identidade do facto como pressuposto do caso julgado há-de ser o próprio conteúdo da sentença, não só nos expressos termos em que é formulada, mas ainda naqueles até onde se podia e devia estender o poder cognitivo do tribunal. A força consuntiva de um sentença relativamente a futuras condenações e processos há-de ser medida pelos devidos limites do seu objecto, ou seja, estender-se até onde o juiz tenha o poder e o dever de apreciar os factos submetidos ao seu julgamento.
Deste modo, aquilo que, devendo tê-lo sido, não se decidiu directamente, tem de considerar-se indirectamente resolvido; aquilo que se não resolveu por via expressa deve tomar-se como decidido tacitamente.
E nem se diga que o que assim se deixou de tomar em consideração deve justamente dar lugar a um novo processo.
Efectivamente, isso implicaria um largo prejuízo da economia processual e da bolsa dos próprios interessados, além de fazer depender da maior ou menor diligência do juiz a possibilidade de renovar o vexame para o acusado de ser objecto de novos julgamentos.
O juiz tem, pois, de estender a sua actividade cognitiva até onde pode e deve.
E pelos limites deste dever de cognição há que medir o âmbito do conteúdo da sentença e, portanto, os termos da sua força consuntiva relativamente a futuras acusações. A esta luz, o problema de saber quais os limites da eficácia do caso julgado em matéria penal está, assim, logicamente condicionado por este outro de determinar até que ponto pode e deve ir a actividade cognitiva do juiz (11).
E mais adiante, ao debruçar-se sobre o conteúdo e âmbito do “facto” como pressuposto do caso julgado e da actividade cognitiva do juiz relativamente a situações de continuação criminosa refere que: «… se algumas actividades que fazem parte da continuação criminosa foram já objecto de sentença definitiva, ter-se-á de considerar consumido o direito de acusação relativamente a quaisquer outras que pertençam a esse mesmo crime continuado, ainda que elas de facto tivessem permanecido estranhas ao conhecimento do juiz.
… Se o juiz se convence, na verdade, de que tais actividades constituem tão só elementos de um crime continuado, que já foi objecto de um processo, será forçado a concluir que elas deveriam ter sido aí apreciadas. Ainda, pois, que o não tivessem sido, tudo se passa como se assim fosse, estando, por isso, consumido e extinto o direito de as acusar e podendo-se opor sempre ao exercício da respectiva acção penal a excepção ne bis in idem».
E mais à frente refere a propósito de crime simples único ou concurso de crimes: «O problema oferece já, entretanto, certas dificuldades quando uma sentença anterior condenou alguém como autor de um crime único simples, ou como agente de um concurso de crimes e é promovida nova acção penal com fundamento em factos que não foram objecto do conhecimento do primeiro juiz, mas que de harmonia com a convicção do segundo estão com os julgados numa relação de continuação.
Na verdade, semelhante ponto de vista do segundo tribunal parece clamar pela conclusão de que o direito de acusação contra este novos factos se acha consumido; pois, na medida em que formam com o objecto do primeiro processo uma unidade, aí deveriam ter sido julgados.
Não contraditará, porém, esta decisão a anterior, e não será portanto, impossível, justamente por força do caso julgado?
A jurisprudência alemã assim o julga ( 12 ). Temos, todavia, para nós, e connosco está quase unanimemente a doutrina que isso não é exacto.
Na verdade, quando o juiz investiga e decide que certos factos estão em qualquer relação de unidade com outros apreciados numa sentença anterior, quando, pois, investiga sobre os limites da identidade do objecto processual, não pratica absolutamente nada que contradiga aquela decisão. O que tão-somente faz com isso é integrar o conteúdo de tal sentença, é perguntar até que ponto se deveria ter alargado a cognição do tribunal no primeiro processo, com vista a determinar em que limites se devem entender as coisas como julgadas.
Nada impede, por conseguinte, considerar existente, para efeitos de determinação da identidade do objecto do processo, uma relação de continuação entre certos factos e outros já julgados, pois que desta sorte apenas se verificam os limites da unidade jurídica que deveria ter sido conhecida e que, como tal, se deve dizer apreciada e contida na primeira sentença».
Em sentido coincidente também se pronuncia Castanheira Neves (13).

Feitas estas considerações cumpre averiguar se parte do objecto do presente processo, concretamente os factos perpetrados pelo arguido na pessoa da ofendida em Janeiro, Março e Maio de 2004, constituem ou integram o objecto do processo comum singular n.º 1678/03.9, do 1º Juízo Criminal de Barcelos.
Vejamos.
No processo comum singular n.º 1678/03.9, do 1º Juízo Criminal de Barcelos, foi o ora recorrido condenado, em 7 de Junho de 2004, por sentença transitada em julgado, pela prática, em 10 de Dezembro de 2003, de factos integrantes de um crime de maus-tratos a cônjuge, na pena de 13 meses de prisão com suspensão da sua execução por dois anos.
O objecto do processo, como enfaticamente se consignou, é constituído por todos os factos praticados pelo arguido até decisão final que directamente se relacionem com o pedaço da vida apreciado e que com ele formam uma unidade de sentido, razão pela qual, os factos que não tenham sido considerados, devendo tê-lo sido, não podem ser posteriormente apreciados, sob pena de violação da regra ne bis in idem.
Destarte, os factos apreciados neste processo ocorridos em Janeiro, Março e Maio de 2004, constituindo, inequivocamente, uma continuação da actividade pela qual o arguido foi julgado e condenado naqueloutro processo (maus-tratos a cônjuge), há que concluir que, do ponto de vista naturalístico, aqueles factos integram-se na acção que determinou a condenação do arguido no processo em causa.
Deste modo, do ponto de vista naturalístico, relativamente àqueles concretos factos ocorridos em Janeiro, Março e Maio de 2004, ocorre identidade de “objecto do processo” entre os presentes autos e os de comum singular n.º 1678/03.9, do 1º Juízo Criminal de Barcelos, pese embora aqueles factos não hajam sido considerados por aquele tribunal (14).
Nesta conformidade, certo é não poderem ser agora apreciados aqueles factos, sob pena de violação da regra ne bis in idem (15)
Dizendo de outra forma (segundo uma perspectiva normativista), os factos julgados nestes autos perpetrados pelo arguido em Janeiro, Março e Maio de 2004, formam uma unidade com aqueles que foram apreciados e julgados no processo comum singular n.º 1678/03.9, do 1º Juízo Criminal de Barcelos, com trânsito em julgado, pelo que não pode deixar de se considerar consumido o respectivo direito de acusação, pois a todos aqueles factos se deve ter por “estendido” o valor daquela decisão.
Concluindo, dir-se-á que existe uma parte comum entre o facto histórico julgado no processo comum n.º 1678/03.9, do 1º Juízo Criminal de Barcelos e os factos julgados no presente processo perpetrados pelo arguido em Janeiro, Março e Maio de 2004, sendo que todos eles têm como objecto o mesmo bem jurídico, para além de que constituem uma só acção e um todo do ponto de vista jurídico-penal.
Verifica-se, pois, relativamente àqueles factos a exceptio judicati, razão pela qual não podem ser considerados nos presentes autos.
Tal circunstância, porém, em nada afecta a decisão condenatória proferida nos autos, visto que os demais factos cometidos pelo arguido após a decisão final proferida no processo comum singular n.º 1678/03.9, integram, por si só, o crime de maus-tratos a cônjuge pelo qual o mesmo foi condenado (16 ).
Escolha da Pena
Entende a Exm.ª Magistrada recorrente que o arguido deve ser condenado em pena de prisão efectiva, para o que invoca a gravidade dos factos por aquele perpetrados e o contexto que os rodeou, com destaque para a circunstância de terem sido cometidos no decurso do período de suspensão da execução de pena de 13 meses de prisão na qual fora condenado pela autoria material de factos igualmente integrantes do crime de maus-tratos a cônjuge.
Defende o arguido que cometeu todos os factos sob o efeito do álcool, sendo que após a condenação que sofreu no processo n.º 1678/03.9, só por uma vez maltratou a ofendida, concretamente no dia 3 de Setembro de 2004, para além do que se revelou arrependido, tendo pedido perdão àquela e aos filhos de ambos, a que acresce o facto de haver alterado o seu comportamento, tendo deixado de beber, razões pelas quais se deve manter a suspensão da execução da pena decretada pelo tribunal recorrido.
Decidindo, dir-se-á.
A pena de substituição com que o tribunal a quo censurou o arguido, qual seja a de suspensão de execução da pena de prisão, só pode e deve ser aplicada quando a simples censura do facto e a ameaça da pena realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição – artigo 50º, n.º1, do Código Penal.
Consabido que as finalidades da punição se circunscrevem à protecção dos bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade – artigo 40º, n.º1 –, é em função de considerações exclusivamente preventivas, prevenção geral e prevenção especial, que o julgador tem de se orientar na opção pela pena de suspensão de execução da prisão.
Assim, para a aplicação daquela pena é necessário, em primeiro lugar, que o julgador se convença, face à personalidade do arguido, comportamento global, natureza do crime e sua adequação a essa personalidade, que o facto cometido não está de acordo com essa personalidade e foi simples acidente de percurso, esporádico, e que a ameaça da pena, como medida de reflexos sobre o seu comportamento futuro evitará a repetição de comportamentos delituosos; em segundo lugar, é necessário que a pena de suspensão de execução da prisão não coloque irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias, ou seja, o sentimento de reprovação social do crime ou sentimento jurídico da comunidade.
Com efeito, como refere Figueiredo Dias (17): “Apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável – à luz consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização –, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime”, ou seja, o valor da socialização em liberdade é limitado perante considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico (18).
Como resulta da decisão proferida sobre a matéria de facto e já se consignou a propósito da questão relativa ao caso julgado, o recorrido foi condenado em 7 de Junho de 2004, na pena de 13 meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de 2 anos, pela autoria material do crime de maus-tratos a cônjuge, bem como na pena acessória de proibição de contactar a ofendida, sua mulher, e de se manter afastado da residência desta pelo período de um ano.
Ora, a verdade é que três meses após esta condenação, o arguido, demonstrando um completo desrespeito por aquela decisão, não só passou a seguir a ofendida, como a maltratá-la psíquica e fisicamente, perturbando-lhe o descanso e o sono, injuriando-a, ameaçando-a, atemorizando-a e ofendendo-a corporalmente, o que fez por várias vezes, ao longo de dois meses.
Nesta conformidade, há que formular um juízo de prognose negativo relativamente ao comportamento futuro do arguido, a significar que a sua socialização implica uma pena privativa da liberdade, imposição que também resulta de exigências de prevenção geral, posto que o sentimento jurídico da comunidade exige a clausura do mesmo, consabido que só assim se cumprem as exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico
Como expressiva e sugestivamente se consignou em acórdão deste Supremo Tribunal: “… se a aplicação de pena suspensa não bastou para “prevenção da reincidência”, como esperar agora que outra dose do mesmo remédio assumisse eficácia curativa, a menos que verificado um verdadeiro milagre?” (19).
No entanto, tento em atenção que parte dos factos pelos quais o arguido foi condenado em 1ª instância não podem ser considerados, face à verificação de caso julgado, e ponderando todas as circunstâncias ocorrentes, entende-se condenar o arguido, no que tange ao crime de maus-tratos a cônjuge, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão.
Termos em que se acorda:
a) Julgar verificada a excepção de caso julgado relativamente aos factos praticados pelo arguido em Janeiro, Março e Maio de 2004;
b) Condenar o arguido pela autoria material do crime de maus-tratos a cônjuge na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, mantendo quanto ao mais o acórdão recorrido.
Sem tributação.

Lisboa, 15-03-2006

Oliveira Mendes (relator)
João Bernardo
Pires Salpico
Henriques Gaspar

_________________________________________
1 - O texto que a seguir se transcreve corresponde ipsis verbis ao do acórdão impugnado.
2 - Consignado se deixa que o recurso às normas do processo civil nos termos do artigo 4º, do Código de Processo Penal, não se mostra adequado, posto que naquele ordenamento jurídico o caso julgado assume contornos não totalmente coincidentes – cf. Assento do S.T.J., de 93.01.27, no DR, I-A, de 93.03.10, segundo o qual os princípios que regem o caso julgado penal são produto de uma longa tradição e elaborada evolução, resultante da consideração do especial melindre da defesa dos direitos humanos, sendo que não se articulam adequadamente com as regras do caso julgado cível, o que implica que estas últimas não possam ser aplicadas, nos termos do artigo 4º, do Código de Processo Penal, pelo que se entende, uma vez que a lei penal ainda não regulamentou os efeitos do caso julgado penal, terem de se considerar como ainda em vigor as disposições regulamentadoras do tema que constavam do anterior Código de Processo Penal, na medida em que traduzem os princípios gerais do direito penal vigente entre nós.
Com esta orientação jurisprudencial que subscrevemos, não concorda Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal (1994), III, 35, que entende ser de aplicar subsidiariamente, com as necessárias adaptações, a disciplina legal do processo civil, assinalando (página 39) que a proibição do non bis in idem imposta pelo art.29º, n.º 5, da Constituição é mais ampla do que a que resultaria dos efeitos do caso julgado e é essa, em sua opinião, a principal divergência entre o efeito impeditivo do caso julgado civil e do caso julgado penal, sendo que a Constituição alarga os efeitos do caso julgado para além dos que resultariam simplesmente da aplicação subsidiária ao processo penal dos efeitos do caso julgado civil.).
3 - Constituição da República Portuguesa Anotada (1978), 21 e 55.
4 - Vide Luís Osório, Comentário ao Código de Processo Penal Português, 2º, 460.
5- Vide Francisco Isasca, Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, 220/221, que temos vindo a transcrever.

6 - Não se aborda aqui a questão da identidade de sujeitos, uma vez que no que a ela concerne inexiste qualquer dúvida sobre a verificação daquela identidade.
7 - Há que excepcionar as situações em que, ocorrendo uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, o tribunal se vê impedido de julgar o arguido pelos novos factos, face ao disposto no artigo 359º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
8 - Cf. Frederico Isasca, ibidem, 228/229.
9 - Cf. Curso de Processo Penal (1958), III, 52/53.
10 - Com efeito, para Eduardo Correia o objecto do processo não se consubstancia nos factos em si mesmos, mas nas relações de coincidência ou não coincidência do comportamento de um sujeito com a norma jurídica.
11 - ibidem, 304/305.
12 - A propósito da jurisprudência alemã sobre esta temática vejam-se Claus Roxin, Gunther Arzt e Klaus Tiedeman, Introduccion Al Derecho Penal Y Al Derecho Penal Procesal (Barcelona-1989), 167, onde se refere que o Supremo Tribunal Federal (BGH), expressamente se pronunciou sobre a questão que temos vindo a abordar, decidindo que se deve ter por um único facto (objecto do processo), se existe uma “ligação interna” entre os vários actos e acontecimentos, de sorte “que nenhuma das imputações possa ser tratada por si só, e que da sua apreciação e julgamento separados resultaria uma situação de rompimento artificial de um acontecimento da vida unitário”
13 - Sumários de Processo Criminal (Lições de 1967-68), 260, onde defende que o objecto do processo individualiza-se e identifica-se por um caso jurídico-criminal concreto, traduzindo-se no problema jurídico trazido pela acusação e vertido no caso concreto.
14 - Cumpre assinalar que nada obstava a que tais factos fossem tomados em consideração por aquele tribunal, uma vez que a alteração daí decorrente deve ser qualificada como não substancial – art.358º, n.º1..
15 - Em sentido coincidente, em processo relativo a crime de tráfico de estupefacientes, veja-se o ac. do S.T.J., de 02.05.22, publicado na CJ(S.T.J.), X, II, 209.

16 - Esta circunstância poderá, no entanto, influir ao nível da determinação da pena, o que a seguir se tomará em consideração.
17- Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 344.
18 - No mesmo sentido se tem pronunciado este Supremo Tribunal; cf. entre outros o acórdão de 03.05.08, proferido no Processo n.º 875/03-5ª.
19 - Acórdão de 04.02.12 publicado na CJ (STJ), XII, I, 202.